19 Ela sabe, o sonho da vida se corrompeu, de um jeito que essas flores em sua mão, exuberantes, não podem refletir e todavia aí estão, tão coloridas, tenras e viçosas, não há como imaginá-las em ligadas à morte mas entram com Gisele no cemitério e a acompanham até o túmulo do pai, devolvendo a luz ao dia, enquanto pássaros esvoaçam do prédio principal onde está a capela e a sala onde o corpo foi velado, pintados de um branco funéreo em que ela continua a vê-lo, como se cada rachadura daquela fachada guardasse um segredo a respeito dele, ou dela mesma, como se a vida estivesse muito mais ali, na morte, no morto, do que na sua sobrevida caminhante, mais fraca cada vez, sabe Deus a que apegada, a uma esperança é que não, aqui está, pai, receba essa homenagem de quem o amou muito e que sente tanto a tua falta. Apegar-se quem sabe à manhã apenas, aqui assim silenciosa e pacífica, onde não passam as inquietudes ou o cansaço, e as poucas pessoas ao redor guardam entre si essa afinidade derradeira, que têm porque estão vivas e talvez isso prove que existe um mundo fora dali e das recordações carregadas no ar. Então ela sobe dos joelhos, apóia-se e levanta, retorna às passagens estreitas e solitárias, escutando os pássaros e os murmúrios e nada escutando além da voz noturna em que, entorpecida, sua insônia se ampara. Mas o que dizer de desse céu de 2010, do luzidio verde dessa árvore, das Ricardo de Almeida Rocha 66 Se deverei contigo habitar nuvens escuras cujo contorno porém se mantém branco? Nesses últimos meses de um ano marcado por desastres naturais em todo o mundo, enchentes, terremotos e tsunamis, parece a Gisele ter entendido alguma coisa do sentido da existência, vislumbre possivelmente restrito àqueles cuja existência aparentemente perde o significado. Quem sabe tenha compreendido que as coisas não tem razão de ser, não uma que se baseie no entendimento, e a partir daí toda filosofia de vida tenha se tornado inútil. A partir daí, o acidente, a morte do pai e a sobrevivência do tio, a doença da mãe, tudo adquire uma lógica intrínseca alheia ao raciocínio humano. E naturalmente seu fado, seu fardo pesado e odioso. Já há algumas luzes no prédio, e à saída, no ritmo de seus passos, as casas se acendem. Sua sombra lateral no caminho cresce agora em uma parede de sépia mais saturado. Quando Gisele se aproximou de sua rua, cerca de meia horas depois, a luz dourava seu perfil e parecia uma orla reluzente em seu vestido até agora há pouco, quando entrou no prédio numa linha reta e decidida até o elevador, sentindo que o ar lhe faltava, encostando-se ao metal frio bem debaixo da câmera de segurança, falando baixinho palavras de consolo para si mesma, calma, você não vai conseguir sobreviver a tanta tensão, bom é ter esperança e esperar em silêncio, suportar o jugo da juventude, quem sabe não tenha que carregá-lo sozinha ao longo de toda vida, quem sabe apareça alguém, um amigo, um parceiro, um homem que tome conta de mim e, enquanto não acontece, farte-se de afrontas. Sentou-se Ricardo de Almeida Rocha 67 Se deverei contigo habitar na cama, tirou os sapatos, suspirou, tornou a levantar, chegou à janela, ainda bem que não dá para nenhum vizinho, não gostava da maneira como esse do mesmo andar a olhava, era bom pelo menos em algum momento ter essa liberdade, desabotoar o sutiã aureolada, imagine, uma santa, não, é uma coisa que não sou, pensa ao deixar a calcinha no assoalho, solta os cabelos e uma explosão suave e prateada que engole os intermináveis temores da noite que pulsando se aproxima. Gostaria de por um short, uma camiseta e ir correr no parque junto à praia, mas seria quase uma insulto à violência da cidade, bem, deixará para de assim que amanhecer, afinal excepcionalmente hoje as lembranças lhe deixaram com muito sono, e assim que dormir em seu sono sem sonhos já será amanhã.