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A raga como crime civico’ Loic Wacquant™ Resumo Ao assumir um papel central no governo pés-keynesiano da divisio racial ¢ da pobreza, o crescente sistema carcerdrio tommou-se uma forga preeminente na (re)for- magao da raga e da cidadania nos Estados Unidos da América. Nao sé significa mas também reforga a negritude através da sua fusdo pritica da cor com criminalidade ¢ violéncia desviada. Da mesma maneira que a escravatura resultou na “morte social” dos cativos africanos importados e dos seus descendentes, 0 encarceramento massivo dos Afro-Americanos induz a morte civica daqueles que enreda através da sua exclusio do contrato social. Os reclusos so 0 alvo de um triplo movimento de fechamento excludente que Ihes nega o acesso a capital cultural institucionalizado, que 08 afasta da redistribuigdo social e que os incapacita da participagdo politica. Os estatu- tos da privagdo criminal dos direitos de voto que proibem este ultimo a quase 2 mi- Ihdes de americanos (re)colocam-nos no papel histérico de antitese viva do “modelo americano”, A estreita relago entre a retérica e a politica de expurgagao politica dos condenados no fim do século e as da exclusdo dos Negros em épocas mais remotas sugere que a negritude é mais bem compreendida como o crime civico primevo da América, de acordo com a concepgao durkheimiana do crime enquanto “um acto” que “ofende estados fortes da consciéncia colectiva” — neste caso, a representagdo ideali- zada que a América tem de si propria como a terra prometida da liberdade, da igual- dade ¢ da auto-determinagao, Ao reactivar e ao actualizar a légica da infiamia raciali- * Este artigo constitui uma versao resumida de uma palestra com 0 mesmo titulo apresenta- da no Coldquio sobre Desigualdade e Cultura, do Departamento de Sociologia da Universidade de Princeton, a 1 de Margo de 2004, preparada com a revisao editorial de Daniel Sabbagh. Baseia-se no capitulo 4 do meu livro Deadly Symbiosis: Race and the Rise of Neoliberal Penality (Cambridge, Polity Press, no prelo). Estou grato a Bruce Western pelo seu convite e aos partici- Pantes no coléquio pela sua atengao paciente e interrogagdo vigorosa. A Revista Sociologia agradece ao autor a autorizagao para a publicagao da versio portuguesa deste trabalho. Professor of Sociology na University of California-Berkeley e Investigador do Centre de Sociologie Furopéenne em Paris. Os seus interesses de investigagdo incluem a marginalidade urbana comparada, o Estado penal, os oficios corpéreos, a teoria social e a politica da razo. Entre ‘0s seus livros recentes em portugués encontram-se Corpo e alma. Notas etnogréficas de um apren- diz de boxe (2002), O Mistério do ministério. Pierre Bourdieu e a politica democrética (2005) e As duas faces do gueto e outros ensaios (2006). As suas investigagdes em curso incluem uma antropologia carnal do desejo e uma sociologia histérica da dominagdo racial em trés continentes. Loic Wacquant zada, a excomunhdo criminal lembra-nos que a divisio de casta é um trago constituti- Vo e nfo teratolégico do republicanismo americano. Dé testemunho da compleigio estratificada e restritiva da cidadania americana no limiar do novo milénio. A muito peculiar concepgao de “raga” enquanto “principio nacional de visio e divis&o social” (Bourdieu, 1989) que a América inventou, pratica- mente sem paralelo no resto do mundo pela sua rigidez e consequencialidade, surge como resultado directo da colisdo histérica entre a escravatura e a democracia depois de a escravidio ter sido estabelecida como o principal meio de recrutamento e controlo de m&o-de-obra numa colénia subpovoada, terra de um sistema agrario de produg%o comercializada (Fields, 1982). Nenhuma outra sociedade tera combinado esses dois principios opostos de organizacao politica e social: a escravidio foi abolida na colonia do Cabo em 1834, sete décadas antes desta se transformar na nascente Republica Sul- Africana; os Franceses, sob 0 dominio de Napoledo, restabeleceram a escra- vatura em 1802, depois de a terem suprimido em 1794, mas apenas relativa- mente as coldnias ultramarinas, tendo sido erradicada em 1848, muito antes da Terceira Republica estabelecer firmemente os principios democraticos; 0 Brasil manteve a escravatura durante mais tempo, mas tratava-se de uma insti- tui¢do moribunda que havia de persistir até 1888, sob um regime monarquico. Que apenas os EUA fossem uma repiiblica detentora de escravos basea- da na doutrina dos direitos naturais explica a sua elaborag4o de uma nociva e abrangente concep¢io de “raga” enquanto etnicidade denegada, destinada a reconciliar a “verdade auto-evidente” de que “todos os homens so criados iguais” e dotados de “determinados direitos inalienaveis” com a notdria vio- lagao destas mesmas verdades pela sujeigao de milhdes de negros. O regime Jim Crow' redefiniu a fronteira racializada entre 0 escravo e 0 homem livre numa rigida separacio de casta entre “brancos” e “Negros” — abrangendo nestes todas as pessoas de ascendéncia africana conhecida, inde- pendentemente de quao minima ou (in)visivel ela fosse — contaminando assim todas as fissuras da cultura e do sistema social do pés-guerra civil no Sul do pais. Com a abolicao da escravatura dos Negros, o “estatuto de segregagao”, ancorado na divisao entre m&o-de-obra livre e nao livre, transformou-se num “sistema social vertical de super- e subordinag4o” que “integra[va] as comu- nidades etnicamente divididas numa sé unidade politica” e estimulava a con- ' Nota de tradugio: O regime Jim Crow refere-se geralmente & legislago e aos regulamen- tos que estabeleceram a segregagao racial no Sul no final do século XIX. 10 Araga como crime civico tinuada monopolizagao da honra pelos brancos (Weber, 1920: p. 934). O gueto, por sua vez, imprimia esta dicotomia na composi¢ao espacial e nos esquemas institucionais da metrépole industrial, de tal modo que, no segui- mento dos “motins urbanos” dos anos 60 do século passado, que na verdade foram rebelides contra a intersecgdo de casta e subordinagao de classe, urbano € negro tornaram-se quase sinénimos na elaboragao de politicas, bem como na linguagem quotidiana. E a “crise” da “cidade interior”?, que ent&o substi- tuia a “cidade perversa” do final do século XIX como a encarnac¢ao do medo urbano e dissolugao sécio-moral na consciéncia colectiva da nagdo, veio rep- resentar, por um lado, a constante contradi¢Ao entre o teor individualista e competitivo da vida americana e, por outro lado, o persistente afastamento sdcio-espacial dos afro-americanos dessa mesma vida. No despontar de um novo século, compete a outra “instituicdo peculiar”, nascida da jungdo do hiper gueto com o sistema carcerario, sustentar 0 isola- mento social e espacial dos seus residentes e remodelar 0 sentido social e 0 significado de “raga”, em conformidade com os ditames da economia desreg- ulada e do Estado pés-keynesiano (Wacquant, 2000). Assim, o aparelho penal tem desde ha muito servido como cimplice na dominagao étnico-racial, aju- dando a estabilizar um regime sob ataque ou a lancar uma ponte sobre o hiato entre sucessivos regimes. Deste modo, os “Cédigos Negros” da década de 1860 serviram para manter a mao-de-obra afro-americana no seu devido lugar, a seguir a aboli¢ao da escravatura (Myers 1998), enquanto que a crimi- nalizagao dos protestos e dos direitos civis no Sul, na década de 1950, procu- tava retardar a agonia do regime Jim Crow (O”Brien, 1999). Mas a institui¢ao carceraria assume actualmente um papel diferente, no sentido de que, pela primeira vez na historia dos EUA, foi elevada a categoria de maquina princi- pal para a “formagao da raga”. A sua mio de ferro e actividade classificatéria assumiram uma importéncia e um alcance totalmente sem precedentes na historia Americana, e sem paralelo em qualquer outra sociedade. A ressurgente perigosidade da negritude Entre os multiplos efeitos do casamento entre o gueto e a prisio numa tede carcerdria alargada, talvez o mais consequente seja a revivescéncia e Solidificagdo oficial da intemporal associagdo da negritude com a criminali- * Nota de tradugdo: Cidade interior (Inner city), a zona central, normalmente mais antiga, mais desfavorecida ¢ mais densamente povoada de uma cidade. il Loic Wacquant dade ¢ a violéncia desviante. A condenagao da negrofobia na esfera publica em nada dissipou o temor e o desprezo geralmente sentido pelos brancos rela- tivamente a um grupo que continuam a contemplar com desconfianga e cujos membros das classes baixas identificam virtualmente com a desordem social, a dissolucao sexual, a deterioracao escolar, o aproveitamento da assisténcia social, a degradagao do bairro, a regressdo econdmica e, mais significativa- mente ainda, com o crime violento (Hurwitz & Peffley, 1998; Terkel, 1992). Estudos sobre o medo do crime entre a populagdo tém vindo sistematicamente a demonstrar que os americanos tém mais medo de serem vitimas de negros do que de brancos estranhos, enquanto que estudos sobre as causas da crimi- nalidade observada nas grandes cidades revelam que a percentagem de homens negros jovens esta positivamente associada a crenca de que o crime de rua é um problema sério, resultado do efeito conjunto de caracteristicas individuais e de vizinhanga (Quillian & Pager, 2001, St. John & Bates, 1995). A equiparagao de afro-americanos andénimos do sexo masculino com o perigo generalizado na rua nio se limita, além do mais, aos bairros e habitantes bran- cos da metrdépole dualizante. Ja nos anos 80, nos préprios distritos predomi- nantemente negros, difundia-se uma “mentalidade de estado de sitio” que pre- dispunha os seus residentes a “desconfiarem de homens negros desconheci- dos que pudessem encontrar” em lugares publicos (Anderson 1990, p. 5). Assim, e de um modo extremamente generalizado, a estratégia dominante para garantir a seguranga fisica no espago urbano passava sobretudo por evi- tar os afro-americanos mais jovens. Na metrépole dualizante, o slogan valo- rativo “black is beautiful”* (“o negro é belo”) foi na realidade suplantado pela injuriosa maxima “o preto € perigoso”. Juntamente com 0 regresso das mitologias sobre atavismo criminal ao estilo de Lombroso e com a ampla difusao de metaforas bestiais nos campos jornalistico e politico (em que as mengées a “superpredadores pré-sociais”, “alcateias”, “animais” e referéncias afins sio lugares-comuns), 0 maci¢o e excessivo encarceramento de negros proporcionou uma poderosa justificagao consensual para “usar a cor como procuragao de periculosidade” (Kennedy, 1997, p. 136). Nos ultimos anos, os tribunais americanos tém vindo a autori- zar, com uma regularidade impressionante, a policia a usar a raga como “um sinal negativo de risco acrescido de criminalidade” e os eruditos da * Nota de Tradugo: Slogan popular dos anos 60 largamente utilizado para incutir orgulho na populagao negra nos Estado Unidos, e associado aos movimentos “Black Power” que reivin- dicavam justiga social. 12 A raga como erime civico jurisprudéncia acorreram a endossd-lo como “uma adaptacfo racional 4 demografia do crime”, facto evidenciado e rapidamente validado, por assim dizer, pelo rapido enegrecimento da populagio prisional, apés os mot s do gueto nos anos 60, embora tal pratica vinculasse grandes inconsisténcias do ponto de vista da lei constitucional (Kennedy, 1997, pp. 143, 146). Em todo o sistema urbano de justiga penal, a formula “Jovem + Negro + Masculino” sera habitualmente equiparada com “causa provavel”, justificando a prisdo pre- ventiva, 0 interrogatorio, a revista corporal e a reclusdo de milhdes de afro- americanos do sexo masculino, todos os anos (Gaynes, 1993). Na sua decisdo de 1968, Terry contra Ohio, precisamente na mesma altura em que os motins raciais comegavam a incomodar a metrépole, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos autorizou a Policia a levar a cabo detengdes e buscas desde que houvesse a minima “suspeita razodvel” de que actividades criminais estariam para acontecer, com base na mera presenca do individuo numa area de elevada incidéncia de criminalidade ou caso apresen- tasse um comportamento evasivo. Nas décadas seguintes, a redugao do limi- ar da prova tal como foi sucessivamente estabelecida pelo poder judicial, a fim de satisfazer este critério de “localizagéo mais evasio”, “resultou num elevado nimero de detengées € revistas a residentes dos interiores citadinos (inner city) — principalmente de pessoas desfavorecidas, de afro-americanos e de hispano-americanos — em muito desproporcional quando comparado com as suas populagdes e frequentemente injustificadas” (Harris, 1994, pp. 622-623). Esta situagao desencadearia um ciclo vicioso no qual as forgas policias detém residentes dos guetos pela simples razdo de que estes fazem tudo para as evitar devido precisamente ao constante assédio a que esto sujeitos por essas mesmas forgas. As organizacées dos direitos civis incorpo- raram de tal modo esta pratica no seu “horizonte de expectativas” normal que passaram a treinar os jovens negros nas principais cidades a lidar com con- trolos de rotina, operagées de detengao e de revista e rusgas de rua. Nos sub- Urbios de Maryland, em Washington, por exemplo, a filial local da NAACP* e a Associagao de Advogados Negros juntaram-se a professores ¢ A Policia, para ministrar cursos nas escolas secundarias, nos quais os adolescentes ensai- avam, com agentes policiais reais, a sua provavel futura detengdo, revista corporal e interrogatério, a fim de minimizar a probabilidade de incidentes e danos sérios (Miller, 1997, pp. 100-101). “Nota de Tradugaio: NAACP — National Association for the Advancement of Colored People (Associa Nacional para a Promogio de Pessoas de Cor) 13 Loic Wacquant Mas a juncao de negritude e criminalidade nao se limita as fronteiras do nucleo urbano racializado: noutras zonas da metrépole, a Policia elaborou, e os tribunais endossaram, uma doutrina do “deslocado”, segundo a qual os agentes da policia tém toda a legitimidade para desconfiar da presenga de uma pessoa de uma determinada etnia numa drea em que outra etnia seja predom- inante. Assim, quando um homem negro aparece num bairro predominante- mente branco, a sua raga é entendida como um indicador externo de potencial actividade ilicita e utilizada como justificagao para o deter, interrogar e revis- tar. Por outro lado, quando um branco entra num gueto, a Policia pressupde que ou esta de alguma forma envolvido em actividades criminais, geralmente © consumo de drogas ou a prostituigdo, ow que se perdeu e que requer assisténcia para evitar ser molestado. (Durante trés anos, no percurso de carro para e de um gindsio de boxe onde eu estava a desenvolver um trabalho de campo etnografico, no gueto Woodland de Chicago, o meu treinador, DeeDee, pedia-me sempre para manter uma velocidade razodvel com medo de que a Policia nos mandasse parar, apenas porque, aos seus olhos, um jovem branco eum velho negro a viajarem juntos dentro de um decrépito Plymouth Valiant naquela zona, s6 poderiam estar envolvidos numa qualquer ilegalidade). A doutrina do “deslocado”, aplicada nas zonas brancas, e as detengées policiais “aleatérias” e rusgas de rua, aplicadas nas negras, “sao um forte indicio de como a raga constitui frequentemente o unico prenincio na decisio sobre quais os suspeitos criminais a deter” (Johnson, 1995, p. 656; sobre a prevalén- cia do preconceito racial nas buscas e rusgas de rua, as detengdes sob falsos pretextos, o cumprimento da proibigdo de drogas e o policiamento pela quali- dade de vida, ver também Cole, 2000). Juntamente com a pratica pandémica de apreensdes excessivas, a aceitacao generalizada por parte dos tribunais da raga como probatério de actividade criminal e a erosao constante do critério de causa provavel estabe- lecido pela decisao Terry, asseguram que os afro-americanos urbanos pobres acabem por ser apanhados nas garras do sistema penal em nimero e com uma intensidade muito desproporcional ao seu verdadeiro envolvimento criminal (Maclin, 1998; Roberts, 1999). A jungaio de negritude e crime na represen- tago colectiva e na politica de justiga (sendo o outro lado desta equagao, a jungao de negritude e beneficiario de assisténcia social, no debate sobre a politica social), reactiva assim a questdo da “raca”, proporcionando um escape legitimo para a manifestagado de animosidade contra os negros, sob a forma da vituperagao publica de criminosos e prisioneiros. Como o escritor John Edgar Wideman (1995, p. 504) assinala: 14 A raga como crime civico “£ respeitavel cobrir os criminosos de alcatrao e penas, e defender que devem ser encarcerados e que se deite fora a chave. Nao ¢ racista ser-se contra o crime, embora © criminoso arquetipico, nos meios de comunicagao social e no imaginério piblico, tenha quase sempre a cara de “Willie” Horton’. Gradualmente, “urbano” ¢ “gueto” toraram-se palavras de cédigo para lugares terriveis onde s6 os negros residem. A prisio est rapidamente a ser redefinida semanticamente da mesma forma segregada.”” Civiliter mortuus: a tripla exclusio de reclusos ‘Ao assumir um papel central no governo pés-keynesiano da raga e da pobreza na encruzilhada entre o mercado de trabalho desregulado de baixos salarios, um remendado aparelho de “assisténcia social — ocupacional” * (“welfare-workfare”) concebido para apoiar 0 emprego eventual, ¢ os vesti- gios do gueto, o desmesurado sistema carcerario dos EUA transformou-se no principal motor de produgao simbélica por direito proprio’. Nao constitui apenas a instituigao por exceléncia que veicula o significado e a imposigao legal da negritude, tal como a escravatura 0 foi para todos os efeitos durante os primeiros trés séculos da histéria dos Estados Unidos. Da mesma forma que a escravatura conseguiu a “morte social”, em solo americano, dos cativos africanos importados e dos seus descendentes, arrancando-os de todas as telagdes sociais reconhecidas (Patterson, 1982), a encarceragdo em massa induz também a morte civica daqueles a quem enreda, expulsando-os do con- trato social, desse modo tornando-os civiliter mortui. Os reclusos sdo alvo de um movimento triplo de encerramento excluidor instigado, a partir de cima, pelo Estado, e suportado, por baixo, pela temerosa classe média e pelas fracgdes ressentidas da classe trabalhadora. 1. Nega-se aos reclusos 0 acesso ao capital cultural institucionalizado: no preciso momento em que as qualificagdes universitarias se tornaram pratica- mente num pré-requisito de emprego no sector (semi-)protegido do mercado * Nota de Traduso: Criminoso condenado a priso perpétua por assassinio, que foi liberta- do ao abrigo de um programa de licengas de fim-de-semana do Estado do Massachusetts, mas que no regressou ao estabelecimento prisional apés a licenga, cometendo a seguir roubo a mio arma- dae violagao. © Nota de Tradugdo: termo original — Workfare: programas em que os desempregados tém de realizar trabalho comunitério ou frequentar cursos de formagao profissional em troca de um subsidio de desemprego. ” Este argumento baseia-se na explicagdo de David Garland de “penalidade como um con- junto de praticas significantes” que “ajudam a produzir subjectividades, formas de autoridade e telagdes sociais” de maneira geral (Garland 1991). IS Loic Wacquant de trabalho, os reclusos tornaram-se inelegiveis para as Bolsas Pell, o princi- pal programa federal de financiamento do ensino superior para alunos com baixos rendimentos. Comegou-se por excluir, em 1988, os detidos por delitos relacionados com drogas, continuando, em 1992, com os condenados a morte ou a prisao perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, e terminando, em 1994, com a exclusao de todos os restantes prisioneiros estatais e federais. Esta expulsao do ensino superior foi votada pelo Congresso com 0 tnico propésito de dramatizar a divisdo entre criminosos condenados e “cidadaos cumpridores da lei”, em flagrante menosprezo pelas esmagadoras provas de que os programas universitarios prisionais contribuiam para uma drdstica redugo na taxa de reincidéncia criminal, bem como terem constituido um fac- tor na manutengao da ordem prisional (um pormenorizado relato histérico e analitico da campanha para suprimir o financiamento publico dos programas de ensino superior nos estabelecimentos prisionais nos Estados Unidos, nos anos 90, encontra-se em Page, 2004). A expulsao foi alargada, alguns anos mais tarde, por uma clausula da Lei do Ensino Superior de 1998, que impede os estudantes condenados por delitos relacionados com drogas de receberem qualquer tipo publico de bolsa, empréstimo ou assisténcia no trabalho. Nos debates parlamentares e nos meios de comunicagao social, os oposi- tores ao financiamento federal do ensino superior nos estabelecimentos pri- sionais exageraram desmesuradamente 0 seu alcance e peso financeiro, ale- gando que as bolsas atribuidas aos reclusos tinham sofrido um “aumento exponencial” para os 200 milhdes de dolares e que em breve excederiam a marca dos mil milhdes de délares. Reivindicavam que, em resultado desta generosidade deslocada, os “americanos honestos e trabalhadores” viam 0 seu acesso a universidade cada vez mais vedado. O senador Kay Bailey Hutchison, do Texas, caiu no ridiculo de afirmar que condenados perspicazes estavam, ento, a cometer crimes com 0 objectivo expresso de conseguirem um curso superior gratis atras das grades (ver Acta do Congresso, Senado dos Estados Unidos, 103° Congresso, vol. 139, n.157 [Novembro de 1993], Sessao, Terga-feira, 2 de Novembro de 1993). Na realidade, na altura em que foram excluidos definitivamente do programa, os criminosos que recebiam bolsas federais nao totalizavam os aproximadamente 200,000 (como mantido pelos seus detractores), mas apenas 27,000, representando uma despesa total de 35 milhdes de délares, isto 6, apenas 0,5 por cento da total apropriagao do programa Pell, de 6,3 mil milhdes de ddlares. Para além deste desmedido exagero, 0s opositores do ensino universitario nas prisdes instituiram retori- camente uma oposi¢ao dicotomica e um jogo de soma nula entre condenados 16 A raga como crime civico e “filhos de trabalhadores de baixos rendimentos”, sendo que ambas se reve- lam infundadas: em primeiro lugar, os préprios prisioneiros provém essen- cialmente das camadas mais baixas da classe trabalhadora e, em segundo lugar, 0 seu acesso a bolsas de estudo nao iria privar outros candidatos, visto que o programa de bolsas Pell funciona em regime de aprovacao quase automatica, no sentido em que todos os alunos que satisfagam os requisitos de rendimentos teriam direito a financiamento. Mas este quadro de pesadelo em que o governo magnanimo esbanjava apoios em prisioneiros (negros) espoliando assim o americano comum empenhado no seu trabalho, na moralidade e na respeitabilidade do seu justo quinho do “Sonho Americano” encontrou uma poderosa ressonancia no gene- ralizado sentimento racialmente inflectido que atravessava o pais contra 0 Estado-Providéncia, indo igualmente ao encontro da nogao ja muito batida do estragar os criminosos “com mimos” em “prisdes de cinco estrelas” (Flanagan & Longmire, 1996; Gilens, 1999). E, no mesmo sentido, desencadeou uma generalizada inquietacao na classe média em rela¢ao 4 subida em flecha dos custos do ensino superior e da maior intensidade e imprevisibilidade da com- peti¢o educacional: o prego do ensino superior expresso enquanto fun¢ao do salario médio por hora duplicou entre 1972 e 1992, enquanto que o numero total de bolsas atribuidas diminuiu, para além de que o “ensino superior ja nao constitui uma garantia de seguranca econémica” (Maré, 1995). Precisamente numa altura em que se havia tornado uma condi¢ao sine qua non de pertenga as classes média ¢ alta, tirar um curso superior tornara-se tao dispendioso que, j4.em 1995, nove Estados tinham estabelecido programas de financiamento antecipado de propinas, permitindo que os pais comegassem, desde 0 nasci- mento do seu filho, a “adquirir” um futuro lugar na universidade publica, e a maioria dos Estados instituiu “planos 529” que ofereciam beneficios fiscais as familias que abrissem contas poupanga com vista ao ensino superior dos seus filhos. Tornava-se politicamente muito mais vantajoso e financeiramente mais econdmico aos titulares de cargos pablicos censurar o financiamento do ensi- no superior de prisioneiros, por muito insignificante que fosse, do que con- frontar as origens dos crescentes custos do ensino e a decrescente produgao de estratégias de reprodugdo da classe média através da transmissao de capi- tal cultural. O que ha de particularmente notavel em todo este episddio é 0 facto de os politicos terem posto de parte a recomendagio undnime por parte de oficiais correccionais, directores prisionais ¢ penalistas de manter o ensino superior atras das grades. Assim, desmantelou-se um dos poucos programas efectivos ¢ eficazes que tinha comprovadamente contribuido para uma signi- 17 Loic Wacquant ficativa redugo na reincidéncia criminal (a taxa de reincidéncia num periodo de trés anos entre ex-prisioneiros com um grau universitario é de 5%, em comparacao com a média nacional de 40%), pelo simples designio de, através de uma retérica penal populista, retratar os mais indignos entre os indignos desfavorecidos — os criminosos condenados — como parasitas sociais alimen- tando-se a custa de um Estado-Providéncia excessivamente generoso e sugan- do os “‘délares dos impostos tao arduamente ganhos” de honestos cidadiios que, embora trabalhassem e poupassem, lutavam para transmitir 0 seu estatuto de classe média aos seus filhos. 2. Exclui-se sistematicamente os prisioneiros da redistribuigdo social e da assisténcia publica numa altura em que a inseguranga laboral torna tais pro- gramas cada vez mais vitais para os que se encontram nas regides mais desfa- vorecidas do espago social. A legislagao federal nega a atribuicdo de subsidios de assisténcia social, pensées por incapacidade, pensdes de veteranos e cupdes alimentares a qualquer pessoa que tenha estado detida por mais de 60 dias, ale- gando que os reclusos ja recebem alimentagio, roupa, alojamento e cuidados de satide das autoridades correccionais. Também proibe o acesso de criminosos condenados a muitos postos de trabalho governamentais ou em adjudicatarios federais, trunca os seus direitos parentais e exclui-os de uma multiplicidade de beneficios federais*. Para além disso, a Work Opportunity and Personal Responsibility Reconciliation Act (Lei de Reconciliagao das Oportunidades no Trabalho e de Responsabilidade Pessoal) de 1996, que acabou com a “assistén- cia social tal como a conhecemos”, exclui muitos ex-condenados do acesso a Medicaid’, a habitagao social, aos certificados da Secc4o 8 (um subsidio governamental de arrendamento) e a formas relacionadas de assisténcia (nor- malmente calculadas com base nos rendimentos familiares). Também exclui da ajuda publica os violadores da liberdade condicional e liberdade vigiada (sem olhar a condi¢ao que infringiram) e nega assisténcia, por um periodo de dez anos, a todos os que tenham falseado o seu local de residéncia de forma a obter assisténcia. A SecgSo 115 da Lei vai ainda mais longe, ao instituir uma proibigao vitalicia no acesso 4 Temporary Assistance to Needy Families (Assisténcia Tempordria 4s Familias Necessitadas) — 0 programa sucessor do * Em 1997, 0 Bureau of Justice Assistance’ “Fact Sheet” em Denial of Federal Benefits Program and Clearinghouse registava 75 programas para os quais a elegibilidade era poten- cialmente condicionada pelo estatuto de criminoso (Olivares et al., 1996). * Nota de Tradug&o: Medicaid - Um programa financiado pelos governos federal e estadu- ais concebido para prestar servicos de saiide a beneficidrios com baixos rendimentos. 18 Araga como crime civico AFDC" — ¢ a habitago social a todas as pessoas condenadas pelo delito de consumo ou venda de drogas, sem excepc4o, nem sequer para as mais indi- gentes e desesperadas, tais como mies gravidas e toxicodependentes de agre- gados familiares monoparentais (Hirsch, 2001). Esta proibicdo federal, imposta exclusivamente aos transgressores rela- cionados com narcéticos (e nao, por exemplo, aos assassinos miltiplos e vio- ladores em série), foi debatida no Senado em apenas dois minutos, um minu- to por partido, e nem sequer foi discutida na Camara dos Representantes, antes de ser adoptada por uma esmagadora maioria em ambas as camaras. Embora a lei Ihes outorgue a flexibilidade de nao optar por esta medida, a maioria dos estados avangou com a sua implementagao: 22 aplicaram a inter- dig&o em pleno e outros 20 apenas modificaram 0 seu Ambito e termos, incluindo 10 que tornaram a atribuigdo de beneficios contingente arealizacao periddica de andlises de detec¢ao de drogas e de tratamento contra as drogas (Rubinstein & Mukamal, 2002). A perda dos beneficios de seguranga social mina gravemente a possibilidade de as mulheres pobres se sustentarem e de satisfazerem as necessidades basicas dos seus filhos, aumentando a probabili- dade de estes Ihes serem retirados para instituigdes estatais, de acordo com a Adoption and Safe Family Act (Lei da Adopgao e da Seguranga Familiar) de 1997, que veio acelerar o fim dos direitos parentais para as mulheres a cumprirem penas minimas obrigatérias (tipicamente por delitos federais rela- cionados com drogas). Também vém as hipéteses de se livrarem da sua toxi- codependéncia diminufdas, j4 que, perdendo 0 direito a qualquer tipo de sub- sidio apés uma condenacao criminal, deixam de poder pagar a sua estadia nos centros de reabilitagao. Em termos globais, esta disposi¢ao afectou cerca de 92,000 mulheres e 135,000 criangas, das quais mais de metade so afro-amer- icanas e hispnicas (Allard, 2002). Outra legislagao federal aprovada em 1996 e 1998, no seguimento da “reforma da assisténcia social”, estabelece critérios rigidos de acesso e expulsdo da habitagdo social ao abrigo de uma nova politica, orgulhosamente anunciada pelo préprio Presidente Clinton, em 1996, denominada “One Strike and You’re Out” (“Uma Falha e Estas de Fora”"). Estas novas regras, pronta- mente adoptadas por trés quartos das autoridades de habitac4o da nacdo, con- cedem a estas tltimas ampla discricdo para desalojar os inquilinos condenados “Nota de Tradugio: Aid to Families with Dependent Children — Assisténcia a Familias com Criangas Dependentes "' Nota de Tradugio: Termo relacionado com o basebo! americano, em que o batedor falha um remate. 19 Loic Wacquant por um delito relacionado com drogas e até mesmo a despejar uma familia inteira por violagées criminais cometidas Por qualquer um dos seus membros, dentro ou fora do complexo habitacional. Algumas agéncias chegaram a expulsar agregados familiares depois de um residente ter um envolvimento minimo com os agentes de seguranga, mesmo que se tratasse de uma simples detengao que nao conduzisse a qualquer acusagao criminal (Rubinstein & Mukamal, 2002, p. 48). Até agora, esta estratégia estatal de exclusio da habitago social atingiu uma populagao relativamente pequena, contando com cerca de 20,000 pessoas desde de meados de 2002, mas o seu efeito é draco- niano, visto que agrava a sua instabilidade social e tora a reunificagao da familia, apés 0 encarceramento, consideravelmente mais arriscada e dificil. E a mensagem que veicula é clara como a agua: comete uma infracgo rela- cionada com drogas no nivel mais baixo da ordem de classe e casta e excluis- -te da comunidade civica, possivelmente deixando a tua familia sem abrigo. E de notar que nao existe nenhuma proibi¢ao comparavel da redis- tribuigado governamental no outro extremo do espectro social, como por exem- plo, através da suspensao de beneficios fiscais relacionados com os juros do crédito 4 habitagao para as classes média e alta cujos membros tenham cometido delitos relacionados com drogas ou outros “crimes de prosperi- dade”, tais como evasio fiscal, trafico de influéncias ou fraude financeira. Também deve ser assinalado que os amplos esforgos da Administragao da Seguranga Social para detectar casos de Pagamentos erréneos do Supplemental Security Income (Rendimento Suplementar de Seguranga) (um programa dependente da comprovagao de rendimentos que proporciona paga- mentos em dinheiro a individuos idosos, cegos ou incapacitados, para os aju- dar a satisfazer as necessidades basicas) tém por alvo apenas os residentes dos estabelecimentos prisionais, deixando de fora os internados de outras institui- g6es piiblicas, tais como hospitais, clinicas, lares de terceira idade, abrigos e centros de reabilitaco de alcoolismo e toxicodependéncia, que também sao legalmente inelegiveis para receber assisténcia, mas que so essencialmente dirigidos a classe média (USGAO, 1995, pp. 2-3). 3. Nega-se aos condenados o acesso a participagao politica pela via da “privacdo penal dos direitos de voto”, praticada a uma escala e com um rigor que seria impensdvel em qualquer outro pais. Todos os Estados da Unido, excepto 0 Maine e Vermont, negam o voto a adultos mentalmente compe- tentes detidos em prisdes estatais e 44 estendem esta proibi¢ao aos detidos em prisdes locais. Além disso, 34 Estados proibem os condenados colocados em liberdade vigiada de exercer os seus direitos politicos, enquanto que 29 tam- 20 A raga como crime civico bém interditam o voto aos sujeitos a liberdade condicional. Em 14 estados, a maioria de todos os ex-presididrios é impedida de votar, mesmo quando estes j4 nfo est’o sob supervistio da justica penal — uma proibigdo vitalicia, em 8 deles (Alabama, Florida, lowa, Kentucky, Mississipi, Nevada, Tennessee, Virginia e Wyoming)”. Esta combinagao de restrigdes de voto extremamente abrangentes e amplas, fundamentadas na sangdo penal, e de taxas de conde- nago astronémicas resulta numa situagdo em que, no final de 2000, estima- -se que 4,7 milhdes de americanos — um em cada quarenta ¢ trés adultos — tenha perdido, temporaria ou permanentemente, o direito de votar, incluindo 1,8 milhdes que nao estavam atras das grades e outros 1,7 milhdes que cumpriram a sua pena, tornando os criminosos € ex-criminosos 0 “maior grupo de cidaddos americanos que sao excluidos por lei” de participar em eleigdes (Keyssar, 2000, p. 308. As estimativas numéricas variam de acordo com as fontes; as que so aqui apresentadas foram retiradas do Apéndice A de Uggen & Manza, 2002, tabela p. 797). Dada a composi¢ao etnicamente assimétrica da populacao sob vigilancia da justia penal, estes regulamentos representam um golpe particularmente severo na capacidade eleitoral dos negros: dos 1,2 milhdes de presididrios estaduais e federais mantidos afasta- dos das mesas eleitorais, cerca de 632,000 sao afro-americanos; dos 1,6 mil- hoes de ex-presidiarios a quem foi negado 0 direito de voto, mais de meio mil- hao so negros. Uns meros trinta anos apés finalmente Ihes ter sido concedi- do o direito ao voto gragas 4 Revolugao dos Direitos Civis, 1,84 milhdes de afro-americanos — correspondendo a um negro em cada seis em todo o pais — estiio totalmente proibidos de participar em eleigdes através de interdigdes penais. Em 1997, sete Estados tinham proibido permanentemente 0 voto a mais de um quarto dos seus residentes negros do sexo masculino (Fellner & Mauer, 1998, p. 8). O impacto desproporcional das leis de privagao do direito de voto de criminosos ao longo do espectro da cor, em que os afro-americanos atingem uns chocantes 40% do total de pessoas que esto assim excluidas dos actos eleitorais, nado deveria constituir qualquer surpresa, visto que a longa arvore genealdgica destas leis esta intimamente entrelagada com a historia da domi- nago racial nos EUA. Embora, aparentemente, sejam irrepreensivelmente alheias a cor, a maioria tem origem nas estratégias de contengdo racial apli- cadas pelas legislaturas sulistas no final das décadas de 1860 ¢ 1870, quando ” Para uma discusso mais detalhada do que aquela que nos é possivel aqui fazer sobre as complexidades legais em desenvolvimento na desqualificagao penal e as suas variantes, o leitor é aconselhado a recorrer 4 Harvard Law Review Association (2002) ¢ a literatura ai citada. 21 Loic Wacquant negar 0 voto a vastas categorias de condenados constituia uma forma conve- niente de excluir os negros, embora se tenham mantido figis 4 15° Emenda da Constituigao dos Estados Unidos, que proibia as restrig¢des de voto baseadas na “raga, cor ou condigdo prévia de servidio””. A titulo de exemplo, na Convengao Constitucional de 1890, no Mississipi, que tinha como seu objec- tivo explicito proibir a “dominagao do negro” nos actos eleitorais, instituiram- se 0s critérios para determinar os direitos de voto, seleccionados especifica- mente para, em primeiro lugar e antes de mais, impedir os negros de votar: escolheu-se o local de residéncia, porque acreditava-se entre os brancos que os antigos escravos eram inerentemente “desenraizados” e uma “raga migratoria”; introduziu-se o imposto eleitoral (“poll tax”) porque se acredita- Va que os negros cram naturalmente indolentes e imprevidentes; os requisitos de instrugao adequavam-se perfeitamente ao propésito de excluir membros de uma comunidade a qual era negado o acesso educagao; e, finalmente, “a lista de delitos desqualificadores” ~ que incluia fogo posto, bigamia, fraude e Pequeno furto, mas nao assassinio, violagdo ou grande furto — era talhada, na opiniao do supremo tribunal do Estado, para excluir os negros, um “povo décil € paciente (...) mais dado a delitos furtivos do que aos vigorosos crimes dos brancos” (McMillen, 1989: pp. 42-43)“. Juntamente com a discriminagao, a intimidagao e a supressdo violenta, estas medidas levaram a uma descida dras- tica no ntimero de eleitores negros, de 87,000 em 1868 para 9,000 em 1892 (e uns insignificantes 28,000 numa data tio recente como 1964), enquanto que o numero de eleitores brancos se manteve estavel nos 70,000 (alcangando meio milhao com a promulgagio da Lei dos Direitos Eleitorais de 1965). Mesmo no seu ponto maximo, no Mississipi, 0 numero de negros recenseados nunca atingiu 10% da populago afto-americana com idade para votar. Uma sofisticada andlise historica dos acontecimentos, utilizando dados decenais dos recenseamentos de 1850 a 2002, confirma “uma relago forte e Consistente entre a ameaga racial, calculada com base na percentagem de pri- " Um minucioso relato historiografico da privagao dos direitos de voto dos negros durante © apés a era da Reconstrugdio encontra-se em Kousser (1974). Os negros livres jé tinham sido alvo de um movimento radical de excomunhio politica durante a metade de século anterior & Guerra Civil, juntamente com mendigos, vagabundos e criminosos (Keyssar, 2000: p. 54-65). “ Quando os negros protestaram que estas medidas efectivamente anulavam as 134, 144, e 13° Emendas da Consttuigao dos Estados Unidos, o Governador James K. Vardaman respondeu francamente que a convengao tinha sido “reunida apenas com o propésito de erradicar os pretos a politica; ndo os ‘ignorantes e imorais’ como alguns desses apologistas vos quereriam fazer ‘crer, mas os pretos”. O principal jornal do Estado, 0 Clarion-Ledger, reforcou a ideia: “Eles no se opdem a0 voto dos pretos por conta da ignoréncia, mas por conta da cor” (McMillen, 1998, pp. 43-44). 22 A.raga como crime civico sioneiros estaduais nao brancos, e as leis que restringiam os direitos de voto dos criminosos”: os estados com quotas mais elevadas de afro-americanos atris das grades tém revelado uma maior propensio para adoptar leis mais abrangentes que negam o direito ao voto a condenados e ex-condenados, depois de controlada estatisticamente por regido, regulagao (timing), competi- tividade econdmica, poder politico partidario, constituigao populacional e taxa de encarceramento (Behrens et al., 2003). Mesmo nos Estados onde a desqualificagao de criminosos nao foi adoptada com objectivos de exclusao racial, esta tem actuado com efeitos tao notoriamente divergentes em todo 0 espectro da cor que o Director da Comissao dos Direitos Civis dos Estados Unidos salientou, j4 em 1974, que, seja qual for o seu designio, tais leis “esta- beleceram uma odiosa discriminagao racial contra cidadaos minoritarios” (citado em Hench, 1998: p. 768). O facto da generalizada excluso de criminosos dos actos eleitorais cons- tituir apenas uma entre uma pandplia de medidas adoptadas durante e apds a Reconstrugio para escorar a supremacia branca, diminuindo ou aniquilando o voto negro, ajuda a explicar porque é que muitos estados voltaram a conceder © direito de voto a ex-condenados durante os anos 60 e 70 do século passado. O regime Jim Crow desmoronara-se ¢ 0 gueto urbano do Norte fora grave- mente abalado pelo ataque frontal dos negros e dos seus progressivos aliados num campo politico tornado momentaneamente sensivel as pressdes vindas de baixo, por meio dos imperativos externos da Guerra Fria (Dudziak, 2000) e da “pacificacao” do Vietname. Isso explica porque é que as leis eleitorais liberais decairam de novo nos anos 80 e 90, quando muitos estados restabele- ceram as restrigdes, num contexto de um forte sentimento reacciondrio anti- -negros e de declinio no empenho publico em combater a desigualdade racial (Reed, 2001; Steinberg 1995). Finalmente, o emaranhamento mituo entre a divisdo de casta e a restrigdo legal também torna mais compreensivel o facto de que esta pratica de privagdo penal do direito de voto nos Estados Unidos seja unica no mundo pela sua severidade e alcance. Numerosas democracias liberais, tais como a Suécia, a Irlanda, a Australia e a Espanha, permitem 0 voto aos seus reclusos, mas este nao constitui o verdadeiro factor de diferen- ciag&o; o que distingue a América é a exclusao politica de condenados que nao est&o presos e de ex-condenados que cumpriram as suas penas. Muitos paises ocidentais, tais como a Bélgica, a Italia e o Canada, impdem restrigdes penais ao direito de voto a condenados em liberdade vigiada ou liberdade condi- cional, mas estas sao limitadas no tempo e rigorosamente graduadas de acor- do com a gravidade dos seus delitos individuais: os impedimentos civicos sao 23 Loic Wacquant infligidos como sangao penal, funcionando juntamente com outras sangdes penais e, geralmente, envolvem apenas um pequeno niimero de transgres- sores. Alguns outros paises, entre os quais a Franca e a Alemanha, impéem restrigdes a alguns ex-criminosos por meio de decreto judicial, mas, mais uma vez, estritamente em casos de violagdes graves do cédigo eleitoral ou crimes civis como a traigdo, mas apenas por alguns anos apés 0 seu termo de prisio ou outra san¢ao ter sido cumprido. Os EUA sao o tnico pais do chamado Mundo Livre a excluir legalmente dos actos eleitorais, sem a possibilidade de sentenga judicial e recurso, amplas categorias de ex-condenados, menosprezando as particularidades das suas infracgdes e antecedentes e, mais ainda, a exclui-los para toda a vida. Além do mais, da mesma forma que se utiliza o encarceramento profusa- mente para responder a uma vasta gama de crimes que so tipicamente punidos por sangdes comunitérias ou penas suspensas de prisio noutras sociedades avangadas (Tonry & Frase, 2001), as autoridades americanas nao Teservam a privacao dos direitos de voto unicamente aos criminosos “de car- reira” violentos que, poder-se-ia argumentar plausivelmente, se afastaram de facto do corpo civico. Em varios Estados, a incapacitagao apés a sentenga é impulsionada por condenagdes que ndo implicam encarceramento, como no caso de um residente do Mississipi que descobriu que tinha sido privado dos direitos de voto para toda a vida devido a ter-se declarado culpado de passar um cheque sem cobertura no valor de 150 délares (Fellner & Mauer, 1998, p. 5). Isto aponta para uma ultima caracteristica que distancia ainda mais os EUA de outras democracias liberais que praticam a privagio limitada dos direitos de voto: a sua implementagao furtiva, quase invisivel. Todos os anos dezenas de milhares de americanos sio despojados dos direitos de voto sem sequer 0 saberem devido a prevaléncia da negociacao da pena (plea bargaining) "*, que acarreta consigo, como um viajante silencioso e distanciado, a perda deste direito civico fundamental. Esta pratica aplica-se particularmente no caso da justi¢a juvenil, em que “um jovem de 18 anos que troca uma declaraco de culpa por uma pena mais leve que nao envolva ser encarcerado (como quase todos os que infringem a lei pela primeira vez, sejam culpados ou nao) pode, involuntariamente, sacrificar para sempre 0 seu direito de votar”, sem sequer ter sido informado de tal pelo promotor de justiga (Shapiro, 1997: p. 62). " Nota de Traduc&o: Plea bargaining — Negociagio de um acordo entre um promotor de justica e um arguido, pela qual é permitido que este se confesse culpado, para lhe ser reduzida a acusagao. 24 ‘A raga como crime civico Finalmente, a legislagao na maioria dos Estados americanos que excluem pessoas com antecedentes criminais prevé processos de cleméncia e de resta- belecimento dos direitos, mas estes sio geralmente de tal forma complexos, dispendiosos e incémodos, que por si s6 garantem que pouquissimos antigos presididrios consigam recuperar o direito de participar em eleigdes. Na Florida, que sozinha incapacita um tergo dos que perderam o direito de voto em toda a nag4o, a quantidade brutal de papelada necessdria para um ex-con- denado se candidatar ao restabelecimento da sua prerrogativa de voto, citan- do um advogado a especializar-se no processo, “enche dois armarios de arqui- vo, com cinquenta fontes de informagao que abarcam vinte a cinquenta anos de vida de uma pessoa” (Dugree-Pearson, 2002: p. 381), entre as quais docu- mentagao completa da sua historia educacional, residencial e de emprego (com os nomes de todos os seus supervisores) durante mais de um quarto de século, cpias de todos os seus registos financeiros, de crédito & tributarios, bem como todos os documentos juridicos de todas as jurisdigdes em que possa figurar (incluindo todas as multas de transito recebidas durante toda a sua vida, juntamente com os comprovativos de pagamento de cada uma delas). Depois de o seu processo ter sido constituido e revisto, 0 candidato € submetido a uma audiéncia particular perante o governador e os seus mem- bros de gabinete, no final da qual o governador toma a decisdo final a sua dis- crigao. Todo o processo leva cerca de dois anos com um custo de varios mi- Ihares de délares, uma soma impossivel de suportar pelo ex-condenado médio que, além disso, raramente tem competéncia cultural para percorrer as repar- tigdes governamentais € 0 tempo livre para passar semanas e meses a viajar entre umas e outras, a fim de reunir os documentos necessarios. Isto explica por que, todos os anos, cerca de 40,000 residentes da Florida sao privados do seu direito de voto, contra poucos mais de 2,000 que os recuperam (Dugree- Pearson, 2002: p. 382-383). No entanto, a caracteristica mais impressionante da privagdo em massa dos direitos de voto dos antigos criminosos nos EUA é provavelmente o facto de ser absolutamente desprovida de uma base racional politica ou penal. Os legis- ladores, juristas e profissionais judiciais nado conseguem em todo o rigor especi- ficar ou chegar a um acordo quanto ao seu propésito. A légica oficial, funda- mentada no “medo de que os ex-condenados possam usar os seus votos para alterar 0 contetido ou a administragdo do direito penal” (Harvard Law Review Association 1989, p. 1301), é facil de refutar. Em primeiro lugar, nunca foi aduzida qualquer prova de que os ex-condenados votassem de modo diferente dos outros em questdes de crime ¢ justiga e, se o fizessem, constituem uma 25 Loie Wacquant fracgio t4o diminuta do eleitorado (cerca de 0,8% no maximo, actualmente, em toda © pais) que se torna pouco provavel que conseguissem afectar a dispen- sagdo de sangées penais. Em segundo lugar, uma exclusio tio abrangente, que proibe todos os ex-condenados da participacao eleitoral para precaver a rein- cidéncia por parte dos que entre eles foram condenados por transgressdes eleitorais, tanto é demasiadamente inclusiva (incapacita um grande nimero de antigos condenados que nunca cometeram fraude eleitoral) como insuficiente- mente inclusiva (varios Estados nao incapacitam violadores das leis eleitorais). Sao igualmente ténues e pouco convincentes as justificagées filoséficas mais amplas para a exclusio civica de “ex-condenados”. O argumento do contrato social, radicado no liberalismo lockiano, e 0 argumento civico-republicano para a privago dos direitos de voto, segundo os quais os antigos criminosos deveri- am ser excluidos porque demonstraram “torpeza moral” que os torna “inaptos para exercer o privilégio do sufragio ou para exercerem cargos em termos de igualdade com os homens livres, que so investidos pelo Estado com a toga da cidadania politica” (Harvard Law Review Association 1989, pp. 1083-1084), sob exame, acaba por ser de igual modo infundado'’. Em particular, o ponto de vista de que “o manifesto objectivo” de negar o voto aos ex-condenados consiste na “preservacao da pureza da ura de voto, que € 0 unico alicerce seguro da liber- dade republicana” (conforme expresso no histérico caso do Supremo Tribunal do Alabama de 1894, Washington contra o Estado) é incompativel com 0 empenho basico do Estado modemo na inclusio e na igualdade. E 0 desequilibrio racial originado pela privagao dos direitos de voto a criminosos viola efectivamente a clausula de defesa da igualdade da Décima Quarta Emenda, devido ao seu com- provado impacto desproporcional sobre um identificavel sector da populagao nacional que, de facto, “esgota o poder eleitoral de uma comunidade minoritéria ao longo do tempo” (Hench, 1998: p. 787). Uma anilise atenta tanto das tradigdes americanas liberais como das republicanas converge com comparacdo transnacional, entao, no levar a conclusdo de que a generalizada e ilimitada pri- vagao dos direitos de voto dos criminosos nao serve qualquer propésito gover- namental convincente e é fundamentalmente “incompativel com uma com- preensdo moderna da cidadania, do acto eleitoral e da justica criminal” (Ewald, 2002: pp. 1134-1135). Concluimos também que esta politica expansiva de exco- munhio civica dos condenados esta intimamente articulada com a tigida divisio racial do pais, do passado e do presente. '« Para um debate € uma refutacdo mais alargados deste argumento, ver Wacquant (2005a, capitulo 5). 26 ‘A rraga como crime civico A raga como crime civico Os fundamentos penais para a extirpacdo civica dos antigos condenados revelam-se ainda mais débeis do que os politicos ou filoséficos. A medida nao pode de forma alguma servir 0 propésito de inibigao criminal, dada a sua quase invisibilidade bem como o ténue ¢ enfraquecido envolvimento do eleitorado das classes mais baixas, que so o seu principal alvo (Teixeira, 1992). Da perspectiva da reabilitagdo, constitui uma “incoerente extensio da teoria da punigao”, visto que nao contempla a probabilidade de reincidéncia, e “nao prevé a possibilidade de reintegragao do transgressor na sociedade” (Johnson-Parris, 2003: p. 136; Keyssar, 2000: pp. 162-163, 307— 1-308). E também desprovida de valor, do ponto de vista da incapacitacao, pois deixa os ex-criminosos livres para cometerem toda a espécie de crimes fora dos actos eleitorais e viola notoriamente os principios da proporcionalidade e parcimé- nia, central doutrina do “just desserts” (“cd se fazem, cA se pagam”), a0 aplicar a mesma exclusao extremamente abrangente a todos os criminosos, independentemente da gravidade e pertinéncia civica da sua infracgao (von Hirsch, 1993: pp. 6-19). Da mesma forma que as doutrinas do liberalismo e republicanismo podem apenas proporcionar um verniz retérico superficial para embelezar a privaciio massiva dos direitos de voto dos actuais e antigos criminosos, nenhuma teoria de punic3o consistente pode validar e muito menos mandatar esta pratica, sobretudo a escala e com a severidade que tem vindo a assumir no limiar do século XX1. O mesmo se aplica as politicas de exclusao de acesso a qualificagdes uni- versitarias e da redistribui¢ao social financiada pelo Estado. Todas estas trés formas de isolamento excluidor, exercitadas sobre os presididrios e ex-pre- sididrios, so accionadas nao por objectivos penais praticos ou tedricos, mas pelo imperativo politico de tragar fronteiras simbélicas bem definidas, que intensificam e ampliam o estigma penal, transformando os criminosos em exclufdos (outsiders) morais de longo prazo, aparentados, em muitos aspectos, a.uma casta inferior. A etimologia de felony", proveniente do latim medieval fello, que significava vilao ou cruel e que designava uma pessoa perversa, antes de vir a significar perpetrador de um crime infame, faz-nos lembrar que a pri- vagiio dos direitos de voto dos criminosos é quintessencialmente “um acto sim- bélico de banimento politico, uma afirmagao do poder do Estado para excluir aqueles que violaram as normas prevalecentes” (Keyssar, 2000, p. 163). ”” Nota de Traducdo: Em inglés, o termo “felony” significa crime e “felon”, criminoso, sendo termos do direito penal anglo-sax6nico. 27 Loie Wacquant Mas pode, ento, perguntar-se, quais so as normas prevalecentes e como sao infringidas? Aqui deparamo-nos com o que, nas linhas iniciais de The Souls of Black Folk [As Almas do Povo Negro], W.E.B. Du Bois (1903, p. 3) melancolicamente chama “o estranho significado de ser negro aqui”, na América. Desde o nascimento da colénia até ao Presente, nao obstante as vari- acées de intensidade e Ambito, os negros foram votados ao papel de antitese viva do “modelo americano”, mesmo quando, dada a oportunidade, eles te- nham adoptado os valores nucleares e os mitos dessa nag&o com mais entusi- asmo e naturalidade do que qualquer outro grupo. Depois da separagiio social e simbélica dos servos europeus e dos escravos afticanos se cristalizar nas décadas finais do século XVII, os escravos foram fundidos numa massa com- pacta sem rosto, considerada desleal, esbanjadora e indolente — resumindo, a espoliacao viva e ambulante do ideal protestante, a0 mesmo tempo civico e religioso, daquele “trabalhador em que se pode confiar, ordeiro e diligente” que os Puritanos procuravam formar ao criar a Reptblica, e vice-versa (Kolchin, 1993, p. 68). Durante o periodo revolucionario, os cidadaos da nova nago foram ensinados a equacionar o termo “homem livre” (“freeman”) com liberdade politica e independéncia econémica, de novo por contraposi¢%o ao escravo de pele escura a quem eram violentamente negadas essas prerrogati- vas duplas do estatuto de membro da comunidade, sob as espurias razdes de que 0 escravo era congenitamente incapaz de as assumir, Por meados do sécu- lo XIX, a formagao da classe trabalhadora Operava-se por via da consolidacaio racial, fundindo negritude e servidio como o ultrajante anténimo da Americanidade, sendo “os perigos e 0 orgulho da cidadania republicana” definidos por oposigo a uma populagao negra retratada como a personifi- cagao do “estilo de vida pré-industrial, erdtico e descuidado que o trabalhador branco odiava e almejava”, ja que estava a ser pressionado a entrar na esfera do trabalho assalariado e sujeito a uma esmagadora disciplina industrial (Roediger, 1991: pp. 11, 14). Durante a maior parte do século XX, a vertente racialista do Americanismo, que interpreta a nagSo “como um povo mantido unido pelo sangue comum, pela cor da pele e uma aptiddo inerente para a auto-governangao” prevaleceu, mesmo quando as forgas universalistas do nacionalismo civico ganhavam for¢a (por exemplo, a lei de 1790 que limita- va a naturalizag4o americana a “pessoas livres de raga branca” foi formal- mente revogada apenas em 1952, mesmo havendo uma lei de 1870 que incluia “pessoas de naturalidade africana e descendéncia africana” entre as categorias elegiveis). A lenta e renitente aceitagao de imigrantes da Europa do Sul e de Leste no “cadinho (“melting pot”) de Deus” confirmou e reforgou a continu- 28 ‘A raga como crime civico ada marginalidade sécio-simbélica dos afro-americanos, enquanto que os lideres liberais que estavam, em principio, empenhados na inclusdo da nao disting&o da cor, “periodicamente reinscreviam nogées raciais na sua retorica e politicas” (Gerstle, 2001: p. 5). A raga ou, para ser mais preciso, a negritude — porque, desde as origens, tera sido a presenga de pessoas desonradas de pele escura, trazidas de Africa acorrentadas, que tornara necesséria a (re)inven¢ao e perpetuagao da visio e divistio raciais — ¢ devidamente entendida como 0 primevo crime civico da América, nfo num sentido retérico ou metaférico, mas em plena harmonia com a concepgao durkheimiana de crime enquanto “um acto” que “ofende estados fortes e definidos da consciéncia colectiva” da sociedade (Durkheim, [1893] 1930: p. 47)'*, neste caso, modos imputados de ser ¢ de se comportar que abrem fissuras na representacao idealizada da propria América como a terra prometida da liberdade, igualdade e autodeterminagao. Durante quase quatro séculos, os negros tém sido consistentemente idealizados simbolica- mente e tratados institucionalmente nao somente como nao cidadaos deixados de fora do contrato social inaugural da republica, mas como auténticos “anti- cidadaos” (Roediger, 1991: p. 57), vigiando-o e resistindo-the. Isto explica a recorréncia de esquemas e movimentos com a intengdo de extirpa-los do corpo social, fazendo-os voltar a migrar de novo para Africa, desde 0 apoio de Thomas Jefferson 4 deportagdio apés uma eventual emancipagao, até a cri- ago, por filantropos brancos, da American Colonization Society (Sociedade Americana de Colonizagio), em 1816, e ao sucesso popular da Universal Negro Improvement Association (Associagio Universal de Melhoria do Negro), de Marcus Garvey, com o seu plano de repatriar os afro-americanos para a Libéria um século mais tarde. Também explica a proibi¢ao, até 1862, de os negros se alistarem nas forcas armadas dos Estados Unidos e 0 impacto s6cio-simbélico cataclismico do seu servico na defesa da bandeira durante as duas guerras mundiais do século XX, 0 que fez mais para abalar os alicerces mentais e sociais da ordem de casta dos Estados Unidos do que todos os movi- mentos internos de protesto até entdo, ao corroer a linha diviséria entre negros e brancos no interior do érgaio mais honorifico do aparelho de Estado, as forcas armadas (Gerstle, 2001: capitulos 56; Klinkner & Smith, 1999: pp. 200- 201; McAdam, 1989). "* Durkheim continua, esclarecendo: “Nao devemos dizer que um acto ofende a consciéncia comum porque € criminoso, mas que € criminoso porque ofende a consciéncia comum. Nao 0 censuramos porque é um crime; antes, é um crime porque nés 0 censuramos” (1930, p. 48; tradugo minha). 29 Loic Wacquant Os negros no faziam parte deste “Nés, 0 Povo” (“We the People”) que dava forma a “uma mais perfeita Unio” para “defender as Béngaos da Liberdade para eles proprios ¢ para a sua posteridade”, para citar o preambulo da Constituig&o dos Estados Unidos. O africano e 0 escravo afro-americano, posteriormente 0 rendeiro (“sharectopper”) preto e o proletario industrial negro e, actualmente, 0 abominavel membro da “subclasse” (“underclass”) do interior citadino (“inner-city”), tem sido persistentemente retratados e tratados, no discurso nacional e na politica publica, como inimigos da nado ~ tal como 0s escravos 0 tém sido durante toda a histria mundial”, Richard Wright cap- tou vividamente este sentido de estranheza ¢ iniquidade combinadas em Native Son [Filho Nativo}, o memoravel retrato alegérico da condigao do afro-ameri- cano em meados do século XX, dilacerado entre a gloriosa profissio da democracia ¢ a terrivel realidade da dominagao de casta. Na cena do julga- mento de Bigger Thomas, um desajeitado jovem negro que, por ardente con- fusao racial e ressentimento, mata acidentalmente uma bela tapariga branca, a filha boémia de uma aprumada familia patricia de Chicago, o advogado de Thomas profere a sua alegagao a favor do assassino e alegado violador (porque os brancos nao conseguem imaginar que a matanca nao tenha sido por motivos sexuais) que, devido a enormidade do seu crime (apés ter sufocado a sua viti- ma em panico, corta-Ihe a cabega para langar 0 corpo na caldeira da manséio dos pais dela), ¢ tido como simbolizando todas as pessoas negras na América: “Excluido € no assimilado na nossa sociedade, porém ansiando por satisfazer impulsos de cardcter idéntico aos nossos, mas privado dos objectos e canais desen- volvidos durante longos séculos para a sua expresso socializada, cada nascer e por- do-sol 0 toma culpado de acedes subversivas. Cada movimento do seu corpo é um Protesto inconsciente, Cada desejo, cada sonho, por mais intimo ou pessoal, é um con- Iuio ou uma conspiragiio. Cada esperanga é um plano de insurreigdo. Cada brilho sibito do olhar é uma ameaca. A sua propria existéncia é um crime contra o Estado.” (Wright, 1939: p. 821; énfase no original). Dai o recurso habitual, particularmente pronunciado em periodos de tran- sigo entre regimes de dominio racial, ao aparelho penal para assegurar que 0 “espectro de complei¢ao escura se sentasse no seu lugar habitual no banquete "“Nenhum amo, quer na Roma antiga, quer na Toscana medieval, ou quer no Brasil do século XVII, poderia esquecer que o obsequioso servo podera ser também um “inimigo domés- tico” com tendéncia para o roubo, envenenamento ou fogo posto. Ao longo da histéria tem-se dito ue 0s escravos, se por vezes se revelavam tio leais e figis como bons cies, na maior parte das vezes eram preguigosos, irresponsaveis, matreiros, insurrectos, falsos e sexualmente promiscuos” (avis, 1976: p. 40-1). Note-se que esta litania de adjectivos contém os qualificativos geralmente mais aplicados a “classe urbana mais baixa e desfavorecida (the underclass)” na América nos anos 80. 30 A raga como crime civico da Nagao” (Du Bois, 1903: p. 10)”. Dai também a persistente recusa de indi- vidualizar os negros, tanto na administracdo da lei penal como em termos mais gerais no discurso piiblico, resultando na sua aglomeracao num tipo colectivo definido pelo estatuto e pelos actos, nao de um membro médio, mas do mais baixo e mais temivel (Walton, 1992: pp. 397-401) — de tal forma que os negros vivem constantemente sob a ameaca de poderem vir a ser tratados como humiliores”', sempre que nao conseguirem apresentar uma prova tangivel, pela apar€éncia, conduta ou titulo, de que merecem que lhes sejam concedidas as dignidades minimas enquanto membro civico, tal como no conto urbano do professor negro de Harvard, que nao conseguia apanhar um taxi a noite. Salvo © qualificativo “interdito”, o jurista George Fletcher esté no caminho certo quando argumenta que “a privagdo categérica dos direitos de voto introduz um elemento interdito de casta no sistema politico americano” na medida em que trata os antigos condenados “como inerentemente inconstantes, nado sé para efeitos eleitorais, mas também para testemunhar em tribunal”, como pessoas cuja posigdo social estd terminantemente diminuida por condenages anteri- ores. Com a juncdo acelerada da negritude e da criminalidade, a privacao dos direitos de voto dos condenados constitui na verdade uma “continuagao da infamia” (Fletcher, 1999: pp. 1895-1908), raiando o descrédito da escravatura a subsequente conspurcagao da separacdo pela casta pela via de Jim Crow e do gueto urbano, reactivados pela indelével sangdo penal. Repor as tendéncias penais actuais no interior do arco completo da domi- na¢do etno-racial revela rapidamente a intima afinidade entre a retérica e a politica de exclusio politica dos condenados e ex-condenados no final do século XX, por um lado, e, por outro, o discurso e a pratica da divisao racial nos seus dois periodos principais, o da sublevagao contra a Coroa Britanica e as décadas do pés Guerra Civil, isto é, as duas conjunturas histéricas em que as regras da privagdo penal dos direitos de voto foram em primeiro lugar introduzidas e depois alargadas*. Em ambos os casos, a nogGo de “pureza” ~ * Convém lembrar que, para Durkheim, a punigao consiste numa fungao social que surge “onde quer que um poder dominante se estabeleca” cuja “primeira e principal fungdo é (...) defender a consciéncia comum contra todos os inimigos tanto internos como externos” (1930: p. 51; tradugao minha). * Nota de Tradugdo: Diferenciagao no direito penal no periodo romano entre patricios, Honestiores, e plebeus, Humiliores, duas classes distintas de criminosos, com uma distingio cor- respondente em termos de castigo e pena. ” No periodo inicial de 1776 a 1830, os impedimentos civicos estavam adjudicados a comis- séo de crimes infames, de acordo com o direito inglés e romano, e também atingiu os mendigos ¢ errantes. Entre 1870 ¢ 1920, 0 impedimento criminal dos direitos de voto foi generalizado através dos estados e alargado a crimes menores (Keyssar 2000, pp. 61-63, 162-163). 31 Loic Wacquant do boletim de voto, num caso, e da comunidade branca, no outro — € 0 tesouro nacional a preservar. Em ambos o cerceamento dos “direitos naturais” e a diluig&o da protecgao constitucional so violentamente efectuadas para extir- par do corpo social as categorias consideradas inerentemente defeituosas e indefinidamente contaminadoras. (Em Washington contra o Estado, o caso do Supremo Tribunal do Alabama de 1884 que codificou a doutrina da “pureza do boletim de voto”, os criminosos sao assemelhados a “idiotas, pessoas alienadas e menores,” isto é, individuos a quem falta constitutivamente “o dis- cernimento ¢ a discrig&o necessdrios que os torna aptos” para votar). Em ambos, a categoria assim atingida pelo banimento publico é transformada num grupo permanentemente hostilizado (outgroup) e subalterno, responsabi- lizado pela sua prépria obscuridade e condigao legal inferior, que absolve 0 grupo de interesses comuns (ingroup) do seu papel e da sua responsabilidade na criagdo dessa mesma distingdo e condig4o. Tal como no caso da imposigao de uma fronteira de casta naturalizada, a privagao dos direitos de voto aos ex- transgressores simultaneamente justifica e ¢ justificada pela nogdo de que os prevaricadores sao a fonte e a personificagdo da corrup¢ao, da poluigdo e da depravagao moral; de que eles podem e devem ser isolados, vedados e politi- camente esterilizados” (Harvard Law Review Association, 1989: pp. 1314-1315, 1316). A alienagao penal dos condenados de hoje transforma-os em similes soci- ais, se no réplicas legais, dos escravos do periodo antes da Guerra Civil em mais um aspecto: embora estejam excluidos da participagao civica, todavia nao deixam de pesar na escala politica, as ordens de e para beneficio daqueles que controlam os seus corpos, tanto quanto os servos beneficiavam os donos das plantagées, ao abrigo da cldusula dos “trés quintos” da Constituigéo dos Estados Unidos. Visto que os reclusos sao contabilizados pelo recenseamento como residentes nos condados onde cumprem as suas penas, inflacionam assim artificialmente a contagem da populagao, além de baixarem o nivel do rendimento médio das cidades rurais onde se encontram a maioria dos estabe- lecimentos prisionais. Em resultado disso, estas cidades acumulam um poder politico acrescido, em termos de representacao na legislatura do seu Estado, além de recolherem financiamento federal adicional destinado 4 melhoria da pobreza: fundos publicos que seriam aplicados para providenciar servigos como a educagdo, cuidados de saiide ¢ subsidios de transporte e habitag%o para os negros desfavorecidos da cidade interior, sio desviados para beneficio da popula¢ao predominantemente branca dos municipios dos estabelecimentos prisionais. Estima-se que 0 Condado Cook perdera 88 milhdes de délares de 32

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