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Ricardo de Almeida Rocha 65

Se deverei contigo habitar


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Ela sabe, o sonho da vida se corrompeu, de um jeito que
essas flores em sua mão, exuberantes, não podem refletir e
todavia aí estão, tão coloridas, tenras e viçosas, não há como
imaginá-las em ligadas à morte mas entram com Gisele no
cemitério e a acompanham até o túmulo do pai, devolvendo a
luz ao dia, enquanto pássaros esvoaçam do prédio principal
onde está a capela e a sala onde o corpo foi velado, pintados de
um branco funéreo em que ela continua a vê-lo, como se cada
rachadura daquela fachada guardasse um segredo a respeito
dele, ou dela mesma, como se a vida estivesse muito mais ali,
na morte, no morto, do que na sua sobrevida caminhante, mais
fraca cada vez, sabe Deus a que apegada, a uma esperança é
que não, aqui está, pai, receba essa homenagem de quem o
amou muito e que sente tanto a tua falta.
Apegar-se quem sabe à manhã apenas, aqui assim
silenciosa e pacífica, onde não passam as inquietudes ou o
cansaço, e as poucas pessoas ao redor guardam entre si essa
afinidade derradeira, que têm porque estão vivas e talvez isso
prove que existe um mundo fora dali e das recordações
carregadas no ar. Então ela sobe dos joelhos, apóia-se e
levanta, retorna às passagens estreitas e solitárias, escutando
os pássaros e os murmúrios e nada escutando além da voz
noturna em que, entorpecida, sua insônia se ampara. Mas o que
dizer de desse céu de 2010, do luzidio verde dessa árvore, das
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nuvens escuras cujo contorno porém se mantém branco? Nesses
últimos meses de um ano marcado por desastres naturais em
todo o mundo, enchentes, terremotos e tsunamis, parece a
Gisele ter entendido alguma coisa do sentido da existência,
vislumbre possivelmente restrito àqueles cuja existência
aparentemente perde o significado.
Quem sabe tenha compreendido que as coisas não tem
razão de ser, não uma que se baseie no entendimento, e a partir
daí toda filosofia de vida tenha se tornado inútil. A partir daí, o
acidente, a morte do pai e a sobrevivência do tio, a doença da
mãe, tudo adquire uma lógica intrínseca alheia ao raciocínio
humano. E naturalmente seu fado, seu fardo pesado e odioso. Já
há algumas luzes no prédio, e à saída, no ritmo de seus passos,
as casas se acendem. Sua sombra lateral no caminho cresce
agora em uma parede de sépia mais saturado.
Quando Gisele se aproximou de sua rua, cerca de meia
horas depois, a luz dourava seu perfil e parecia uma orla
reluzente em seu vestido até agora há pouco, quando entrou no
prédio numa linha reta e decidida até o elevador, sentindo que o
ar lhe faltava, encostando-se ao metal frio bem debaixo da
câmera de segurança, falando baixinho palavras de consolo
para si mesma, calma, você não vai conseguir sobreviver a
tanta tensão, bom é ter esperança e esperar em silêncio,
suportar o jugo da juventude, quem sabe não tenha que
carregá-lo sozinha ao longo de toda vida, quem sabe apareça
alguém, um amigo, um parceiro, um homem que tome conta de
mim e, enquanto não acontece, farte-se de afrontas. Sentou-se
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na cama, tirou os sapatos, suspirou, tornou a levantar, chegou à
janela, ainda bem que não dá para nenhum vizinho, não gostava
da maneira como esse do mesmo andar a olhava, era bom pelo
menos em algum momento ter essa liberdade, desabotoar o
sutiã aureolada, imagine, uma santa, não, é uma coisa que não
sou, pensa ao deixar a calcinha no assoalho, solta os cabelos e
uma explosão suave e prateada que engole os intermináveis
temores da noite que pulsando se aproxima.
Gostaria de por um short, uma camiseta e ir correr no
parque junto à praia, mas seria quase uma insulto à violência da
cidade, bem, deixará para de assim que amanhecer, afinal
excepcionalmente hoje as lembranças lhe deixaram com muito
sono, e assim que dormir em seu sono sem sonhos já será
amanhã.

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