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PRIMEIROS ANOS
Ferreira Gullar
E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.
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Meu pai
Ferreira Gullar
Os mortos
Ferreira Gullar
eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias
Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça
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Aprendizado
Ferreira Gullar
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
De Barulhos (1980-1987)
Traduzir-se
Ferreira Gullar
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Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Galo Galo
Ferreira Gullar
O galo
no salão quieto.
Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.
De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.
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—— que faço entre coisas ?
—— de que me defendo ?
Anda.
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.
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Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento
Poemas Neoconcretos I
Ferreira Gullar
mar azul
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e a lagoa, serena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena
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Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".
Um instante
Ferreira Gullar
Aqui me tenho
Como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente
POEMA
Ferreira Gullar
Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
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Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
MAU DESPERTAR
Ferreira Gullar
Zonzo lavo
na pia
os olhos donde
ainda escorre
uns restos de treva.
(agosto 1977)
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EVOCAÇÃO DE SILÊNCIOS
Ferreira Gullar
O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas
enquanto lá fora
o sol escaldava
e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:
quase se partia
e
negro
no poço
negro
o que
circulava
no quintal da casa
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O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro
e ali se deitava:
uma nesga dágua
um susto no chão
fragmento talvez
de água primeira
água brasileira
o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro
energia solar
que vendíamos
aos quilos
que silêncio
era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto ?
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(na usina)
alarido
das tardes
das manhãs
agora em tumulto
dentro do açúcar
um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.
Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
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NÃO HÁ VAGAS
Ferreira Gullar
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
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NO CORPO
Ferreira Gullar
A poesia é o presente.
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MADRUGADA
Ferreira Gullar
SUBVERSIVA
Ferreira Gullar
A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
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O Açúcar
Ferreira Gullar
Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.
Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.
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