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Margarida Rebelo Pinto

Alma de pássaro

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(c) 2001, Margarida Rebelo Pinto e Oficina do Livro - Sociedade
Editorial, Lda.

Título: Alma de pássaro


Autor: Margarida Rebelo Pinto
Revisão: Henrique Tavares e Castro
Composição: Oficina do Livro em caracteres Aldine 401, corpo 11

Capa: João Figueiredo


Fotografia: Augusto Brázio
Impressão e acabamento: Guide, Artes Gráficas, Lda. (Portugal)
2' edição: Janeiro, 2002 - 5000 exemplares

ISBN 972-8579-55-1
Depósito Legal n.° 181698/02

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A migrating bird uses up quantities of energy equivalent to a
large proportion of its body weight. It fies over vast areas of ocean,
desert and other hostile environments in which it cannot pause to
rest and will cer tainly not find any food. It may be blown off course
by winds, thrown out of the air by storms and pursued by predators.
That many migrating birds die en route to their destinations is a
certain fact, though not one that can be backed up with precise
numbers. Migrating birds generally return to the same areas to breed,
so we can work out that as few as half of them may return from one
breeding season to the next. However, it is not known how many of
these die on migration and how many die in their winter quarters, for
the simple reason that we only have a vague idea about where most
of them go.
So why do they do it? The short answer is that they migrate
because it profits them to do so. In the autumn, migrating birds
escape the cold and the food shortages that follow in winter's wake
by fleeing to the abundance of the tropics. The spring sees them
returning to take advantage of longer days and wider spaces, in
which they can more easily raise their families. Sometimes a bird
returning to breed in an area for the second or third time will nest in
exactly the same place as before. More frequently, however, birds will
upgrade to one of the more desirable residences left empty by
neighbours who failed to return. Very occasionally, a bird will return
to breed with a previous partner. But after a bird has travelled across
the world and back again, its circumstances will usually have changed
sufficiently that it will find itself in a new territory, with a new partner.
Before setting off to do it all again.

Mark Wilson, PhD em Bird Ecology University de Sheffield,


England.

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Ao meu filho Lourenço.

À Mafalda, Geninha, Clarinha, Vera e Margarida, sem as quais a


vida seria infinitamente mais difícil.
À minha querida mãe.

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“É melhor olhar para o céu do que lá viver.”
Truman Capote,
Breakfast at Tiffany's

“Que difícil que é a vida dos homens, pensou ela. Eles não têm
asas para voar por cima das coisas más.”
Sophia de Mello Breyner Andresen,
A Fada Oriana

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Estou exausta. Completamente exausta. Quando o despertador
toca, abro os olhos e levanto a cabeça que parece pesar mais do que
o corpo todo. Carrego imediatamente no botão e o silêncio regressa
ao quarto. Devo ter acordado pelo menos quatro vezes durante a
noite. Duas antes do Miguel chegar, mais uma quando o ouvi entrar e
ainda outra, perto das seis. Levanto-me a custo sem acender a luz,
tentando não acordar o Miguel que dorme do lado direito da cama de
barriga para baixo e a cara encostada à almofada. Apetece-me
passar-lhe os dedos pelo cabelo ondulado, mas em vez disso. puxo as
raízes junto às minhas têmporas, imaginando por um segundo como
ficariam os meus olhos se os rasgasse numa plástica, enquanto
massajo o couro cabeludo com a ponta dos dedos em movimentos
circulares e me dirijo para o quarto da Carolina que ainda está a
dormir. A luz entra de chofre pelas janelas da sala e da cozinha ainda
sem cortinas e percorre o hall de entrada. Abro ligeiramente as
persianas do quarto cor-de-rosa e arrumo mecanicamente os bonecos
que estão encostados à parede junto aos pés da cama.
Sento-me e começo a fazer-lhe festas até ela acordar. Saboreio o
toque doce da sua pele, a seda dos seus cabelos louros em desalinho.
Faz um esgar e vira a cabeça para o outro lado. Final mente acorda,
estende-me os braços e levanta-se, reclamando leite com chocolate e
pão com doce. As pernas finas e pequenas ginasticam-se até à
cozinha onde lhe preparo o pequeno-almoço.
Vivo sozinha há três anos, desde que o Pedro saiu de casa. Um
dia acordou, virou-se para mim e disse:
- Vou viver com a Sandra. Estou apaixonado por ela. Nem queria
acreditar. A Sandra era a professora de Tae Kwon Do. Ele andava no
Tae Kwon Do há um ano. De vez em quando, falava-me dela, mas
nunca liguei. Ou então não quis ligar. As mulheres treinam o
mecanismo da negação com excessiva facilidade, como um vício
mesquinho que se adquire quase sem se dar por isso.
Devia ter percebido que alguma coisa estava mal depois da
Carolina ter nascido, mas estava demasiado absorvida pela miúda e
pelo lançamento da editora. É que no fundo tive duas filhas ao
mesmo tempo, andava exausta. Mas não tanto como agora. Sento-me
na mesa de ripas amarelas, que deve ser de jardim, mas que eu achei
que ficava bem na cozinha.

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A Carolina bebe por um copo com pozinhos brilhantes que
rodopiam à volta do Winnie the Pooh e do seu amigo Tiger e lambuza
o pão com doce que cai no pijama cor-de-rosa onde bonecos com
antenas na cabeça pulam com os braços erguidos. Olha para mim
aflita e passa o dedo pela nódoa.
- Desculpe, mãe.
Respondo-lhe que não faz mal, que sei que não fez de propósito,
e ela continua a comer e a chuchar o leite pela tampa do copo.
- Mãe.... - Sim, filha. - O Miguel está a dormir? - Sim, querida.
- Posso ir lá dar-lhe um beijinho? - Não, querida.
A cara contorce-se numa expressão de tristeza.
- Oh... porquê?
- Dás logo à noite, está bem? - E ele está cá, logo à noite?
Começo a impacientar-me.
- Não sei, querida, logo se vê.
Dá mais uma dentada, calculo que seja a penúltima.
- Mãe...
- Sim, filha.
- Por que é que o Miguel não vive cá em casa?
- Porque tem a casa dele.
- Mas a Sandra vive com o pai...
- Não, querida, o pai é que vive com a Sandra.
Fica a olhar para mim de boca aberta, e vejo-lhe os neurónios a
mil à hora dentro do cérebro, a darem as pernas e os braços uns aos
outros.
- Vá, despacha-te, que já estamos atrasadas.
Estamos sempre atrasadas. Regressamos ao quarto onde a visto
em menos de um minuto e lhe calço uns ténis cor-de-rosa, pavorosos,
que ela exibe com orgulho no colégio por causa da palavra mágica
que têm bordada: Barbie. Por fim, penteio-a, e ela deixa-se levar,
dócil como uma boneca. Pede-me para pôr aquele travessão que tem
uma flor azul e que não encontro em lado nenhum; por isso,
convenço-a a segurar o cabelo com outro, é muito mais giro, com o
Tweety, é de crescida, estás a ver, e ponho o par no meu cabelo para
provar que tenho razão.
- A mãe é mesmo maluca.
Maluca estava eu quando engravidei do Pedro, ele que nunca
falou em filhos e sempre disse que não tinha estofo para ser pai.
Estofo é para os bancos dos carros, respondi-lhe, quando ele

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começou com a conversa do costume, mesmo depois de lhe ter dito
que estava grávida e que não ia, de certeza, fazer um aborto. Não
tive a culpa. Qual é a probabilidade de ter duas ovulações num mês?
Eu estava habituada a fazer as contas e conhecia os sintomas dos
dias de perigo, mas não tenho nenhum alarme que liga e faz barulho
se faço uma ovulação a seguir à outra.
- É raro, mas, às vezes, acontece - disse o médico, batendo com
a caneta ritmicamente em cima da ficha - a menina está na idade, foi
o seu relógio biológico.
Puta que pariu o relógio biológico. E o tipo todo contente. Porque
é que os obstetras gostam tanto de ver as doentes grávidas? Deve
ser uma tara como outra qualquer.
O Pedro ainda reclamou, mas com 28 anos já não podia dizer que
ainda era muito novo e que eu lhe estava a estragar a vida. Coitado
do Pedro, se gostasse mesmo dele nunca lhe tinha feito uma maldade
destas. Andávamos há seis meses, eu fazia trinta daí a uma semana e
vivia obcecada com bebés. Agora, vivo obcecada com os fins-de-
semana em que a Carolina vai para o pai e posso dormir até à uma da
tarde, levar o pequeno-almoço à cama e ficar a namorar a tarde
inteira com o Miguel, como dois adolescentes. Falta-me sono. Sono e
tempo. Os bens mais escassos da minha vida.
Entramos no carro e desfio a habitual corrente de
recomendações: põe o cinto, não abras a janela, juízo na escola,
venho-te buscar às seis. O caminho é um pára-arranca infernal e
demoro vinte minutos a percorrer menos de sete quilómetros, como
se fosse a primeira prova de um longo dia de trabalho e de chatices.
Despedimo-nos com vários beijos e abraços e deixo a minha princesa
entre vinte crianças e uma educadora com um ar absorto e doce.
Quando chego à editora, o Nuno já lá está. Gel no cabelo, óculos
de aros finos, aquele ar de menino bem comportado que lhe dá
imenso charme. Com 42 anos, ainda parece um miúdo. E é. A um
canto, um blusão preto de cabedal dormita em cima de um capacete
também preto, e o ar está impregnado de um perfume qualquer da
moda.
- Bom dia, estás bem? - pergunta, sem levantar os olhos do
écran do computador onde uma tabela cheia de números o absorve.
- Cansada, muito cansada.
Desvia os olhos, arqueia as sobrancelhas e observa-me
longamente.

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- Mas sempre bonita.
- Isso é porque pus base - foi no elevador, em menos de vinte
segundos, estou a ficar boa nisto.
- Não. Isso é porque és mesmo bonita.
Abre a gaveta e retira de lá um embrulho comprido e fino. -
Toma. Comprei-te isto ontem.
Abro o presente. É um coça-costas de madeira, daqueles que se
vendem nas feiras.
- É para usares quando o Miguel estiver cansado.
- O Miguel nunca está cansado. Por isso é que ando com ele.
Toma. Humor com humor se paga.
- Ligas demasiado ao sexo.
Observo-lhe o polo, as calças de marca, o telemóvel topo de
gama com ligação wap e não sei que merdas mais em cima da
secretária ao lado de uma caneta de colecção.
- E tu demasiado às aparências. - Bem, vamos trabalhar?
- Onde é que está a Paula?
- Foi ao correio. Já volta.
Tocam à campainha. O Nuno regressa às tabelas, fingindo não
ouvir.
- Vais tu, ou vou eu?
Levanta-se, disfarçando o ar de seca.
- Porque é que os homens são todos preguiçosos? - Não é para
tudo, minha linda, não é para tudo.
O Victor entra na sala com os sapatos cambados, a fralda da
camisa fora das calças. O duche não faz parte do seu dia-a-dia. - Bom
dia, rapaziada.
- Bom dia, génio - responde o Nuno.
- Minha editora preferida - diz o Victor, olhando-me com cara de
cão vadio e fazendo uma vénia.
- Pois, pois, queres é conversa.
O Victor é o nosso melhor autor e a nossa maior dor de cabeça. E
a prova de que não é preciso estar na moda nem aparecer todas as
semanas nas revistas para se ter sucesso. Veio para a editora porque
estava farto dos “gajos merceeiros”, como ele costuma dizer. Trazia
dois sucessos editoriais estrondosos e nenhuma motivação para
continuar a escrever. O sucesso cansa, diz. Apetece-me responder-lhe
que a falta de sucesso cansa muito mais, porque é uma dor cega e
inútil, mas nunca lhe respondo a sério. Aqui é tratado nas palminhas,

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embora às vezes tenha que ir à farmácia comprar ampolas de
paciência para o aturar. Artistas.
- Conversa também quero, mas se vocês tivessem um minuto...
- Embora lá, pá! - responde o Nuno, já a caminho da sala de
reuniões, enquanto pousa o braço à volta do ombro do Victor.
Parecem o David e o Golias.
- Precisam de mim?
- Claro! Sem ti, não somos ninguém.
- Guarda o charme para a tua mulher, malandro.
O Victor quer dinheiro. Segundo o contrato, recebe de seis em
seis meses o resultado do apuramento dos direitos de autor e o
último foi há dois meses.
- O que é que fizeste aos mil contos que te demos em Fevereiro?
- Mas agora és minha mãe, ou quê? - Perguntar não ofende.
O Victor coça o nariz, inspira profundamente para depois se
desfazer num suspiro próprio de quem está habituado a vitimizar-se.
- Se vocês não quiserem...
- Não tem a ver com querer, tem a ver com poder. E nós, agora,
não podemos. Deixa ver como é que chegamos ao fim do mês.
- É que, sem dinheiro, não posso acabar o Céu Cinzento. - Porque
é que não fazes umas colaborações para a imprensa, ou dás aulas
como toda a gente?
- Porque não me apetece.
É nestes momentos que me imagino transformada numa ampola.
O Victor volta a coçar o nariz, arrependido por me ter respondido
torto, mas não desarmo, mantenho a cara fechada e cruzo o olhar
com o Nuno que ajeita os óculos na cara.
- Bem, liga daqui a uma semana, vamos ver o que podemos
fazer. Mas, vê lá se adiantas o Céu Cinzento, ouviste? Olha que isto
não é um banco. Coração de manteiga. Este rapaz nunca mais
aprende.
- Mas tu és pai dele?
O Nuno tira os óculos, observa as manchas de dedadas e limpa-
as à fralda do polo, antes de responder.
- Não, mas tem que se tratar bem os autores. Sobretudo se já
foram maltratados por outras editoras.
- O Victor não foi maltratado. Foi roubado.
- Por isso mesmo.
- Já agora, podias dar-lhe banho. Ou, então, oferecer-lhe um after

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shave.
- Só se fosse Old Spice. É mesmo o género dele.
- Sim, já o estou ver a fazer surf na Fonte da Telha.
Eu é que estou com uma telha do tamanho do mundo que se
dilui no ar quando o Miguel me telefona com a voz mais meiga do
mundo a dar-me os bons dias, como se não me tivesse enchido de
beijos, mesmo antes de sair. Ainda estava meio a dormir, mas
suficientemente acordado para me retribuir uns tantos. Se não fosse
o Miguel, não sei o que seria a minha vida. Já nem me lembro como
era antes dele aparecer, há um ano, no princípio do Verão, com os
projectos de remodelação do meu apartamento, recomendado pelo
Frederico, que estava sem tempo para me ajudar.
- Vais gostar dele. É um tipo sensacional.
E era. O amor é sempre assim: não se procura, encontra-se. E eu
encontrei-o no Miguel, quando lhe abri a porta e o vi a entrar de
passo decidido e sorriso aberto, atrapalhado com os rolos das plantas,
muito articulado, a explicar que o Frederico já lhe tinha passado o
projecto e que tinha tido esta e aquela ideia para alterar mais isto e
aquilo. Desenrolou a papelada toda, plantas e mais plantas e em
menos de um minuto percebi que não precisava de mudar a minha
casa, precisava era de mudar de vida. Uma semana depois, entre
conversas telefónicas de três quartos de hora, mails para cá e para lá,
e menos de meia dúzia de almoços, capitulei. Na altura pensei, isto é
um miúdo à procura de uma gaja para mandar umas trancadas, mas
senti-me demasiado vulnerável para lhe resistir e além disso ele já
me tinha dado a volta.
Nunca fiz as obras. Tudo o que antes me parecia absolutamente
fundamental e inadiável ficou reduzido a nada. Mudei as portas dos
armários da cozinha e dei a remodelação por encerrada. O Miguel não
ganhou um cliente, mas arranjou uma namorada e eu voltei a sentir
que estar viva afinal até pode ser uma coisa bestial. Habituei-me
depressa a ele, aos rolos espalhados pela casa, aos silêncios e às
noitadas no atelier, às t-shirts emblemáticas, quase sempre filhas de
uma viagem, quase sempre com uma história para contar, quase
sempre com o mesmo aviso final um dia destes vou-me outra vez
embora, já sabes como sou
Eu sei, mas não me interessa. Nunca me interessou o que e que
o Miguel ia fazer no dia seguinte, muito menos daí a uns meses.
Habituei-me a tê-lo ao meu lado, sem lhe exigir mais do que a sua

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presença e o amor que tem para me dar. Habituei-me sobretudo a
não esperar nada e a receber tudo o que me dá como uma dádiva,
uma espécie de bónus, o prémio inesperado que deixa o bom
funcionário surpreendido.
Às vezes, quando a respiração da Carolina se transforma em
tosse e me levanto e vou ao quarto dela só para ver se está tudo
bem, olho para o Miguel a dormir ao meu lado, e lembro-me de que
não é meu, que pode partir de um dia para o outro, como fez o Pedro.
Mas quando acordo e no dia seguinte ele ainda lá está, penso que
cada dia a mais já é uma eternidade. E os dias sucedem-se numa paz
harmoniosa e tão doce que vai apagando a memória das discussões
com o Pedro, das discussões entre o meu pai e a minha mãe, à noite,
quando pensavam que já estava a dormir. E às vezes estava mesmo,
mas as vozes alteradas acordavam-me de repente, sentia a cabeça a
latejar como se tivesse apanhado demasiado sol e não resistia:
caminhava em silêncio pelo corredor às escuras, e ficava a ver as
sombras que se agitavam como monstros na parede, à medida que o
tom das vozes subia. Depois, a minha mãe iniciava o inevitável ciclo
do choro compulsivo e descontrolado que punha o meu pai ainda
mais exaltado.
- Mas por que raio é que foste engravidar?
Deve ter sido aí que comecei a odiar-me por ter nascido, por ser
mulher, por tudo. O Miguel está, sem saber, a apagar os fantasmas e,
quando vejo sombras na parede, já não oiço o choro da minha mãe. O
Miguel está a fazer-me bem e só por isso, já merecia o mundo.
Mas às vezes cansa-me o seu alheamento do mundo, o espírito
idealista que confunde um extracto de conta com uma aplicação
financeira, o desconhecimento total das coisas mais básicas da vida.
- Não se pode ter tudo - costumava dizer a minha mãe. Deve ter
sido com ela que aprendi demasiado cedo o mecanismo da negação.
Quando o meu pai viajava por causa do banco e ficava fora durante o
fim-de-semana e ela fingia que não percebia. Ou quando, à quarta-
feira, nunca vinha jantar. Ou quando o Marcelo começou a fechar-se
no quarto com os amigos, quando percebia que o meu pai ia estar
fora durante o fim-de-semana. Às vezes, dava com ela sentada na
mesa da cozinha, com o olhar fixo de quem partiu para muito longe e
os olhos inchados. Poucas vezes a vi chorar, mas acabava por ser
pior, porque só com os anos aprendi a decifrar os subtis sinais de dor
e tristeza que se lhe denunciavam nos traços que o tempo se

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encarregou de marcar. Quando pressentia a minha presença, era
como se voltasse à terra: os ombros estremeciam-lhe ligeiramente,
sinal de regresso do espírito ao corpo, numa tentativa de enfrentar
outra vez a realidade. Deve ter sido nessa altura que começou a ficar
doente. Às vezes, queixava-se de dores no peito, mas, como ela
sempre disse que era aí que se escondia a caixinha da tristeza, nunca
ligámos. O meu pai continuava ausente e mesmo quando estava em
casa, mal olhava para ela. O Marcelo aventurava-se a medo pelos
caminhos misteriosos da homossexualidade e eu era demasiado
pequena para perceber que a minha mãe não era eterna.

IPO, nove da manhã. Vejo-a deitada, as veias dos braços


salientes, o cabelo desgrenhado. Uma camisa de noite às florinhas
amarelas e os olhos fixos no tubo da quimioterapia. Nem uma
palavra, só os olhos aos gritos a dizerem estou farta, estou farta. E eu
ali sentada, impotente como um peixe, a roer-me de raiva, a disfarçar
a tristeza com pastilhas elásticas, revistas, ramos de túlipas - sempre
brancas - fotografias da Carolina recém-nascida, depois com três
meses, depois com seis. Os minutos contados para voltar à editora,
para depois regressar a seguir ao almoço e distraí-la mais um bocado.
E depois para casa, sem tempo nem cabeça para nada. Chegava
exausta, vazia, sem um pingo de energia. A Célia saía a correr, com
umas trombas até ao chão, porque já estava atrasada.
- A menina já tem dois dentes e a senhora nem reparou. Depois,
batia com a porta para que a marca do seu desagrado ecoasse no ar
ainda durante algum tempo, aborrecida com os meus atrasos, a
minha apatia, a minha falta de organização, ela que morava no
Cacém e tinha que apanhar dois transportes para vir trabalhar, com
um filho da mesma idade da Carolina entregue a uma ama, o Fábio
Jorge - Fábio por causa de um actor de novela e Jorge porque era o
nome do inútil do marido que estava em casa há um ano a marinar de
uma desintoxicação. Ela, a quem nunca ninguém passara uma peça
de roupa, fritara um bife ou levara a Londres.
- A menina já tem dois dentes e a senhora nem reparou. O Pedro
a fazer as malas para ir viver com a professora de Tae Kwon Do. A
Carolina a brincar no parque, roendo furiosamente rocas de borracha,
rabugenta, com a fralda suja. A minha mãe no IPO com veneno nas
veias para matar outro veneno. E eu ali, a assistir a tudo como se
aquela vida não fosse minha. Tinha entrado por engano na sala de

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cinema errada, não era a minha mãe que estava a morrer, não tinha
sido trocada por uma Sandra, a minha filha nunca fazia cocó, o meu
pai afinal tinha-se redimido, divorciava-se da Elsa e regressava,
arrependido e disponível para me ajudar a tratar da minha mãe.
Mas, não. Aquele era mesmo o meu filme e não podia recusar o
papel estúpido da heroína trágica - estúpido porque inútil e todas as
coisas inúteis acabam por ser invariavelmente estúpidas - do qual
fazia parte chorar até adormecer de tristeza pela minha mãe, de raiva
pelo Pedro e de cansaço pela Carolina que perdia a chucha de meia
em meia hora.
O Pedro saiu quase sem se despedir, não conseguia olhar para a
minha cara. Fez um esgar desajeitado que queria dizer desculpa,
levantou a Carolina do parque, apertou-a contra o peito e segredou-
lhe ao ouvido:
- O pai não vai fugir, querida, vai só mudar de casa e vem-te ver
sempre que puder.
Como se ela percebesse. Indiferente, voltou a sentar-se no
parque e regressou à tarefa absorvente de roer a roca de borracha.
Ele baixou os olhos para que o seu olhar não se cruzasse com o
meu e saiu sem dizer uma palavra. Na manhã seguinte a Célia
chegou pontualmente às nove e perguntou-me se estava doente.
- A senhora está com a cara inchada que parece um bolo.
Saí depressa, sem responder, meti-me no carro e respirei fundo.
Tinha dez minutos para me pôr na Baixa. Era o dia da escritura da
constituição da sociedade com o Nuno.
Quando cheguei ao notário, o Nuno fitou-me, admirado.
- O que é que se passa?
- O Pedro saiu de casa.
- O quê?
- Arranjou outra e pôs-se a andar.
- Assim, sem mais nem menos?
- Assim, sem mais nem menos.
Abanou a cabeça, num gesto de solidariedade.
- Que filho da puta. São todos iguais.
- Calma lá, que eu não sou desses!
Pois não. O Nuno não era desses. Era pior.

Maternidade Alfredo da Costa, oito da noite. Estou deitada numa


cama desde as dez da manhã. Sinto-me tão cansada que me doem as

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pálpebras. Estou em trabalho de parto há dez horas. E o bebé, nada.
Já fiz a dilatação de cinco dedos, mas algo me diz que esta miúda me
vai dar um trabalhão a nascer. Já telefonei ao médico, mas, como é
domingo, tem o telemóvel desligado. Só espero que não tenha ido
para fora de Lisboa. Quando cheguei, ligaram-me um fio, e desde
manhã que oiço o coração dela a bater, tum tum, tum tum, tum tum.
Estou sozinha. A minha mãe começou ontem a quimioterapia. O
Pedro está lá fora, diz que não era capaz de entrar, que era melhor
assim. Melhor para ele, com certeza. A Ana está em Espanha com o
Frederico e o meu pai está-se cagando. O Marcelo deve estar a
dormir, saiu do IPO ontem de rastos quando viu a minha mãe
entubada.
Tenho frio. Enfermeiros e médicos passam por mim como se
fosse invisível. Há mais cinco parturientes à espera, nas camas ao
lado. Cheira a hospital e a sangue. Estagiários passam de um lado
para o outro. As enfermeiras são velhas, gordas e atarracadas e
carregam nos olhos o cansaço de muitas falhas. A pouco e pouco, o
medo vai-me inundando o corpo e a alma. Quero que ela nasça
depressa, quero livrar-me disto e tê-la nos braços. Carolina. Soube
sempre que era uma rapariga. No dia em que fui à farmácia buscar o
resultado do teste de gravidez, vi-lhe a cara, os olhos, as mãos. Toda
a gente se riu e duvidou da minha clarividência, como se ser mãe não
fosse isto mesmo, saber dos nossos filhos mesmo antes deles
saberem quem são. Não te entusiasmes, nunca se sabe o - que pode
acontecer, dizia a Ana, cautelosa como sempre. Em quatro meses, já
tinha tido dois desmanchos, ela e o Frederico ficaram inconsoláveis.
Mas tive mais sorte. O meu bebé queria mesmo crescer dentro da
barriga, só que agora não lhe apetece nascer. Para me acalmar,
começo a cantar em surdina uma música da Marisa Monte. Isso
acalma-me e acalma-a. Faço sempre isto, quando uma ou outra
ficamos nervosas e geralmente resulta.
Bem que se quis / depois de tudo ainda ser feliz / mas já não há
caminho pra voltar / e o que é que a vida fez de nossa vida / o que é
que a gente não fez por amor...
- Como é que se sente, minha linda?
O meu médico chegou, finalmente. Tem cara de bebé, cabelo
encaracolado e um sorriso que, de repente, me leva o medo todo.
- Feita num oito - respondo. - E ainda só fiz cinco dedos de
dilatação.

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- Estou a ver - responde, já absorto em observações anatómicas.
As mãos dele sobem e pousam na minha barriga enorme,
desmesurada, que me faz sentir uma baleia com problemas de
obesidade.
- Parece-me que o seu bebé não está encaixado, minha linda. Se
isto continuar assim, temos que fazer uma cesariana.
Nem respondo. Raio da miúda. Sem me dar tempo de lhe
perguntar o que é que vai acontecer a seguir, o médico vira costas
com um lacónico já volto. Também me ia embora, se pudesse sair
daqui. O burburinho à minha volta está-me a deixar doida. Como é
que estas pessoas são capazes de trabalhar numa maternidade como
se estivessem a passar códigos de barras num supermercado?
Parecem indiferentes a tudo, anestesiadas pelo sofrimento alheio.
Como no IPO, onde a minha mãe está.
- Como é que está a mãezinha?
É a Hilda, enfermeira-chefe, que deve ter sabido por uma colega
que a minha mãe foi internada.
- Assim, assim - respondo, sem vontade de continuar a conversa.
- Há tantos anos aqui a trabalhar e é logo internada quando a
menina precisava dela.
Isso mesmo, enfermeira Hilda. Ponha-me mais deprimida e triste
do que já estou. Trinta anos a aturar as dores das outras e sem poder
estar ao meu lado quando preciso tanto dela. Merda. Este não é o
meu ano de sorte. O médico regressa com ar triunfante.
- Já está.
- Já está o quê?
- Já chamei o anestesista. Vamos fazer-lhe uma epidural e tirar
cá para fora esse bebé teimoso que não quer sair.
Pronto, tenho mesmo que ir à faca.
- Não se assuste, que vai correr tudo bem - diz o médico que põe
cá fora criancinhas todos os dias com a mesma displicência com que
vê o Benfica sentado no sofá a beber uma cerveja.
Devolvo-lhe um sorriso entre o verde e o amarelo. Estou sozinha.
O Pedro lá fora, o Frederico e Ana em Espanha, a minha mãe
entubada. Merda, merda, merda. Este é o momento mais importante
da minha vida e não tenho ninguém com quem o partilhar. Os
homens são mesmo uns maricas. O que é que custava ao Pedro
passar este mau bocado comigo?
- Vamos a isto - diz o médico, enquanto o anestesista me espeta

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uma agulha no meio da espinha que me dói horrivelmente.
A pouco e pouco, a dor e o cansaço dissolvem-se numa
dormência parda e morna. A anestesia faz-me desaparecer do peito
para baixo. Enfermeiras conduzem a maca para a sala de operações.
Os tectos da maternidade estão um nojo, não devem ser pintados há
mais de quarenta anos, reparo enquanto me lembro daquelas cenas
típicas nos filmes em que os feridos viajam de maca, com as caras
debruçadas sobre eles.
A sala tem uma cor estranha e toda a gente se esconde atrás de
umas batas verde vomitado de cão. O médico inicia a operação
depois de me terem tapado a barriga com um lençol, não vá a minha
curiosidade mórbida levar-me a olhar para coisas que não quero ver.
O tempo passa devagar, oiço cada segundo a estoirar dentro da
minha cabeça, como um sino puxado à corda por um Quasimodo
possesso. Não sei quanto tempo já passou, talvez meia hora, quando,
de repente, lhe oiço o choro perdido e inconsistente, um gemido doce
que sei que nunca mais vou esquecer. Levantam-na à altura dos
meus olhos, e vejo-lhe o corpo minúsculo, envolto em óleos celestiais,
esbracejando anarquicamente, os olhos fechados e a cabeça do
tamanho de uma laranja. O choro ganha consistência e pousam-na no
meu peito por um instante. De repente, tudo o que era grave, sério e
importante, deixa de o ser. O meu mundo mudou. Sou mãe. Sinto-me
feita de mel. As lágrimas que me correm pelas têmporas já não são
salgadas, mas cheias de açúcar. Sou mãe. Sou mãe. Sou mãe. E
tenho uma filha linda.
- Que linda menina!
A candidata tinha olhos azuis e um ar limpinho, o cabelo liso
apanhado com um elástico de cor, e vestia umas calças pretas com
uma camisa branca. O Pedro olhou-a dos pés à cabeça, mas ela não
se intimidou.
- Como é que se chama?
- Célia Lopes, sotôr.
- Que idade tem?
- Vinte e seis, sotôr.
- Tem filhos?
- Sim, um, o Fábio Jorge, que também é assim bebé como a
menina dos senhores.
Bem educada e limpinha. O Pedro e eu trocámos um olhar de
assentimento.

17
- Pode começar amanhã?
Vejo-a esfregar mentalmente as mãos de contente. - É quando os
senhores quiserem...
E foi assim que Célia entrou na nossa vida e ficou na minha,
agora que o Pedro se foi embora. Engoma mal, limpa pior e leva para
casa cassetes de vídeo sem me dizer que depois repõe com a
infantilidade típica das pessoas pouco inteligentes, mas finjo que não
percebo, porque é impecável com a Carolina e a miúda adora-a.
São quase onze da manhã quando desligo o telefone. Gosto de
me derreter pelo fio a falar com o Miguel, faz-me lembrar quando era
miúda e passava horas a namorar ao telefone. Geralmente, o Nuno
aproveita estes momentos para ir arrumar pastas na sala de reuniões.
Ainda não percebi se gosta ou não do Miguel. Parece-me que do que
ele não gosta é de me ver tão apaixonada. Não me devia ter enrolado
com ele quando me separei, foi uma estupidez monumental, um
passo em falso perfeitamente dispensável. Mas tínhamos uma história
antiga por resolver, desde a faculdade, e estas coisas têm que
estoirar por um lado qualquer, senão uma pessoa nunca mais se
liberta delas. Se calhar, também foi por isso que levei a ideia da
editora para a frente com ele; no fundo eu sempre lhe achara piada,
nunca me passou pela cabeça que fosse correspondida da mesma
forma. E claro, assim que me separei, poucas semanas depois, numa
ida a Barcelona em trabalho, acabámos na cama um do outro. Foi
então que percebi que não sentia nada por ele. Nada vezes nada, a
não ser uma enorme atracção e uma grande amizade. E tudo voltou à
normalidade, como se nada tivesse acontecido.
- Ele é um miúdo, o que é que te pode dar?
Qualquer dia, ainda tens um desgosto - disse-me quando lhe
contei que me tinha apaixonado. Não sei exactamente o que é que o
Nuno sente por mim. E ele provavelmente também não. Os amigos
não se julgam, aprendi isso há muitos anos, mas não me esqueço do
que ele fez à Ana, depois de ter tido aquele episódio estúpido comigo.
Se calhar, foi só para me chatear, ou será que os homens não fazem
essas coisas? Apesar de nunca termos falado no assunto, acho que
ele nunca encaixou o facto de eu não ter sentido nada por ele. É
engraçado porque, sem querer, fiz-lhe o que ele costuma fazer às
mulheres; dei umas voltas e depois fui à minha vida. Não é o meu
género, mas quando se leva com um pontapé no ego, só há duas
coisas a fazer: cair ou reagir. Eu não podia cair mais, a minha mãe

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tinha morrido, tinha que reagir, senão tinha a sensação de que podia
morrer também.
- Já desligaste? - o Nuno regressa à sala com pés de lã, sorriso
malandro ao canto da boca - tanto amor, tanto amor! Olha que já não
tens idade para isso...
- Não, tenho idade para começar a fazer liftings e a procurar um
tipo mais velho cheio de massa para pôr a Carolina no colégio
americano, não?
- Calma, não te chateies. Só acho que, com esse puto, não vais a
lado nenhum.
Também não quero ir a lado nenhum, idiota. O Miguel já me
levou muito mais longe do que deves ter levado alguma mulher, mas
não lhe respondo. Em vez disso, fuzilo-o com o olhar e mudo de
assunto:
- Já vieram as provas da revisora do livro da Mónica?
- Já, estão aqui. Queres dar uma vista de olhos?
A Mónica é a nossa próxima aposta. Escreve razoavelmente, com
vivacidade, é muito contemporânea e tem humor. Além disso,
conhece mais ou menos toda a gente, é gira, morena, com um ar
exótico e moderno. Praticamente todas as condições para vir a ser
um sucesso editorial. Dá alguns erros de português, mas é para isso
que cá estamos e claro que em qualidade literária não chega aos
calcanhares do Victor, mas o sol, quando nasce, também não é para
todos.
- Ouve lá... - lá vem outra vez a conversa que não me interessa.
- O que foi? - respondo com voz enfadonha, sem levantar os
olhos do manuscrito.
- É que... bem, ontem fui dar uma volta e encontrei o Miguel...
Apetece-me levantar os olhos do papel, mas não lhe vou dar
essa confiança.
- Eu sei.
O Nuno fica calado. Deve estar a pensar se deve ou não
continuar a conversa. Por fim, lá se decide.
- Ah... então se já sabes... eu achei um bocado estranho, mas
está bem.
Pronto. Vou levantar os olhos e acabar de vez com esta
conversa.
- Ouve, Nuno, o Miguel faz o que lhe apetece, nunca me meti na
vida dele nem tenho feitio para isso, mas, se me queres dizer alguma

19
coisa, fala de uma vez ou então cala-te e não me faças perder tempo.
O Nuno tira os óculos e limpa as lentes na fralda do polo. Depois,
coloca-os no nariz.
- Não é nada. É que estava com uma miúda muito gira...
- Pois estava. Era a Mariana, amiga dele. Mais alguma coisa?
- Se tu achas normal que o teu namorado vá beber copos com
uma amiga, como tu dizes, então já não digo nada.
- O que eu não acho normal é que tu te metas na minha vida. Lá
porque cada vez que sais à noite com uma gaja e deixas a tua mulher
em casa é para ires para a cama com ela, não quer dizer que todos os
gajos sejam como tu, pois não? Ou andamos todos aqui a comer-nos
uns aos outros, e só eu é que sou tão estúpida que não dou por nada?
- Deixa lá. De facto, não tenho nada a ver com isso. Desculpa,
não te volto a falar do assunto.
- Acho bem - respondo de forma terminal, para que não restem
dúvidas.
Estúpido. O que é que ele tem a ver com a minha vida ou a do
Miguel? Alma de porteira. O meu telemóvel toca. É a Teresa. Está
com a voz apagada, de repente, pressinto o pior.
- Tens tempo para almoçar?
- Claro. O que é que aconteceu?
- O Vasco desapareceu outra vez.

Estou um bocado cansado. Não ouvi o despertador e, como é


costume, cheguei tarde ao atelier. Agora tenho que me despachar
para ter as plantas da pousada prontas até ao fim da tarde. Pelo
menos os alçados laterais, senão o Frederico chega e desata a fazer
perguntas. Gosto do Frederico, é um tipo inteligente, com bom fundo
e uma cabeça arejada. Um tipo brilhante, sem a mania que é bom.
Trata toda a gente por tu e protege a equipa do atelier como um
chefe de matilha. É o chefe ideal: atento, esperto e motivador. Claro
que vai franzindo o sobrolho quando se cruza comigo à entrada,
depois das onze, mas como sabe que faço as noitadas que for preciso
e nunca falho um prazo, dá-me uma palmada nas costas e diz em tom
protector:
- Tu fazes-te, puto, tu fazes-te.
Foi ele que me convenceu a entrar no concurso de arquitectura
da câmara, com o projecto do Centro Social do Bairro da Liberdade.
Mostrei-lho há um ano, na entrevista de candidatura para o atelier.

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Foi o meu trabalho de final de curso, não estava nada mal e o
Frederico não me poupou elogios.
- És bom, miúdo. O que é que vais fazer disto?
- Nada, vai para a gaveta.
- Está bem.
E nunca mais me lembrei do assunto. Há dois meses, chegou-se
ao estirador com um recorte na mão e disse:
- Acho que devias concorrer a isto.
Era um anúncio de um concurso de arquitectura, patrocinado
pela Câmara de Lisboa para jovens arquitectos para obras públicas,
projectos inéditos. No regulamento era obrigatório ter menos de 25
anos.
- Quando é que fazes anos?
- Em junho, dia 9.
- Então, ainda podes entrar. O prazo acaba a 30 de Maio. És o
mais novo aqui do atelier, devias concorrer - disse o Frederico. Ainda
torci o nariz, não sou dado a estas coisas, a preguiça não me puxa
para me meter em coisas que não sei no que é que vão dar, e além
disso estou habituado a que tudo me venha parar às mãos, por isso
não achei bem, nem mal.
- Está bem, se achas que posso ganhar.
- Claro que podes. O projecto é muito bom e sempre são dois mil
contos. E se ganhasses, era mais um prémio para o atelier, estás a
ver?
Às vezes, gostava de ser como o Frederico, que vive para isto e
para a Ana. Mas não, ainda não larguei a minha costela de boémio e
viajante. Hoje estou aqui, amanhã posso estar do outro lado do
mundo a apanhar bananas, se me der na cabeça. Estou sempre a
dizer isto à Inês, mas acho que ela não percebe. Ou então finge que
não percebe. As mulheres adoram fazer-se de parvas.
Três Jamesons já me põem bem, ontem não devia ter bebido
quatro. Ainda não são três da tarde, e já me está a dar o sono. Mas a
Mariana estava com a corda toda; quando cheguei a casa, passava
das três, a Inês já dormia ferrada. Mesmo assim, acordou com o
barulho da chave, enrolou os braços à volta do meu pescoço e
perguntou, com voz de menina pequenina:
- Divertiu-se?
Tratamo-nos por você, num registo íntimo, para recordar os
tempos em que mal nos conhecíamos e, num dos vários almoços que

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passei a tentar engatá-la, me saiu um tu, sem querer não me trate
por tu que eu não tenho a sua idade
Demorámos mais tempo a deixar de nos tratar por tu do que a
dormir juntos. Foi cómico estar com uma mulher na cama e tratá-la
por você. Depois habituámo-nos. As mulheres ligam imenso a estas
coisas, e como eu quero é que ela se sinta bem, habituei-me a tratá-
la assim, com doçura. Antes de a conhecer andava na vertigem da
noite, comia gajas umas atrás das outras, não havia nada nem
ninguém que me interessasse. Quando entrei para o atelier, acalmei
um bocado, comecei a pensar que talvez fosse porreiro arranjar uma
namorada. A Mariana tinha-se enrolado comigo mas só pensava no
ex-namorado, que além de ser um cabrão também era casado, e
voltou para ele ao fim de uma semana. Não fiquei chateado, ela dava-
me tusa, tinha umas boas mamas, mas não era grande coisa na cama
e eu não estava envolvido com ela, por isso ficámos amigos e não se
falou mais no assunto.
Quando o Frederico me passou o projecto da casa da Inês Ramos
e me disse que era a melhor amiga dele, não fazia ideia que a minha
vida iria mudar tão depressa. Liguei-lhe para o telemóvel, e atendeu-
me uma voz de miúda, fresca e despachada. Combinei ir lá a casa no
fim da tarde, e lembro-me de que, sem conhecer o bairro, dei com a
rua à primeira, eu que sou um despistado incurável. Abriu-me a porta
uma mulher linda, quase da minha altura, vestida de forma elegante
e descontraída. Que boca, meu Deus! Fiquei logo fixado na boca,
direita e bem desenhada, mesmo antes de reparar nas curvas suaves
e alongadas, no cabelo a roçar os ombros, nas pernas altas e
musculadas. Desenrolei as plantas em cima da mesa da casa de
jantar e foi então que assomou à porta uma boneca articulada com
caracóis na cabeça e uma cara de anjo que disse: olá Miguel. A Inês
desatou a rir e apresentou-me a Carolina, que, dez minutos depois, já
estava instalada ao meu colo, enquanto a mãe e eu discutíamos tipos
de focos e modelos dos puxadores.
Já passava das nove quando a Inês simpaticamente me pôs na
rua, a pretexto de ter que dar de jantar à miúda e deitá-la cedo. Vim
para casa e telefonei-lhe à noite. Ficámos uma hora ao telefone e
pedi-lhe o e-mail. Adormeci agitado a pensar nela, nas pernas
compridas debaixo dos jeans apertados, na voz doce e fresca, na
boca carnuda, regular e desenhada a lápis número 3 e no dia
seguinte mandei-lhe vários e-mails.

22
Sabia que era dez anos mais velha do que eu, o Frederico já me
tinha contado que era separada, que o marido se baldara de casa
para ir viver com a professora de Tae Kwon Do e dei comigo a pensar
quem era o idiota que largava uma lasca daquelas, com um metro e
setenta e cinco, ainda por cima porreira e inteligente, com corpo de
teenager e uma cara mais fresca do que metade das minhas colegas
de Arquitectura com menos dez anos que ela. Vou andar com esta
gaja, pensei, vou mesmo andar com ela, não vai ser como as outras
que me têm passado pelas mãos, é preciso é dar-lhe a volta. Ao fim
de um mês de mails e almoços de chove não molha, não me trate por
tu que eu não tenho a sua idade perguntei-lhe o que é que ia fazer no
fim-de-semana, e respondeu com ar vago que a Carolina ia para o
pai, e que, por isso, não tinha planeado nada além de dormir e pôr as
leituras em dia.
Pensei: é desta, tenho que conseguir. Já andava a bater uma à
conta dela cada vez que desligávamos o telefone à noite, só de ouvir
a voz dela ficava com uma tusa descomunal e senti que a pouco e
pouco o gelo se estava a quebrar do outro lado. Ela tratava-me por
você, mas achava-me graça, dava-me corda e tinha sempre tempo
para atender os meus telefonemas ou responder aos meus mails.
Nessa sexta-feira disse-lhe que ia lá ter a casa às nove e entrei com
uma mochila para ficar o fim-de-semana. Não sabia se ia ter sorte,
mas quando um homem quer uma mulher, não há nada que o
impeça, e ela já estava pronta para ser virada. Já me chamava Migles,
miúdo, e outros mimos do género; quando elas começam assim,
estão liquidadas, é apenas uma questão de tempo.
Toquei à porta e entrei de boné na cabeça e mochila ao ombro e
já só saí na segunda-feira seguinte. No domingo à tarde, com um
tabuleiro cheio de torradas submersas em manteiga e geleia e duas
canecas do Mickey cheias até acima de leite com Ovomaltine, a Inês
perguntou:
- Então, somos namorados?
Ri-me de prazer só de olhar para a cara dela, estava igual à
Carolina; de repente, tinha outra vez cinco anos, os joelhos esfolados
de cair da bicicleta, as alças da camisa de noite descaíam-lhe
deliciosamente pelos ombros abaixo, à volta da boca os bigodes de
leite davam-lhe um ar adorável e irresistível de miúda que não quer
crescer. Estava a olhá-la, deliciado, sem sequer pensar em responder-
lhe o que para mim era óbvio, quando cruzou as pernas, deu mais um

23
gole da caneca a fumegar, e disse:
- Não faz mal, mesmo que não seja tua namorada, tu já és meu
namorado.
Nunca tinha conhecido uma miúda tão querida. Nem tão mulher,
por isso apaixonei-me por ela nesse instante. A Inês suavizou-me o
coração e fez-me sentir que afinal não era só um tipo com pila,
também tinha alma, que não era um filho da puta mas uma pessoa
perfeitamente normal, capaz de ter uma namorada fantástica e de
viver bem com isso.
Com o tempo, habituei-me ao remanso doméstico, a ter ao meu
colo a Carolina a fazer desenhos de árvores com maçãs do tamanho
de abóboras, casas que pareciam aviões e cães com cara de
cogumelos, a ir-lhe aconchegar o édredon enquanto adormecia com a
cara encostada à minha mão e me dizia baixinho eu quero que o
Miguel tome conta de mim senti-la a mergulhar num sono pacífico e
suave, onde fadas e príncipes coabitavam no silêncio da imaginação e
depois voltar à sala iluminada a velas, onde a Inês se aninhava nos
meus braços, ainda mais frágil e pequenina do que a Carolina e
víamos televisão até à hora de irmos para a cama e nos amarmos
durante horas a fio, sem nunca nos cansarmos do corpo, do cheiro, da
pele e dos olhos um do outro.
Mas, ontem, à noite, à conversa com a Mariana, voltei a cobiçar-
lhe as mamas fartas no decote generoso. Ela só falava do ex, e como
tinha ultrapassado bem a situação, que lhe tinha dito tudo na cara, e
aquelas merdas todas que as mulheres adoram fazer ou, pelo menos,
dizer que fazem. E eu comecei a pensar o que é que ando a fazer há
quase um ano enfiado na casa da Inês, na vida da Inês, a brincar aos
pais com a filha da Inês, quando não passo de um nómada que hoje
pode estar aqui e amanhã na América Central a apanhar bananas ou
na China a passear na Muralha. Não tenho laços, nunca tive, perdi a
capacidade de os criar quando a minha mãe me deixou em casa,
disse que ia ao cinema e nunca mais voltou. Tinha sete anos, a farda
do colégio era um casaco ridículo e apertado, obrigavam-me a usar
camisolas de gola alta azuis escuras, deve ser por isso que ainda hoje
não suporto nada junto ao pescoço, só um fio de missangas no Verão,
para dar mais estilo.
Se ao menos ela me tivesse explicado porquê, mas os adultos
cometem sempre o mesmo erro com as crianças, acham que elas não
percebem nada, e enganam-se, percebem tudo, mesmo aquilo que

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não quereriam perceber se já fossem adultos. Dois anos depois, o
meu pai juntou-se com a Lina, que trazia um filho e uma história de
maus tratos com um delinquente qualquer de boas famílias que
estava internado no Telhal com sintomas de esquizofrenia e voltámos
a viver a ilusão de um novo lar, pelo menos aparentemente, porque a
Lina nunca tomou o lugar para sempre vazio da minha mãe. Tinha 12
anos quando o meu pai me contou a verdadeira história, a minha mãe
tinha fugido com o Alberto Sequeira, um primo direito, um amor
antigo e mal resolvido e vivera os últimos quatro anos de vida nos
Estados Unidos, no estado de Rhode Island, onde o primo montara um
restaurante de comida típica portuguesa. Só me estava a contar a
verdade porque recebera um telegrama a anunciar a morte dela
numa “highway” qualquer, onde se enfaixaram debaixo de um
camião de combustível; ela e o primo Alberto morreram juntos,
provavelmente da mesma forma intensa e aventureira com que
viveram os últimos quatro anos em que a minha mãe se tinha
esquecido de Portugal, do meu pai, do Rodrigo e de mim, como se eu
fosse um cão rafeiro que se abandona no fim das férias, e que nem
sequer tem nome.
Quando a Inês me perguntou por ela, disse-lhe apenas que tinha
morrido quando eu era miúdo e que, de qualquer forma, não me
lembrava dela, o que até está perto da verdade. Lembro-me do olhar
lânguido e ausente, da cara branca e das feições regulares. A pele
cheirava a alfazemas e as mãos inundavam-me a cara de prazer
antes de adormecer. Deve ser por isso que quando a Carolina está
agitada e a Inês me pede para lá ir, lhe cubro a cara de festas eu
quero que o Miguel tome conta de mim e tenho vontade de chorar,
mas tranco as lágrimas porque um homem não chora, muito menos.
em frente de uma criança e por isso aperto-a nos braços e digo-lhe
estou aqui, Carolina, estou aqui, não tenhas medo eu que perdi o
medo de tudo quando percebi que ela não ia voltar, quando senti que
a minha vida valia tão pouco para ela que me trocara por uma paixão
mal resolvida, o meu pai inconsolável, noites a fio em frente à
televisão, e Olímpia, que já vinha de casa dos meus avós e conhecia a
minha mãe como a palma da mão dela, suspirava quando levantava
os pratos quase cheios, e dizia:
- Se o senhor doutor não come, quem é que vai tomar conta do
Miguelinho?...
E o Miguelinho no quarto, à luta com os soldados e as

25
recordações esbatidas da pele dela, do cheiro a alfazemas, da doçura
das mãos pousadas na minha cara a mãe gosta muito de ti filho
Mentiras, merdas de mentiras que os pais dizem aos filhos, como
se nós fossemos estúpidos e não percebêssemos nada. Como se não
soubesse já, nessa altura, que se ia embora, que ia trocar o andar de
S. Sebastião por uma casa no subúrbio perdido de uma América tão
perdida quanto ela.
Quando o meu pai se casou com a Lina e comprou uma casa
maior, ganhei uma madrasta que sempre me tratou como filho, mas
que nunca senti como mãe. Talvez o coração tenha parado de bater
no esquecimento dela, no desprendimento dela. E, se calhar, é por
isso que quase todas a noites acabo por dormir em casa da Inês,
mesmo que vá sair e me interesse por outras mulheres, tenho sempre
os braços dela estendidos para me agarrarem o pescoço e a
perguntar-me, com um sorriso doce e sonolento:
- Divertiu-se?
Diverti-me sim minha querida, divirto-me sempre, a noite dá-me
energia, gosto de ver as gajas a passar, gosto de ver como os
homens se metem com elas e como elas se mostram ou não
disponíveis, para mim são como ratos de laboratório e eu sou o
cientista a brincar às experiências. Como no nono ano, nas aulas de
química, ponho-me de fora e assisto ao espectáculo da primeira fila. É
tudo um circo. De vez em quando, aparece uma com cara de
trapezista que me chama a atenção e dou-lhe corda, se ela fala
comigo mais' de cinco minutos saco-lhe o telemóvel, mas depois não
telefono, nunca telefono, não quero fazer merda com a Inês. Pelo
menos com ela, não. Ela, que me abriu as portas da sua casa e da sua
vida com a doçura de uma criança, que me tocou partes do coração
que nem sabia que tinha, que me faz todos os dias desejar ser uma
pessoa melhor.
Vim para casa meio bêbado. depois de ter dado dois beijos na
Mariana. Não sei se a queria comer ou não. Quatro Jamesons são o
suficiente para despistar os sentidos e esquecer a memória, mas,
quando entrei no quarto e vi a Inês semi-adormecida, os braços
estendidos e o cheiro da sua pele impregnada em cada átomo,
adormeci a pensar que afinal as mamas da Mariana não são assim tão
boas, que a Inês é o máximo, e tenho mas é que ter juízo e atinar,
mesmo que não tenha nada para lhe dar e por isso mesmo um dia
destes eu acorde e faça como a minha mãe, me meta num avião e

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nunca mais volte.

Apanho a Teresa à porta da sede do banco na Baixa e como nos


apetece pizza às duas, nem discutimos onde vamos. A Teresa está
com a cara inchada, mas, como é morena e se sabe pintar bem,
quase não se dá por isso. Sei que não gosta de começar a falar dos
problemas dela, precisa de uma mesa, uma garrafa e dois copos de
vinho. Por isso, conto-lhe as novidades, o Nuno a querer meter
veneno entre mim e o Miguel, a Carolina que me perguntou outro dia
se as pessoas também tinham fios como as paredes e a Ana que vai
tentar mais um tratamento de fertilidade, antes de fazer inseminação
artificial.
Só depois de pedirmos duas calzone e uma meia garrafa de
vinho branco é que começa a falar.
- O Vasco desapareceu outra vez. Saiu ontem para ir comprar
cigarros e não voltou. Estive a noite inteira acordada à espera, fiz
uma directa, não conseguia dormir.
Por acaso, já estava à espera, mas não disse nada. Quando um
tipo se mete na heroína, não é ao fim de dez anos que sai, só porque
fez uma cura de três meses numa clínica qualquer muito chique na
Suíça. A coisa é muito mais complicada do que isso. - E levava
dinheiro?
- Não, mas hoje de manhã dei por falta do multibanco e como
deves imaginar, cancelei-o imediatamente; mas ele, ontem, já tinha
levantado sessenta contos, trinta antes da meia noite, e trinta depois.
- Mas como é que ele sabia o código?
- É fácil, era a nossa data de casamento, sete do três de noventa
e um. É o meu código para tudo.
- Então, e agora?
- Agora, liguei ao meu sogro, e ele meteu-se no carro e foi à
procura dele.
- E tu?
A Teresa barra o pão com manteiga de alho e dá uma dentada
decidida.
- Eu ? Eu tenho que trabalhar, filha! Ou tu achas que cheguei
onde cheguei no banco por andar à procura do meu marido cada vez
que lhe apetecia fazer merda? O pai dele que o encontre, que eu
tenho mais que fazer.
Coitada da Teresa, é tudo garganta. Toda a vida viveu em função

27
do Vasco, dos problemas do Vasco, das crises do Vasco, do medo de
perder o Vasco, nas mil e uma formas de tirar o Vasco da droga,
como se a sua existência enquanto pessoa única não tivesse qualquer
sentido. E agora está aqui a fazer-se de forte, deve ser para se
convencer a si própria, por isso vou ajudar.
- Tens razão. Andas a aturar essa merda há tempo demais.
Quando é que chegou da cura?
- Há um mês.
O vinho aterra na mesa e a empregada, com ar anémico, serve
os dois copos. E Teresa bebe imediatamente meio copo.
- E quando é que ia começar a trabalhar?
- Daqui a uma semana. - Estúpido.
Estúpido, filho da puta, egoísta de merda. Como é que um gajo
com uma vida bestial, uma mulher que faz tudo por ele e uns gémeos
adoráveis se dá ao luxo de estragar a vida dele e a da família?
- E os miúdos, perceberam alguma coisa?
- Não, disse-lhes que o pai tinha saído mais cedo. O pior é logo à
noite.
- Até lá, o teu sogro ainda o encontra.
- Até lá, tenho uma reunião com a administração para apresentar
o novo logotipo do banco por isso ou me concentro no trabalho, ou
estou tramada.
- Tramada já tu estás.
- Lá isso é verdade. Mas não há de ser nada.
Se diziam que a Thatcher tinha tomates nos ovários, não sei o
que é que a Teresa tem. Aguenta tudo com uma cara impassível, aqui
a comer uma pizza enquanto o marido deve estar entornado numa
valeta qualquer, ou num quarto de uma pensão ranhosa, a ressacar
da dose anterior.
- Admiro a tua calma.
- Não admires, que é tudo fachada. Logo à noite chego a casa,
ponho os miúdos na cama, tenho lá a Maria para me ajudar, enfio um
Xanax, e esqueço-me que existo. É simples.
Tenho que lhe perguntar outra vez, a resposta é sempre a
mesma, há dez anos que não muda, mas mesmo assim vale a pena
tentar.
- Ouve lá... Porque é que não te livras de uma vez por todas
desse traste?
- Porque gosto dele, e porque é o pai dos meus filhos.

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- E se a vida de merda que levas, sempre a pô-lo e a tirá-lo de
curas, um dia te fizer tanto mal que não aguentes mais?
- Eu aguento. Aguento tudo. Não te esqueças que eu tinha dez
anos quando o meu pai se suicidou à minha frente. Quem aguenta
uma merda dessas sem endoidecer, aguenta tudo.
- É. Até ao dia em que o organismo estoirar por algum lado e
tiveres um cancro, ou uma merda parecida.
- Credo, tu andas um bocado negativa - exclama a Teresa
batendo na mesa. Mas como é de pedra, bate na cadeira. - Que
disparate.
- Disparate? Olha a minha mãe, se não tivesse sido tão infeliz, se
calhar hoje ainda estava viva.
- Ainda não ultrapassaste isso, pois não?
Tento responder, mas a voz perde-se algures entre os pulmões e
a garganta. Respiro fundo e bebo mais um gole de vinho. Finalmente,
a voz destranca-se e oiço-a ao longe, como se pertencesse a outra
pessoa.
- Foi um ano muito complicado... a editora a começar, a Carolina
cheia de febre por causa dos dentes... e a parva da Célia a mandar vir
comigo. Chegava a casa estoirada e ela dizia a menina já tem dois
dentes e a senhora nem reparou....
- Ainda tens essa palerma lá em casa?
- Tenho. Porquê?
- Devias arranjar uma interna, como a Maria. Com a vida infernal
que tenho, se não fosse a Maria, já tinha enlouquecido.
- Nem penses! A Célia não é grande espingarda, mas tem hora
de entrada e de saída. Perdia a privacidade toda com o Miguel. Não,
nem pensar.
- O Miguel, o Miguel... como é que isso está?
- Fantástico, como sempre. Porquê?
- Nada. É que eu acho que essa relação não tem futuro nenhum.
Mau. Isto hoje está tudo contra mim, ou quê?
- Ouve lá, o Nuno andou-te a passar cheques?
- Não sejas parva! O Nuno embirra com o Miguel porque tem um
fraquinho por ti. Deste-lhe para trás daquela vez e os tipos nunca se
esquecem das mulheres que não lhes ligam. Mas eu sou tua amiga,
preocupo-me contigo.
- Mas preocupas-te com quê, e porquê? Nunca fui tão feliz, nem
tive nada que se comparasse ao que tenho com o Miguel. Não

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percebes que nos adoramos e que estamos bem?
- Percebo. Mas é até ao dia. Ou tu não estás convencida que um
miúdo de 25 anos com a sede de viver que ele tem, vai parar por
aqui, pois não?
- E, porque não? Há imensos casais felizes em que o homem é
mais novo que a mulher, porque é que não havemos de ser um
desses?
- Porque o Miguel não é assim, Inês, sabes muito bem o que
quero dizer.
- A vida tornou-te uma pessoa amarga.
O olhar dela adoça-se. Cala-se por breves instantes e depois,
muito devagar, estende a mão por cima da mesa e agarra a minha.
- Ouve, eu não estou amarga, apenas me tornei numa pessoa
avisada. Vivo assim porque não soube viver de outra maneira. Mas
estou cansada. Não sei como vai ser o meu futuro. O Vasco não
muda, provavelmente nunca vai mudar. Estou gorda e a envelhecer,
para o ano faço quarenta e já ninguém me pega. Mas tu estás óptima,
tiveste a sorte do idiota do Pedro se ter posto a andar. És sócia de
uma das editoras com mais prestígio no mercado, só tens uma filha,
ainda vais a tempo de reconstruir a tua vida com outra pessoa. Se
perderes estes próximos anos com um puto como o Miguel, que não
tem nada para te dar, um dia ele vai-se embora e tu entretanto
deixaste que a vida te passasse ao lado.
Passo os dedos mecanicamente debaixo dos olhos para tactear
as rugas minúsculas que só eu vejo. 35 anos. A idade ideal.
Ainda temos vontade e energia para o presente, tempo e ânimo
para fazer planos para o futuro, mas já ganhámos maturidade e
tranquilidade com o que vivemos no passado. Já sabemos o que
queremos e o que não queremos. Mas o tempo passa depressa.
Qualquer dia a Carolina é adolescente, começa a receber telefonemas
de meninos armados em parvos, depois vêm as festas e as saídas à
noite e quando der por mim e olhar para o espelho, já sou uma
senhora de meia idade. Sei que a Teresa tem alguma razão, mas não
me apetece pensar nisso.
- O Miguel não se vai assim embora, de um dia para o outro.
Além disso, ele adora a Carolina.
A Teresa enche o copo e dá uma última garfada na pizza, antes
de voltar ao ataque.
- Oh, ele adora a Carolina!!! E quem é que não adora a Carolina?

30
Inês, põe os pés na terra, ao menos uma vez. Ele só está contigo
porque tem uma paixão enorme por ti. Mas ainda não tem idade para
construir uma relação, o amor para ele é isto, não percebes? Quando
a paixão se esgotar, vai-se embora sem olhar para trás.
- Quando esse dia chegar, logo se vê.
Pronto, já chega. Agora vou mudar de conversa.
- E o que é que vais fazer em relação ao Vasco?
- Depende.
- Depende de quê?
Se ele aparecer ou não.
- Claro que vai aparecer. Ou queres que ele apareça morto numa
valeta?
- Cala-te, não sejas estúpida.
Ela tem razão. Mas o que é que me deu para dizer tamanha
barbaridade? Que estupidez. Felizmente nesse momento toca o
telemóvel. Ainda deito a mão à carteira para tirar o meu, mas é o da
Teresa. Nas mesas mais próximas, três ou quatro pessoas seguem
instintivamente o, mesmo reflexo. Que ridículo, esta merda dos
telemóveis todos a tocar.
- Estou... Olá, tio. Ah!... ainda bem, tio. Faz um sorriso de
circunstância.
- Sim, tio, pode levá-lo para lá, a Maria abre-lhe a porta.
Obrigada, tio. Ainda bem, tio. Obrigada. Até logo, tio... espere! Faz-
me um favor? Ele deve ter o meu cartão multibanco na carteira, ou
num bolso, o tio não se importa de lho tirar e entregá-lo à Maria? Bem
haja, tio. Até logo. Eu tenho uma reunião, mas vou assim que puder.
Obrigada, até logo.
Desliga o telemóvel e fica a olhar pensativamente para as teclas.
- Pronto. Estava a dormir em Alcântara, à porta de um café. O
meu sogro vai levá-lo para casa.
À saída do parque, esbarramos com um arrumador de carros.
Não é o mesmo que costuma cá estar, quando venho à noite ao Lux
beber um copo. Devem ter isto dividido por turnos. Abro a carteira e
dou-lhe uma moeda de duzentos escudos. Que ironia, eu aqui a dar
dinheiro a um toxicodependente e a Teresa com outro em casa. Isto
para não falar no marido da Célia.
Deixo a Teresa à pressa na esquina da sede do banco e desejo-
lhe boa sorte para a reunião. Esta mulher devia ser condecorada. Ou
canonizada. Claro que a apresentação do novo logo tipo vai ser um

31
êxito, claro que daqui a seis meses é outra vez promovida, enquanto
o Vasco regressa a outra clínica para perder mais seis meses a fingir
que se vai limpar. O que ela precisava era de arranjar um namorado.
Mas não há nada a fazer, quando uma mulher gosta mesmo de um
homem aguenta tudo, espera o tempo que for preciso, não há nada
que não faça para poder ficar com ele. E a Teresa gosta mesmo do
Vasco. Como a Ana gostava do Nuno. Como eu gosto do Miguel. E se
um dia destes o Miguel acorda e decide abrir as asas e cruzar os
céus? Só de pensar nisso fico com dores de estômago e um arrepio
desce-me desprevenidamente pela espinha. Estarei assim tão presa a
ele? Quando começámos nem sequer o levava a sério não me trate
por tu que eu não tenho a sua idade disse-lhe um dia, num almoço
delicioso em que já só o via e ouvia, nada mais existia à minha volta,
bêbeda dele, mas ainda tentei manter a distância que achava
higiénica; já estava quase a capitular, era apenas uma questão de
tempo. O Miguel riu-se, encolheu os ombros e só me voltou a tratar
por tu quando eu deixei. Mas nessa altura já dormia na minha cama.
A Carolina fez outra vez chichi na cama. Faz uma ou duas vezes
por mês, geralmente quando adormece contrariada. Há dias que
nunca mais têm fim e quando finalmente ela adormece, deito-me
imediatamente na cama e caio redonda. Nos dias em que o Miguel cá
fica, tudo se torna mais fácil. Ele faz dela o que quer. Se lhe dou duas
vezes a mesma ordem e finge que não ouve, o Miguel repete
exactamente o que eu disse com as mesmas palavras e a miúda nem
pestaneja. Obedece logo. Sou mesmo bom com mulheres, costuma
comentar o Miguel, que não se importa nada de brincar aos pais com
ela. Sempre brincou, desde o primeiro dia, com uma leveza que
nunca percebi se era fruto de uma grande inconsciência ou da mais
profunda certeza do que estava a fazer. Deve ser o primeiro caso.
Com 25 anos que consciência pode ter um tipo que saiu do colégio
para a faculdade e da faculdade para o atelier, e que nunca teve que
assumir nenhuma responsabilidade na vida? Mas toca-me o coração
vê-los juntos, quando ela se enrosca no colo dele antes do jantar e os
dois lêem os meus livros da Anita impecavelmente conservados.
Estou na cozinha e oiço a voz do Miguel, pausada, calma, meiga,
modular num tom encantatório e penso isto é bom demais para ser
verdade, ou melhor, já deixei de pensar, senão ainda puxo a falta de
sorte e eu tive tão pouca que agora bem mereço viver assim, com a
Carolina ao colo do Miguel e o Miguel ao meu colo. A Teresa está

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sempre a gozar comigo, quando me liga pergunta:
- E então, como estão as crianças?
As crianças tomam conta uma da outra, as crianças adoram-me
e eu não preciso de mais nada, ou melhor, às vezes precisava que o
Miguel ajudasse mais um bocadinho cá em casa. Mas desde que lhe
pedi para pôr a loiça na máquina e me colocou os pratos grandes na
parte de cima, percebi que era inútil, que aquelas mãos são melhores
no estirador e na cama do que cozinha. Por isso, não insisti. Não se
pode ter tudo.
A minha mãe havia de ter gostado do Miguel. Sempre soube dar
valor aos meus amigos mais inteligentes, nunca teve paciência para
aturar pedantes, e achava que o Pedro era, como ela costumava
dizer, muito pouca coisa. E quando o comparo ao Miguel, era mesmo.
Ou, então, sou eu que estou tão apaixonada que só lhe vejo as
qualidades. Deve ser isso.
É domingo à tarde e o Miguel está esparramado no sofá da sala,
de fato de banho e tronco nu, a ver o Benfica. Qualquer dia, ainda
dou por mim a comprar A Bola todos os dias para discutir com ele as
tricas, entradas e saídas do plantel. Mas ao menos os homens têm
esta coisa que lhes dá distância e autonomia em relação ao resto; as
mulheres vivem quase sempre encerradas nos seus dramas, como
eu, por exemplo, que vim para a cozinha acabar de arrumar tudo,
enquanto Sua Excelência descansa na sala. Men work sun to sun,
women's work never done. Aprendi esta quando estive em Inglaterra
a fazer de baby-sitter de três adoráveis criaturas que se
comportavam melhor à mesa do que a maior parte dos adultos que
conheço e que rezavam antes de adormecer. Sempre fui doida por
crianças. Se a Teresa me ouvisse agora, a pensar, ria-se e dizia logo:
- Pois, pois. O próximo, vais buscá-lo à porta do Liceu.
Levo para a sala duas cervejas de lata e sento-me no pouf a ler A
Imortalidade do Kundera. É bom, mas não há amor como o primeiro e
A Insustentável Leveza do Ser marcou mesmo a minha geração. Um
homem e uma mulher unidos para sempre, numa morte involuntária,
sob o olhar vigilante de uma amante lasciva e sábia. A clássica
dicotomia da mulher inocente e frágil, que é perfeita para ter em
casa, e a amante insaciável e quase fria que põe a cabeça dos
homens a andar à roda. Será que o Miguel anda com outras? A Ana
passa a vida a insinuar que é perfeitamente natural que isso aconteça
e o Frederico, que já percebeu que a vida lhe é muito mais fácil se

33
concordar sempre com a Ana, vai juntando mais fios ao rio de
veneno. Oiço-os com polida e contrariada educação, e nem sequer
me dou ao trabalho de lhes responder. Porque haveria o Miguel de
andar com outras? Porque os homens pensam que se pode ter tudo,
disse-me a minha mãe, quando sofri o meu primeiro desgosto de
amor, quando o Tiago, que era meu namoradinho de bairro, me
trocou por uma parva que dizia que era minha amiga. Com amigas
destas, ninguém precisa de inimigas. Mas o rapaz arrependeu-se, e
voltou dois meses depois. Não se pode ter tudo, dizia a minha mãe,
nem se pode dar tudo. Claro que, com 15 anos, eu não fazia a mínima
ideia do que ela me estava a querer dizer; por isso, quando o Tiago
voltou e lhe abri os braços para, seis meses depois, me fazer a
mesma coisa, a minha mãe encolheu os ombros e esperou que eu
aprendesse sozinha. Mas se calhar ainda não aprendi nada.
- Em que é que estás a pensar?
O Miguel deve ter reparado no meu olhar subitamente ausente,
com vinte anos de distância. Eu sentada no banco do Jardim da
Estrela a chorar baba e ranho, chovia a potes e eu não me queria
levantar dali, à espera que a chuva me lavasse a tristeza ou, melhor
ainda, me levasse dali. Com 15 anos, o mundo começa e acaba as
vezes que forem precisas no mesmo dia. Tudo se constrói e desaba a
uma velocidade que a idade vai roubando, e, naquela tarde de chuva
que durou dois meses, percebi o que era perder alguém pela primeira
vez.
- Estava-me a lembrar do primeiro namorado.
O Miguel deixa cair um meio sorriso quase sarcástico.
- Não me digas, um que foi muito mau e te trocou pela tua
melhor amiga?
- Como é que sabes?
- Não sei, mas imagino. É um clássico que vos acontece sempre a
todas, coitadinhas!
Este coitadinhas poderia ter-me irritado se não tivesse sido
pronunciado com uma doçura irresistível. Pela milésima vez, observo-
lhe as pestanas enormes que rodeiam os olhos enormes. - O que é
foi, agora?
- Nada. - Anda cá.
Sento-me ao lado dele e puxa-me a cabeça para o ombro.
Respiro-lhe o hálito fresco, temperado com o sabor do trigo, e dou
mais um gole na cerveja. O ombro dele está quente e apesar de

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ossudo, é muito confortável. A mão direita passeia metodicamente
pelo meu cabelo.
- Às vezes, acho que ainda és mais pequenina que a Carolina.
- Às vezes, sou.
- Sabes o que é que ela me disse, outro dia, quando a estava a
adormecer? Eu quero que o Miguel tome conta de mim. Eu respondi
que era o que estava a fazer, mas ela abriu muito os olhos, e repetiu
muito devagar, com aquela solenidade dos miúdos quando querem
dizer uma coisa mesmo importante. Não é hoje. É amanhã, e depois,
e depois. Apertei-a com força, e dei comigo a pensar como é que a
minha mãe foi capaz de nos deixar, a mim e ao Rodrigo, quando
éramos ainda tão pequenos.
- Mas a tua mãe não morreu?
- Sim - responde com um ar vago - mas antes disso aconteceram
outras coisas, que agora não apetece contar. Decido voltar ao fio
inicial da conversa.
- Gostas muito da Carolina, não gostas?
- Gosto. É adorável. E quando ela me disse aquilo, percebi que se
calhar até vou querer ter filhos.
Ficamos os dois calados, agarrados um ao outro, a saborear o ar
e o silêncio. Filhos. Quem me dera ter mais, mas o Miguel não me
está a dizer que quer ter um filho comigo. Está apenas a constatar o
seu primeiro sinal de instinto paternal, é só isso, Inês Maria, não te
ponhas com ideias. Além disso, o que faria eu com três crianças, se já
tenho duas?
- Queria mais bebés, não era?
Quando a doçura começa a transbordar, voltamo-nos a tratar por
você, como no início mágico de todos os inícios, um ritual talvez
estranho, mas delicioso.
- Talvez, mas não tenho pena se não tiver.
Lá estou a condescender. A dizer-lhe o que ele quer ouvir, em
vez de ser sincera. Claro que quero ter mais um filho, dá-me dó ver a
Carolina de balde em punho pela praia fora, à procura de amigos para
brincar. Claro que quero ter mais, já me esqueci das dores do parto,
dos pontos, do peito cortado de dar de mamar, das noites em claro
até ela aprender a dormir 12 horas seguidas. A memória é isto: só nos
lembramos do que foi bom. Esquece-se a dor, a tristeza, a perda e o
sofrimento. Esquece-se quase tudo. Ficam as luzinhas de Natal, os
movimentos triunfantes, os momentos de júbilo e glória, como

35
fotografias resgatadas num álbum que se abre com prazer.
- Um dia, se continuarmos juntos durante mais dois ou três anos,
temos um bebé, está bem?
Não me digas isso, Miguel, não me faças correr como a Dorothy
pela Yellow Brick Road com o leão medroso, o espantalho e o homem
de lata. Não me dês mais sonhos, não me ponhas a voar por cima do
mundo como um balão, senão rebento de felicidade e, como o voo é
inseparável da queda, não vou conseguir estar lá em cima e cá em
baixo ao mesmo tempo, para me amparar numa nova realidade. Cala-
te, Miguel, não prometas nada, eu sei que não estás a prometer,
estás só a ser sonhador e sincero, tens 25 anos e não fazes a mínima
ideia do que é ter filhos e responsabilidades; mas, se isso um dia for
mesmo possível, então, quero que seja um rapaz com os teus olhos, e
o teu cabelo, e a tua alma de pássaro.

A Ana senta-se à minha frente. Vem apressada como sempre.


Subiu a rua a passadas gigantes e quase se deixa cair na cadeira,
encostando por momentos a cabeça ao espelho que tem atrás onde
vejo o meu cabelo, como sempre mais despenteado do que gostaria.
Ela não. Usa-o ultra curto e ultra moderno, e consegue sempre ter
todas as farripas no sítio. Claro que vaia um cabeleireiro
estupidamente caro, que lhe leva mais de dez contos só para ter
inspirações com a tesoura. Mas tudo o que é bom paga-se e o
resultado é este: eu ando sempre despenteada, e ela parece acabada
de sair todos os dias de uma produção de moda.
A Ana não era uma amiga próxima até ter acontecido aquela
estupidez com o Nuno. Como a tristeza aproxima as suas vítimas, foi
a partir desse momento que lhe estendi os braços e lhe dei o mais
precioso bem que se pode dar a quem fica sem amor: a amizade. Foi
o que o Duarte fez comigo.
- Então, o Duarte não vem?
- Claro que sim, mas está atrasado.
A Ana pede a lista onde pratos com nomes estranhos se
sucedem numa sinfonia absurda de palavras que não conheço.
Estamos no Tibetano, e a Ana é uma expert, explica que seitã é uma
proteína vegetal que substitui a carne e desta possui várias
qualidades, sem nenhum dos seus defeitos. Acabo por escolher o
prato do dia, derrotada com tanta informação que não percebo,
enquanto me delicio com um sumo de uma data de coisas, entre as

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quais banana e cenoura, que a Ana me recomendou.
O Duarte chega, atrasado e despenteado, irresistível. É uma
mistura de Sean Penn com o Lucky Luke. Tem tanto de malandro
como de querido, um sorriso rasgado e uma voz de menino mimado
que lhe dá uma graça monumental. Podíamo-nos ter apaixonado as
duas por ele, mas, sem sabermos porquê - estas coisas não são
mesmo para saber -, ficamos só amigas. Primeiro, a Ana, e depois eu,
através dela.
Deste-me o Frederico, e eu dei-te o Duarte, costuma dizer, por
graça. Quando apresentei o Frederico à Ana, percebi que o meu
amigo dos almoços, jantares e cinemas sem tempo nem hora
marcada, tinha encontrado a mulher da vida dele, e a Ana deve ter
pensado o mesmo, porque estão casados há três anos e nunca
conheci um casal tão equilibrado, próximo e aparentemente feliz. Foi
em casa dela que me cruzei com o Duarte, um pária sentimental
como eu, mas sem divórcio nem filhos no currículo, só uma vontade
enorme de não crescer e de poder continuar a sair à noite com os
amigos, apanhar bebedeiras e, como ele diz, sacar Cláudias. O Duarte
é, aliás, o autor de frases extraordinárias, que pronuncia com o
encanto de quem não tem a menor consciência do que está a dizer,
tais como a noite é um depósito, ou na noite há muitas Cláudias. Filho
de peixe sabe nadar e o Duarte é filho único de um dos reis da vida
nocturna que dominou Lisboa nos anos 80. Mas entre Jamesons e
Cláudias furtivas, é talvez um dos melhores amigos que já tive, e
adoro-o.
- Como estão as minhas brasas? - pergunta, com aquele sorriso
que podia dar um laço no alto da franja, de tão expansivo e rasgado.
- E tu?
- Como sempre. Com álcool a mais no sangue e horas de sono a
menos.
- Qualquer dia cais para o lado. Já não tens vinte anos.
- Pois não. Mas ainda não tenho trinta, por isso deixa-me estar,
que para o ano, torno-me um rapaz sério. Vocês não têm uma amiga
como vocês, para minha namorada? Era o que eu precisava, para
ganhar um bocado de juízo.
Começa o charme. A Ana eu não lhe resistimos, desatamos a rir,
e ele encolhe os ombros e olha-nos de lado, como se tivesse cinco
anos. Já tentámos arranjar-lhe duas ou três namoradas, mas em vão.
O Duarte não gostou de nenhuma; por isso desistimos, rezando para

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que um dia destes ele não seja apanhado por uma Cláudia na curva,
da mesma forma implacável e destruidora como as apanha numa
discoteca qualquer da Av. 24 de julho, às cinco da manhã, entornadas
que nem barris, e sem defesas para resistir a uma ofensiva masculina
bem planeada. Não é por acaso que ele chama a esta avenida o
Mercado da Carne. Mas, como quem com ferro mata, com ferro
morre, e ele trata tão mal as miúdas, qualquer dia há uma que lhe
troca as voltas.
- Ainda te havemos de ver casado com uma Cláudia, a empurrar
um carrinho de trigémeos - comento, antes de me distrair com o
prato da dita seitã que me aterrou debaixo do nariz. O Duarte
observa o meu prato, e diz, com um ar entendido, ao empregado:
- O mesmo para mim, por favor.
A Ana fita-me com cara de poucos amigos.
- O que é que se passa? - pergunto, cheia de medo de dar a
primeira garfada, não vá aquilo saber-me a rãs soviéticas fora de
prazo.
- Essa dos gémeos não era para mim, pois não?
Bolas! Esqueci-me da merda do tratamento de inseminação
artificial que a Ana anda a fazer.
- Não estou a perceber...
- Coitado do Duarte! Estas nuances de tratamentos de fertilidade
escapam-lhe por completo. Deve perceber mais de técnicas de
contracepção. Há dois anos que a Ana anda a tentar engravidar.
Talvez tivesse sido mais fácil se, entretanto, não tivesse feito dois
abortos espontâneos, um, aos dois meses e meio, e outro, aos cinco.
O último foi horrível, pensávamos todos que ela ia conseguir. O
Frederico teve um desgosto tão grande e tanta pena que engoliu o
desgosto, e só seis meses depois, quando ela teve que ir a Milão ver
colecções e foi jantar lá a casa, é que deitou tudo cá para fora. Eu
estava num daqueles fins de tarde infernais, com a Carolina a fazer
birras porque não encontrava o ferro de engomar da Barbie, não
queria tomar banho, e depois não queria lavar a cabeça, e depois não
queria o molho dos bifes de perú porque lhe sabia a meias velhas:
isso mesmo, meias velhas, metáforas maravilhosas que passam por
aquelas cabecinhas mínimas. Eu é que já não estava pelos ajustes e,
sem pensar, enfiei-lhe uma galheta que ficou marcada na cara. A
miúda desatou num berreiro que podia ser ouvido no prédio todo, e
foi nesse momento que o Frederico chegou para jantar com uma

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garrafa de vinho tinto debaixo do braço, a levou para o quarto e ficou
lá uma hora a brincar com ela a acalmá-la e a adormecê-la com os
infalíveis livros da Anita enquanto eu punha a mesa e respirava
fundo, pensando numa frase que ouvira em miúda e cuja origem já
desistira de localizar nós só não os matamos porque são nossos filhos
E eu estava a viver um desses dias infernais em que só pensava
como seria a minha vida sem aquele Hitler de saias e cinco anos em
casa, quando o Frederico entrou muito devagarinho na sala, se
sentou no sofá e começou a chorar, como um borrego arrancado à
mãe, por causa da Ana.
Faith is nothing without a sense of irony. O Frederico é talvez o
melhor homem que conheço, com mais princípios e o maior coração,
sério e estruturado, que ama de uma forma doce e imaculada a sua
mulher, que vive para ela e para o trabalho. Ninguém mais do que ele
merecia ter filhos. E ela também, depois daquele disparate com o
Nuno. Quando encontrou o Frederico, sentiu desde o primeiro
instante que era ele a pessoa que ela sempre esperara, o homem que
lhe iria dar o mundo. Talvez o mundo, mas filhos é que não e ainda
por cima, segundo os médicos, nem um nem outro eram inférteis.
Aparentemente, não havia nenhuma razão para que não
conseguissem, mas o facto é que não conseguiam e muito
lentamente, à velocidade invisível com que chegam certas doenças
fatais, a tristeza instalou-se neles como um pequeno vício que lhes
minava os dias, e, inevitavelmente, desgastava, não o amor
inabalável que sentiam um pelo outro, mas a possibilidade de
perfeição desse amor, da consagração da união de um casal, o poder
de gerar vidas e ter uma família.
O Frederico tirou os óculos para limpar os olhos, depois de chorar
durante mais tempo do que eu pensei possível ver num homem, e
pediu-me que nunca contasse à Ana aquele desabafo que, aos olhos
masculinos, é sempre um sinal de fraqueza. Os homens não
percebem que é exactamente ao contrário, que quando se chora, é
para lavar a alma e recuperar forças, que mostrar fraqueza é uma
forma de mostrar força. Moveram-se mundos, ruíram estados e
salvaram-se nações por causa de lágrimas de mulheres. Mas o choro
é coisa de mulheres ou de maricas: um homem não chora, e é por
estas e por outras que, depois, não os conseguimos perceber. Porque
nem eles se entendem, espartilhados entre as convenções que lhes
impuseram, aquilo que os outros pensam e o que ainda não

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percebem que sentem.
Claro que nunca contei à Ana e, como me apercebi da gravidade
da situação, lidei com ela com a displicência que o bom senso
aconselha nos casos sem solução, mostrando-me discreta mente
solidária, mas sem dar demasiada importância ao caso. Não há coisas
nem pequenas nem grandes, todas têm a mesma importância, disse
Oscar Wilde ao amante, na carta que lhe escreveu na prisão, quando,
exactamente por ter um caso com ele, foi preso e cumpriu pena
durante mais de dois anos, sem que o outro, que lhe estoirara a
fortuna e lhe roubara horas infinitas de trabalho, se tenha dado ao
trabalho de lhe escrever ou de o visitar, votando-o ao mais profundo
esquecimento.
O esquecimento é a arma mais letal do amor, quem nos esquece
é como se se esquecesse de tudo o que fomos. Ou pior: que
existimos. Quem ama e consegue esquecer é uma espécie de
assassino: mata a realidade, apaga-a, renega-a e transforma-a num
pesadelo absurdo no qual somos obrigados a aprender outra vez a
viver. Não sei se foi bem isto que senti quando o Pedro se foi embora
porque, agora, quando olho para trás, acho que nunca o amei. Mas o
esquecimento a que ele me votou, de um dia para o outro, quando
saiu de casa para ir viver com a Sandra, deixou-me perdida. Mas não
gostava dele. No fundo, foi melhor assim, eu sabia que, mais dia
menos dia, nos íamos separar. Nem teria conseguido dormir com o
Nuno, duas semanas a seguir.
- E o Miguel? - pergunta o Duarte
- Liguei-lhe outro dia para ir bater umas bolas, mas estava cheio
de trabalho, adiou para a semana.
O Duarte é viciado em squash e, de vez em quando, combinam
jogar. Parece que o Miguel não joga tão bem como ele, mas, como é
muito competitivo, adora aquilo, e, cá para mim, também é uma
forma de se ter aproximado mais dele e de o conhecer melhor, e,
quem sabe, talvez de me proteger. Quando o Miguel e eu
começámos, o Duarte recebeu-o com a cordialidade afável e
reservada dos irmãos mais velhos, quando a irmãzinha aparece com
um namorado novo, o que não deixa de ter piada, porque o Duarte é
mais novo do que eu. Mas os homens são mesmo assim, para eles
proteger é uma forma de amar. Só eu é que arranjo sempre homens
que gostam de ser protegidos.
- Pois anda. Mas este fim-de-semana conseguiu não ir ao atelier

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e passámos o tempo todo a namorar, isto é, o tempo que a Carolina
deixou, porque eu acho que ela deve pensar que ele também é
namorado dela.
- Olha, e daqui a uns anos, quem sabe... - atalha o Duarte, depois
de uma careta bem disfarçada que acompanha uma garfada na
maldita seitã.
Às vezes é mesmo parvo. Faço-lhe um sorriso amarelo canário.
- Vê lá se queres levar um estalo.
- Se for tão gira como a mãe - contemporiza.
- Vá lá, estava a brincar. Não estás com aquelas parvoíces na
cabeça de seres mais velha do que ele, pois não?
- Não, mas devia estar - corta a Ana, como uma faca laser.
- Porquê? Ele adora-a!
- Pois adora. Adora brincar aos pais com a filha dela, adora ter
uma namorada mais velha, que lhe apara os golpes e o recebe
sempre de braços abertos. Assim, é fácil ter uma relação.
Era o que me faltava, ter estes dois aqui a falar de mim como se
nem sequer estivesse presente.
- Se vocês quiserem saber o que é que eu acho da minha vida, já
agora...
O Duarte intercede em meu favor:
- Mas para que é que estás com essa conversa? Ele é um gajo
porreiro, bolas, nem todos os homens são uns filhos da mãe... Bem,
há poucos, mas ainda há alguns...
- É melhor estares calado, Duarte, porque o que tu fazes às
miúdas que sacas na noite também não é nada que se recomende.
- Mas eu não gosto delas, não percebes a diferença? E elas
sabem perfeitamente ao que vão.
O Duarte ri-se e vou a dizer não sei muito bem o quê, quando,
com um leve levantar de mão, me pede silêncio e continua a falar.
- Ouve: se eu posso ter sexo fácil e de borla e... bem, enfim,
umas vezes melhor, outras pior, mas sempre é sexo, e se posso ter,
porque é que não hei-de aproveitar?
A Ana olha-o mais ou menos chocada, mas ele já está embalado
na sua argumentação.
- E quem é que te diz que elas também não querem
exactamente a mesma coisa que eu? É um jogo limpo, toda a gente
que entra nele sabe ao que vai. Mas isto não tem nada a ver com
coisas a sério, com o Miguel e a Inês é diferente, ele gosta mesmo

41
dela e...
- Vocês importam-se de parar com essa conversa??? - devo ter
falado um bocado alto porque, de repente, o restaurante calou-se em
peso e as cabeças das outras mesas viraram-se quase todas ao
mesmo tempo para mim. Odeio que falem da minha vida, e odeio
ainda mais ser o centro das atenções. O empregado aproxima-se e
retira os pratos.
- E sobremesa, vão desejar?
Porque é que esta gente constrói as frases ao contrário? Por que
é que não diz primeiro o verbo, e depois o complemento? Deve ser
dos telejornais. Peço a lista com secura, o Duarte encolhe os ombros
faz um meio sorriso e a Ana retracta-se.
- Desculpa, Inês. É que essa tua história preocupa-me.
- Andas a falar muito com a Teresa, vocês parecem combinadas.
- Pois parecemos, mas acredita que é com a melhor das
intenções.
Coitada da Ana! E é mesmo com a melhor das intenções, mas, se
estivesse contente com a vida dela, não se inflamava tanto com os
possíveis problemas da minha. Olha para o relógio, abre a carteira
para deixar a parte dela e despede-se apressadamente, porque tem
uma reunião com uns italianos daqui a cinco minutos, dá-me um beijo
fugidio e voa pela porta.
- Sempre vais lá jantar com o Frederico? - pergunto-lhe, quando
já vai a sair.
- Claro, depois ligo-te.
O Duarte olha para mim com cara de Madre Teresa de Calcutá.
- Ela não anda bem, pois não? - E pede ao empregado duas
tortas de laranja. - Aquela história de não conseguir engravidar dá-lhe
a volta à cabeça.
- Bem, se o Frederico não lhe conseguir fazer um filho, eu posso
sempre tentar...
Bom e velho Duarte, nunca consegue levar nada a sério.

Um quarto para as onze e eu ainda aqui às voltas com o alçado.


Mas quem corre por gosto, não cansa. A Inês passa a vida a gozar
comigo, chama-me risquinhos, lápis n.° 0, formiguinha, mas é uma
querida, nunca pergunta a que horas chego. Em vez disso, liga às oito
e meia a dizer que, se quiser passar por lá a seguir, mais tarde, me
dá de jantar seja a que horas for. Devia-me ter despachado mais

42
cedo, hoje o Frederico e Ana vão lá jantar, mas não posso sair
enquanto isto não estiver pronto. Ainda bem, não tenho grande
paciência para a Ana, sempre a dar opiniões e a embirrar com toda a
gente. Só um santo como o Frederico para a aturar. Bem o gajo não é
bem santo, é mais uma banana com olhos. Havia de ser comigo.
Levava uma corrida que se punha mansa num instante, ou então
dava-lhe corda aos sapatos e ala que se faz tarde! Tenho pouca
paciência para gajas, e ainda menos quando são chatas. Mas o
Frederico está a chegar aos quarenta, parece que se amolece um
bocado nessa idade. Querem todos casar e ter filhos, um lar, cães e
casas de campo, sinais de uma vida calma e sossegada, códigos de
conforto que me põem logo a bocejar. A mim, não me apanham.
Ainda tenho muito para viver, muita viagem para fazer, muita gaja
para comer.
Toca o telemóvel. É o meu irmão Rodrigo, a perguntar se quero ir
beber um copo. Hesito, porque apetece-me sempre sair, mas há dois
dias que não vejo a Inês e quero ir dormir com ela. Mas, se fizer bem
as coisas e tiver pontaria, ainda faço um 2 em 1 e consigo lá chegar a
horas de apanhar o Frederico e a Ana de saída. Irrita-me a maneira
como as amigas da Inês me olham, como se estivessem à espera que
lhes pregasse uma rasteira ou lhes deitasse a língua de fora.
Cambada de balzaquianas. A outra deve ser uma esfomeada, sempre
com o marido internado, está gorda que nem uma vaca, também
quem é que comia aquilo? Às vezes esqueço-me que a Inês tem mais
dez anos que eu, quando vamos sair com os meus amigos não dou
por nada, ela parece uma miúda, a diferença de idade não existe.
Mas, quando estou com alguns amigos dela, sinto-me desconfortável.
Parece que estão todos à espera que eu faça merda, para poderem
apontar o dedo e dizer:
- Estás a ver? Não passa de um puto lunático e pretensioso. Puto
lunático e pretensioso. Foi o que me chamou a Teresa quando na
noite de anos da Inês, lhe organizaram um jantar e só apareci depois
da meia noite. Não tenho culpa que a Inês faça anos no mesmo dia
que o meu irmão Rodrigo. Mas a Teresa até é porreira. Um bocado
frustrada com a merda de vida que tem, mas no fundo, boa pessoa.
Não teve foi coragem de mo dizer na cara. É mesmo típico das gajas,
dizerem as maiores merdas pelas costas e, depois, sorrisos pela
frente. Se me tivesse chamado puto lunático e pretensioso, tinha dito
logo: e tu minha vaca com falta de peso em cima, não andas mas é a

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precisar de levar com ele?
Saltava-me logo a tampa, era fatal. A Inês nunca viu este lado
agressivo que dispara muitas vezes com excessiva facilidade.
Também era impossível, com uma pessoa como ela. Nunca conheci
ninguém tão conciliador, de uma tranquilidade tão acolhedora. Ela
despela o meu lado melhor, com ela não consigo ser bruto ou
agressivo, nem sequer frio. É como se possuísse a fórmula secreta
para me aquecer o coração. Mas será que é esta a vida que eu quero?
Afinal, está-me a apetecer ir beber um copo com o Rodrigo.
Telefono à Inês a dizer que, hoje, não vou lá dormir. Nada, nem
uma palavra de censura.
- Tu é que sabes.
- Mas sei o quê?
- O que te apetece fazer.
E mudou de assunto para eu pensar que ela não estava a dar
nenhuma importância ao facto; pôs-se a contar que a Carolina tinha
estado a montar um comboio e lhe perguntara onde é que estava o
condista. A miúda é o máximo. Condista. Um mistura de condutor
com maquinista. Desliguei com a consciência tranquila. Vou mas é
acabar esta merda e ligar ao Rodrigo para irmos comer um
combinado e beber uma cerveja. Mas aquela do tu é que sabes, ficou-
me a moer. Porque é que elas nos cobram sempre as coisas? Bolas,
tenho 25 anos, está bem que ontem fui beber um copo e hoje
também vou, e depois? Não gosto menos dela por causa disso, nem
me passa pela cabeça sequer comer outras gajas. Aquilo ontem com
a Mariana foi uma estupidez. Não lhe devia ter saltado à boca, somos
bons amigos, e um absurdo. Mas também não teve importância
nenhuma, por isso nem vou perder tempo a pensar no assunto. Não,
eu não vou andar por aí a fazer estupidezes; nem eu quero, nem a
Inês merece. Gosto é de fazer o que me apetece. E faço.
Quando chego ao restaurante o Rodrigo manda uma mensagem
escrita a dizer que está atrasado, para variar. Entretanto, aparecem o
Rui e o Paulo, que andaram comigo no liceu. O Rui é um bicho do
mato sem paciência para gajas, a não ser que seja para as comer. O
Paulo é pacífico por natureza, tem uma namorada há cinco anos que
supostamente o adora, é preguiçoso e trabalha pouco, mas como o
pai é rico e ele trabalha na construtora da família, também não
precisa de se, chatear. O Rui, que tem um espírito crítico cirúrgico,
faz parte daquele género filho da puta com sistema de refrigeração

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no sangue, que nunca perde o pé e acerta quase sempre, embirra à
brava com a Kátia, acha que ela além de gostar do Paulo, gosta do
carro do Paulo, das férias com o Paulo, da casa do Paulo, um
apartamento bestial junto às Amoreiras. Já para não falar da casa no
Algarve e do acesso privilegiado ao circuito colunável do Verão: tios
com fios de ouro e calças encarnadas, camisas desapertadas para
fazer sobressair a peitaça peluda e disfarçar sem qualquer sucesso as
barrigas vastas e nojentas. E tias armadas em frescas, ouros por
todos os lados, jeeps e descapotáveis, todos a comerem-se
desvairadamente uns aos outros, como é típico dos meio ditos
“evoluídos”, onde reina o poder e o dinheiro. A Kátia, que nasceu na
Parede, filha de um técnico oficial de contas e de uma professora de
matemática, deve ter aprendido desde pequena a fazer contas à vida
- herança genética ou cultural, tanto faz - e viu no Paulo um futuro
risonho e garantido. Não quer dizer que a gaja não goste dele, por
acaso até acho que gosta. Mas o Rui é implacável: acha que ela anda
a ver se dá o golpe e, cá para mim, já deu. Peço um combinado com
hamburger, e eles uma cerveja, já jantaram todos.
- Então, o Rodrigo? - pergunta o Paulo.
- Está atrasado, como de costume.
- Enfiado numa gaja qualquer, com certeza - atalha o Rui, que
não sabe nem quer falar de outra forma. E começa a contar que
conheceu uma gaja podre de boa, quando foi renovar o bilhete de
identidade há uma semana, para provar que se podem conhecer nos
sítios mais inusitados.
- Estávamos na bicha para os impressos e comecei a galar-lhe o
cu, daqueles em pêra, mas subidos, e um cabelão encaracolado pelas
costas abaixo, liguei logo o radar.
- Tinha fio dental? - pergunto, enquanto observo duas miúdas
com ar de finalistas de Relações Internacionais que acabaram de
entrar.
- Claro! Não sabes que as gajas boas usam todas fio dental? E
como nenhum de nós tinha fotografias, fomos a uma daquelas lojas
manhosas, ao lado, tirar as fotos, e foi aí que lhe disse uma parvoíce
qualquer.
- O quê?
- Qualquer coisa do género: se precisar que a faça sorrir lá
dentro da máquina, não me importo de lhe fazer umas palhaçadas.
Este gajo é parvo, mas tem piada. É que tem mesmo. As miúdas

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sentam-se do outro lado, mesmo à nossa frente, e a mais alta olha
discretamente. O Rui troca um olhar rápido comigo, mas eu abano
ligeiramente a cabeça. Não valem o esforço.
- Genial - diz o Paulo, que é tímido como uma bananeira.
- Pois, mas ela encolheu os ombros e nem sequer se riu.
- Palhacito.
- Até tentei ser, mas não surtiu grande efeito.
- Tiveste azar ou então era uma gaja sem sentido de humor. Era
mesmo boa? - insisto.
- Podre.
- Então, devia ser daquelas convencidas, que acham que
ninguém lhes chega. Não há paciência para essas gajas - remata o
Paulo.
- Pois é. As gajas, quando são boas, raramente têm sentido de
humor. As feias é que costumam ter piada - comento. E penso, como
diria a Inês: não se pode ter tudo. Mas eu tenho. De facto, sou uma
pessoa com sorte.
- E como se chamava? - pergunto, entre duas garfadas.
- Não faço ideia - responde o Rui, encolhendo os ombros.
- Quer dizer, fizeste figura de palhaço e nem o nome ou o
telemóvel lhe sacaste?
- Mas tu não sabes que essas merdas não se pedem? Elas é que
dão, se quiserem.
- Então e agora?
- Agora, tenho que ir aí sair à noite e ver se a apanho.
- E se ela não for de cá? Se é daquelas que veio da terra para
renovar o BI e passa os fins de semana numa discoteca qualquer nas
Caldas da Rainha?
- Paciência - diz o Rui. A passividade dele às vezes irrita-me. - O
que há mais por aí é gajas boas. Se eu conheci uma podre de boa na
bicha do BI, também posso conhecer outra, noutro sítio qualquer.
- Lá isso é verdade - diz o Paulo, a acabar a imperial.
- Pois, mas tu já foste apanhado - respondo-lhe. O hamburger
está bom, mas as batatas estão mal fritas.
- Este já se fodeu. Dou-te um ano e lá vai a malta ver-te a
enforcares-te, apanha tudo uma grande tosga e és mais um liquidado
pelas malhas do amor.
- Podemos-te fazer uma despedida de solteiro, com umas eslavas
a comerem-se umas às outras - digo eu - é caro mas vale a pena.

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- Não se ponham com ideias.
- Mas tu estás armado em parvo, ou quê? Não me digas que não
queres uma despedida de solteiro como deve ser?
O Rodrigo chega ao balcão, com um ar completamente
esbaforido.
- Então? Passa-se alguma coisa que eu não saiba? O Rui pisca-
me o olho.
- Passa - responde, muito sério.
- O que é que foi?
- O Miguel vai ser pai. A Inês está grávida.
Parvalhão. Do que este palhaço se foi lembrar. E tinha que ser
comigo.
- A sério? - o Rodrigo não consegue fechar a boca, engoliu a
tanga à primeira.
- É verdade, pá - respondo, com compostura e circunspecção. .
- É pá, que cena, pá.
- Cala-te - corta o Rui - pareces aqueles imbecis do Big Brother.
- Mas é que é mesmo uma cena macaca - justifica-se o Rodrigo. E
passa-me a mão pelo ombro, pesaroso e solidário. - É a vida - remato,
com ar conformado.
- Mas tu és um puto, pá! O que é que vais fazer com uma
criança? Tu endoideceste???
Silêncio sepulcral, quebrado ao fim de infinitos quinze segundos
pelo Paulo, que se lança num ataque de riso incontrolável. De
repente, desmanchamo-nos todos a rir à gargalhada e o Rodrigo cai
nele.
- Que cabrões que vocês me saíram! E pede uma cerveja.
- És mesmo um anjinho, pá - diz o Rui, ainda perdido de riso.
- Isso não sou, mas o meu irmão mais novo ser pai é uma merda
que me fazia alguma confusão.
- A mim também me fazia, acredita.
- Isso somos nós que somos uns putos. Os nossos pais, na nossa
idade, já tinham filhos.
- E deu cá um resultado! Os únicos que não estão separados são
os do Paulo.
- Olha, eu vou adorar ter putos - diz o Paulo. Coração de
manteiga. Este gajo não tem safa. Há-de ser sempre assim. Já em
puto nunca andava à pera, apesar de ter mais um palmo de altura e
três de largura do que qualquer um de nós. Se o chateavam, virava

47
as costas e ia-se embora.
- Também eu, mas é daqui a muitos e longos anos - respondo. -
Uma das coisas que eu gosto na Inês é que já tem uma filha, pelo
menos essa cassete já despachou.
- Pois é, mas quando elas querem engravidar, um gajo nunca
está safo.
- A Inês nunca me faria uma merda dessas. - Como é que sabes?
- Sei.
- Pois. E o Pai Natal existe. O Rui às vezes irrita-me.
- Ouve lá, ó palhaço, a Inês é impecável, é das melhores pessoas
que já conheci, por isso não te ponhas com bocas.
- Calma lá, não te irrites! Sabes que eu acho-a cinco estrelas,
mas não te esqueças que tem 35 anos e, nessa idade, elas querem
todas a mesma coisa.
- Estás enganado, nunca andaste com uma mulher mais velha,
por isso não fazes a mínima ideia do que é que estás a dizer. A Inês
teve urra casamento de merda e quer é um tipo porreiro que lhe faça
companhia e a trate bem, a ela e à filha. As mais novas é que são
perigosas, porque acham que a vida é casar e ter filhos, mesmo que
andem por aí armadas em executivas, puxa-lhes sempre o pé para o
casório. As mais velhas, não. Já se espetaram e agora querem é ser
felizes.
O Rui fica calado e apaga o cigarro.
- Tens razão, pá. Por acaso, apetecia-me uma mulher mais velha.
E as amigas dela, são alguma coisa de jeito?
- Olha, daí é que não tens sorte, são todas uns coiros. - Pois,
gajas boas não se arranjam todos os dias.
- Pois não - respondo, depois de pedir um café. - Tu tens sorte -
remata o Paulo.
- Se eu tivesse uma namorada como a tua, não andava a comer
as pázinhas do Montijo que trabalham lá na empresa - reforça o
Rodrigo.
Pázinhas do Montijo. O meu irmão é um tipo com piada.
- E andas a comer, quem?
- Uma gaja chamada Sílvia, que trabalha no contencioso.
- E é boa?
- Até há vinte minutos, era do melhor - responde a olhar para o
relógio.
- Cabrão. Estiveste a fazer horas extraordinárias.

48
- Extraordinárias é a palavra exacta, irmão. Gargalhada geral.
- E então, não se vai a lado nenhum?
O meu telemóvel dá sinal de mensagem. É a Inês. Se ainda lhe
apetecer vir, a cama está quentinha à sua espera. E eu também. Que
querida! Esta miúda é mesmo o máximo.
- Embora ao Bairro Alto beber mais uma cerveja? - pergunta o
Rui.
- Eu não. Vou ter com a Inês.
Pagamos a conta e despedimo-nos rapidamente. O Paulo vai
para casa, o coração mole quase nunca o motiva para ir ver gajas, já
o Rui e o Rodrigo são uns autênticos profissionais. Eu movo-me a
gajas, costuma dizer o Rui. Eu também meu, só que agora é só uma
que me move.
Envio uma mensagem a dizer que vou a caminho. Responde-me:
ainda bem. Voo com o meu Peugeot 206 prateado pela Fontes Pereira
de Melo com os Nirvana aos gritos, subo a Joaquim António de Aguiar,
os semáforos ficam todos verdes à minha passagem, quero chegar
depressa, apertá-la contra o meu peito, meter-lhe os dedos na boca e
amá-la com toda a força.
Minutos depois, abre-me a porta com os olhos ensonados, uma
camisa de noite de seda a roçar-lhe as coxas, só vejo umas pernas
que nunca mais acabam, mordo-lhe a boca, agarro-a pela cintura e
começo a beijá-la mesmo antes de fecharmos a porta. Encosto-a à
parede da entrada, as minhas mãos descem pelas pernas, afasto-as
com força, e vejo-a a atirar a cabeça para trás, as pestanas tremem
involuntariamente, o corpo arqueia-se num movimento lânguido, e
empurro-a apressadamente para cima da cama. É sempre assim,
quando chego a casa dela, apetece-me logo amá-la, adoro esta
mulher, adoro-a, adoro-a.

Ou sou eu que ando com a mania da perseguição, ou então as


minhas amigas decidiram acabar com o meu sossego. Outro dia, a
Teresa com a conversa acerca da minha relação do Miguel e agora a
Ana com o mesmo discurso. Será que a realidade é assim tão óbvia, e
que sou eu que estou tão cega que não a vejo? E por que é que não
há-de resultar uma relação que tem tudo, com uma pessoa que
adoro, com quem me dou tão bem em tantas coisas?
Antes do Miguel aparecer na minha vida, vivia sempre com a
sensação que demasiadas coisas me passavam ao lado. Não

49
imaginava o que é passar dias a fio com alguém ao lado sem sequer
questionar a sua presença, sem nunca me fartar da voz ou do cheiro.
Desconhecia o momento mágico que antecede o reencontro, o
instante perfeito da aproximação, o toque dos dedos pelas minhas
costas com a emoção da primeira vez somado ao prazer da infinita
repetição. A vida não era isto. As cores revelavam-se mais esbatidas,
os contornos eram menos nítidos e os dias mais iguais. Sentia menos
vontade de viver, ou menos energia para encarar os dias. Vivia em
permanente esforço, com a editora, a morte da minha mãe, a
imbecilidade do meu pai e as ausências do meu irmão, o Pedro que
parecia nunca estar perto, mesmo que passasse o dia em casa. Vivia
em esforço e estava habituada a viver assim, sempre cansada e a
esperar cada vez menos dos outros e da vida. Deve ser uma forma de
envelhecer, pensava, quando, à noite, ao tirar da cara pó misturado
com base, via as rugas como fios de teia de aranha tecendo a sua
inefável marca à volta dos olhos mortiços. Hoje, quando me levanto
de manhã e inspecciono a cara à procura das marcas que me
denunciem a passagem do tempo, sinto-me fresca, a boca parece ter
aumentado de volume e readquirido a sua cor original, os olhos
aclararam, o cabelo cresceu e sinto-me outra vez como quando
acabei o curso e me meti de mochila às costas, pela Europa, com o
Frederico. O Miguel ensinou-me a viver sem esforço e a ser feliz. Faz-
me sentir uma miúda e se calhar sou como o Duarte: também não
quero crescer, e é por isso que, quando olho para a Carolina à
procura do bebé que ela já foi, dá-me pena de não poder voltar atrás
no tempo e senti-la de novo ao meu peito a beber do meu leite e a
alimentar a minha vida. Penso em tudo isto enquanto a procuro no
recreio, às seis da tarde, já o sol se encosta ao fio do horizonte. Devia
ter vindo às cinco, mas o Nuno que não tem filhos e portanto nem
sequer lhe passa pela cabeça que há horas limite para ir buscar as
crianças, atrasou-me a vida por causa de uma reunião com o
distribuidor, e tive que voar para chegar antes que o colégio feche.
A Carolina atravessa o recreio assim que me vê, como uma seta
ensinada pelo coração. Consegue sempre dar pela minha chegada
antes de eu a localizar, o olhar iluminado e azul, o ca belo num ninho
de vespas, os joelhos esfolados, as mãos encardidas e um sorriso que
só se tem aos cinco anos, ou muito de vez em quando, quando o
amor transforma a paixão numa doce existência a dois. Sempre a vi
na minha imaginação ou no meu coração - e não serão o coração e a

50
imaginação uma e a mesma coisa? - e foi por isso que quando os
enjoos matinais me decifraram o futuro, percebi que ia ter uma
menina linda, de cabelos compridos e olhos de cachorro à procura do
dono. Também percebi que nunca mais estaria só, mesmo que
vivesse sozinha, mesmo que a minha mãe fosse apanhada pelo
cancro. Eu já não era uma pessoa avulso no mundo. Tinha alguém por
quem olhar, para quem viver, alguém que era uma parte de mim e
que um dia teria filhos que teriam filhos que teriam filhos de modo
que as minhas células estariam para sempre espalhadas em outras
vidas, vivendo as alegrias e as tristezas como eu, quando a senti pela
primeira vez a mexer-se, nadando no líquido amniótico cheio de amor
e de expectativas.
A Carolina avança, abraça-me as pernas, dá-me a mão, pega na
mochila e solta a pergunta sacramental:
- Ó Mãe, pode-me comprar alguma coisa?
- Hoje não, querida. Já é tarde e ainda temos que ir ao
supermercado.
- E no supermercado, pode-me comprar alguma coisa? Porque é
que os miúdos nunca desistem?
- Talvez. Quando lá chegarmos, logo se vê.
Entramos na carrinha e eu ponho a cassete do costume. A
cassete está velha e a carrinha também; devia trocar esta geringonça
por uma coisa a sério, mas não tenho jeito para trocar as coisas na
minha vida, nem carros, nem pessoas. A Carolina canta o Hakuna
Matata, e dou por mim a cantar aos gritos, oh I just can't wait to be
king, seguido de Can't you feel the love tonight. O Elton John, que era
um rapazinho do meu tempo, ainda se vai aguentando. Ele e o Phil
Collins com a banda sonora do Tarzan. Mas do que eu gosto mesmo é
das músicas da Bela e o Monstro. Be our guest be our guest, put our
service to the test... Grande personagem, a do Lumière. Olha, lá estou
eu como o rapaz do Tibetano. O que eu queria dizer era: o Lumière é
uma grande personagem. A propósito, não faço a menor ideia do que
é que vou fazer para o jantar. Quando éramos só a Carolina e eu,
tinha muito menos trabalho. Mas não me importo. Estaciono no
parque do Colombo e inicio a saga semanal das compras,
acompanhada pela Carolina, que já é grande demais para ir sentada
no carrinho, mas ainda demasiado pequena para não se perder,
porque, ao fim de dois minutos, desaparece e não consigo encontrá-
la. Tentando não perder a calma, procuro-ajunto aos corredores da

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roupa onde estávamos há menos de 30 segundos, mas nem sinal.
Começo a andar cada vez mais depressa, passo para os corredores
seguintes, o coração está quase a saltar-me pela boca, sinto as
palmas das mãos secas, a garganta arranhada, dói-me a cabeça, a
miúda não está em lado nenhum e passam-me pela cabeça as
histórias sinistras de raptos de miúdos em centros comerciais. Volto
atrás e é então que a vejo, no corredor dos brinquedos, sentada no
chão com outra miúda mais pequena do que ela, a brincar com uma
cozinha miniatura, inadvertidamente tirada da caixa. Ao mesmo
tempo que me aproximo, assustada e furiosa, mas tentando
controlar-me, oiço uma voz grave e ansiosa atrás de mim.
- Francisca! Querida!
Viro-me, e quase choco com um homem de 40 anos, vestido com
jeans e uma camisa de ganga de marca, já um bocado ruça. Seria um
tipo absolutamente normal se não trouxesse atreladas às duas mãos
mais duas miúdas, uma de sete e outra de nove ou dez anos, vestidas
de igual, como duas bonecas. Porque é que um homem com crianças
à volta chama sempre a atenção das mulheres? A mais velha agarra a
dita Francisca, e a cara do pai desanuvia-se. Pega-lhe ao colo e fala-
lhe com a doçura de quem quer ralhar, mas já não consegue, ou acha
que não vale a pena. Olha-me com alguma timidez, e diz:
- Desculpe.
- Desculpe, o quê?
- já vi que também deve ter perdido a sua filha... São uns
diabinhos.
- Não tem que pedir desculpa.
E ficamos ali a olhar um para o outro, até que a Carolina diz:
- Ó Mãe, quem é este tio que eu não conheço?
Para a Carolina, o mundo está dividido em bons, maus, a mãe, o
pai, os polícias e os tios.
- Sou o tio Filipe - responde o quarentão, sem se desmanchar a
rir, fazendo-lhe uma festa na cabeça.
- E são todas suas filhas? - pergunta a Carolina.
- Ó Carolina, por amor de Deus, está calada! Agora sou eu que
tenho que lhe pedir desculpa, é que esta miúda nunca se cala e...
- Não tem mal - e virando-se para ela - são, são todas minhas
filhas.
- Como naquela série de televisão? - volta a perguntar o
cotomiço.

52
Desta vez foi demais. O dito Filipe e eu desatamos a rir às
gargalhadas e as miúdas, por contágio, também. Dou a mão à
Carolina e despeço-me com um sorriso enfiado, afastando-me a
passos largos em direcção ao carrinho que ficou junto ao pão.
Começo mecanicamente a encher o carrinho com uma data de coisas
que preciso, que não preciso mas que me apetece e outras que nunca
me passaria pela cabeça comprar se não as pusessem mesmo diante
dos meus olhos.
- Tu és mesmo doida, miúda.
- Então, ele era um pai com três filhas. É como na história da
televisão, a mãe não acha?
Acho, filha, acho que és igual a mim quando tinha a tua idade,
dizia tudo o que me passava pela cabeça. Foi por isso que o meu pai
me deu um estalo com toda a força, quando, um dia, cheguei à sala e
lhe perguntei:
- O que é que o pai fez desta vez à mãe que está outra vez a
chorar fechada no quarto?
Vim a saber dez anos mais tarde que a minha mãe descobrira
mais uma das suas histórias, desta vez com uma espanhola
estabelecida na Av. de Paris. Deve ter sido aí que perdi a mania de
dizer tudo e, agora, não digo nada, nem quando o Miguel me liga para
o telemóvel - atribuí ao número dele o toque da banda sonora da
Missão Impossível, por sugestão da Teresa -, a dizer que vai passar o
fim-de-semana ao Algarve com o Rui, o Rodrigo e o Paulo.
- Não fica triste, pois não?
- Claro que não, meu amor. Vai, e diverte-te. Podias é ter avisado
antes, que eu aproveitava e trocava de fim-de-semana com o Pedro.
- Ah... pois... não me tinha lembrado. Desculpe... Quem não tem
filhos nunca se lembra destes pormenores. Destes e de outros.
- Mas ainda passámos o outro fim-de-semana sempre juntos... -
responde suavemente, à espera de um sinal de concordância.
E foi tão bom...
- Disse alguma coisa?
- Não, querido, estava só a pensar...
- A pensar em quê?
- No que ainda tenho que comprar. Não faço ideia nenhuma do
que é que vou fazer para o jantar. Apetece-te alguma coisa de
especial?
- Não... É que vou jantar fora... com eles.

53
- Com eles, quem?
- Com o Paulo e o Rui.
- Tá bem.
O que é que ele quer que eu lhe diga? Que fico chateada? E se
ficar, porque é que lhe hei de dizer? O silêncio instala-se.
- Ouve, não te vais chatear; senão chateio-me eu, percebes?
Pronto. Lá vem o mau feitio de quem se sente mal com o que
faz.
- Eu não me queixei, pois não?
- Eu conheço muito bem esses silêncios! - a voz vai-se exaltando
a cada palavra - Não devia estar tanto contigo. Nem sequer vivemos
juntos e depois, quando não vou ter contigo, é isto.
Devia desligar-lhe o telefone, dizer “eu é que não devia estar
tanto contigo, vai à merda, depois falamos”. Devia despachá-lo, fazê-
lo sentir de alguma forma que estou irritada. Mas, em vez disso,
respondo-lhe que não vale a pena irritar-se, que se divirta, e amanhã
falamos. Quando desligamos, já está tudo calmo, com a minha
passividade apaziguei-lhe a fúria encenada para que eu não tivesse
coragem para me chatear e como fiz o que ele queria, é evidente que
desligou o telefone sem sequer ter percebido como fiquei triste e
chateada. Bolas, sou mesmo estúpida.
- Ó Mãe, porque é que está com essa cara?
- Qual cara, filha?
- Ainda está zangada por me ter perdido?
Fixo-lhe o olhar ansioso de cachorro à procura de dono. Se eu
não fizer imediatamente um esforço para mudar de expressão, sou
uma idiota. Respiro fundo.
- Não, querida, a mãe está só cansada. - E, num golpe baixo para
lhe conseguir desviar a atenção, sugiro com ar despreocupado:
- Queres levar estas gomas?
- Sim! Sim! Obrigada, mãe - o cotomiço agora salta de alegria e
encaminha-se para a caixa. Encolho os ombros e respiro ainda mais
fundo, à procura de uma força qualquer que não encontro. Afinal, do
que é que eu estava à espera? Vem aí o Verão, e, quando o Verão
chega, fica tudo mais ou menos confuso, como diz o Duarte. Boys will
be boys. Talvez a Ana e a Teresa tenham razão: vivo com demasiada
fé e dedicação uma relação que, afinal, não é assim tão sólida. Ou, se
calhar, é. Mas eu sou tão insegura que já ponho tudo em causa, só
porque ele, hoje, vai jantar com os amigos é não passa comigo o fim-

54
de-semana. Que chatice, estes medos fazem de mim a minha maior
inimiga, se continuo assim, a minha vida rapidamente se transforma
num inferno.
O telemóvel volta a tocar, a música da Missão Impossível
sobressalta-me.
- Estou...
- Sim, querido... - respondo com o tom mais calmo do mundo. Às
vezes, fico surpreendida com a capacidade que tenho para ser
querida com ele.
- Não fique zangada comigo. Eu gosto mesmo de si, só que tenho
a minha vida, e...
- Eu sei, eu sei.
E sei mesmo. Era igual, na idade dele. Achava que o mundo era
muito grande e que não ia ter tempo de ir a todos os sítios que queria
nem de conhecer todas as pessoas que sonhava que existiam. Queria
beber a vida toda de uma vez, queria tudo ao mesmo tempo, achava
que sabia imensas coisas, distinguia o bem do mal e o preto do
branco, vivia rodeada de sonhos e cheia de certezas. Mas isso foi até
a minha mãe ficar doente.
- Não é por eu fazer a minha vida que não gosto de si. Mas já
sabe como é que eu sou, só faço o que me apetece.
Que sorte! Também não me importava.
- Eu sei. Deixe lá, não tem importância. Eu pego na Carolina e
vamos passar o fim-de-semana com a Ana e o Frederico.
- Já combinaste?
É mentira, nem sequer sei se eles vão. Mas vou dizer que sim.
- Mais ou menos. Eles vão sempre, e, assim, aproveito e
descanso um bocado.
- Então, pronto. Vemo-nos para a semana, está bem?
Ter 25 anos é isto. Intensidade elevada à potência máxima,
saídas à noite, fins-de-semana aqui e ali, e a sensação deliciosa que
sabemos tudo, queremos tudo e conseguimos tudo. Bem, o melhor é
ligar à Ana e ao Frederico, a ver se vão para o Alentejo. Amigos: é
impossível pensar no que seria viver sem eles.

Já passa das nove quando o Frederico me dá um toque para o


telemóvel a avisar que está a chegar. A Carolina põe às costas a
mochila em que o Garfield, de gorro e cachecol patina de pata dada
com o Oddie, e eu pego no meu saco de fim-de-semana, que me

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parece sempre demasiado pesado e no entanto sempre com coisas a
menos quando chego ao destino. O jeep do Frederico é espaçoso e
confortável e a Carolina adora andar lá dentro porque vê o mundo de
cima. Aninhamo-nos as duas no banco de trás, enquanto o Frederico
acelera em direcção à ponte Vasco da Gama a caminho do Alentejo.
Olho para o céu no qual a lua completamente cheia parece uma bola
prestes a rebentar e penso no Miguel, a estas horas já no Algarve,
sentado numa esplanada com os outros, a beber cervejas e a
comentar as miúdas que passam. Devia ter trazido qualquer coisa
para lhes oferecer, uma garrafa de vinho, por exemplo, ou uma
compota qualquer, mas, para variar, tive um dia de doidos e nem me
lembrei. Paciência. Quando pararmos numa bomba de gasolina, logo
penso num presente qualquer. A Ana vai-me espiando discretamente
pelo retrovisor sem no entanto me perguntar o que quer que seja,
mas a minha cara não engana ninguém. A Carolina enrosca-se em
mim, como uma lagarta numa maçã, e adormece pouco tempo depois
de passarmos a portagem. O Frederico vai contando com grande
entusiasmo os últimos projectos que tem em mão, enquanto a Ana
me explica o que é que se vai usar no próximo inverno, e me desafia
a ir com ela a Milão, da próxima vez que for lá escolher uma colecção.
Tento mostrar-me interessada nos diferentes temas que vão tomando
conta da conversa, com momentos de total abstracção que, espero
eu, passem despercebidos.
E se elas tiverem mesmo razão? E se aquilo que vivo com o
Miguel não passar de uma fantasia de adolescente tardia? E se não
me chegar tudo o que ele tiver para me dar? Se um dia destes me
apetecer ser como estes dois, poder fazer planos a longo prazo,
comprar casas de cidade e de campo a meias, deixar de pensar em
tudo sozinha e construir a minha vida com alguém a sério, sem
medos, sem hesitações nem dúvidas?
- Não estás cá, pois não? - pergunta a Ana, com aquele sorriso
doce que as amigas só têm para as amigas.
- Mais ou menos.
- Boa resposta.
- Pois é. Dá para tudo.
- E não diz nada.
O Frederico espreita-me pelo retrovisor e quase sorri.
- Vocês querem parar com isso?
- Ela não quer falar, mas eu sei que há qualquer coisa que a está

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a chatear. - E, virando-se. para trás, à espera de confirmação: - É ou
não é?
- Mas ela pode não querer falar... - defende o Frederico. Querido
Frederico. Conhece-me há 20 anos, talvez melhor do que ninguém.
Conhece os meus silêncios e o que significam. Talvez por isso me
esteja agora a proteger.
- Pois posso.
- Vês?!!! - remata o Frederico, triunfante.
- De qualquer maneira, temos o fim-de-semana todo para
conversar.
Quando chegamos, deito a Carolina e ajudo-os a descarregar as
coisas. A Ana, que é uma fada do lar, trouxe rosbife, arroz de cenoura
feito, iogurtes, sumo, vinho, queijos e presunto. Até teve tempo de
fazer um bolo de mel. Que máquina doméstica infernal. Adorava ser
boa dona de casa e conseguir organizar a vida como ela. Mas, em vez
disso, esqueço-me sempre de qualquer coisa fundamental quando
vou ao supermercado, só sei cozinhar bem três ou quatro pratos e
para mim dar um jantar em casa é uma prova que requer mais
coragem do que atravessar uma ponte suspensa sem cordas por cima
de um rio infestado de sanguessugas.
A Ana senta-se no sofá forrado a chita e inspecciona as teias de
aranha do tecto abobadado. O Frederico acende a lareira e põe a
banda sonora de O Piano, e eu sento-me a ler o manuscrito da
Mônica, intitulado Cala-te por favor Tenho a cabeça ocupada com
outras coisas, mas dá para perceber que tem humor, ritmo e está
escrito com simplicidade. Conta a história de um homem casado que
se envolve com uma estrangeira vinte anos mais nova. Mas não é
mau.
Pouco depois, com a desculpa que estou com dores de cabeça,
subtraio-me para o quarto onde a Carolina dorme, enrolada sobre si
mesma, na cabeceira esquerda. Gosto de partilhar o quarto com ela,
de lhe sentir o cheiro do cabelo, de lhe beijar a testa mole e de me
deixar inundar por esta sensação de amor total, incondicional, infinito
e perfeito.
Sabes, minha filha, é que antes de tu nasceres eu era só mais
uma pessoa avulso, tinha muitas ideias mas pouca força, alguns
sonhos e muitos disparates na cabeça. Sensatez e ponderação eram
palavras complicadas e opacas, cujo significado não me apetecia ir
ver ao dicionário. Depois, tu chegaste, um bocadinho de gente num

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choro mimado e foi assim que começou a maior aventura da minha
vida.
Às vezes, o cansaço toma-me os braços e a cabeça, ralho contigo
e zango-me se trocas os talheres à mesa, ou dizes asneiras. Mas é à
noite, quando te adormeço, na penumbra do teu quarto forrado a
sonhos e ursos simpáticos, que me alimento do teu ar, quando
mergulhas no sono tranquilo e seguro. Fecho os olhos para te ver
melhor. Qualquer dia, tens 15 anos e uma colecção de amigas e
amigos com quem vais comer gelados e trocar discos. Mas, quando
fores uma mulher, ou te formares, ou aceitares o teu primeiro
emprego, vou-me sempre lembrar do bocadinho de gente que eras,
do choro mimado antes de te pôr ao peito, dos joelhos esfolados e da
tua voz, aos cinco anos, a dizer a Mãe sabe que eu gosto muito da
Mãe?
É que a memória é o nosso melhor património e é por causa de ti
que o meu coração é como o universo, está sempre a crescer e nem
eu nem ninguém sabe onde vai parar.
E continuo assim, pela noite fora, a falar com ela mergulhada no
mais íntimo dos silêncios, à espera que o sono chegue, enquanto os
dedos voam em pequenos círculos sobre a sua ca beça de anjo. Sei
muito bem o que me apetecia agora: que o Miguel também tivesse
vindo, que o Miguel gostasse de ter vindo, e tivesse tanta paciência
para os meus amigos como eu tenho para os dele. Que hoje mesmo,
que a lua está cheia e só me apetece fazer amor, o meu corpo
voltasse a construir o milagre da criação e juntos fôssemos mesmo
uma família. Mas o Miguel deve estar entre uma discoteca e outra,
noutra onda, a viver outra realidade. Ainda penso em mandar-lhe
uma mensagem escrita, mas para quê, se ele não a vai ver? Amanhã
é outro dia, preciso que o sono chegue, me dê força e umas asas que
me levem para um lugar qualquer, onde não me sinta nem triste nem
cansada. Um lugar qualquer, cheio de verde e azul, com árvores,
sombras e pássaros, um lugar sossegado e protegido do resto do
mundo, onde a Carolina possa brincar com outras crianças e eu
consiga descansar de mim própria.
O dia amanhece luminoso e o cotomiço acorda com a luz que
passa pelas frestas irregulares das portadas. Levantamo-nos as duas
e vamos para a cozinha, onde a Ana, com um roupão branco de
bordado inglês e o cabelo impecável - como sempre - se decidiu a
cumprir a tarefa de fazer panquecas.

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- O Frederico?
- Ainda está a dormir, coitado. Estas últimas semanas no atelier
têm dado cabo dele.
- Eu sei. O Miguel também tem feito imensos serões. Eles estão
mesmo cheios de trabalho.
- Onde é que ele está?
- Foi para o Algarve com o irmão e uns amigos. A Ana abana a
cabeça com ar reprovador.
- Podia ter vindo connosco.
- Pois podia. Mas se queres que te diga, nem lhe perguntei. Já me
disse tantas vezes que não, que desisti.
- Eu acho que ele também não se sente muito à vontade
connosco, não é?
Se fosses um bocado menos seca com ele, se calhar era mais
fácil, penso, mas mais uma vez não digo. Para quê?
A Carolina senta-se num banco, à espera que eu lhe sirva um
prato de sopa com leite frio e corn flakes.
- Ó tia Ana...
- Sim, querida?
- Porque é que a tia ainda não tem bebés?
Esta miúda tem cada uma. Olho aflita para a Ana que está com a
espátula em riste, completamente apanhada de surpresa e tento
salvar a situação o melhor que posso.
- Porque ainda não chegou a altura e... - Mas a Ana faz-me sinal
com a mão para me calar, senta-se ao lado da miúda, faz-lhe uma
festa na cabeça e diz-lhe com toda a sinceridade - porque Deus ainda
não quis, minha querida, mas eu quero muito, e um dia vou ter.
- Mas é Deus que decide? - pergunta a miúda.
- Também é - responde a Ana - e se tu rezares à noite, podes
pedir isso a Deus, não podes? Podes pedir para eu ter uma menina
tão querida e bonita como tu...
- Eu peço, tia. Prometo - e regressa aos corn flakes com a
concentração típica das crianças quando estão a comer. Entretanto,
encho uma caneca com café acabado de fazer e deito-lhe um pingo
de leite. Que bom...
- Vês? - exclama a Ana. - Não há como a verdade para os deixar
contentes. Toma lá.
E vira a frigideira para cima do meu prato, para o qual desliza
uma panqueca dourada, irresistível.

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- Agora põe-lhe manteiga ou doce de amora e vais ver como é
bom.
E senta-se à minha frente, a olhar para mim.
- Para onde é que está a olhar?
- Estava a ver como vocês são parecidas e a pensar como é que
uma mulher como tu ainda não arranjou um tipo decente. Mau. Vai
começar o massacre, às dez da manhã?
- Ouve... eu tenho a vida que quero... as coisas na editora vão
lindamente, a Carolina está a crescer, e o Miguel é óptimo...
- Claro. Mas não é pessoa para ti.
Estou quase a pegar no prato e na caneca de café e a ir para o
alpendre.
- Não vamos ter este tipo de conversa agora, pois não? -
respondo, em tom semi ameaçador, olhando de lado para a Carolina,
que continua a comer os corn flakes, impassível, como se não
estivesse a ouvir.
- Tens razão - remata a Ana. E, notando o meu ar chateado,
muda de estratégia. - Tu é que sabes. Desde que te sintas feliz...
Feliz? Mas quem é que é feliz? E quem é que quer ser feliz? A
felicidade é a coisa mais irritante do mundo, uma utopia idiota e
hipócrita, inventada por um cretino qualquer. A felicidade é uma coisa
insuportável, um mito incómodo que só serve para nos fazer sentir
ainda mais infelizes.
- Eu não quero ser feliz, Ana. Só quero ter alguém de quem goste
e que goste de mim. Como naquela música dos irmãos Gershwin,
Someone to watch over me. Isso basta-me.
- Pois. Mas isso só acontece quando quem está ao teu lado quer
as mesmas coisas que tu.
- Mãe, posso ir ver televisão?
A Carolina levanta-se e limpa a boca com muito cuidado ao
guardanapo de papel, enquanto me fita pacientemente.
- Posso, Mãe?
- Claro, querida. Mas, primeiro, vai-te vestir que, depois, vamos
lá abaixo ver as vacas e os mémés.
O cotomiço suspira e responde está bem. Pouco depois, ouve-se
o barulho de fundo indistinto, onde gritos e ruídos estranhos se
misturam numa cacofonia sem critério nem ritmo, e vejo-a a
mergulhar instantaneamente em estado de hipnose perante a caixa
que mudou o mundo. Não devia deixá-la ver tanta televisão, temo

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que lhe paralise o cérebro e lhe atrofie a imaginação, mas talvez não.
E se eu parasse de me culpar por não ser uma boa mãe é que fazia
bem.
- Ela está de se comer - comenta a Ana, com um sorriso triste.
- Também vais ter uma, não te preocupes.
- Isso é o que toda a gente me diz, mas eu já não acredito. Nem
eu, nem o Frederico.
- Eu também gostava de ter, pelo menos, mais um... - arrisco,
enquanto como a quarta. - Meu Deus! O que se come no campo!
Quarta panqueca!
- Tu vê mas é se tens juízo.
Não resisto a fazer o meu ar típico de menina mimada, quando
estou pronta a cometer uma grande tropelia. A expressão na cara da
Ana endurece.
- Ouve lá... tu não estás a pensar....
- Bem, por acaso outro dia o Miguel falou nisso. Levanta-se e
começa a andar de um lado para o outro.
- Mas está tudo doido ou quê? Quem é que esse puto pensa que
é, para falar dessas coisas assim, com, com... com essa leviandade?
- Leviandade? Disseste leviandade?! Ó Ana, isso é uma palavra
que já não se usa, uma coisa de avós!!! - comento, tentando desviar
a conversa de uma inevitável rota de colisão.
- Chama-lhe o que quiseres, mas eu acho que mais vale ser à
antiga e chata do que viver neste caos.
- Qual caos? Eu não disse que estava à espera de bebé, só disse
que me passava pela cabeça, enfim, vagamente - e arrasto a voz
quando digo vagamente para que ela perceba mesmo o que quero
dizer - que... talvez... talvez me apetecesse ter outro filho. E, para a
acalmar de vez, remato:
- Nem ando a tentar, nem nada.
- Contigo, nunca se sabe.
Pois não. A Ana sabe que eu fiquei à espera de bebé ao primeiro
descuido, sabe que era tudo o que eu queria, sabe que nem sequer
gostava assim tanto do Pedro. No fundo, ela acha que sou doida.
- Eu não sou doida, Ana. Estou a criar uma filha sozinha, não me
meto noutra igual. E o Miguel não tem nem idade nem cabeça para se
meter numa coisa destas.
- Então não o metas tu - conclui, em tom categórico.
- Bem, vou acordar o Frederico, e vamos dar um passeio até à

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vacaria, para a Carolina ter um banho de campo, achas bem?
Acho bem. Acho que a minha filha precisa de ver ao vivo uma
vaca, senão ainda chega à faculdade a pensar que o leite vem das
prateleiras do supermercado. O que não acho bem é vocês todas
passarem a vida a opinar sobre mim e o Miguel. E se me apetecer
mesmo ter um filho do homem que adoro, o que é que tef?
- Porque é que estás a olhar para mim com essa cara? Não
queres ir ver as vacas?
- Sabes que eu adoro vacas. E ovelhas. E o cheiro a estrume. E
porcos...
- Bem, já não vamos tão longe. - E sai da cozinha, deixando-me
entre a mesa de pequeno-almoço para arrumar e uma data de ideias
líricas sobre o amor e a maternidade a boiar no frasco de compota.
Pouco depois, descemos pela encosta do lado direito da casa,
andamos por um carreiro um bom bocado até avistar um aglomerado
de casas, onde estão a vacaria, o curral e as cavalariças, que agora
servem de armazém. A Carolina está cansada. Teve que parar duas
vezes durante a caminhada. Vê-se logo que é uma criança de cidade,
que só mexe as pernas da entrada do prédio até ao carro, e meia
hora à tarde, no recreio do colégio. Mas quando ouve o barulho dos
badalos acelera o trote, como os cavalos quando percebem que estão
a voltar a casa. O meu telemóvel começa a cantar afinado o tema da
banda sonora da Missão Impossível.
- Bom dia, pequenina. - O Miguel está com voz de ressaca, a falar
baixinho, como se estivesse com medo de acordar alguém.
- Bom dia, meu querido - e, de repente, as nuvens desaparecem
todas do céu, fica tudo azul, é lindo... - então, como estás?
- Completamente rebentado. Dormi três horas. Fomos a todo o
lado e estes doidos, às sete da manhã, ainda me meteram num after
hours.
- Quem corre por gosto não cansa - corto, com alguma ironia.
- Pois é. Mas está a ser fixe.
Irrita-me um bocado quando ele diz fixe. Soa-me a campanha
eleitoral de esquerda festiva. Já ninguém diz fixe.
- Okapa - respondo, para não destoar. Mas ele nem percebe que
estou a gozar. Fixe? Francamente. Um dia destes vou ter que lhe
explicar umas coisas.
- E tu e a Carolina? Estão-bem?
- Óptimas. Vamos agora à vacaria dar um banho de cultura à

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miúda, senão ela ainda pensa que uma galinha é um Knorr com
pernas.
O Miguel ri-se. - És tão querida. - Pois sou.
- Mas olha que eu também sou... Adoro este mel telefónico.
- E adoro-te.
- Então, porque é que não estás aqui comigo? Isto é tão giro!...
- Mau, não comeces. Bolas, Inês, estás a ficar repetitiva. Essa
gaja não te está a dizer mal de mim, pois não?
- Essa gaja é minha amiga, e não admito que fales assim dela.
- Oh, que susceptível! Eu disse essa gaja, como podia ter dito a
Ana, não percebes?
Percebo. Percebo que tens um medo dela que te pelas, embora
estejas convencido que te estás a cagar para o que dizem ou pensam
os meus amigos.
- Está bem. Mas estás-te a divertir, não estás?
- Claro! Já sabes que, quando estou com os meus amigos, é
sempre do caraças.
Esta coisa que os homens têm com o grupo a que pertencem, o
espírito da manada, deve dar-lhes imensa segurança. Nós, mulheres,
também devíamos ser assim.
- Ó mãe, venha depressa, está ali uma vaca bebé! - grita a
Carolina que entretanto já tinha entrado nos estábulos com a Ana.
- Já vou, querida - respondo com a máxima convicção que
consigo mostrar e que neste momento é nula.
- Está bem - responde o cotomiço, encolhendo os ombros.
- Vá. Vá lá ver as vacas - diz o Miguel do outro lado, com doce de
framboesa na voz. - Quando chegar amanhã a Lisboa, ligo-lhe, está
bem?
- E não queres dormir lá em casa?
- Sei lá! Porque é que tenho que decidir isso agora? É sábado de
manhã, acordei de propósito para te ligar e dar um beijinho e já me
estás a perguntar onde é que durmo amanhã?
- Sorry - e nem reconheço o fio de voz que soltei. Como se
tivesse cinco anos e me tivessem encontrado na dispensa, a roubar
barras de chocolate amargo para bolos. Mas porque é que eu estou a
pedir desculpa? Por lhe perguntar se quer dormir comigo amanhã?
Devo estar a endoidecer.
- Não faz mal - responde o Miguel, como se fosse o meu primo
mais velho que me apanhou na dispensa, e me diz que não conta

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nada aos adultos se eu lhe der um bocado. - Agora, descanse e
divirta-se. Depois falamos, está bem?
Um silêncio pesado invade o fio invisível. Não sei o que dizer.
- Adoro-te, miúda. Não sejas parva, não estragues tudo, ouviste?
Não, Miguel, eu não estou a estragar nada, eu só tenho saudades
tuas e apetecia-me que estivesses aqui comigo, não percebes?
- Não, Miguel, eu nunca estrago nada. Tudo o que eu quero é
estar bem contigo e...
- Mas não queiras tudo. Não me peças tudo. Eu já dou tanto.. .
- Eu sei, meu querido. E também te adoro. Vá, agora vai lá
dormir mais um bocado. Beijinhos.
- Beijinhos.
A Ana está especada à porta da vacaria.
- Já acabou a conferência de imprensa? - pergunta, com ar
irónico.
Abano a cabeça sem conseguir - nem quero - esconder algum
desânimo. Este miúdo ainda me vai dar muito trabalho. - Anda cá ver
isto. - E puxa-me pela mão.
Lá dentro está escuro e o cheiro não é dos mais fáceis de
suportar para uma citadina retinta como eu. A Ana caminha
apressadamente até ao fundo, onde vejo a Carolina ao colo do
Frederico que, por sua vez, está sentado no chão, os dois a fazerem
festas a um vitelo que me parece anormalmente pequeno.
- É um recém-nascido - explica-lhe o Frederico - Como tu, que
eras muito pequenina... - e continua a falar baixinho. A Ana e eu
deixamos de perceber o que ele lhe diz. A miúda está aninhada ao
colo dele, como um caracol que descobriu uma nova casa. Estão os
dois a fazer de conta: ela, que ele é o pai, e ele, que ela é a filha. Por
momentos a Ana fica emocionada, dou-lhe o braço e saímos outra
vez.
Cá fora, o céu cobriu-se outra vez de nuvens. Ou então nunca
descobriu, foi a minha imaginação delirante que o pintou de azul.
Agora, está cinzento escuro e o vento corta-nos a cara.
- Bolas, eu tenho que ter um filho, senão enlouqueço - rosna a
Ana entre dentes.
- Já pensaste em adoptar?
- Ora, à velocidade a que andam os processos de adopção em
Portugal, quando me dessem uma criança, já tinha idade para ser
avó.

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Caminhamos as duas em silêncio, sem sequer pensar que
direcção estamos a tomar. Devia tentar animá-la, mas não me lembro
de nada encorajador para lhe dizer e nem sequer me sinto muito
bem. Acho que, de alguma forma, e sem que eu perceba porquê, o
Miguel se está a afastar de mim. E que esse afastamento é inevitável
e irreversível. E, pior ainda, que a perspectiva disso acontecer me
está a deixar em pânico. Porque é que amar alguém implica esta
entrega, e esta dependência e todo o sofrimento que daí pode vir?
Porque é que não sabemos amar e deixar voar aqueles que amamos?
Sempre me orgulhei de ser uma pessoa equilibrada e liberal nas
relações, mas, quando o Pedro se foi embora, senti-me rejeitada.
Quando a minha mãe morreu, foi como se o mundo tivesse acabado.
E agora, com o Miguel...
A Ana olha para mim e dá-me o braço. - Ele está-te a fugir, não
está?
- Não há nada que me diga expressamente isso, mas eu sinto-o a
afastar-se, assim, muito devagarinho... E o pior é que isso me está a
custar imenso...
- Mas tu já sabias que ia ser assim...
- Já sabia, porquê? Só porque ele é mais novo? E a paixão que
temos um pelo outro, não está acima de tudo?
- Inês, ele tem 25 anos, por amor de Deus! Nada, nem ninguém,
estão acima dele, não percebes? Ele é completamente livre, sente-se
dono do mundo, pode fazer da vida dele o que muito bem entender, e
com 25 anos, hoje em dia, ninguém quer casar, ter filhos, nem sequer
manter uma relação estável.
- Mas ele está comigo há um ano, e... - E calo-me, para que ela
não oiça a minha voz embargada.
A Ana pára no meio do carreiro. Lá ao fundo, uma linha regular
de choupos dança contra - ou a favor? - do vento, encostada a um
riacho que corre devagar.
- Ele está contigo porque gosta de ti, ninguém põe isso em
causa. Mas tu para ele não representas uma opção de vida. E, no dia
em que representares, ele escolhe não te escolher, e vai-se embora.
- Dizes isso porque o Nuno foi um filho da mãe contigo.
- Não. O Nuno é um filho da mãe, ponto final. Teria sido um
sacana comigo, naquela ou em qualquer outra circunstância. É um
cobarde e um jogador. O Miguel, não. É só um miúdo porreiro e
egoísta que quer viver a vida. E podes ter a certeza que vai vivê-la

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sem ti.
Tenho o olhar fixo nos choupos, que continuam a dançar ao
fundo, e os ouvidos no riacho. Não quero ouvir o que a Ana me está a
dizer, mas tenho que ouvir. Tenho, de uma vez por todas, de descer à
terra e capacitar-me - capacitar-me, que palavra mais parva! - que a
realidade está muito mais perto do que ela me desenha, do que
sonho em que tenho vivido neste último ano.
- E o que é que vais fazer, quando ele se for embora?
- Embora? Embora porquê? Mas quem é que disse que ele se vai
embora?
A Ana encosta-se, por momentos, a um tronco caído, e passa as
mãos pela cara. Está aflita, sinto que me vai dizer qualquer coisa
importante. E vai mesmo.
- Então, ele não te disse nada? - Do quê?
- Do prémio que ganhou com o projecto do centro social do
Bairro da Liberdade?
- Não!
Espera, isto é o concurso em que o Frederico o convenceu a
entrar com o trabalho de fim de curso, e que ele não ligou nenhuma.
- Não me digas que ele ganhou!
- Eu não acredito que ele não te contou!!! Que tipo mais
estranho!...
O Miguel ganhou o prémio. O Miguel ganhou o prémio, e não me
disse nada. Não acredito. NÃO ACREDITO.
- Mas quando é que eles souberam?
- Não me lembro, acho que foi esta semana. Ficaram tão
contentes no atelier que até abriram uma garrafa de champanhe. De
repente, troncos dos choupos desdobram-se em dois e começam a
avançar na minha direcção, quais monstros ameaçadores, o barulho
da água no riacho torna-se ensurdecedor e as minhas pernas
balançam como duas canas, por isso encosto-me também ao tronco
deitado e começo a respirar fundo, o mais devagar que consigo,
sempre mais devagar, mais devagar ainda...
Ele sempre disse que tudo era temporário. Ele sempre disse que
queria fazer uma viagem, assim que juntasse algum dinheiro.
Lembro-me de uma noite em que entrou em minha casa com o olhar
transtornado - não andávamos nem há um mês -, gesticulando como
um doido, a dizer: eu não posso ter uma namorada, eu quero fazer
uma viagem daqui a uns meses, eu não tenho nada para dar a

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ninguém e agora apareceste tu, o que é que eu faço, o que é que eu
faço. E eu, como sempre, fui protectora e conciliadora, agarrei-o
suavemente, embalei-o como tantas vezes faço à Carolina e pedi-lhe
que tivesse calma, que havia um tempo e um modo para tudo, que o
que andamos cá a fazer é a acertar o tempo e o modo, que ele podia
fazer as viagens que quisesse, que uma coisa não tinha a ver com a
outra, o que não podia era estragar o presente que era tão bom e
perfeito por causa de um futuro hipotético e longínquo. Então o
Miguel abriu o coração e chorou como uma criança, disse que me
amava tanto que tinha medo desse amor, que queria estar comigo
mas que tinha medo de não ter nada para me dar. Disse-me que eu
lhe descobrira partes do coração que ele nem sequer conhecia e
desde esse dia nunca mais teve nenhum ataque de estupidez. Mas
agora é diferente. Agora ele tem dinheiro e vontade. Agora ele já
recarregou baterias, já viveu um ano debaixo da minha asa. Ele agora
quer outras coisas, outra vida, outras experiências. E vai, como
sempre, fazer o que quer.
- Não podemos confiar o coração a um animal selvagem -
começo a citar, quase em surdina, alheada de mim mesma, como se
a voz não fosse minha. - Não podemos confiar o coração a um animal
selvagem: quanto mais lhe damos, mais forte fica. Até ter força
suficiente para largar a correr para a floresta. Ou voar para uma
árvore. E depois, para outra árvore mais alta. E depois, para o céu.
- O que é isso?
- É do Breakfast at Tiffany's, aquele romance do Truman Capote
que deu um filme com a Audrey Hepburn, lembras-te?
- Mas podia ter sido escrita para o Miguel - conclui a Ana.

Dois anos. Já passaram quase dois anos desde que a minha mãe
morreu. Às vezes, parece que foi há meia hora que estive aqui, neste
cemitério, a ver o caixão descer e as lágrimas que me escorrem pela
cara são as mesmas desse dia. Outras vezes, como hoje, em que o sol
se reflecte com uma intensidade esmagadora nas lápides, vivo a
sensação de alguma distância, como se o tempo, afinal, tivesse
mesmo a capacidade de suavizar tudo, até a dor.
Em dias de sol como este, vou visitar a campa ao jardim dos
Prazeres - que nome tão estúpido, como se houvesse algum prazer
nos que cá ficam ou naqueles que a terra vai comendo - quando me
sinto tão só que não encontro respostas no mundo dos vivos, só nas

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pedras do cemitério onde o nome esculpido me faz bater o coração,
outra e outra vez, mais e mais depressa. A minha mãe, que me
encheu a vida de luz e me deu o melhor amor do mundo, aquele
amor incondicional que as mães guardam para sempre no peito pelos
filhos, e que todos os dias tento dar à Carolina. Como quase todas, foi
a melhor mãe do mundo, mesmo quando estava cansada das nossas
tropelias, o Marcelo e eu a brincar aos índios no corredor com as
roupas dela, luvas, saias compridas, casacos de peles entregues às
mãos da barbárie infantil e ela sentada na sala, a fazer camisolas de
tricot para meninos que não podiam ir comprá-las às lojas como nós,
e a suspirar conformada com a sua condição de mulher. O meu pai
sempre fora, em trabalho ou sabe-se lá em quê. As camisas sujas de
baton no colarinho, quando chegava. E ela a fingir que não reparava,
fechava-se no quarto depois de nos ter servido um jantar sempre
delicioso, pescada com batatas a murro, lombo de porco com puré de
maçã. Ainda hoje sinto o sabor do puré de maçã e mordo a boca só
de pensar nisso. E um leite creme com corações queimados. O que
estava ali era o coração dela, mas eu ainda era muito pequena para
perceber o inferno silenciado em que ela se fechara. Só quando ficou
doente por carregar tanta dor no peito durante tantos anos, é que me
lembrei dos corações queimados, silenciosos e estóicos, que se
partiam com a colher e se transformavam numa nuvem de açúcar,
antes de os devorarmos com o prazer da gula.
Entro no cemitério e o silêncio dá-me paz, no ar paira o cheiro
doce a mortos e a passado e as minhas botas de salto de metal fazem
eco entre as campas. Vou até onde ela dorme, ajeito as flores
artificiais que comprei e que parecem mesmo verdadeiras, e sento-
me ali, no banco de pedra, a olhar para o nome e a pensar que não
tive tempo de lhe escrever uma carta para lhe dizer que a amo, que
queria que estivesse viva para a poder levar à praia respirar as ondas
e abraçar o mar, que, no dia em que a Carolina nasceu, desejei que
fosse igual a si, minha querida mãe, que a sinto a pairar, à procura do
momento certo para descer outra vez ao mundo dos vivos, e peço-lhe
que espere só mais um bocadinho, peço-lhe que nunca me deixe, que
nunca se afaste, que nunca se esqueça que tem uma filha que a
adora, e que, se não fosse a Mãe, eu não sabia abraçar o mar nem
fazer tricot, não sabia o que era amar para sempre uma pessoa,
mesmo que esse amor só sirva para nos encher os dias de tristeza e
as noites de solidão.

68
A Mãe havia de gostar de conhecer o Miguel. Ele guarda no olhar
toda a doçura de uma criança que nunca há-de crescer, tem uns
olhos enormes onde cabe o mundo inteiro, e eu gosto de fugir para
dentro dos olhos dele, umas orelhas pequenas e perfeitas que
cheiram a alfazema - não se ria, Mãe, é mesmo verdade! -, é magro,
tem o cabelo ondulado e a boca bem desenhada, e quando adormece
na minha cama sou inundada - todas as noites, Mãe, todas as noites!
- por um conforto eterno que nunca senti antes, nem com o Pedro
nem com ninguém, uma proximidade que nunca julguei possível e
sempre que fazemos amor, é como se fôssemos um só corpo. Não sei
se a Mãe alguma vez sentiu isto. Eu sei que amou muito o pai, e que
o pai talvez não a tenha sabido amar como devia - digo talvez porque
apesar das zangas e das traições dele, ainda me lembro de o ver a
olhar para si com ar desesperado, com aquele olhar esvaziado que os
homens transportam quando se perdem no amor - mas se calhar não,
Mãe, se calhar é só a minha imaginação a delirar, a desejar
ardentemente, para que a dor seja menos aguda e profunda, que a
Mãe tenha sido algumas vezes feliz com ele como eu sou - ou fui, não
sei bem - com o Miguel.
Só que agora não sei o que hei-de fazer, Mãe. Já me dissolvi
tanto neste amor que julgava perfeito, que se o Miguel se for embora
da minha vida, já não me vejo, nem me sinto sem ele. Como se o
mundo passasse todo por ele. Acho que vou demorar muito tempo a
aceitar a realidade, se ele não fizer parte dela. A Mãe deve perceber o
que lhe quero dizer, porque sempre viveu para nós e para o pai.
Apesar de tudo, nunca deve ter imaginado a sua vida sem nós, pois
não? É muito mais fácil viver por alguém e para alguém. Os filhos
libertam-nos de nós próprios, e Deus sabe que não há maior prisão do
que a nossa própria identidade. Mas isso é para pessoas avulso como
o Miguel, não foi para si nem nunca será para mim. Tenho a Carolina,
e a Ana, e a Teresa, e o Duarte, e o Frederico. Apesar da distância e
da tristeza que ele me dá, tenho o Marcelo. Tenho agora muitos mais
medos, mas ainda vou tendo sonhos. Apetecia-me ter outro filho e
dar-lhe outro neto, apetecia-me que o meu pai se separasse da
estúpida da Elsa, apetecia-me que o Miguel tivesse mais dez anos e o
mesmo coração, a mesma doçura, a mesma alegria de viver que me
alimenta e me faz sentir que o tempo pode passar sem
envelhecermos, que uma relação entre um homem e uma mulher
pode mesmo ser feita só de amor. Apetecia-me fazer uma viagem

69
com ele, partir de mochila às costas, como fiz com o Frederico,
lembra-se? Mas, desta vez, para ter muito tempo para olhar para ele,
para o ouvir a recitar-me David Mourão-Ferreira: Deitada és uma ilha/
e raramente surgem ilhas no mar tão alongadas/com tão
prometedoras enseadas... a Mãe conhece esse poema, não conhece?
Tem um fim magistral, exacto, cirúrgico que diz eu morro da vida que
me dás todos os dias.
O meu amor com o Miguel é isto, é só amor, não há mais nada
entre nós, só esta essência que me dá uma paz infinita e me enche o
coração de luz. Mas, se calhar, porque é tão doce e perfeito, talvez
não seja possível, como as estrelas que, por brilharem com mais
intensidade, só brilham metade do tempo das outras, e eu vou ter
que me habituar a viver sem ele, mesmo que isso represente que só
consiga separar os dias das noites pela luz do sol, que quase morra,
continuando viva, que os meus olhos, todos os dias, se levantem para
o ver cruzar os céus.
O pai nunca lhe deve ter lido poesia, Mãe, nem escrito no vapor
do vidro da casa de banho São de nada tempestades/ante a falta que
me fazes, como faz o Miguel. Por isso, eu não sei se a Mãe alguma
vez foi feliz, mas eu sou - ou fui, não sei - e não quero deixar de ser,
não quero perder o Miguel, já a perdi a si, não quero, não quero.
O Miguel perdeu a mãe dele quando era muito pequeno. Talvez
ele saiba lidar com a morte melhor do que eu e tenha aprendido a
não depender de ninguém nem a sofrer com a perda. Talvez ele
tenha desenvolvido essa capacidade em muito novo e a tenha
interiorizado para sempre, como as músicas que decorámos na
infância e que nunca esquecemos, ou os cheiros que se colam ao
sangue. Mas eu ainda não aprendi. Ainda não aprendi a deixar partir
aqueles que amo, ainda venho aqui falar consigo e pedir-lhe ajuda.
Olho para o relógio e reparo que estou aqui há mais de duas
horas. O sol já desce e o frio arrepia-me. Um quarto para as cinco.
Os mortos fecham às cinco
É a hora em que os cemitérios fecham as portas, disse-me uma
vez uma senhora que costumava vir visitar a campa da filha, aqui
mesmo ao lado da minha mãe. Era muito velha, enrugada e mirrada
como uma batata velha e tinha uns olhos azuis que pareciam ter luz
própria. Há algum tempo que não a vejo. Será que também morreu?
Os mortos fecham às cinco
Levanto-me do banco inóspito e desconfortável e respiro fundo,

70
como se acordasse de um estado de transe. Uma brisa inconsistente
faz dançar as flores de plástico, a água já secou e a campa olha-me,
silenciosa e cúmplice. Regresso ao carro com o passo incerto, os
saltos das botas soam-me a passos de fantasmas, entro no carro e
ponho um CD dos Lighthouse Family que o Miguel me ofereceu. A
cidade está estranhamente deserta. Por isso, chego ao Campo
Grande em dez minutos e entro no pátio onde a Carolina joga à
macaca com mais crianças.
- O que foi, Mãe? O que é que tem na cara?
- Nada, querida, estou só cansada.
Tenho que parar com esta mania de dizer à miúda que estou
cansada, cada vez que quero esconder a tristeza. Sou uma cretina.
Uma auto-piedosa cretina. Tenho que me controlar.
O Miguel já está lá em casa quando chegamos. Não sei porque é
que lhe dei a chave, mas pareceu-me uma coisa natural. Ele tinha
entrado na minha vida a duzentos à hora, não fazia sen tido bater à
porta sempre que ia ter comigo. Mesmo sem vivermos juntos, já fazia
parte da minha vida. A Carolina salta-lhe para o pescoço e ele agarra-
a com toda a força, e, depois, dá-me um daqueles beijos lânguidos
que me deixam a cabeça a andar à roda.
Num instante faço o jantar - hamburgers com batatas fritas e
salada para os três -, arrumo a loiça na máquina, preparo a roupa da
Carolina para o dia seguinte, deito-a e adormeço-a. Regresso à sala
onde o Miguel, semi-adormecido no sofá, vê o resumo dos jogos de
futebol do fim-de-semana. Sento-me para que ele possa deitar a
cabeça no meu colo, mas ele levanta-se, fecha a porta da sala, baixa
os estores e começa a despir-me.
Deixo-me ir, devagar e depressa ao mesmo tempo, deixo que ele
me ame com a voracidade que tão bem conheço, abandono-me
completamente nos braços dele, e ficamos assim muito tempo, as
mãos entrelaçadas e os olhos a trocar de globos oculares até que o
cansaço nos vence.
No dia seguinte pergunto-lhe porque é que não me contou do
prémio. Responde que não é uma coisa importante, mas que está a
pensar fazer uma viagem. Digo-lhe que já sabia e que acho muito
bem que ele aproveite o dinheiro do prémio para fazer o que lhe
apetece. Se tivesse a tua idade fazia o mesmo, remato, num tom
mais confiante do que alguma vez julguei que fosse possível. O
Miguel olha-me com aqueles olhos enormes e diz-me és tão querida,

71
tocado pelo meu entusiasmo com a viagem dele. E, quando ele sai e
a porta bate, deito-me outra vez na cama e tapo a cara com todas as
almofadas para não ouvir o meu choro infantil e inútil. Agora é que é.
A minha vida vai mesmo mudar e eu vou ter que me habituar a estar
outra vez sozinha.
- O que é essa cara? - hoje, nem a base, nem o tapa olheiras
conseguiram fabricar um milagre. O Nuno que nestas coisas nem é
mau tipo, mostra-se preocupado:
- Aconteceu alguma coisa? - pergunta, com um sorriso
ansiosamente amável.
- Nada de especial - respondo, tentando não ser demasiado
distante.
Gosto do Nuno e sei que é meu amigo, mas não me apetece
partilhar as minhas derrotas femininas com ele.
- Olha as vendas que chegaram do distribuidor - diz, deixando
escorregar para cima da minha secretária uma folha enorme, cheia
de números. - O Victor continua a vender que nem um doido. Mais de
seis mil por mês - comenta, esfregando as mãos uma na outra.
- És mesmo economista: só pensas na facturação.
- Não - responde, com um sorriso cúmplice - também penso nos
novos valores. Por isso é que hoje vou almoçar com a Mónica.
- Tu não me digas que...
Nem quero acreditar. O Nuno a meter-se com a nova autora da
editora.
- Não, não é o que estás a pensar! Quem me dera, mas a miúda
está noiva: o melhor é não a desviar do bom caminho. - Pois, mas se
lhe pudesses pôr as patas em cima...
- Eu, ou qualquer homem. Ela é boa como o milho!
- Ó Nuno, não fales assim dos teus autores!
- Porquê? Até estou a elogiá-la. Além de não ser uma má autora,
é uma autora podre de boa. O que é que queres que eu faça? Boys
will be boys.
- Deixa lá. Desde que não te metas com ela, tudo bem. - E, se me
meter, ainda melhor - conclui, com ar de gladiador que acabou de
matar um adversário invencível.
- Eu só gostava de saber porque é que vocês, os homens,
precisam tanto de se afirmar sexualmente para se sentirem seguros.
Deve ser uma coisa biológica, essa necessidade de espalhar o sémen.
O Nuno ri-se com ar complacente.

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- Lá estás tu com a mania das generalizações. Eu sei que sou
básico e típico em certas coisas, mas tens que acabar com essa
conversa de os homens isto e as mulheres aquilo. Já não há
paciência, Inês. Senão ficas uma chata.
Ele tem razão. Estou a ficar chata e qualquer dia fico velha. -
Homens e mulheres são diferentes, e depois? Se fossem iguais não
tinha piada nenhuma, pois não?
- O que não tem piada nenhuma é seres casado e andares
sempre entretido com outras mulheres. Isso é que não tem piada.
- E quem é que te disse que a minha mulher é uma santa? E, se
vivo bem assim, porque é que hei-de mudar? Todas as pessoas são
diferentes e, acredita, de uma ou de outra forma, acabam por
encontrar o equilíbrio nas formas mais bizarras de viver. E mesmo
que não percebas, lembra-te que somos todos diferentes.
- Pois somos. Tu adoras a bandalheira e a confusão. Já eu, sou
mais organizada.
E não lhe dou mais conversa. Não vale a pena ter este tipo de
diálogo com o Nuno. Para ele, desde que a pila ande distraída, tudo
bem. Merda do sexo: acaba por ser um poder, mais forte que a
beleza, a inteligência, o charme ou o dinheiro. E, quando entra para o
sangue, é muito difícil de sublimar. Como o Miguel e eu. Não me
consigo imaginar na cama com mais ninguém e agora que ele se vai
embora, o que é que vai ser a minha vida sexual? Simplesmente, NÃO
vai ser. É melhor não pensar nisso agora, tenho duzentos telefonemas
para fazer, e a Mónica que vem cá almoçar connosco para falarmos
do manuscrito.
- Já leste o manuscrito da Mónica?
- Claro. E não está nada mal. Muitos clichês e uma catrefada de
erros de ortografia, mas o resultado é bom. E gosto do fim, quando a
miúda estrangeira por quem o personagem principal se apaixona
decide ser namorada do filho dele. É um bom twist.
- Mulheres com passado gostam de homens com futuro -
respondo eu, a pensar noutra coisa.
- Pois é. Para quem gosta de brincar às casinhas, como tu e o
Miguel. - E faz uma pausa, põe cara de porteira, e arrisca: - Continua
tudo bem entre vocês, não é?
- Claro que sim. Nunca estivemos tão bem - respondo, com um
sorriso cínico.
A manhã passa veloz e, antes da uma, chega a Mónica com

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urnas calças encarnadas que lhe marcam o rabo e uma t-shirt colada,
com a barriga de fora. O cabelo moreno e bem cuidado passa a linha
dos ombros e um risco de bâton marca-lhe a boca grande e carnuda.
É aquilo a que o meu pai gosta de chamar um belo exemplar. O Nuno
assume involuntariamente uma atitude de parvo, desfazendo-se em
risinhos imbecis e olhares redondos para a Mónica, que finge que não
percebe o estado de excitação dele e aproveita para mostrar o anel
de noivado. A mim e que não me apanham outra vez nesse
campeonato; se soubesse o trabalho que dá casar, nunca me tinha
metido em tal empreitada. E para quê? Para o outro idiota chegar a
casa e dizer eu vou viver com a Sandra. E eu que me lixe, não é? Por
acaso, devia telefonar-lhe um dia destes, a agradecer o facto de se
ter posto a andar. O Pedro era uma couve. Chato, sem imaginação e
sempre armado em bom. O seu a seu dono. Ele ficou com a
professora de Tae Kwon Do, e eu fiquei com o arquitecto mais
talentoso e querido do mundo. Só que agora vou ficar sem ele...
Vamos a um restaurante mexicano onde o Nuno e a Mónica não
se coíbem de pedir caipiroskas em barda, enquanto discutem
animadamente a história, o que o Nuno gosta mais e gosta menos,
acertam a data do lançamento e agendam as primeiras entrevistas. A
Mónica não gosta do tom verde escuro do fundo da capa, mas o Nuno
convence-a a aceitar, explicando que o título é muito forte e não pode
perder o impacto. Mas ela gostava mais de um quadro do Hopper.
Está-se mesmo a ver que a rapariga já foi ao Moma e ficou fã dele.
Por fim, lá se acerta tudo, não sem duas ou três bocas malandras
do Nuno, que não consegue deixar de olhar para o peito dela. E dou
comigo a tentar imaginar como é que é ser homem. Que inferno, só
pensam em sexo. Bem diz o Duarte, que defende a teoria de que os
homens quando acordam, a primeira coisa que pensam é onde é que
vão meter a pila. Depois, tomam banho, vão trabalhar, almoçam fora
uns com os outros, fazem desporto e pagam os impostos. Mas o
pensamento primordial e essencial está sempre presente: e agora?
Onde é que vou meter a minha pila? Deve ser isto a vida de um tipo.
Que estafa.
- Tu não descansas enquanto não a passares a ferro, não é, meu
malandro? - pergunto-lhe, depois de a deixarmos num táxi.
- Digamos que já tive vários sonhos eróticos com ela. E se a
puder fazer....
E se a puder fazer!!! São mesmo uns animais. Eles pensam

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mesmo assim! Fazer uma gaja. Como comer um bife, lamber um
gelado, saborear um leite creme. Bem, sempre é melhor do que
comer uma gaja. E dai, talvez não, talvez seja tudo a mesma merda.
- Ouve lá: quando é que foi a última vez que, além de estares
afazer uma gaja, como tu dizes, também sentiste urna coisa qualquer
parecida com amor?
- Não sei... Talvez com a Ana.
A minha alma está parva. Depois deste tempo todo, ele está-me
a querer enrolar. Ainda deve ter remorsos.
- Estás é com remorsos, deixa-te de tangas.
- É verdade. Podes não acreditar, mas é verdade. Pensei em
separar-me e tudo. Só que depois, não aguentei. A Ana tem um feitio
insuportável, é mandona e autoritária. A minha vida ia ser um inferno.
Mas gostei muito dela. A sério - acrescenta, tentando contrariar o
meu ar incrédulo.
- Pois. Por isso é que deu no que deu. Hoje, nem se falam.
- Claro. Tu não percebes que, se não tivesse sido uma relação de
amor, até podíamos ser amigos. Íamos almoçar de vez em quando e,
quem sabe, até mandar uma trancada. Há tanta gente que faz isso...
Mas quando a coisa é mais séria, depois, é muito difícil passar do
amor para a amizade. Parece falso, percebes?
O Nuno a falar a sério sobre coisas sérias e a ser sincero. Estou a
viver um momento único, uma autêntica revelação.
- E ainda pensas nela?
- Claro que penso. Penso imenso e tenho saudades. Os homens
nunca se esquecem das mulheres de quem gostaram. Nunca. Vocês é
que são umas cabras: quando decidem pôr-nos para trás das costas,
viram a página e esquecem-nos mesmo.
- Olha que estás a ficar igual a mim: os homens isto, as mulheres
aquilo...
O Nuno encolhe os ombros, revelando algum conformismo e uma
doçura que nunca lhe conheci. Que giro! Se calhar, ele também tem
coração como as outras pessoas. Talvez até seja uma pessoa normal.
- E alguma vez lhe disseste? - Isso é que nunca.
- Mas, porquê? Ela até hoje pensa que nunca gostaste dela!...
- Não sabes que os homens não são bons a verbalizar essas
coisas?
- Porquê? Achas que é uma fraqueza confessar amor a alguém?
Olha, o Miguel sempre me disse que me amava e isso nunca o

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enfraqueceu aos meus olhos. Pelo contrário.
- O Miguel é um poeta e tem 25 anos, não sabe o que diz. Vocês
as mulheres é que têm que verbalizar tudo. As coisas mesmo
importantes não precisam de se dizer, sentem-se. Se a Ana pensa
que nunca a amei é porque é menos inteligente do que eu pensava.
Andei com ela quase um ano, estava com ela sempre que podia, mas
olha, há coisas que não se explicam.
- Claro, vocês têm sempre imensas desculpas óptimas, mas isso
é só para os outros. Quando o Pedro saiu de casa, a Carolina ainda
mal andava, e ele não teve pena nenhuma.
- Claro que teve, não sejas parva. Essa tua mania de achares que
nós somos todos umas bestas, como tu costumas dizer, está-te a
estragar. Tens que parar com isso.
- Ninguém gosta de ser trocada por uma professora de Tae Kwon
Do.
- Ninguém gosta de ser trocado por ninguém, essa é que é a
questão. E, aqui para nós, o que te custou foi a rejeição, porque tu
nem sequer gostavas muito do Pedro. Se não tivesses ficado à espera
de bebé, nem te tinhas casado. Por isso, não te faças de vítima, está
bem? - E respira fundo, para depois rematar:
- E a professora de Tae Kwon Do, ao menos, era boa?
- Vai à merda.
A Paula faz a entrada na sala mais oportuna do ano para dizer
que o Miguel está na sala de reuniões. Com esta informação
inesperada, as pulsações multiplicam-se e levanto-me como um
foguetão.
Entro na sala e o Miguel está sentado com um ramo enorme de
flores que me estende desajeitadamente.
- Toma.
Rosas, gladíolos, gerbérias, um pot-pourri de cores e aromas
inunda o ar.
- Não quero que te zangues comigo. - Faz uma pequena pausa e
respira antes de continuar. - Vou-me embora daqui a uma semana.
Sento-me, antes que os vidros das janelas com vista para o
Jardim das Amoreiras se partam na minha cara. As pulsações
ensurdecem-me, e mal consigo ouvir a minha voz a perguntar:
- Mas vais já? E porquê? E para onde?
- Para a índia. Vou até Nova Deli e, depois, quero viajar pelo país,
ir às montanhas do Ladak, passar por Goa, ainda não sei bem.

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- E quando é que partes?
- Na próxima sexta-feira, dia 9 de Abril.
Estúpido. Dia 10 da Abril faz dois anos que a minha mãe morreu,
e ele nem sequer se lembrou. E, no dia 7, faz um ano que andamos, e
ele vai-se embora. Não, eu não tenho sorte. Eu não tenho mesmo
sorte nenhuma.
- Eu não tenho sorte - deixo escapar, muito baixo.
- O que é que disseste?
- Nada, deixa lá...
- Não sejas assim! Eu ouvi muito bem, disseste eu não tenho
sorte - e levantando-se, começa a andar de um lado para o outro -
foda-se, porque é que eu me meti nesta relação? Eu sabia que isto ia
dar merda, eu disse-te sempre que não tinha nada para te dar, tu
sabias que eu sempre quis fazer uma viagem, eu nunca te enganei,
bolas! Como é que podes ser assim injusta comigo?
Eu não estou a ser injusta Miguel, estou só a dizer o que penso,
mas como tu só sabes pensar em ti, não tens a mínima ideia do que
os outros pensam, não tens, nem queres ter.
- Vá lá, não reajas assim, como se te estivesse a atirar coisas à
cara! Fui completamente apanhada de surpresa e não percebo qual é
a pressa...
- A pressa sou eu que a tenho, não percebes? Bolas, tenho 25
anos, se continuo assim, perco os melhores anos da minha vida e por
mais feliz que seja - e acredita que nunca amei tanto ninguém, nem
fui tão feliz com nenhuma mulher do que como contigo -, tenho que
viver a minha vida, viajar, sentir-me livre. Não percebes que disso
depende a minha sanidade mental?
- Mas eu não te estou a pedir para não ires, pois não? - respondo,
quase a chorar e fazendo um esforço ciclópico para me controlar - eu
só não percebo porque é que tem que ser já e porque é que isso põe
em causa tudo o que temos.
- O que temos não é o que tu queres, nem o que eu quero. Tu
precisas de um marido, de uma pessoa ao teu lado, que te apoie e
que, de algum modo, seja um pai para a Carolina. Eu sou só um puto
cheio de ideias na cabeça e com muito pouco para dar.
- Mas já me deste tanto... - E, sem pensar, agarro-o pelos pulsos
e fixo o meu olhar no dele. - Então diz-me na cara que já não gostas
de mim! Vá lá, diz-me e eu aceito tudo!
- Não é nada disso! Não tornes as coisas ainda mais difíceis .

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soltando-se, vira as costas e diz, sem olhar para trás - depois falamos
melhor, quando estivermos os dois mais calmos.
O barulho da porta da sala de reuniões abate-se sobre mim como
uma explosão. Pouco depois, oiço a porta da rua bater com alguma
violência, seguida de um silêncio mortal. A Paula entra
cautelosamente, mas mando-a sair com um gesto brusco. Pouco
depois, o Nuno, com um copo de água e sem dizer uma palavra,
senta-se ao meu lado.
Muito devagar, como se estivesse a pedir desculpa pelo que
estou a fazer, deito a cabeça no ombro dele e choro convulsivamente.
O Miguel vai-se embora para a semana, dois dias depois de fazermos
um ano, um dia antes do aniversário da morte da minha mãe. O
Miguel vai sair da minha vida e eu não sei como é que vou viver sem
ele. É que não sei mesmo.

Já passaram dois meses, mas é como se tivessem passado vinte,


ou dois dias, não sei bem. Depois do Miguel ter partido, mergulhei
numa letargia surda, passei a dormir muitas horas por noite e a
deixar a Carolina uma ou duas vezes por semana, em casa da Ana.
Há dias em que, simplesmente, não tenho força para a ir buscar e
passar o resto do dia com ela.
O livro da Mónica foi lançado e, com algumas entrevistas aqui e
ali, está a tornar-se mais um sucesso editorial. Adivinha-se já como o
grande campeão de vendas do Verão, o que provocou no Victor um
ataque de ciúmes e lhe deu estímulo para acabar o Céu Cinzento. Isto
quer dizer que vamos fechar o ano em alta, com boas vendas no
Natal. Com a Mónica e o Victor já podemos apostar em autores novos
e outro dia fiquei com vontade de conhecer um miúdo que me
mandou um manuscrito divertido, com um título sugestivo: Quentes &
Boas. Uma comédia pós-teenager bem escrita, escorreita e com
bastante garra. O pior é que tem um nome de caramelo, coitado do
miúdo, chama-se Orlando Truta. Ninguém se chama Orlando, muito
menos Truta. Um dia destes, peço à Paula que o mande cá vir. Tem
25 anos, como o Miguel. Será que é giro? Devia ter juízo e não pensar
nestas parvoíces, mas tenho que me distrair com alguma coisa.
Para enganar a tristeza tenho lido muitos manuscritos e alguns
livros que me fazem companhia. Descobri novos autores, como o
Frank Ronan e o Nick Hornby, e novos músicos - ouvir os Lighthouse
Family a cantar `Cause we are gonna be/Forever you and me/ dá-me

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náuseas e vontade de chorar. Por isso, vou todas as semanas para a
Fnac e ponho-me a ouvir tudo o que é novidade, a ver se algo me
distrai. Já descobri uma sueca óptima, chamada Lisa Ekdhal, e o Chet
Baker também me tem sabido fazer boa companhia. O Miguel vai
dando sinal por mail e, às vezes, por telefone, de uma forma irregular
e caótica. Nas entrelinhas, sinto que está a morrer de saudades
minhas, e ainda bem. Talvez a distância nos aproxime, como sempre
faz às pessoas quando elas têm alguma coisa para dar uma à outra.
Mas ainda não acordei do estado de profunda apatia em que
mergulhei de forma voluntária quando ele se foi embora. Magoou-me
muito o facto de não ter sequer voltado a ver-me, nem na véspera,
quando, completamente desesperada e fora de mim, lhe implorei que
me deixasse levá-lo ao aeroporto. Recusou terminantemente, não me
disse a hora do voo e ameaçou cortar relações comigo se lá
aparecesse.
- Não me podes rejeitar desta forma e por-me assim fora da tua
vida - gritei-lhe em desespero de causa. Mas ele respondeu:
- Mas eu não te estou a rejeitar. Só estou a viver a minha vida
como quero e a ser honesto contigo. Andámos um ano e nunca
tivemos uma discussão. Tivemos que deixar de andar para nos
desentendermos?! Por favor controla-te. Odeio despedidas. Por favor,
aceita o meu amor por ti, e não me cobres nada. Tenho que ser livre.
E eu tive que aprender a viver com isso. Às vezes, levanto os
olhos e vejo-o a cruzar os céus, atravessando a vida e o tempo,
indiferente a quase tudo, inexpugnável na sua auto-suficiência feita
de razão e de algumas ideias feitas, que o tempo e a vida se
encarregarão, um dia, talvez daqui a muitos anos, de desfazer. Devia
ter estado mais atenta aos primeiros sinais, nas conversas iniciais,
onde, por desconhecimento do interlocutor e pela típica inconsciência
de todos os inícios, mostramos aquilo que somos. No nosso primeiro
almoço, em que me falou dos valores que tinha e que eram apenas
dois: a generosidade e a amizade. Só há poucos dias - dois? cinco?
Não faço ideia, pois, desde que tive que aprender a viver o tempo
sem ele, distingo o dia da noite apenas pelo cansaço - que nunca, em
algum momento desse almoço, o Miguel falou de amor. E, embora o
amor seja também feito de uma e outra coisa, é ainda uma outra, e
não me parece que ele alguma vez tenha sabido o que é.
Não quero nem posso ser injusta com o Miguel. Ele amou-me
como jamais alguém me amou, com o corpo, o espírito e o coração, e

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amou-me muito bem. De uma forma franca e doce, dando o melhor
de si mesmo, com todos os cantos arejados do coração, como ele
gostava de me dizer. Mas eu vejo um coração demasiado grande para
nele caber uma só pessoa, e demasiado pequeno para a deixar lá
ficar. Vivi lá dentro, faço parte desse estreito núcleo que lhe fez
estremecer o sangue a ponto de o abrir. E deve ser por isso que,
quando o fechou com a frieza que sempre o faz seguir em frente,
quase sem olhar para o que deixou construído atrás, à espera que as
raízes se cortem e voem com a inconsistência de um espantalho no
final da colheita, o estrondo ficou a ecoar dentro da cabeça, instalado
em todos os meus sentidos, sem conseguir ainda perceber porquê.
Acordo todas as manhãs com este zumbido e a certeza que não
vais voltar. Cansada de me convencer que, apesar e acima do teu
individualismo estava a tal inevitabilidade a que nos submetemos e
chamamos amor, pensei que, com todo o amor que sentia por ti te
iria suavizar e de alguma forma fazer parte do teu equilíbrio,
tornando-me subtilmente indispensável. Hélas. Nunca pensei
enganar-me tanto. Mas só agora percebo que o teu amor por mim
não foi uma inevitabilidade, mas uma escolha. Alguém que te chamou
a atenção e que um dia decidiste que querias atravessar, com a
intuição certeira de um animal selvagem que procura refúgio
temporário, quando está cansado. Sei que não vinhas a fugir de nada,
nem à procura de coisa nenhuma. Mas acho que quando eras
pequeno te arrancaram uma parte de ti, e desde então ficaste
incompleto e perdeste, quem sabe talvez para sempre, a capacidade
de adormecer nos braços de alguém sem que penses no perigo de
ficar na armadilha do carinho para todo o sempre.
Não, o teu amor por mim, volto a dizê-lo, não foi uma
inevitabilidade, mas uma escolha feita com a leveza e a frontalidade
com que fazes tudo na vida. Por isso te foi tão linear - e repara que
não escrevo a palavra fácil - escolher outro caminho.
Mas não foi assim para mim. Entraste a duzentos à hora na
minha vida, e quando te vi pela primeira vez a passar a porta da
minha casa onde viveste quase um ano quase todos os dias, deixei-
me levar por essa inevitabilidade, submetendo-me a tudo o que
depois se seguiu, e chamando-lhe amor. Um amor total, gratuito,
despojado, com o corpo, a cabeça e o coração todos enterrados lá
dentro. Um amor quase visceral, tão certo e evidente que nem por
um instante, a partir do momento em que me afastaste - com a

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mesma determinação com que te afastaste há dois meses e te
meteste num avião à procura de ti próprio, do outro lado do mundo -
o cabelo da cara com a mão e me começaste a amar, duvidei que
estava ali a certeza, o sabor, a essência do amor.
A seguir, veio a paixão, a proximidade quase irreal de tão leve e
verdadeira, a comunhão de duas pessoas, tantas e tantas vezes
dissolvidas nos braços uma da outra, sem nunca deixarem de ser elas
próprias. Sentia esta alquimia a crescer a cada dia, estremecendo-me
a alma. Saboreava os teus regressos como momentos eternos e
irrepetíveis - e percebi que tinha descoberto a essência do amor.
Hoje, apetece-me pensar que me enganei, que nunca me
amaste, e que, em vez disso, andaste a brincar, ainda que de uma
forma séria. Não foi o Borges que disse escrevo com a seriedade de
quem brinca? Talvez me tenhas amado da mesma maneira, e isso
não devia em nada retirar a seriedade do teu amor por mim, mas
prefiro, num acto da mais torpe e desajeitada sobrevivência, agarrar-
me a essa ideia feita - tão feita e tão estúpida, meu Deus! - que tenho
que gelar o coração antes de me desfazer enquanto limpo a cara e
assoo o nariz, mimada e inconsolável como uma criança a quem lhe
morreu o cão.
Nunca chorei tanto como nos dois últimos meses. Adormeço e
acordo com estes malditos fios colados à cara, que me escorregam
até ao queixo e se encontram num mesmo caminho que vai dar ao
mar. A tristeza é um vício e eu viciei-me nela, meu querido Miguel.
Às vezes, vou passear à beira do rio onde a sua água se mistura
com o mar e dou comigo a pensar que o mar foi feito com as lágrimas
de muitas e muitas mulheres que se dissolveram na sua tristeza até
alcançar os oceanos. Provavelmente, grande parte do que foram
evaporou-se, com a implacável rapidez da volatilização. E eu sei o
que isso é, porque perdi a vontade de voar. Mas, quando olho o ar à
transparência, vejo-me feita de pequenas partículas que esvoaçam
perdidas, quase invisíveis e nada relevantes.
De vez em quando a Carolina aproxima-se e pergunta-me se
estou cansada - sempre lhe disse esta mentira estúpida e, um dia,
ainda me arrependo de ter ensinado à minha filha que o cansaço é a
máscara da tristeza -, e, para me distrair, diz-me que sou a mais
linda. Hoje, perguntei-lhe quem era a pessoa melhor do mundo, à
espera de a ouvir pronunciar o seu próprio nome e ela respondeu:
- O Miguel.

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O Miguel, que me enchia o corpo, o coração, os dias e a casa, o
mesmo que agora abriu as asas e foi lamber as feridas da sua solidão
escolhida, embora essa sim, inevitável, para muito longe. O Miguel,
que eu sei agora, não voltará a adormecê-la à noite, aconchegando-
lhe os cinco anos de medos e sonhos, à procura de alguém que tome
conta dela.
E o pior, Miguel, o pior é que eu também tenho cinco anos e
também queria alguém que tomasse conta de mim. Por isso é que
choro e barafusto, por isso é que me queixo ao mundo, por isso é que
bato com os pés e pergunto outra vez porquê.
Arrumei as fotografias numa gaveta que não consigo que seja a
do esquecimento, deixei de tocar os nossos discos - como se estes
gestos infantis me levassem a algum lado, como se te conseguisse
exorcizar, que parva! - mas ficou muita coisa: o teu frasco de perfume
quase vazio, a tua escova de dentes, livros e discos, um cartão que
descobri outro dia dentro de um romance do Kundera, e que dizia:
mon amour l'aventure commence,
e outro ainda, desta vez todo branco, que vinha com um ramo de
flores - não o último, o da despedida desajeitada, mas outro, quando
fizemos seis meses -, que dizia:
te quiero, obrigado por me teres trazido de volta a luz.
suavizei-te o coração, Miguel, e olha o que fizeste ao meu!
Queria tanto esquecer o teu cheiro, que ainda vive nas almofadas, as
noites e tardes na cama, e o teu corpo cá dentro, e os teus olhos
adoçados pelo amor que sentias por mim, as mãos pequenas, a
segurar a caneca de Ovomaltine com três colheres de açúcar, a
Carolina abraçada a ti, a dizer-te:
- Bom dia, Miguel.
Ou então, por vezes no silêncio da noite, chamava-te com um
adorável e mimado fio de voz, para que lhe fosses aconchegar a
cama e segredava-te ao ouvido:
- Eu quero que o Miguel tome conta de mim.
E tantas, tantas outras coisas que me sacodem o coração,
metido numa caixa e fechado no congelador, para não se desfazer e
ir ter ao mar...
Estou cansada. Cansada e triste. Cansada de me sentir triste.
Triste por me sentir assim. E o pior, Miguel, o pior é que vivo há muito
tempo nesta dor, e, como estou habituada a tratar a dor como um
mal necessário - a morte da minha mãe deixou-me esse legado

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eterno - não sei nem quando nem como vou conseguir libertar-me de
ti e limpar-te da minha memória sem contudo te apagar do meu
coração. Sei que tudo tem um fim e que o sofrimento também, mas
agora vejo tudo enevoado, os braços só se estendem para aninhar a
Carolina, que me vê a chorar mais vezes do que devia, ou então para
o céu, à tua procura, no voo improvável de uma ave migratória. E não
me apetece sair de casa nem ver pessoas, só queria era esquecer-me
de mim, porque só assim - acho eu, na minha viagem alucinada e
infantil ao fundo da minha própria dor, para ver se a mato -
conseguirei apaziguar-te dentro do meu peito e continuar a gostar de
ti com a mesma doçura è encanto com que me comovi a primeira vez
que me conquistaste com as tuas palavras, à mesa de um
restaurante onde te disse não me trate por tu que eu não tenho a sua
idade no mesmo restaurante onde ainda hoje te procuro, como te
procuro nos objectos esquecidos, nos frascos vazios de perfume, nas
fotografias, nos livros que leste - são sempre infinitas as formas que
arranjamos para nos sentirmos perto daqueles que amamos - te
passei a mão pelos ombros e te dei um beijo a pedir-te que fosses
mais velho, que fosses menos egoísta, que juntasses à amizade e à
generosidade o amor, tu, que até sabes amar e não tens medo de
nada, que nunca deixaste de me dar o mundo pelo teus olhos e me
disseste para sempre
te quiero, obrigado por me teres trazido de volta a luz.
a luz que agora levaste e que nenhum céu me trouxe ainda de
volta, apesar de, com uma ansiedade adolescente, me ligar todos os
dias à Internet para ver se o mundo me traz apenas um fio de luz,
meia dúzia de linhas tuas, um sinal ténue mas persistente que me diz
que de alguma forma te manténs ligado a mim e que talvez ainda me
ames. Há pessoas que vivem mal com o amor e que, por isso,
arranjam formas de o viver na inviabilidade. Tu não podias ficar aqui
comigo, tinhas que te meter num avião e procurar no outro lado do
mundo as respostas que ainda não sabes que carregas dentro de ti e
que sempre lá estiveram. Mas como podes tu saber, Miguel, se tens
25 anos e a cabeça cheia de certezas e de ideias feitas?
Ainda recordo, como se fosse uma estalada, a frase infeliz que
usaste para te desculpar: que não tinhas nada para me dar. Claro que
tinhas, Miguel, e deste muito. E tudo o que deste, soubeste dar muito
bem. Senão, não tinhas ficado um ano debaixo da minha asa e, se
calhar é por isso que outro dia, quando fui acordar a Carolina para ir

83
ao colégio e lhe chamei mimada e preguiçosa, ela respondeu:
- O Miguel era muito mais mimado do que eu, estava sempre a
dormir ao colo da mãe e a pedir-lhe mimos.
Não foi fácil explicar-lhe que te foste embora. Ela diz que te viu
um dia no colégio, mas ela olha para fotografias de anúncios de
bancos, para revistas de moda, para reportagens na televisão, aponta
o dedo e, invariavelmente, diz:
- Olha o Miguel.
Tal como eu, Miguel, e nem imaginas o que isto me custa.
Também ela te procura em todos os lados, também para ela são
infinitas as formas que ela arranja para te recriar na sua imaginação.
Só que, outro dia, Miguel, outro dia, estava eu a adormecê-la, e disse-
me uma coisa horrível:
- Sabe Mãe, às vezes já não me consigo lembrar da cara do
Miguel.
E eu acho que ela está a fazer com a tua memória o que tu
fizeste com a memória da tua mãe: a matá-la, mesmo antes dela ter
morrido, para que a dor não se instale.
Eu sei que a Carolina só tem 5 anos e que vai recuperar a tua
perda muito mais depressa do que eu, mas dói-me vê-la a apontar
para cada Peugeot 206 prateado que passa, aponta à tua procura, a
cabeça quase que se desatraca do pescoço na ânsia de te encontrar,
para depois voltar a baixar, enquanto pergunta:
- Mas, afinal, o Miguel nunca mais volta da viagem?
E eu explico-lhe que tu foste em trabalho, mas acho que ela não
acredita, acho que ela sabe, ou pelo menos sente que te foste
embora e é por isso que voltou a fazer chichi na cama.
Tudo isto penso, sem nunca to dizer nos mails, em vez disso
mostro-me interessada na tua viagem, nas aventuras que vais
vivendo, nos sítios por onde já passaste. E nunca te pergunto quando
voltas. Sei que, quando decidires voltar, será por ti e apenas por ti.
Agora percebo o que me querias dizer naquele almoço, quando
falavas de generosidade e de amizade. Esqueceste-te de dizer
individualismo. És uma pessoa avulso, Miguel, à procura da tua alma
do outro lado do mundo, e eu tenho-a aqui adormecida nas mãos e
não sei o que fazer dela, porque a tua alma se fundiu, em tempos,
com a minha e não consigo olhar para dentro do meu coração sem te
ver lá, mesmo que tenhas escolhido outro caminho. Os destinos
vivem-se como uma outra vida e eu tento todos os dias - acredita,

84
porque é mesmo verdade - olhar para os dias e enchê-los sem ti. Mas,
em vez disso, contemplo-os como se não fosse eu a vivê-los,
enquanto treino em surdina um verbo novo, que, quer queira quer
não, vou ter que aprender a conjugar em todos os tempos e modos. O
mesmo verbo que me deu força quando a minha mãe morreu: o
verbo aceitar. Aceitar que já me amaste, que nada é eterno e tudo
muda, que a vida é feita de momentos, que devia estar-te grata por
todo o amor que me deste, pela tua frontalidade e sinceridade.
Aceitar que o meu amor por ti não te podia roubar a juventude,
aceitar a perda e a ausência daqueles que amo. Amar alguém é
deixá-lo partir, olhar o céu e ver na dança da lua um momento
qualquer em que talvez voltes, sem nada pedir, nem nunca esperar.
Pensei que tinha passado esta prova depois da morte da minha mãe,
mas parece que afinal desaprendi tudo. No amor é assim,
desaprende-se a cada momento e, agora, tenho que voltar a aprender
a respirar o ar que já não partilhamos.
Mas acredita Miguel, que, quase todos as noites ainda sonho com
o teu corpo dentro do meu, vou à índia e persigo-te na terceira classe
de comboios que cheiram a carne podre e a suor, imagino-te sentado
num banco de pau de um cibercafé a mandar-me mails, ou a olhar
para uma florista num mercado de rua; e penso que, se estivesse ali
contigo, me compravas um ramo enorme, me abraçavas e me davas
um daqueles teus beijos ternos e infinitos. Não posso deixar de te
reviver na' minha memória, Miguel, pois, doutra forma, sei que
poderia enlouquecer, e esquecer o prazer de sentir o vento a bater-
me na cara, o sol a queimar-me a pele neste Verão seco e escaldante
que já se faz anunciar.
Talvez um dia possa viver de outra forma. Talvez o tempo, ou a
vida, ou as circunstâncias, ou o amor persistente e dedicado de outro
homem me libertem o coração das tuas sombras e me resgatem
deste inferno quase celestial. Mas, agora prefiro viver assim,
imaginando o teu regresso eterno e irrepetível, encolhendo os ombros
à vida, fingindo que não desisto dela enquanto tu não voltares.

- A Paula despediu-se.
- O quê?
- Pois. Custa a acreditar, mas é mesmo verdade. A Paula
despediu-se. E pediu para gozar as férias que lhe faltam já na
próxima semana.

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De facto, está sempre tudo a mudar na vida. Porque é que ainda
me surpreendo?
- Mas porquê? Para onde é que ela vai?
- Para o Canadá, viver com o namorado.
Está bem. A Paula tem 24 anos e está connosco desde o
princípio. Começou por ser secretária e tornou-se o nosso braço
direito: vai à gráfica, trata dos lançamentos, lê alguns manuscritos,
enfim, faz parte da casa. Mas vai deixar de fazer.
- Que chatice! E agora, onde é que vamos arranjar outra como
ela? - pergunto, com algum desânimo. Não gosto nada de mudanças.
Demoro sempre mais tempo do que devia a habituar-me a elas.
- Em parte nenhuma - responde o Nuno. - Vamos pôr uma
anúncio, perguntar a meia dúzia de pessoas e escolher uma que
aprenda depressa.
- Não nos faltava mais nada.
- Não te preocupes, tudo se resolve.
O meu telefone directo toca. É o Duarte a saber como estou.
Digo-lhe que estou bem, embora ele perceba pela minha voz que há
muito tempo que não atinjo sequer os mínimos olímpicos.
Pergunta se quero que me leve a almoçar, mas eu já tinha
combinado com a Teresa e convido-o a passar lá por casa a seguir ao
jantar, para beber um café. Diz que tem umas novidades giras para
me contar. Eu já estou mesmo a ver que vou ter um serão com
histórias macacas dos episódios sexuais do Duarte com as Cláudias
da vida.
A uma passo pela sede do banco da Teresa, e, para variar,
vamos às pizzas. A Teresa está com umas calças largas pretas e um
twin set beije, que lhe fica lindamente. As unhas impecavelmente
pintadas de encarnado muito escuro, o cabelo bonito, vê-se que viu
as mãos do cabeleireiro há poucos dias. Vem bem disposta como
sempre, cheia de energia e com novidades para contar: os gémeos já
falam pelos cotovelos, a campanha da nova imagem do banco está a
ter um sucesso estrondoso e o Vasco está há mais de dois meses
limpo, sem tocar em nada, e recomeçou a trabalhar com o pai.
- Parece-me que, finalmente, me foi dada a possibilidade de viver
uma vida normal - comenta, enquanto se senta e acende a luz da
mesa para chamar a empregada.
- E achas que está para durar?
- Não sei, nem me interessa. Como me ensinaram nos Narcóticos

86
Anónimos, o que é preciso é viver um dia atrás do outro. E depois,
logo se vê. Já só quero que o dia de amanhã seja igual ao de hoje.
Pedimos uma pizza Casanova, uma Vegetariana e dois chás frios.
- E tu, como estás?
- Bem.
- Mesmo?
- Vá lá, não me apetece falar nisso.
- E o inominável, tem dado notícias?
Desde que o Miguel se foi embora que a Teresa optou por o
designar desta forma. Assim, não tenho que dizer palavrões -
explicou-me - é mais simples e dá muito menos trabalho.
- Sim, de forma irregular, mas, digamos... consistente.
- Cabrão.
- Não sejas assim.
- Inês, esse puto é um cabrão, e tu ainda não te convenceste
disso.
- Não é nada. Tem 25 anos e quis viver a vida dele.
- Não. Tem 25 anos e é um egoísta de merda, que se esteve
cagando para a mulher de quem ele dizia que gostava e para uma
criança de 5 anos.
- Acho que estás a ser injusta. O Miguel nunca me mentiu, nunca
andou com outras, ou agiu comigo de forma incorrecta. E, quando
achou que não tinha mais nada para me dar, e que a vida dele não
passava por mim, foi-se embora.
- Pois. E, agora, não te larga, não te deixa viver. - Eu também
não quero viver.
- Não sejas parva. Agora inventas uma depressão só porque ele
se foi embora?
Sem que eu própria me aperceba, começo a chorar. Talvez ela
tenha razão. Mas a forma violenta e pragmática como expõe os factos
dá-me cabo dos nervos, que já estão à flor da pele. A Teresa fica
aflita, pega-me na mão e debruça-se sobre a mesa.
- Desculpa. Não queria ser bruta. Mas é que não aguento ver-te
assim por causa de um puto lunático e pretensioso. Enerva-me, e
acho completamente absurdo.
- Eu também acho - respondo, enquanto passo a ponta dos
indicadores pelo canto dos olhos tapados com os óculos escuros que
tive o bom senso de pôr, assim que, involuntariamente, a torneira
abriu.

87
- Ouve... Eu sei o que é que o Miguel foi para ti, sei como
gostavas dele e como te sentias bem com ele, mas isso agora
acabou, percebes? Ele, foi-se embora há mais de dois meses, já se
deve ter enrolado com meia dúzia de miúdas da idade dele, que
também estão convencidas que foram dar a volta ao mundo. E tu, o
que é que fizeste? Choraste, dia sim, dia sim, desligaste-te do mundo,
e, sem dizer nada a ninguém, decidiste esperar por ele. Achas que
isso é vida?
Se o Miguel a ouvisse agora, nunca mais lhe falava. - Tu também
sempre esperaste pelo Vasco...
- O Vasco sempre esteve comigo, temos dois filhos e, depois dos
miúdos, ele é a pessoa mais importante da minha vida. O Miguel
esteve um ano contigo, Inês, um ano! Viveste 35 anos antes dele e
viverás mais 35 depois dele. O mundo não acabou com o Miguel,
minha querida. Ele foi uma etapa, uma pessoa que te fez feliz e que,
agora, já não tem nada para te dar. E tu não podes viver abraçada ao
passado, senão esqueces-te da Carolina, dos teus amigos e, pior do
que tudo isso, de ti própria.
Faz uma pausa para beber um pouco de chá.
- Estou a ser muito má? Queres que pare?
- Continua.
Eu sei que ela tem razão, sei que não me adianta muito ouvi-la,
sei que vou demorar tempo a digerir tudo. Mas também sei que, por
mais que me custe a sua franqueza, isto é bom para mim, por isso
tenho que aguentar.
- Esse miúdo que tu tanto idolatraste só porque era “muito
esperto”, como tu dizias, é uma pessoa completamente banal, tão
banal que até teve que ir fazer uma viagem para não parecer banal.
Percebes o que te estou a dizer? Ele teve a maior experiência da vida
dele quando andou contigo, abriste-lhe a cabeça e o mundo, e,
depois, ficou um pavão, um pavão que se encheu com as tuas penas
e ficou convencido que era o maior e que o mundo estava à espera
dele. Mas não passa de um limitado, de... olha, isso mesmo! De um
atrasado emocional! Há os atrasados mentais, não há? O Miguel é um
atrasado emocional.
- Mas ele gostou mesmo de mim... - respondo, já totalmente
derrotada.
- Viu-se... Se gostasse mesmo de ti, tinha ficado ao teu lado, não
se tinha ido embora. Nós, os pseudo-intelectuais que lemos muitos

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livros e vamos muito ao cinema é que temos a mania que o amor tem
que envolver sofrimento, espera, abnegação, sacrifício. E para quê?
Para perdermos tempo e desperdiçarmos energia. O homem certo é
aquele que quer ficar mesmo com aquela mulher e a mulher certa é a
que quer mesmo ficar com aquele homem. E o resto é conversa.
- Mas ele era especial. Era uma pessoa muitíssimo inteligente e...
- E de que é que te serviu a inteligência toda dele? Para te dar a
volta à cabeça e ficares completamente desarmada quando Sua
Excelência decidiu ir viajar. Serviu-te para alguma coisa?
Podia explicar-lhe que o Miguel me ensinou a ser feliz, a gostar
de viver com outra pessoa, a cozinhar a melhor massa de salmão do
mundo, a fazer sexo e amor ao mesmo tempo, a reconhecer a
Cassiopeia e Ursa Menor, a estar de mão dada horas a fio, a dormir
agarrada a outro corpo, a divertir-me com as mais pequenas coisas
da vida. Mas não tenho energia. Por isso calo-me. De qualquer
maneira, a Teresa ia achar tudo coisas sem a menor importância.
- Olha - continua embalada, enquanto devora com aplicação
pequenas fatias de pizza - se soubesse o que sei hoje, não me tinha
apaixonado por um tipo inteligente como o Vasco. Quanto mais
inteligentes, mais problemáticos. Ou são uns inadaptados que não
aguentam este mundo cão em que vivemos e por isso metem-se na
droga ou no álcool, ou então, são uns perversos, como essa criatura
que nem quis que tu fosses ao Aeroporto despedir-te e, uma semana
depois, já te estava a mandar mails. Se soubesse o que sei hoje tinha-
me apaixonado por um daqueles tipos de camisa azul forte, género
vendedor, que estão sempre a contar anedotas e para quem está
sempre tudo bem. É que para densa, basto eu. E tu.
De repente, começo-me rir. Ela é boa. Ela é mesmo muito boa.
Se almoçasse todos os dias com ela, curava-me da Miguelite em três
tempos.
- Eu acho que tu devias fazer psicoterapia.
- Não preciso. Venho almoçar contigo duas vezes por semana, e
o efeito é o mesmo.
- Mas, para isso, tens que ouvir o que te digo e deixar de perder
tempo a fantasiar com o impossível, ouviste?
Nesse momento, alguém passa por detrás do meu lugar e senta-
se na mesa contígua à minha. Não o reconheço imediatamente, mas,
quando ele me dirige um como está tímido e sorri dente, reconheço o
pai das três miúdas que encontrei há meses, no Jumbo.

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- Olá... É o... Filipe, não é?
Vem sozinho. Está com um polo alaranjado e calças de ganga. A
um dia de semana, será que este tipo não trabalha?
- Lembra-se do meu nome! - responde, com um sorriso rasgado. -
E como está a... Carolina, não é Carolina, a sua filha?
- Bolas! Como é que se lembra?
- É que a minha mais velha também é....
Preparo-me para continuar a conversa, quando intercepto o olhar
crítico e curioso da Teresa, mas o Filipe já se inclina sobre a mesa
para lhe dar um aperto de mão formal, mas cordial.
- Desculpe, sou o Filipe Almeida, conheci a sua amiga no
hipermercado.
Ele disse conheci a sua amiga no hipermercado, e,
provavelmente, nem sequer se lembra do meu nome. Sim, senhor,
que lindo diálogo! Se alguém nos ouvisse, ganhávamos o
Campeonato dos Diálogos mais Bimbos do Ano.
- Fez muito bem - responde a Teresa, que é a pessoa com mais à
vontade que eu conheço -, é um sítio tão bom para conhecer pessoas
como outro qualquer. Queres sobremesa? Então, são dois cafés, se
faz favor.
O dito Filipe senta-se, finge que não está a prestar atenção à
nossa conversa e pede uma salada caprese e uma calzone. Abre o
jornal “A Bola” e lê atentamente um artigo sobre o Luís Figo. Como se
ainda houvesse alguma coisa a dizer sobre ele.
A Teresa e eu saímos rapidamente, primeiro porque, como
sempre, ela está a atrasada e depois porque está mortinha por me
perguntar coisas sobre um tipo sobre o qual, para grande tristeza
dela, não sei absolutamente nada. Achou-o giro e, de repente, dá-lhe
uma dor de barriga e desaparece outra vez para dentro do
restaurante, voltando dois minutos depois com um ar menos
congestionado.
- Há coisas que não podem esperar - comenta, magistralmente,
ao entrar no carro. - É giro, o tal Filipe.
- Não acho.
- Claro. Como estás cega e te fizeram uma lobotomia, só o
inominável é que é giro, não é, minha linda? - E, soltando um suspiro
que podia ser de uma fadista muito rodada, daquelas que têm uma
tasca com pretensões a fina na Madragoa: - Deus me dê saúde e
paciência.

90
Abro o carro com o comando à distância e a Teresa fica por
momentos a olhar, maravilhada com o brinquedo novo.
- Muito bem, sim, senhora. Andamos a subir na vida. Que giro! É
novo?
- É. Tinha que fazer uma coisa qualquer para ficar menos triste, e
olha...
- Não te chegava ter ido ao cabeleireiro rectificar o tom das
madeixas, não foi, minha doida? Tinhas que comprar um Peugeot 307
novinho em folha, não era?
- Pois... E já viste os estofos em beije? E a caixa de cinco CD's à
frente?
- Muito bem. Parabéns. E então, agora, carro novo, vida nova, ou
nem tanto?
- Há de ser. Há de ser. Tudo a seu tempo.
E despedimo-nos com um abraço rápido e cúmplice.
À tarde, pomos o anúncio para uma assistente editorial e
rezamos para que não nos apareçam 257 atrasadas mentais. Isto sem
a Paula não vai ser fácil. Só até ao fim do ano temos mais seis
lançamentos, quatro dos quais autores estrangeiros em ascensão de
quem o Nuno teve o bom gosto de adquirir os títulos, na Feira de
Frankfurt, e eu vou ter que andar a fazer de guia turística a uma
chilena, dois irlandeses e uma alemã nos próximos meses: mostrar-
lhes o Mosteiro do Jerónimos, o Palácio da Pena e o diabo a quatro.
Quando olho para o relógio, são quase seis e, mais uma vez, voo
literalmente pela cidade no meu carro que ainda cheira a novo, ao
som da Lisa Ekdhal, que canta I will be blessed para ir buscar o
cotomiço que vem sujo, esfolado e com dores de barriga. A caminho
de casa, o meu telemóvel toca, e vejo no visor um número
desconhecido.
- Estou...
- Sim - respondo, num tom neutro. Não gosto nada de atender
chamadas de pessoas de que não faço a mínima ideia quem são.
- É a Inês?
- De quem é esta voz?
- Quem fala?
- Desculpe estar-lhe a ligar.... é o Filipe.
- Qual Filipe?
- O pai da Carolina... que conheceu há uns meses no
supermercado... hoje encontrámo-nos nas pizzas..

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A vida, apesar de tudo, ainda me vai conseguindo surpreender.
Só muito de vez em quando, mas às vezes acontece.
- Ah! - E fico calada, não consigo dizer mais nada.
- Desculpe estar-lhe a ligar, mas a sua amiga deu-me o seu
número...
A Teresa é uma doida. Doida varrida. Deve ter-lhe dado o meu
número quando foi à casa de banho. Se calhar, nem foi e inventou
tudo só para lhe dar o meu telefone. Meu Deus, está tudo maluco?
- Não está aborrecida de eu lhe ter ligado, pois não? Aborrecida,
que polido. Ele não disse chateada, disse aborrecida. Será do género
que também diz conduzir em vez de guiar, viatura em vez de carro e
serviço em vez de trabalho? Brrrrr, espero que não. - Não, não fiquei
aborrecida - respondo.
- É que, quando ela voltou a entrar no restaurante, eu estava a
pensar em sair para lhe pedir o número e, olhe... foi isto. - Ó mãe,
quem é ? - interrompe a Carolina, que é mais curiosa que um gato.
- É aquele senhor - Meu Deus, eu disse senhor? Não devo estar
boa da cabeça! - que tem três filhas, que conhecemos no
hipermercado, lembras-te?
- Se calhar, não é uma boa altura para falar. Eu também fui
agora buscar as minhas filhas... Posso ligar-lhe mais tarde?
Mas o que é que este tipo quer? Fará parte do DA - Divorciados
Anónimos? - uma categoria inventada por mim, em analogia com os
NA e os AA, só que nunca fiz reuniões nem distribuí panfletos.
- Pode... se quiser - respondo, com uma distância calculada, para
que ele não se entusiasme muito, mas também não ache que estou a
ser hostil.
- Então... depois eu ligo e... podíamos almoçar um dia destes... já
sei que gosta de pizzas.
- Logo se vê - e, antes que a conversa caia num vazio absurdo,
despeço-me de forma simpática, mas definitiva.
- Como é que ele se chama, mãe?
- Filipe - respondo, alheada da realidade, tentando perceber o
que se passou.
- É o nome do Príncipe que é o namorado da Bela Adormecida,
pois é? Aquele que lhe vai dar um beijinho para ela acordar, depois de
estar mais de 100 anos a dormir, pois é?
Pronto, acabou o sossego. A Teresa, a minha filha Carolina e o
mundo decidiram em conjunto arranjar-me um namorado. O Duarte

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aparece às dez e meia, depois de eu ter adormecido a Carolina, que
pediu mais uma vez para lhe contar a história da Rapunzel - ainda me
perguntou se o príncipe da rapariga das tranças compridas também
se chamava Filipe, mas não lhe dei conversa -, prepara dois Jamesons
e começa a contar as suas últimas proezas sexuais na noite de
Lisboa. A sua última conquista chama-se Alice e acabou de chegar de
Londres, onde trabalhou como assistente numa editora. Para ver se
vale a pena e também para conhecer a peça - a curiosidade feminina
é infinita - digo-lhe que ma mande à editora. Quem sabe, pode ser
que tenha qualificações para trabalhar connosco.
- O teu sócio vai gostar dela de certeza. Tem umas óptimas
mamas - remata o Duarte. E, perante o meu olhar fulminante,
emenda a mão. - Não, agora a sério, ela é desembaraçada e porreira,
pode ser que seja boa para vocês.
No dia seguinte, a Alice telefona às dez e mandamo-la vir ao
meio dia. Chega com uma saia travada preta e uma camisa cor de
laranja, tem uma cara simpática - embora o piercing na sobrancelha
me provoque uma estranheza permanente - tem experiência na área
e anda à procura de trabalho numa editora. Combinamos dar-lhe a
resposta no final da semana quando, depois de quatro dias a
entrevistar raparigas confusas e desarticuladas com menos neurónios
do que um goraz acabado de pescar, nos rendemos à evidência e
ligamos à Alice, que bate palmas de contente do outro lado da linha e
aceita começar mesmo antes da Paula se ir embora. Está tão
entusiasmada que nem discute o ordenado, e o Nuno e eu respiramos
fundo e achamos que afinal tudo se resolveu mais depressa do que
estávamos à espera.
Em casa nessa noite recebo mais um mail do Miguel, que me
avisa que até Goa é pouco provável que encontre um cibercafé. Mas
sinto-lhe as saudades a atravessarem as linhas que leio e tenho outra
vez vontade de chorar. Porque sinto que nem o tempo nem nada me
vai ajudar a esquecê-lo tão cedo, pelo único e simples motivo que,
apesar de dar toda a razão à Teresa, é mesmo verdade que o coração
tem razões que a razão desconhece, e prefiro guardar a memória
triste do Miguel no meu coração do que sentir que não amo ninguém.

Não tem que se amar alguém para se ser feliz, pois não? Eu sei
que não devia ter acabado com a Inês daquela maneira brutal,
sobretudo depois de tudo o que vivemos juntos. E eu gostava mesmo

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dela, se calhar ainda gosto, mas é melhor não pensar nisso. Mais
valia nunca ter começado a andar com ela. Eu sabia que isto podia
acontecer mas, como sempre, deixei-me ir. Pensei: que se lixe, logo
se vê, e quase destruí a pessoa de quem mais gostei em toda a
minha vida. Mas tinha que ser. Tinha mesmo que ser, ou ficava ali
preso até ao fim da vida. Qualquer dia ela queria ter filhos e, depois,
o que ia ser de mim? Pai, aos 25 anos? Nem pensar: só se quisesse
endoidecer e transformar a minha existência num inferno de fraldas e
obrigações.
Sempre lhe disse que não tinha nada para lhe dar, que tudo era
temporário, que um dia me ia meter no avião e desaparecer. Ela
sabia desde o início que o amor era apenas um acidente de percurso
na minha vida.
Ontem mandou-me um mail a chamar-me atrasado emocional,
explicando que a Teresa era a autora da “brilhante” designação. E
que tinha conhecido um tipo chamado Filipe, mais velho, com três
filhas. Se calhar, é a pessoa certa para ela. Pode-lhe dar segurança,
estabilidade, um pai à Carolina - sim, porque o imbecil do Pedro fazia
menos vezes de pai da miúda do que eu. Encontrar um tipo à altura
dela e ter tudo o que ela merece e que é mesmo tudo. Claro que me
mandou o mail só para ver se me irritava. Já eu, que sou um senhor,
nunca lhe disse que fiz a viagem até Londres e de Londres para Nova
Deli com uma doida que tinha conhecido quatro dias antes no
Algarve. Para quê magoá-la? Foi uma coincidência. A maluca decidiu
acompanhar-me até à índia e gozar uma semana de férias que ainda
lhe faltava. A gaja dava-me uma tesão monstra, e a ideia de viajar
com uma desconhecida atraía-me, como se emprestasse à minha
viagem um toque ainda mais aventureiro. Mas não volto a cometer
um erro tão crasso. A gaja era de estalo e, ao fim de dois dias, a
queixar-se do cheiro da rua, da miséria que não aguentava ver, dos
condutores de riquexó e de tudo e mais alguma coisa, mandei-a à
merda. Ainda me fez uma cena de choro e pontapés à porta do hotel,
e eu sem saber se havia de lhe partir a cara ou não, tal era o meu
ódio por ela. Um tipo come duas vez uma gaja, e isso dá-lhe
obrigação de alguma coisa? Ela é que se meteu debaixo de mim, no
Algarve e depois, quando soube que eu ia, e estava de férias, decidiu
ir no mesmo voo. Não contente com a perseguição, inventou mais
uma semana de férias e foi até Nova Deli. Faltou ao emprego três
dias e foi despedida. Os ingleses não brincam. Nem queria acreditar

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quando a meti num táxi a cair de podre para o aeroporto e, desde
então, só recebi dois mais dela: um, a dizer que tinha perdido o
emprego por minha causa, e o outro, a anunciar que ia regressar a
Portugal e que nunca mais queria ouvir falar de mim. Como se eu
quisesse saber se estava viva ou morta... Que seca! As mulheres são
um bicho mesmo estranho. Estranho, chato e perigoso. O Paulo bem
se lixou: a Kátia deixou-se levar num penalty que - tenho a certeza -
não foi um acidente. Estava-se mesmo a ver. E aquela banana com
olhos, a mandar-me um mail todo contente, a anunciar que vai ser
pai. Pai aos 24 anos, quando ainda nem sequer acabou o curso. Claro
que tem as costas quentes. O pai tem massa que nunca mais acaba.
Deve ter sido por isso que a Kátia “se distraiu”. Ainda não casaram, e
o pai do Paulo já lhes comprou um andar na Parede com vista para o
mar, e ofereceu-lhes uma lua de mel nas Caraíbas. Há tipos que
nascem com o rabo virado para a lua.
Olho para este céu, e não reconheço as estrelas. Mas a lua é a
mesma, cheia, imensa e tenho saudades do corpo da Inês, do cheiro
da sua pele, do cabelo liso e comprido, de lhe morder a boca e
agarrar as mãos. Não sinto falta dela. A vida ensinou-me a não sentir
a falta de ninguém, a aceitar a perda e a morte com um sorriso cínico
e um conformismo quase inato, e deve ter sido por isso que me tornei
neste bicho estranho que a Inês se encarregou de monstrizar depois
de me ter vindo embora, numa tentativa desesperada de me limpar
da sua existência. Queixou-se de mim ao Rodrigo, quando o
encontrou na rua por acaso e foram beber um café. Falou mal ao
Pedro e ao Paulo quando deu de caras com eles no cinema, como se
eles lhe tivessem feito algum mal e mandou-me mails devastadores
em que saltavam frases como estalos na cara, do género entraste e
saíste da minha vida com a leviandade de uma puta, explicando-me
que estava triste e magoada, acrescentando tiradas literárias e com
intencional pendor dramático, como amei-te demais para não te odiar
e outras parvoíces do género. Tenho a certeza que se me visse agora,
me enchia a cara de estalos. Palavras que destilavam raiva, uma
raiva que nunca lhe conheci e que me fez imaginá-la diferente,
menos doce e perfeita. Ou, então, preferi pensar assim para, de
alguma forma, viver melhor o esquecimento. Não que a queira apagar
da minha vida, gostava mesmo de a conseguir guardar de alguma
forma. Mas, desta forma, vai ser muito difícil.
O Duarte mandou algumas notícias, a dizer que ela estava bem,

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que só a achava triste por causa da miúda, que, ao que parece, passa
a vida a perguntar por mim, e isso irritou-me, fez-me sentir um pulha,
um estúpido, um atrasado mental. Nunca devia ter-me ligado tanto à
Carolina. No fundo, fiz-lhe o que a minha mãe me fez. Não, estou a
exagerar; isto é a merda do remorso a tomar conta de mim. Eu não
sou nem nunca fui pai dela e a Inês sabia que riscos estava a correr.
Serviu-me de lição. Sou uma pessoa avulso, não tenho laços nem
bens materiais, sou despojado de tudo. Para mim, contam apenas o
meu pai, os meus irmãos, três ou quatro amigos. E a Inês. Mas, agora,
quero esquecer o que vivi com ela: é fácil, sou muito bom a fazer
exercícios de abstracção. Basta pensar só no melhor que vivemos
juntos e apagar o resto, a memória não me vai atraiçoar. Hei-de saber
sempre lembrá-la com a doçura que merece e a distância a que a
imponho para não acordar todos os dias de manhã, olhar-me ao
espelho e ver, na imagem reflectida, um atrasado emocional.
Estúpida, tocou-me mesmo no ponto. Ela conhece-me melhor do que
ninguém, foi a ela e apenas a ela que revelei a minha natureza dócil.
Mas não o devia ter feito, devia ter-me mantido resguardado debaixo
da minha carapaça, como sempre fiz desde miúdo.
Deve ser isto o amor. Dá-nos a capacidade de sermos nós
próprios, ao mesmo tempo que nos tira o medo. Sempre pensei que
nunca tive medo de nada nem de ninguém, mas, agora, quando olho
para trás e a vejo a estender-me os braços como uma criança, às
vezes, acho que ainda és mais pequenina que a Carolina às vezes,
sou.
Apercebo-me que foi com ela que perdi o medo de amar e de me
entregar a alguém, o que nunca tinha feito desde a partida da minha
mãe. E, pior ainda, nunca tinha querido, ou podido, ou sabido fazer.
A Inês resgatou-me os afectos, devolveu-me o coração, mexeu
com a minha vida de uma forma que nem ela própria imagina, e é por
isso que, apesar de todas as guerras que ela queira encenar, só a
consigo lembrar com doçura. Como se, ao esquecê-la, perca outra vez
o meu lado mais humano.

- Conseguimos!
- O quê???
- Conseguimos. A Ana está à espera de bebé.
As pernas começam a tremer, de repente fico toda arrepiada.
- A sério?

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- Claro que é a sério - responde o Frederico, completamente
eufórico.
- E já passaram mais de dois meses.
- Então, quer dizer que... naquele fim-de-semana em que fomos
para o Alentejo, ela já estava...
- Ou já estava, ou ficou nessa altura.
Que giro, vem aí um bebé. E, quando ele nascer, vou-me lembrar
que estive sempre perto dele, mesmo quando não passava de um
feijão microscópico. Um bebé, que bom! Era mesmo disto que eu
estava a precisar, para me animar um bocado.
Desligo emocionada, cheia de vontade de chorar. Não sei
porquê, mas acho que, desta vez eles vão conseguir, desta vez vai
dar mesmo tudo certo. Selecciono no visor o número da Ana para lhe
ligar, mas, nesse exacto momento, o telemóvel toca. É o Filipe. Tem-
me ligado de vez em quando, para me convidar para um concerto de
música clássica ou para outros programas culturais simpáticos, mas
recusei sempre, não porque não me apetecesse ir, mas porque, já
agora, quero ver até que ponto ele é persistente. Mergulhei num
torpor letárgico e estou a habituar-me a ele. Já me chega o esforço
diário que tenho que fazer com a Carolina para lhe tentar - pelo
menos tentar - transmitir que está tudo bem. Mas hoje estou tão
contente por causa da Ana e do Frederico, que sou eu que lhe
pergunto se quer almoçar. O Filipe nem deve estar a acreditar,
porque pergunta se é hoje e agora, e respondo-lhe com um ar óbvio
claro que sim, e combinamos encontrar-nos à uma e quarto, num
restaurante de comida espanhola ao pé do jardim das Amoreiras.
Quando vou ligar à Ana, entra-me a Alice de rompante pelo
gabinete.
- A Inês desculpe, mas é que está lá fora um autor que diz que
marcou uma reunião consigo.
Olho para a agenda e não tenho lá nada. De repente, lembro-me
daquele cartaz muito estúpido que diz, em letras cada vez mais
pequenas: A falta de sexo torna a sua vista curta, ou qual quer coisa
do género, e penso até que ponto o sexo ou, neste caso, a falta dele,
me anda a complicar o sistema. Chego à conclusão que muito pouco.
Tem piada, quando andava com o Miguel, nunca passámos mais de
três dias sem sexo, e agora, desde que ele se foi embora, nem tenho
pensado nisso. Devo estar a perder qualidades.
- Inês....

97
- Desculpa, estava distraída, aqui a ver a agenda, mas não tenho
nada... Como é que se chama o tipo?
- Orlando Truta.
O Orlando Truta! O autor do Quentes & Boas! A Alice está com
cara de quem acabou de comer um chocolate.
- Porque é que estás com essa cara?
- É que ele é uma brasa!...
- O Orlando?
- Sim.
Orlando Truta. Podia ser o nome do assistente do Mandrake. Olho
para o relógio, e é meio-dia.
A Alice está visivelmente excitada com o aparecimento
inesperado deste candidato a autor. Observo-a disfarçadamente: a
cara não é bonita - e aquele piercing ainda me faz confusão -, mas é
alta, do género boazuda, tem o rabo espetado e um peito grande e
direito. Além disso, é bem disposta, arranja-se de forma discreta e
trabalha bem. Esta geração comeu papas que eu não comi, de
certeza absoluta. Coitados dos rapazes que vivem na rua dela, não
devem ter uma vida nada fácil.
- Ok, leva-o para a sala de reuniões e diz-lhe que tenho um
quarto de hora para falar com ele.
A Alice sai da sala a trote. Demoro propositadamente mais cinco
minutos, só para o deixar à espera, e escovo o cabelo num gesto de
vaidade mecânica. Orlando! NINGUÉM se chama Orlando, muito
menos se nasceu depois dos anos 80. Espero que o rapaz tenha um
petit nom qualquer.
Entro na sala com cara de directora de campo de férias e
estendo-lhe a mão.
- Inês Ramos, directora editorial - e, apontando para a mesa, com
o mesmo tom seco e profissional: - Sente-se.
E rio-me para dentro. Directora editorial, que parva! Só trabalha
comigo o Nuno, a Alice e o contabilista, que vem uma vez por mês.
Isso faz de mim directora de mim própria. É como aquele poema
genial do O'Neill: diz-lhe que estás ocupado/ a entrevistar-te a ti
mesmo/mesmo porque se não/ o pões desde já porta/fora tás
quilhado...
- Boa tarde, obrigado por me ter recebido. É que passei aqui
perto e, como ainda não recebi nenhuma resposta da vossa editora,
resolvi bater à porta. Sabe como é: quem tem boca, vai a Roma -

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remata o assistente do Mandrake.
Será que esta rapaziada lê o O'Neill? E o Jorge de Sena? E o Al
Berto? Devia fazer um inquérito aos hábitos de leitura do jovem, mas,
em vez disso, cedo à personalização da coisa.
- E como é que sabia o meu nome?
- Não sabia. Mas, agora, já sei. Inês.
Gosto da maneira como ele pronuncia Inês. Por que será que
gostamos tanto de ouvir o nosso próprio nome? Que giro que ele é.
Alto, de pele e olhos claros, cabelo liso castanho claro, tipo Ethan
Hawke. Não pode ter mais de 22 anos.
O meu ar de directora de campos de férias reverte-se em cara de
monitora entusiasta.
- E além de querer ser escritor, o que é que faz?
- Estou em Medicina. No quarto ano.
Sim, senhor, um estudante. Isto faz-me sentir velha. Saí da
Faculdade há mais de dez anos: é uma violência pensar nisso. - Por
acaso já leu o manuscrito?
- Sim, dei uma vista de olhos - comento com a máxima distância
que consigo. - Não é mau. A história é boa, o fio narrativo está bem
construído, mas as personagens estão um bocado rudes,
estereotipadas...
Que maldade. O manuscrito dele está ao nível do da Mónica, que
lançámos agora e que se está a revelar um sucesso de vendas muito
razoável. Podia publicá-lo já, mas, se me ponho a editar toda a gente
que aparece com potencial, onde é que vou parar?
- Se fosse a si, trabalhava um bocado mais sobre o que já está
feito. Olhe para o que escreveu como um esboço e trabalhe as
situações, invista mais na construção dos personagens.
- Vou fazer isso mesmo - responde, com um sorriso tímido, e eu
vejo uma fileira de dentes imaculados e perfeitos que podiam fazer
trezentos anúncios para pastas dentífricas.
Olho para o relógio, para lhe dar a ilusão que estou com pressa.
O assistente de Mandrake promovido a estrela de Hollywood
levanta-se e, sem saber muito bem onde pôr as mãos, diz:
- Bem, Inês... Então... não lhe roubo mais tempo.... Muito
obrigado por me ter recebido... Vou fazer o que me disse.
- Faz muito bem. E apareça daqui a dois meses. Mas, para a
próxima vez, marque mesmo uma reunião, está bem?
- Claro, desculpe. É que resolvi seguir o meu feeling. Quando

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tinha a tua idade, também passava a vida a seguir os meus feelings.
E, geralmente, acertava.
- ... e como, geralmente, acerto...
Mau! O rapaz não é assistente do Mandrake, é mesmo o próprio
mágico, a adivinhar o que me vai pela cabeça.
- Ia dizer alguma coisa? - pergunta, com o ar mais inocente do
mundo.
- Ia. Oiça lá, você não tem outro nome qualquer, uma alcunha?
- Tenho. Pode chamar-me Kiko.
- Kiko, com cê ou com kapa?
- Kapa. Sempre com kapa. Okapa.
- Desculpe?....
Ai, será que disse mesmo Okapa, ou só pensei? Não, tenho a
certeza que só pensei. Estou a ficar um bocadinho confusa, vou mas é
pô-lo a andar.
O Kiko despede-se com outro aperto de mão e promete voltar em
breve com um novo manuscrito, e eu saio da sala de reuniões com a
sensação que afinal o mundo é um sítio bestial, cheio de gente
engraçada para conhecer, e que a vida não acabou quando o Miguel
se foi embora. Passo à frente da secretária da Alice, que pergunta:
- Então?
- Era mais um candidato a autor.
- Qual é o manuscrito dele?
- O Quentes & Boas.
- A Inês não se importa que eu o leve para casa para o ler?
- Claro que não.
Quentes & Boas. Como esta miúda. Nem sei como é que o Nuno
ainda não se meteu com ela. Diz que é muito nova, e que as miúdas
muito novas estão sempre em zapping, não têm fio condutor e que,
por isso, dão imenso trabalho. O Nuno tem-se revelado um amigo
encantador, atento, cuidadoso e muito querido. Quase todos os dias
me traz um presente para o escritório - um chocolate, uma flor, um
cartão divertido, uma amostra de perfume, e já fomos jantar duas ou
três vezes. E o melhor de tudo é que não existe entre nós nenhuma
tensão sexual, somos só e apenas amigos, o que para mim neste
momento já é tudo. Acho que fui injusta e reconheço agora que, na
altura em que me envolvi estupidamente com ele, afinal só lhe fiz o
que tanto critico nele, no Duarte e em tantos outros homens. Usamo-
nos todos uns aos outros e chamamos a isso amor. E, quando já não

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nos podemos usar uns aos outros chamamos a isso ódio. Não que, em
algum momento, me tivesse passado pela cabeça envolver-me a
sério com ele, mas agora, enquanto desço a rua para ir ter com o
Filipe e a pensar no Kiko - chamar-lhe Kiko torna tudo muito mais
fácil, mais viável, seja lá o que for - apercebo-me que o amor é uma
coisa e a vida é outra, e que ainda preciso de aprender a viver
melhor, sem depender tanto dos outros para me sentir, senão feliz,
pelo menos, confortável. Se não fosse tão dependente do meu amor
pelo Miguel, não teria sofrido tanto com a sua partida, quando afinal
ele continua próximo, nem que seja através das palavras. Mas eu
quero mais, quero ter uma vida normal. Ainda acredito que uma vida
normal me podia fazer feliz, e é completamente embrulhada nesta e
noutras ideias que chego ao restaurante onde o Filipe, já sentado à
mesa, me espera com uma ansiedade bem disfarçada. A cara abre-se
num sorriso aberto e tranquilo assim que me vê, e, um quarto de hora
depois, já estamos a falar de crianças, colégios, férias, cinema,
música. Tudo por tu, como se já nos conhecêssemos há anos e, sem
darmos por isso, o tempo passa num instante. Observo-o
meticulosamente, qual bactéria vista ao microscópio. Tem pinta,
embora as entradas e as rugas à volta dos olhos lhe denunciem a
idade. A voz pausada e tranquila traz-me um conforto inesperado - e
não pôs demasiado perfume, o que só joga a favor dele. É um tipo
discretíssimo, dos pés à cabeça. Quando nos levantamos, reparo que
não é muito alto, mas tem os ombros bem alinhados e, ou me engano
muito, não tem barriga. Por uma questão de bom gosto e educação,
não entramos em conversas íntimas e despedimo-nos de forma
cordial e calorosa.
- Telefona-me - peço-lhe, enquanto me afasto devagar.
- Está bem. Mas só se aceitares os meus convites.
- Claro que aceito.
- Então... eu depois ligo, está bem?
E afasta-se com um passo sincopado, os braços muito direitos,
como dois ponteiros para a frente e para trás, qual soldado de
chumbo. Espero que não caia da janela, não vá parar a um esgoto e
não seja engolido por nenhum peixe(!!!).
Subo a rua com um novo alento e, quando chego à editora, o
Nuno atira, triunfante, com um gráfico para cima da minha mesa.
- Vês? Por causa da Mônica, o Victor despachou-se, e estamos
com o Céu Cinzento e com o Cala-te por Favor nos tops. Olha as

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vendas do distribuidor. Isto é o máximo! - E esfrega as mãos como
um traficante de escravos que acabou de vender uma Elle Mc Pherson
a um sultão bilionário. Muito bem. Em três anos, construímos uma
empresa sólida, e o meu sócio, afinal, não só é uma máquina a
trabalhar como se revelou uma óptima pessoa. A Ana e o Frederico
vão ser pais. A Carolina prepara-se para entrar para a primeira classe,
e tenho um tipo interessante e engraçado, interessado em mim. Um
não, dois; porque, às quatro, o Kiko liga a perguntar se quero ir beber
um copo com ele, hoje, à noite. Teria sido assaltada por um ataque de
riso, se não tivesse ficado tão perplexa.
- Um copo??? Mas você não está bom da cabeça!!!
- Porque não? Só porque sou mais novo? Não me diga que tem
preconceitos com a idade...
Não rapaz, mas a última vez que dei corda a um da tua idade,
apaixonei-me perdidamente e só agora estou a levantar a cabeça. Por
isso, gato escaldado da água fria tem medo.
- Ainda está aí?
- Estou.
- Oiça, eu sei que isto pode não lhe parecer muito ortodoxo, mas
apeteceu-me, e como costumo fazer o que me apetece....
Onde é que eu já ouvi isto?
- Se eu tivesse a sua idade, também fazia.
- Vá lá, não seja maternal, eu sei que o que vou dizer lhe vai soar
ridículo, mas costumo ter este problema com as mulheres, porque só
me interesso por mulheres mais velhas e a minha idade é sempre
uma chatice...
Que lata! Esta nova geração não deixa de me espantar. - Isso
quer dizer que está interessado em mim, é?
- Quer dizer que me apeteceu ligar-lhe e, como é óbvio, não tem
nada a ver com o manuscrito que lhe enviei. Mas, se calhar, estou a
perder o meu tempo e o seu, por isso, peço-lhe imensa desculpa...
Agora está a fazer o género do ofendido, a ver se tenho pena
dele. Mas não vou ter.
- Tem toda a razão, Kiko. O melhor é ficarmos por aqui - e
desligo, com “mixed feelings”. Acho que foi a primeira vez, desde que
o Miguel se foi embora que me custou dar uma tampa. Mas tinha que
ser. Um tipo mais alto, mais giro e mais novo que o Miguel, era só o
que me faltava. Não estou com estrutura para aguentar outro
espertalhão que me fascina pela sua inteligência e precocidade e,

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daqui a seis meses, descobre que quer ir para missionário na
Amazónia. O Nuno é que tem razão: esta é a idade do zapping, estão
sempre a mudar de canal. Podem ser muito estimulantes, mas nada é
consistente.
O telemóvel toca outra vez e a palavra chamada aparece a
piscar no visor, o que indica uma chamada internacional.
- Olá, Inês...
Meu Deus! É o Miguel! É O MIGUEL. O MIGUEL ESTÁ-ME A LIGAR
DO OUTRO LADO DO MUNDO. - Miguel!... Meu querido!... Como é que
estás? Onde é que estás agora? - pergunto, completamente em
transe, sem disfarçar a emoção.
- Cheguei ontem a Goa, e isto é tão bonito que me apeteceu
ligar-te.
- Que bom!....
- Estás bem?
- ... estou... não, a sério, estou mesmo bem.
- E a Carolina?
- Está óptima. Estás a gostar?
- Estou. Imenso.
- E quando é que voltas?
Estúpida, estúpida, estúpida. Eu NÃO podia ter feito esta
pergunta.
- Não faço ideia... porquê? Já não está zangada comigo e quer-
me dar beijinhos, é?
Cala-te, meu idiota. Não me comeces a manipular com a tua
doçura.
- Não....
- Não está zangada ou não me quer dar beijinhos? Estúpido. Está
a falar comigo como se eu tivesse cinco anos, me tivesse roubado
uma boneca, a tivesse devolvido, e nada disto tivesse a menor
importância.
- Mais ou menos.
Silêncio do outro lado. Adoro esta resposta. É óptima, dá para
tudo e deixa as pessoas desconcertadas. Mas o Miguel está a perder
a paciência.
- Bem, já percebi que ainda não consegues ter uma relação
normal comigo. Se soubesse não te tinha telefonado. Manda um
beijinho à Carolina, não te esqueças. Adeus.
E desliga. Assim, sem mais nem menos, na minha cara, como se

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eu pudesse ligar-lhe outra vez, como fazia quando se irritava comigo
e sabia que dois minutos depois, ou um ou outro ligava. Mas agora
não lhe posso telefonar. O Miguel já não está ao alcance da minha
mão. Está em Goa, chateado comigo porque eu ainda estou chateada
com ele. Isto é o cúmulo! O que é que ele estava à espera? Que,
depois de tudo o que se passou, eu lhe falasse como se nada fosse?
Será que fui muito seca? Não, não posso ter sido. Nunca fui seca com
ele, sempre o tratei com demasiada brandura e esse foi, de certeza -
e só agora é que me apercebo, que burra! - um dos meus erros. Devia
ter sido menos branda, mas habituei-me a fazer tudo para que ele
nunca se zangasse comigo, sempre com medo de o perder. E onde é
que isso me levou?
Passo o resto da tarde a tentar concentrar-me em orçamentos,
guias de remessa das gráficas, gráficos que o Nuno me passa,
estimativas de vendas, ensaios de preço e provas de capa para os
próximos títulos. Quase em vão. A voz do Miguel, a cara do Miguel, o
cheiro do Miguel regressam à minha pele e ao meu coração, e sinto
que estou tão apaixonada por ele como quando se foi embora. O
amor é sempre assim: começa por um fio inconsistente de paixão e
atracção e, quando damos por isso, já nos esmagou com a sua força e
persistência. Eu TENHO que deixar de gostar daquele diabo viajante.
Mas como? Como é que se esquece alguém? Como é que se apaga a
memória dos sentidos? Como é que se lava a alma e se limpa o
coração?
- Ferida de cão só se cura com pêlo de outro cão - responde a
Teresa, num fim de tarde de sexta-feira, na qual decidimos não ser
mães - o Pedro foi buscar a Carolina, e os gémeos estão em casa com
a Maria - e nos apeteceu ir às compras para um centro comercial e
gastar dinheiro em lingerie, colares e écharpes, e mil e uma
pequenas coisas que só servem para nos torrar o cartão de crédito e
dar à alma um magro conforto.
- O quê?
- Isso mesmo. Arranja um gajo, e vais ver que isso passa.
- Estás parva? Não estou disponível para me envolver com
ninguém...
- Mas quem é que falou em envolveres-te??? Eu disse um gajo,
não disse um namorado, pois não?
- Estás doida.
- Pois estou. Mas feliz.

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Deixo cair das mãos uma carteira de pano, daquelas com
bordados de flores, tipo neo-hippie, que se usam este ano.
- Tu não me digas que...
- Exactamente - e vi-a mexendo na secção dos colares como se
nada fosse.
- Tu... tu... tu arranjaste um amante?
Amante. Que palavra mais foleira, mas foi o que me saiu.
- Pois arranjei.
- Então, e o Vasco?
- Tu sabes há quanto tempo é que o Vasco não me toca por
causa da porcaria da heroína?
- Não.
- Então, nem queiras saber. Mas olha que já aguentei mais do
que podes pensar. Só que agora fartei-me.
- E... vais-te separar?
A Teresa pára à minha frente e começa a dar-me marteladas
leves na cabeça com os nós dos dedos.
- Hello! Is there anybody home? Estás maluca, ou quê? As
pessoas que estão na loja observam-nos e riem-se.
- Está quieta! - peço-lhe, perdida de riso, enquanto lhe afasto a
mão.
- És mesmo uma romântica incurável. Por acaso ouviste-me falar
de amor, paixão, ou uma coisa do género?
- Não. - Então...
Então, a Teresa tem um amante e está feliz da vida, e não sei
por que é que estou tão espantada. Fico contente por ela.
- Bem, então, nesse caso... espero que seja bom para ti....
- Olha, querida, mau não é de certeza.
- E quem é o feliz contemplado?
- Se te contasse, nem acreditavas.
- Try me.
- Ok. Mas prometes que não contas a ninguém, nem à Ana, está
bem?
- Está bem. Mas o que é que pode ser assim tão estranho para
não se poder saber?
- É um segurança lá do banco.
- Um segurança?! Daqueles que usam farda e tudo?
- Sim, desses.
- Que fino!!! A directora de marketing de caso com um

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segurança daqueles que estão à porta e nos pedem o bilhete de
identidade.
- Ele não é desses. Faz a segurança da administração.
- Ok. Pertence a uma força especial de elite!!!
- Estás a gozar, mas já esteve na Legião Estrangeira.
Isto é lindo! A minha melhor amiga, respeitável mãe de família,
abnegada esposa, nora ideal, com uma carreira invejável e dona de
casa perfeita, tem um amante que é segurança. Se lesse isto num
livro, achava um recurso imaginativo de péssimo gosto, mas a vida é
sempre outra coisa, não é? E sempre muito mais divertida do que
qualquer ficção.
- Muito bem. E como se chama o guerrilheiro?
- Américo.
- Vespúcio? Como o outro que descobriu a América?
- Não. Mas descobriu-me a mim. E olha, até estou bastante
satisfeita com isto.
- E tu consegues chamar-lhe Américo?
- Bolas, Américo é pior que Orlando.
- Ainda não lhe arranjaste uma alcunha?
- Mais ou menos. Chamo-lhe estupendo.
- És o máximo.
- Não sou nada. Sou só uma mulher, e estou farta de ser perfeita,
percebes? E tu também devias estar. Tens que te distrair, mas estou
a falar de te distraíres a sério, não é passares a vida a fazer
programas com o Nuno e o Duarte, que é como se fossem teus
irmãos. Arranja um tipo qualquer e vai-te divertir. Um tipo ou mais.
Quando uma mulher não ama um homem, gosta de vários, não é? Li
isto em qualquer lado e acho que faz sentido. Vive a vida, miúda. Vais
ver que um bocado de disparate te vai fazer bem.
Regresso a casa com cinco sacos de compras. Já nem me lembro
bem do que é que está lá dentro, entre camisolas, dois pares de
sapatos e uma carteira. Tenho uma vaga ideia que comprei mais
umas coisas, mas nem me lembro bem o quê. O caso da Teresa com
o combatente da Legião Estrangeira deixou-me estupefacta. E se eu
ligasse ao Truta? Consulto a minha lista de chamadas atendidas do
telemóvel, e o terceiro é um número que não conheço. Deve ser este.
São oito e meia, estou sozinha, a Carolina só vem no domingo, e não
me apetece ir outra vez para o Alentejo com o casal perfeito. Podia
ligar ao Filipe, mas ia parecer que estou desesperada, ou muito

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interessada, ou as duas coisas, o que, neste caso, não interessa nada
porque nem sequer é verdade. Também podia ligar ao Nuno, mas é
sexta-feira: deve estar em casa com a mulher. Ou então ao Duarte.
Mas não. Vou ligar ao Truta.
Uma hora depois, sentamo-nos à mesa de um restaurante de
comida brasileira, onde a picanha, segundo o Kiko, é uma
especialidade. Como tive algum tempo para me arranjar, resolvi
experimentar se ainda sabia brincar às mulheres sexy, e parece-me
que o resultado não foi mau. Umas calças pretas justas, botas de
salto alto e uma camisola encarnada de gola alta sem mangas com
uma boneca estampada à frente, o cabelo lavado e bem escovado,
bâton, rimmel e um toque de blush, e pareço outra.
- Parece outra - comenta o Kiko, disfarçando o nervosismo com a
carta à frente da cara, por cima da qual só consigo ver uns olhos
claros, brilhantes, de uma cor indefinida.
- Tens olhos de gato - deixo escapar, não sei se sem querer, ou
não.
- Já me disseram isso.
Ok. Temos um rapaz da nova geração, convencido de que é o
máximo.
- De gato pardo.
- Antes pardo que parvo. Além disso, à noite, todos os gatos são
pardos.
- E quase todos parvos.
- Pois.
Senhores telespectadores! Bem vindos a mais uma sessão do
concurso “Quem é o Mais Engraçadinho do Mundo!!” O concurso de
todos os portugueses e para todos os portugueses, onde mostramos
como é divertido ser português! Contem piadas, anedotas, façam
trocadilhos e podem habilitar-se a ganhar um carro ou uma viagem
ao Oriente! Oriente? Mau, isso é que não era lá muito boa ideia...
- Viaja muito?
- Sempre que posso. Geralmente no Verão, depois dos exames;
às vezes, na Páscoa. Depende do que tenho que estudar. E a Inês?
Gosto mesmo da maneira com ele diz o meu nome.
- Dantes, viajava mais. Agora, com a Carolina, a minha filha, é
mais difícil.
- Que idade tem?
- Quem? Eu ou a Carolina? O Kiko ri-se.

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- A Carolina. Acha que me importo com a sua idade? Decido não
responder.
- Tem cinco.
- Que giro. Tenho uma irmã com seis anos, do segundo
casamento da minha mãe.
- Então a sua mãe deve ser novíssima.
- Tem quarenta. Tinha dezoito quando eu nasci. Não é bem mãe,
percebe? Foi sempre uma espécie de irmã mais velha... se calhar, é
por isso que as mulheres mais velhas me fascinam tanto...
Mau. O rapaz já deu Freud na Faculdade e daqui a um bocado,
está-me a contar uma aventura tórrida com uma amiga da mãe.
- Oiça... estive a reler o manuscrito hoje à tarde e vou mesmo
trabalhá-lo a sério, mas gostava que a relação que eu venha a ter
consigo, seja ela qual for, não tivesse nada a ver com o que vai
acontecer com o meu livro. Quero mesmo separar as águas, percebe?
Percebo. Percebo que me estás a cantar a canção do bandido,
mas vou fingir que não percebo.
- Claro, Kiko, não se preocupe. Uma coisa não tem nada a ver
com a outra. E, diga-me lá, qual foi a última viagem que fez? - Fui a
Praga e a Budapeste, no fim do Verão passado. Muito giro.
- E a próxima?
- Ainda não sei. Talvez vá a Moçambique. Ou, então, à índia.
Mau. Deve estar na moda, com certeza. Há dez anos, ia tudo
para o México, agora é isto.
- O que é que foi? Também quer vir?
Malandro. Estás habituado a que tudo te corra bem, não é? -
Não, obrigada. Ainda me cruzava com o meu namorado. Ex-
namorado.
- Ah...
E fica calado. Que estúpida! Por que é que disse isto? É ridículo
e, além disso, não há nada que irrite mais um homem do que ouvir
uma mulher falar de outros homens, sobretudo dos ex-qualquer-coisa.
Mas o Kiko não se desmancha.
- E isso acabou há muito tempo?
Podia ter sido há um ano meu caramelo, que era a mesma coisa.
Não percebes que quando se gosta mesmo, o tempo não conta?
- Há uns meses.
Olha, afinal, minto bem. Foi há dois meses e não há uns meses, o
que faz toda a diferença. Uns meses podem ser cinco, sete, dá a ideia

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de muitos, e foram mesmo poucos, mas está bem assim.
- E tu, há quanto tempo não tens namorada?
- A sério, há dois anos. Andei um ano com uma rapariga, mas
depois chateámo-nos.
- E quem era?
- Era uma advogada. Devia ter a sua idade. Está-me a provocar.
- Você nem sabe a minha idade.
- Sei, sei. Mais de trinta e menos de quarenta. Chega
perfeitamente.
- És sempre assim tão seguro?
- Não. Sou só sincero. É um hábito que não quero perder. Mas
vais perder. Com a idade, vais perder isso e outras coisas.
- Posso tratá-la por tu?
não me trate por tu que não tenho a sua idade. - Disse alguma
coisa?
- Não.
- Então? Posso?
- Claro que podes, Kiko. De qualquer maneira esta coisa do você
não faz sentido nenhum.
- Ainda bem. É que te achei tão séria, lá na editora...
- Lá, estava a trabalhar. Aqui, estou-me a divertir.
- E estás mesmo?
Outra vez aquele brilho nos olhos à Ethan Hawke. - Estou, claro
que estou.
O jantar voa. Pratos e pratos de picanha, arroz, feijão preto,
farofa e couve mineira, aterram na mesa. As caipiroskas puxam pela
coisa, e há mais de seis meses que não comia tanto, nem nada me
sabia tão bem. O Kiko conta histórias de viagens, da mãe, da irmã
mais nova, dos amigos, da faculdade, de quando começou a escrever,
fala do manuscrito e de outros projectos, fala do pai que é médico, e
eu vou ouvindo, falando o menos possível da minha vida e puxando
por ele.
A seguir, para continuar na onda transatlântica, rumamos a um
bar onde se toca música brasileira ao vivo, continuamos na senda das
caipiroskas e já estou completamente grossa. Mas não me importo
nada. Estou viva outra vez, estou bem disposta, tenho uma óptima
companhia ao meu lado e não sei como e que vou acabar esta noite,
mas também já não estou nada preocupada. Como é que a Teresa
disse? Quando uma mulher não ama um homem, gosta de vários, não

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é? Parece-me que estou a gostar deste.

Vinte e dois anos é isto. Apanham uma bebedeira e no dia


seguinte levantam-se para ir fazer jogging. É o zapping.
Olho em volta e reconheço o típico quarto de rapaz solteiro: uma
televisão enorme, vídeo e DVD, colunas e uma aparelhagem, revistas
de carros, meias e sapatos por todos os lados. O Kiko procura umas
meias e uns ténis no meio da confusão e enfia uns calções colados
que lhe ficam a matar. É tão giro... - Vives sozinho?
- Não, vivo com o meu pai. Mas ele está fora, num congresso, só
volta na quarta-feira, por isso fica à vontade. Eu volto já. E sai, com
um sorriso triunfante. Levanto-me, procuro a casa de banho e uma
toalha lavada no armário, tomo um duche rápido e saio de casa dele.
Estou mesmo doida, isto não pode ser. O fim da noite é uma
amálgama de imagens desfocadas e sons difusos, sem o menor
sentido. Só de pensar nisso, começa-me logo a doer a cabeça. Será
que me passei completamente? E se fui para a cama com ele, e
estava tão grossa que nem me lembro?
Já na rua, lembro-me que não tenho carro e não reconheço o
bairro onde estou. Entro num café, e pergunto a medo ao empregado
onde é que há uma praça de táxis, mas o empregado, de bigode fino
e óculos, responde, impassível:
- Só lá em baixo, junto à igreja.
- Qual Igreja?
- A Igreja da Ajuda, menina.
Obrigada, já me ajudou muito.
Ligo ao Duarte, que está providencialmente a tomar o pequeno-
almoço junto ao rio, e peço-lhe para me vir buscar, depois de lhe ter
dado o nome de uma rua de que nunca ouvi falar, e ele também não.
Um quarto de hora depois, apanha-me na esquina e leva-me para
casa.
- O que se passa, miúda?
- Fiz um disparate, mas não me faças perguntas agora. Depois,
conto-te.
A noite teria sido perfeita se tivesse vindo dormir a casa, mas
estava tão bêbeda que o Kiko me trouxe para casa dele e me deitou
sem eu dar por nada. Diz que foi ele que me enfiou esta sweatshirt
que tem a bandeira americana e me deixou dormir, mas olho-o
desconfiada, de manhã, quando me acorda com um leve toque da

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mão na minha cara. Sinto-me idiota e vulnerável. A dormir em casa
de um estranho de quem não sei absolutamente nada. Devo estar
completamente doida.
O Kiko levanta-se do lado de fora da cama e percebo que deve
ter dormido do outro lado: as almofadas estão amassadas e cheira a
sono. Tem uma t-shirt branca com a gola coçada e uns slips pretos,
apertados, até metade das coxas.
- Estou doida - digo baixinho.
- Não estás nada. Apanhaste uma bebedeira, e tive que te trazer
para casa, foi só isso. Olha, fiz café e tens pão na cozinha, se quiseres
fazer umas torradas. Vou fazer um jogging e já venho, está bem?
O Duarte ri-se, e pergunta-me se preciso de alguma coisa, mas
eu só quero a minha casa, o meu quarto, o sossego e a protecção do
meu lar. Quando entro na sala e vejo a fotografia da Carolina, dou
comigo a pensar que raio de mãe sou eu que se apanha sozinha num
fim-de-semana, e acaba a noite em casa de um estranho. E se ele
fosse um assassino? Um psicopata? Um serial killer? Abro um armário
e tiro uma embalagem de Corn Flakes. Lembro-me da anedota do
alentejano no meio de um campo de trigo, convencido de que era um
Cereal Killer, e desato a rir à gargalhada no meio da cozinha. Sou
uma estúpida, uma cretina, uma inconsciente. O melhor é desligar o
telemóvel e dormir o resto do dia, esquecer a noite e rezar para que o
Kiko não me volte a ligar. Ou, então, rezar para que ele nunca mais
deixe de me ligar. Sei lá o que pensar disto tudo. Dói-me a cabeça, as
costas, as pernas, quero dormir e esquecer-me que afinal não sou tão
bem comportada como pensava que era.
Ao fim da tarde finalmente levanto-me, tomo outro banho,
aqueço uma sopa e ligo o telemóvel. Nenhuma mensagem. Será que
o Kiko ficou chateado por me ter vindo embora? Se fosse comigo,
ficava. Por isso, é possível que sim. Abro o computador e ligo-me à
net. Tenho um mail do Miguel à minha espera. Um mail longo,
amargo, provavelmente escrito depois da nossa curta e estúpida
conversa de ontem à tarde. É sábado de tarde, estou com frio e
cansada, espera-me uma noite solitária. Tudo o que eu não queria era
um mail agressivo do Miguel, a chamar-me infantil, mimada,
autopiedosa, a acusar-me de não saber lidar com a realidade, a
atirar-me à cara que não me deve nada e que nunca devia ter andado
comigo, a portar-se como um imbecil sem coração. A solidão está a
amargá-lo cada vez mais, leio e releio as palavras, e já não reconheço

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o Miguel por quem me apaixonei, que vivia na minha casa e brincava
com a minha filha, que me aquecia o coração e me fazia sentir que
era a miúda com mais sorte do mundo, porque era outra vez uma
miúda, nada me pesava e tudo parecia tão fácil, tão certo, tão
simples e tão bom...
Num fôlego, respondo-lhe da mesma moeda, e deixo-me levar
pelas palavras, a raiva contida de semanas e semanas explode e
choro ao mesmo tempo que escrevo. Autopiedosa, compulsiva,
paralisada pelo meu próprio medo, como ele me disse. Pode ser que
sim, mas, se nunca há só uma visão para a mesma realidade, chegou
o momento dele levar com a minha visão, de a engolir e a digerir do
outro lado do mundo, sozinho, mesmo que as minhas palavras sejam
como bofetadas. Agora já não quero saber, já não tenho medo de o
perder, porque já o perdi há muito tempo, só que ainda não tinha
querido aceitar tal evidência. As palavras atropelam-se nas teclas,
trocam de lugar no écran, estou possuída por uma febre de raiva e
tristeza e dor e não sei mais o quê, mas estou-me nas tintas. Pela
primeira vez, estou-me nas tintas se, por causa do que digo, ou
escrevo, ou penso, o Miguel se vai chatear comigo. Desta vez sou eu
que me dou ao luxo de me chatear com ele. E, antes que me
arrependa, envio o mail sem reler e fecho o computador, tentando,
pela primeira vez, encerrar um capítulo da minha vida e imaginar
que, daqui para a frente, vou ser feliz sem a sombra do Miguel, ou o
que resta dele.
Sabes o que me faz mais impressão em ti? É que a matéria-prima
é, de facto, muito boa; tu pensas e sentes bem as coisas, tens uns
óptimos miolos e um coração enorme, embora, como já te tenha
escrito um dia, demasiado grande para caber só lá uma pessoa e
demasiado pequeno para ela lá poder ficar.
Mas falta-te o mais importante, aquilo que nos faz sair de nós
mesmo e sentir a vida na sua plenitude: falta-te a dimensão dos
outros. Dás pouco, apesar de me tentares convencer que dás muito.
Quando se dá a sério, nunca se cobra, Miguel, nem sequer se mede o
quanto se dá. Nunca é demais, sabias?
Mas é como te disse uma vez: tu não desenvolves, não te deixas
ir, não te perdes, no último momento, defendeste-se sempre com um
jogo de cintura invejável e, com a tua implacável lucidez cartesiana,
tens sempre para ti e para os outros as mais fundamentadas e lógicas
justificações. Não passas de um atrasado emocional, consciente das

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tuas limitações, mas sem nenhuma vontade de as ultrapassar.
Houve momentos em que invejei essa tua autonomia e
independência, que te fazem tão inexpugnável. Mas agora não. Deve
ser horrível desligar da vida, como se nos tirassem da ficha com um
gesto brusco e desumano.
Desculpa o desabafo, mas estou nos antípodas, ou, como me
disseste uma vez, talvez esteja apenas muito perto da perfeição. Não
aspiro a nenhum tipo de perfeição, mas gostava de construir alguma
coisa sólida com alguém mesmo especial. E tu, nem disso gostavas.
Às vezes acho que nem sequer tem a ver com a idade: é estrutural e
incontornável em ti. Quando é que percebes que viver na solidão é a
maior e mais estéril das prisões? À força de te protegeres dos outros,
ausentas-te de ti mesmo, e onde estás agora? Qualquer dia olhas
para dentro de ti e já lá não estás.
Boa viagem, Miguel. Boa viagem ao centro de ti próprio. E boa
sorte. Vai ser mesmo difícil encontrares-te.
Ainda estive para lhe dizer que a Carolina já não se lembrava da
cara dele. Nunca lhe contei que ela o via em todo o lado, nos
anúncios de roupa, em cartazes de rua, em séries de televisão.
Porque haveria agora de lhe contar a verdade? A Carolina já se
esqueceu da cara dele, e eu tenho que me esquecer que o amei
tanto. Senão é que dou mesmo em doida, e depois, quem é que cá
fica a tomar conta da editora, da miúda e do bebé da Ana e do
Frederico?
O Miguel já só está a fazer-me mal. Prefiro o silêncio e a ausência
à tristeza das sombras. Tenho, duma vez por todas, que assumir que
o meu sonho acabou. Amanhã, acordo e começo a mentalizar-me que
a minha vida continua sem ele e que vai correr tudo bem. Mas, hoje,
só quero dormir, esquecer a dor e limpar o coração. Isto não é viver e
eu tenho que continuar viva, inventar uma vontade que não tenho e
obedecer-lhe cegamente. Talvez nem seja assim tão difícil. Quando se
continua vivo depois de morrer, é fácil ser-se obediente.

- Não são cuecas, são slips - precisa a Teresa. - E o Nuno também


usava, e nessa altura achavas muito sexy, lembras-te?
- Usava? Tem piada, não me lembro...
A Teresa, como sempre, acertou em cheio. Desta vez, a Ana
ficou sem resposta. Estão, mais uma vez, as duas a falar da minha
vida, como se eu não estivesse presente. Um dia tenho que acabar

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com isto.
- Mas tu, afinal, foste ou não para a cama com ele?
- Não. Quer dizer, acho que não. Pelo menos, não me lembro.
Se estivéssemos num torneio de golfe a Ana corria perigo de
vida.
- Fecha a boca, miúda. Senão, ainda te entra uma mosca, ou
uma bola de golfe, ou outra coisa qualquer.
- Eu não acredito nisto! Tu estás completamente doida? E se
foste para a cama com ele e não te lembras? E se ele não usou
camisinha?
- Não fui, parva, estava só a gozar contigo - e, fazendo uma
pausa para acentuar mais a coisa. - Não fui, mas ainda vou a tempo.
- E fazes muito bem - remata a Teresa.
A Ana olha-a de lado.
- Tu andas esquisita... O que é que se passa?
- Nada.
- E o Vasco, como está?
- Bem, obrigada: a fingir que trabalha com o pai. Bom, pelo
menos continua limpo, já lá vão quase quatro meses.
- Ainda bem.
A Teresa pisca-me o olho, a dizer coitadinha, é uma tapada, não
faz a mínima ideia do que se passa.
- E o trabalho no banco, como vai? - pergunto com um sorriso
malicioso.
- Melhor que nunca - responde a Teresa.
- Tu não podes entrar nessa espiral de loucura - diz a Ana, que
não consegue fechar a boca, depois de lhe ter contado a minha noite
com o Kiko.
- Pois não, mas apetece-me.
- Por que é que lhe estás a dizer isso? - pergunta a Teresa.
- Porque acho um absurdo e só a pode pôr ainda pior.
A Teresa respira fundo. Eu sei que ela se irrita com a atitude
sempre politicamente correcta da Ana perante tudo, mas, desde que
anda a viver a aventura da vida dela com o Rambo da administração,
ainda tem menos paciência.
- Pois. O inominável pôs-se a andar, e ela tinha que ficar feita
monja à espera de quê? Do príncipe encantado? E, entretanto, não
pode viver a vida dela?
- Eu não disse isso, só disse que esta história com o tal Kiko não

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tem pés nem cabeça.
- Como é que sabes? Nem sequer o conheces - respondo.
- Nem preciso. Um puto que usa cuecas pretas!
- Não sei o que é que vocês têm. Ultimamente andam um bocado
parvas.
E levanta-se, com aquele ar digno e sofrido que as grávidas
gostam de assumir desde o primeiro dia em que sabem que estão à
espera de bebé.
- Coitada da Ana. Devias-lhe contar do legionário.
- Para quê? Para me chatear até à morte? Não, é melhor assim.
Ainda tinha um desmancho com o susto.
É tão bruta, esta Teresa.
- Não sejas estúpida, com essas coisas não se brinca.
- Tens razão. Ouve lá, e o Truta? Vai ao forno, ou quê?
- Não faço ideia. Ele tem-me ligado, mas o Filipe também. Por
isso, ando um bocado dividida. A culpa é tua, com aquela máxima de
quando uma mulher não ama um homem, etc., etc.
- Pois. Agora, deu-te para as apostas múltiplas.
- Não é isso. É que não sei muito bem o que fazer. Já saí outra
vez com o Filipe, e sinto-me lindamente, mas falta ali estímulo,
percebes?
- Falta estímulo porque também não lhe dás hipótese. E, como
ele deve ser do tipo cauteloso, anda a estudar o problema. Mas eu
acho-o muito melhor do que a Truta Salmonada.
- Porquê?
- Porque te pode trazer algo de novo.
Fico a pensar na resposta. Era a última que estava à espera de
ouvir. A Teresa podia ter dito: porque ele é mais velho, mais maduro,
e talvez saiba melhor o que quer; porque ele é inteligente e bem
educado, e já passou por uma separação; porque um tipo que vive
com as três filhas só pode ser boa pessoa; porque ele não usa slips
pretos. Mas esta resposta deixou-me perplexa.
- E o que é que pode ser novo?
- Alguém que te proteja, em vez de seres tu a meter toda a gente
debaixo da tua asa. Alguém que te dê conforto e atenção, em vez de
chatices e dores de cabeça. Alguém por quem não sintas uma paixão
doida e avassaladora que te acabe com as defesas. Uma relação que
tu controles.
- E qual é a piada disso?

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- Experimenta e verás. Claro. É o que a Teresa está a viver com o
Rambo dela.
- Bem, adorei vê-las, mas tenho que voltar para a editora, senão
o Nuno mata-me - digo, levantando-me do sofá, onde a Ana acabou
de servir o café, ao mesmo tempo que bebo de uma vez todo o
conteúdo da chávena. A Teresa também tem que voltar para o banco,
por isso, saímos as duas de casa da Ana.
- Aquele bacalhau no forno estava demais, não estava? -
pergunto à Teresa, que vem com a mão na barriga.
- Estava, mas tenho que emagrecer. Senão, não aguento as
investidas.
- Do Rambo? - Pois.
E desatamos as duas a rir que nem umas parvas. É bom estar
viva. Antes de entrar no carro, a Teresa agarra-me pelo braço e fixa o
olhar dela no meu.
- Ouve... Tu estás mesmo melhor, não estás?
- Claro!
- E aquele idiota, continua a chatear-te com mails?
Ele não é idiota, nem os mais dele alguma vez me chatearam,
mas não vale a pena explicar isso à Teresa. Não vale a pena explicar
às pessoas o que elas não querem perceber.
- Não. Assunto arrumado.
- Ainda bem. Mas olha que, quando ele voltar, ainda corres
perigo. Eu sei que ainda gostas dele.
- Eu também sei, mas já aprendi a viver com isso. Não te
preocupes.
- E sabes quando volta?
- Não faço ideia nenhuma, nem quero saber.
- Óptimo, era isso mesmo que eu queria ouvir. Não é verdade,
mas não faz mal.
De repente, dá-me um abraço com força e fica alguns segundos
assim, quieta, encostada a mim.
- Achas que também se treina o coração? - pergunto, com uma
voz estranha que não parece minha.
- Tudo se treina, minha querida. Tudo se treina, até o coração.
E entra no carro, acelera a fundo e desaparece na esquina.
Lembro-me da Teresa com dez anos a chegar ao colégio, depois de
ter faltado uma semana com um ar impassível, como se nada fosse.
Corriam pelos corredores os boatos mais mórbidos acerca da morte

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do pai dela: que se tinha atirado de um sexto andar, que se tinha
enforcado com uma gravata, que a mãe o tinha encontrado morto,
degolado. Mas só muito mais tarde soubemos a verdade. Tinha-se
suicidado com um tiro de pistola na cabeça à frente da Teresa. Foi ela
que me contou no décimo ano, com o mesmo à vontade com que me
estava a descrever as férias que passara com a mãe e o padrasto, em
Itália. Depois da morte do pai, o Vasco e a droga pareciam-lhe coisas
simples de enfrentar, ou então, pior do que isso, habituou-se a viver
em sofrimento e o Vasco foi só um meio para poder continuar a viver
dessa maneira. Mas não. Ela sempre gostou dele e provavelmente,
como quando se gosta a sério, talvez nunca deixe de gostar. O
Rambo é uma diversão pura, como ir ao cinema ou à Feira Popular, no
Verão, voar na roda gigante, empanturrar o desejo de farturas com
cheiro a canela e sabor a açúcar.
Tudo se treina e a verdade é que, nas últimas semanas, tenho
feito tudo para esquecer o Miguel. Para meu grande espanto, até
tenho conseguido.

Ela não me podia ter escrito aquilo. Simplesmente não podia.


Quem é que ela pensa que é? Só porque já sofreu, acha que sabe
tudo? Atrasado emocional! Sim, posso ser um atrasado emocional,
mas não chateio ninguém, nem cobro a ninguém o meu amor. Ela
sabia, sempre soube que a minha relação com ela era imprevisível.
Sempre lhe disse que, um dia, pegava nas minhas coisas e me ia
embora: sou um nómada afectivo, é a minha natureza. Quem não
quiser lidar com isso que se afaste. Dei-lhe tudo, muito mais do que a
qualquer outra mulher, amei-a e sempre a respeitei. Ela foi a pessoa
mais importante da minha vida, e aprendi tanto com ela que acho
que vou demorar alguns anos a digerir tudo. Mas por que é que ela
há-de querer estragar tudo com insultos e agressões? Por que é que
não aprendeu ainda a aceitar a vida de braços abertos e a perceber
que só se anda para a frente com mudanças e rupturas, mesmo que
isso doa e custe, e seja difícil? A vida é isto: uma mudança
permanente e inesperada. Crescer também passa por aceitar aquilo a
que os indianos chamam dukkha, a insatisfação perante a
impermanência na vida, e isto passa por aceitar tudo, na vida e na
morte, da vida e da morte. Mas não. A Inês, do alto da sua pretensa
sabedoria é insegura. Por isso, tem que classificar e ordenar tudo na
cabeça dela, e todos aqueles que não seguirem o mesmo caminho

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são desertores. Não posso nem quero cingir a minha vida a um só
modo de a viver. Ela sempre soube isso e o nosso amor nunca foi
posto em causa. Para quê agora estragar tudo?
Talvez já ande a viajar há tempo demais, mas não quero voltar
ao atelier do Frederico nem à vida que deixei; senão esta viagem não
serviu para nada, a não ser para adiar decisões que não quero tomar.
Talvez alugar uma casa pequena e procurar trabalho noutro atelier
mais pequeno, não sei ainda bem.
O Oriente fascina-me e cansa-me ao mesmo tempo. Sinto-me
bem aqui porque estou longe do mundo mas nas últimas semanas um
vazio ainda maior e mais pesado foi-me tomando os dias. Não sei
bem quando, nem exactamente com quê, mas o olhar deixou de se
prender nas coisas, como se tudo o que já vi me chegasse. Agora,
preciso de pisar outra vez uma terra cujo cheiro não estranhe, de
olhar para as pessoas e lhes reconhecer feições ocidentais, de comer
um bife do lombo com ovo a cavalo e saborear um pudim flã. Coisas
sem a mínima importância, às quais só agora dou valor, como poder
ir a uma caixa multibanco e levantar dinheiro, deitar-me numa cama
acabada de fazer, resgatar cheiros e objectos, poder tomar duche
todos os dias, ler os meus livros e ouvir os meus discos, sem ter que
os trocar com os outros viajantes. Estou cansado de ler em inglês, de
lavar as mesmas t-shirts vezes sem conta e de ouvir sempre os
mesmos CD's no meu walkman. Mas, ao mesmo tempo, acho que me
podia habituar a esta vida. O desprendimento traz-me uma paz que
não consigo alcançar quando me fixo. Por isso, não sei o que vou
fazer, embora no fundo saiba muito bem que tenho de voltar. Só que
agora tudo ficou mais difuso. A Inês se calhar arranjou alguém - e se
o fez, fez muito bem. Quem sou eu para a julgar, se fui eu que a
deixei? A Carolina deve ter crescido muito nestes meses. Duvido que
ainda se lembre de mim. De certeza que a Inês, com a típica fúria
feminina, fez desaparecer todos os meus sinais, fotografias ou
quaisquer objectos que a fizessem lembrar da minha frágil e remota
presença. Ou talvez não, talvez ainda me reconheça e se for ao
colégio vê-la como fiz antes de me vir embora, talvez ainda possa
sentir outra vez o calor da sua cara encostada à minha, o cheiro a
bebé, o toque suave dos caracóis enrolados nos meus dedos... os
miúdos têm este efeito devastador e quase perverso, amolecem-nos
o coração para sempre, mesmo quando não são nossos filhos.
Não volto a ter uma namorada com filhos, a não ser que tenha a

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certeza que vou viver alguns anos com ela. E, como a única certeza
que tenho na vida é que nunca poderei dar certezas de nada a
ninguém, é bom que aprenda esta lição e não me esqueça. Sei que é
uma das razões que dão tanta mágoa aos mails da Inês, leio-o nas
entrelinhas e acho que ela pode ter alguma razão, mas estou farto de
lhe pedir desculpa e de me justificar por ter feito aquilo que achava
que devia fazer. ,Mas, quando me apaixonei por ela e pela miúda ao
mesmo tempo, nem pensei no futuro. Não sabia, não queria, nem
podia pensar. Com 25 anos só se pensa em viver, usufruir de tudo e
viver até ao limite. O futuro é o tempo de um verbo que se aprendeu
na escola; o passado é sempre conjugado no pretérito perfeito, não
há imperativo nem condicional. A vida corre no presente, sem planos
nem projectos a longo prazo.
Irrita-me a conversa da idade que a Inês recorrentemente tem
nos mails, como se as pessoas não pudessem escolher se
envelhecem ou não. Quando a conheci, vi nela uma frescura de
miúda como se o tempo não lhe tivesse passado por cima, e foi uma
das coisas que mais me encantou nela. Mas, se calhar, era fachada,
pode não ter passado de um esforço para se pôr à minha altura, com
medo de me perder. Não sei o que é ter medo de perder alguém, as
pessoas nunca perdem as outras, podem é perder-se delas, como a
Inês e eu nos perdemos. Mas guardo-a para sempre como a melhor
coisa que me aconteceu. Quem me dera que ela soubesse fazer o
mesmo. Apetece-me voltar a vê-la, apertá-la outra vez nos braços,
sentir-lhe o hálito fresco e o cheiro inconfundível, deitá-la na cama e
amá-la com paciência e cuidado, como sempre fiz, devagar, e
depressa, e devagar outra vez, até que o corpo se liberte em
espasmos infinitos, quase celestiais.
Dormi com algumas mulheres durante estes meses. Primeiro
com a chata do Algarve; depois, com uma inglesa; depois, com duas
norueguesas, numa noite de loucos em Nova Deli; mais uma
mexicana que andava à procura do Dalai Lama, e ainda uma sul-
americana que era relações públicas do hotel onde estou, aqui em
Goa. Mas esses corpos, sempre apetecíveis até ao momento em que
as levava para a cama, tornavam-se inertes, quase inanimados,
depois de estar com elas, e um vazio estranho invadia-me a pele.
Talvez tenha estado demasiado tempo com uma mulher que amei e
me tenha habituado a um padrão de entendimento muito alto. Ou
então, aquilo que inevitavelmente se apodera de nós, e que alguns

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teimam em chamar amor, tenha feito de mim uma pessoa melhor e,
por isso mesmo, um amante melhor. Sempre gostei de comer gajas, e
quem não gosta é paneleiro, mas demorei algum tempo a perceber a
diferença abissal entre estar na cama com uma mulher que se ama
ou dormir com qualquer outra. Não tem a ver com prazer, mas com o
estar, ou o ser. Com a Inês, eu era eu mesmo, alguém que sempre
escondi de mim e dos outros e que a Inês soube como ninguém tocar.
Com as outras mulheres, sou apenas um homem, sinto-me mais um
tipo qualquer e quero que elas sejam mais um número a acrescentar
à minha lista. Prefiro não criar laços, nem fomentar confusões: entra
no jogo quem quer, e abandono-o sempre que me apetece.
Mas estou há demasiado tempo sozinho. Escolhi a solidão como
caminho, e um cansaço que desconheço vai-se apoderando aos
poucos de mim. Apetece-me voltar, e, por isso, um dia destes, ligo ao
Rodrigo e troco o meu bilhete. Talvez fique em casa dele por uns
tempos, até encontrar outra casa. Podia ficar com a Mariana, que
ficou com a minha: mas isso não, não quero voltar atrás, aos mesmos
cheiros e lugares. Não quero voltar atrás em nada, nem no meu amor
pela Inês. Tudo na vida tem o seu tempo, e o meu agora é outro: é
novo, é desconhecido, é estranho. Mas é o meu, o que eu quero e que
tenho que viver.

A miúda chega dez minutos antes do Filipe bater à porta, tem


uma cara redonda, muito simpática, fala com um tom de voz pausado
e a Carolina, que gosta logo dela, vem-me dizer à socapa: ó Mãe, ela
é muito mais simpática do que a Célia. Eu volto a pensar que se
calhar a Teresa tem razão: devia arranjar uma interna, assim já não
tinha que andar sempre a recorrer a baby-sitters. Mas a ideia de ter
uma pessoa estranha em casa vinte e quatro horas por dia faz-me
confusão. Explico-lhe o ritual do sono da Carolina - uma história com a
luz acesa, ou uma canção com a luz apagada, antes de adormecer, e
a Lena vai dizendo que sim com a cabeça, ouvindo-me com educada
paciência, como se nunca tivesse feito aquele trabalho na vida, ela
que é baby-sitter desde os 16 anos e está a acabar Economia.
Pouco depois, o Filipe toca à porta, e convido-o para subir porque
ele quer ver outra vez a Carolina, o que não acho nem bem nem mal.
Mas quando ela lhe pergunta pelas filhas, e ele lhe fala delas com o
olhar iluminado, fico logo arrependida de o ter deixado ver a miúda,
não vá ela começar a construir castelos na linda cabecinha loira

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povoada de caracóis.
Saímos rapidamente e o Filipe, com aquela boa educação que
não se vê mas que se sente, abre-me a porta do carro enquanto me
vai falando do chefe do restaurante onde vamos, com quem ele joga
golfe de quinze em quinze dias, quando não está com as miúdas. No
carro, o ambiente tranquilo é acentuado por uma pianada que não
conheço e sobre a qual levo logo uma ensaboadela: O quê? Tu não
conheces o Bill Evans? Parece impossível! Em meia dúzia de
quilómetros, fico a saber que o pianista americano foi o precursor do
Keith Jarrett e de outros génios do jazz; quando chego ao restaurante
e me sento à mesa, olho para o Filipe e acho-o mesmo giro no seu
estilo discreto e bem comportado de Super Pai.
Talvez a Teresa tenha razão, talvez ele me possa trazer algo de
novo, uma segurança qualquer que eu não conheço. Mesmo que
fiquemos só bons amigos, que diabo, nem todos os tipos que se
aproximam de mim têm que pertencer à categoria de pretensos-
candidatos-a-qualquer-coisa-do-tipo-namorados, como dizia o Duarte,
outro dia.
- A partir de agora, só vou ligar ao que tu me contas sobre esses
tipos quando me falares de um sobre o qual não digas: o pretenso, o
talvez futuro, o candidato a, um que está convencido que.
O Duarte tem razão. Tenho que acabar com estas parvoíces.
Escusava era de ter ido para a cama com o Kiko. Ele ligou-me e
queria ver-me. Eu andava a escapulir-me desde a noite em que
apanhei a bebedeira, mas ele foi ligando, insinuando-se, com o à
vontade que só se tem naquela idade, uma espécie de inconsciência
que dá segurança e legitimidade a tudo o que nos passa pela cabeça
fazer, e eu deixei-me ir. Quando me telefonou na terça-feira passada
a dizer que estava à porta, não resisti. Ficámos no sofá, horas e
horas, a conversar. Ele agarrou-me, e eu pensei: por que não? E como
na minha cabeça não ouvi nenhum grilo falante a dizer-me para não ir
e nesse dia não tinha falado com a Ana - se ela me tivesse ligado a
relembrar porque é que, segundo ela, o Kiko é um disparate ainda
maior que o Miguel, mas não ligou - acabei por ceder. Não sei se foi
bom ou mau. Pareceu-me bom, fisicamente, mas mau,
emocionalmente. Talvez o Kiko tenha sentido o mesmo, porque não
durou muito tempo, nem teve nada de arrebatador, mas acho que,
mesmo assim, o balanço foi positivo: pelo menos, voltei a sentir
algum peso em cima do meu corpo, e isso emprestou-me de alguma

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forma uma sensação de libertação. O sexo pode ser a melhor
sensação do mundo, ou a mais estranha: encher-nos ou esvaziar-nos,
tornar-nos em seres invencíveis ou totalmente vulneráveis. O
problema é quando se consegue juntar sexo e amor: o padrão torna-
se tão alto que é muito difícil, quase impossível lá voltar. Quando
acabou, e o Kiko se levantou da cama, tive vontade de chorar. Só me
lembrava do Miguel, deitado ali ao lado, das curvas do corpo dele e
das orelhas que cheiravam a alfazema, do seu olhar terno que se
perdia no meu, no depois do depois, onde havia tudo: paz, libertação,
beleza, amor, quase perfeição. O Kiko voltou com um sorriso enfiado,
passou-me a mão pela cara, deitou-se ao meu lado, e sussurrou:
- Estás farta de sofrer, não estás, querida?
E aquele querida comoveu-me, mas engoli a emoção e desactivei
o mecanismo das lágrimas, com um esforço de concentração notável.
Tudo se treina na vida, minha querida. Tudo se treina, até o
coração e ficámos ali, os dois, a tentar preencher o vazio inevitável
de dois corpos que ainda não cultivaram os laços da intimidade. - Não
podes ser tão densa, Inês. Pensa menos na vida. Vais ver que é muito
mais fácil viver.
No dia seguinte o Kiko ligou, mas pedi-lhe tempo, ainda não
percebi se quero ou não que ele entre na minha vida. O medo voltou
outra vez e instalou-se numa cadeira, aos pés da minha cama. Olha
para mim todas as noites, antes de me deixar adormecer, e diz, com
voz de mulher: não vais cometer os mesmo erros, pois não?
E lembro-me que li num sítio qualquer uma definição de
demência como a repetição dos mesmos erros à espera de resultados
diferentes, e enterro a cara na almofada. Mas o Senhor Medo, que
veste um fato azul escuro e é velho, careca, e tem voz de mulher,
chama-me parva, avestruz, burra, e diz-me para ter cuidado. Um dia
destes, tenho que mandá-lo mesmo embora. Mas por agora, é bom
que ande por ali a vaguear no meu quarto e no meu espírito, para não
levantar os pés do chão e desatar a voar como um pássaro, como o
Miguel fez com a vida dele.
O Filipe também tem medo. Diz que o medo é um bicho invisível
que se instala depois da separação, sempre indissociável de uma
sensação de falhanço por não se ter conseguido aguentar as coisas. E
eu pergunto-lhe quem é que consegue, e ele responde-me com um
sorriso triste, o que nos faz voltar às trivialidades e ao Sushi. O Kiko
tinha razão quando me dizia para não ser tão densa, e quando vamos

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pedir a segunda dose, o meu telemóvel toca e é o Kiko a perguntar
onde estou, e se pode vir ter comigo. Faço sinal ao Filipe para me
levantar da mesa e saio do restaurante. Isto é de uma falta de
educação indesculpável, penso eu, enquanto estou cá fora a dizer ao
Kiko que vim jantar com um amigo e que, hoje, vai ser impossível.
- Como queiras - responde, com secura.
- Desculpa ter ligado, não te volto a incomodar. - E desliga,
furioso. Regresso à mesa e desfaço-me em desculpas, mas o Filipe ri-
se, e comenta que é impossível que eu não tenha meia dúzia de tipos
a telefonarem-me para isto e aquilo, e, como não faz perguntas sobre
a minha vida, omito o Kiko, as duas noites com o Kiko, e o medo que
tenho de estar a deixar entrar outro Miguel na minha vida.
- O pior do medo é que, quando se instala, demora imenso tempo
a desaparecer outra vez - continua o Filipe.
- Acho que o pior é habituarmo-nos à tristeza. Eu fiquei muito
mais fechada, mais egoísta, tenho menos paciência para os
problemas dos outros. Há dias em que não me apetece ver nem
sequer falar com ninguém, a não ser com a Carolina, claro.
O Filipe conta como as filhas foram importantes na separação -
foi ela que saiu de casa - e como se apoiou nelas.
- Hoje, nem imagino o que é viver sem as ter quase todos os dias
por perto. Passei a encher a minha vida com elas, e o lado perverso
disto é que, cada vez que me interesso por uma mulher, acabo por
ter muito pouco tempo para ela, porque as miúdas estão sempre à
frente.
- E assim, estás protegido. As tuas filhas são uma espécie de
escudo.
- Claro. Mas quando te habituas a viver na concha, quem é que
te tira de lá?
- Nada. A não ser uma coisa.
- O quê?
- Um grande amor.
- Talvez. Mas essa visão é muito romântica para o meu gosto.
- Então, experimenta imaginar a tua vida todos os dias ao lado
de uma pessoa por quem não sintas mesmo amor - argumento,
ligeiramente inflamada. - Não há tolerância possível. Ou adoras viver
com uma pessoa ou rapidamente não a podes nem ver.
- Mas eu nem falo de viver com alguém. Isso, hoje em dia, para
mim, está fora de questão. Falo em sentir alguma coisa

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profundamente por alguém. Eu posso sentir atracção, entendimento,
tesão, vontade de estar com essa pessoa, mas isso é amor?
- Não. O amor é a soma de tudo isso, mas é ainda outra coisa
diferente, que está acima disso, acima de qualquer parâmetro ou
definição. Uma coisa qualquer que não sei o que é, mas quando sinto,
tenho a certeza que é aquilo mesmo.
- E já sentiste, não já?
- Claro!
- Com o teu marido?
- Não. Com o meu último namorado.
- Oh!...
O Filipe fica sem saber o que dizer. Não devia estar à espera de
uma resposta tão sincera. Mas saiu-me, não houve nada que a
evitasse. Nem eu queria.
- Mas viveste muito tempo com ele?
- Um ano... um bocadinho menos de um ano.
- E porque é que se separaram?
- Porque ele foi crescer.
O Filipe não responde. Devia estar à espera que lhe desse uma
explicação longa, repleta de pormenores que, provavelmente, não lhe
interessavam nada, mas não. Desta vez fui sucinta, cirúrgica, diria
mesmo brilhante. O Miguel foi crescer, é a grande resposta.
Já em casa, depois de uma despedida morna e quase
cerimoniosa do Filipe - ou era eu que estava meio desligada, e não o
pus à vontade, ou, então, o jantar não foi como ele estava à es pera e
quis-se ir embora -, e depois de ter pago à Leria, ligo para o Kiko, que
tem o telemóvel desligado. E agora? O que vai ser a minha vida? Será
que não consigo estar quieta?
Talvez consiga, no dia em que olhar para a cara do Miguel e
conseguir ler na minha cabeça, escrito a néon a acender e a apagar a
poderosa palavra: ACABOU.
Quando já estou de camisa de noite, pronta para me enfiar na
cama, alguém toca à campainha. Sobressaltada, pergunto pelo
intercomunicador quem é.
- Sou eu, o Filipe. Posso subir um bocadinho?
Claro que podes, Filipe. Se há alguém que me dá suficiente paz e
segurança para poder subir à minha casa, às duas da manhã, és tu.
- Já me ia deitar... mas vá lá, sobe.
Abro-lhe a porta devagar e entra quase a medo, olhando

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discretamente para as minhas pernas - uso sempre camisas de noite
curtas, o Miguel adorava e, além disso, detesto sentir coisas
enroladas às pernas quando estou a dormir - e senta-se na sala. Vou
ao quarto buscar um roupão e preparo dois Jamesons. O Filipe tira o
casaco e senta-se no sofá. Pega numa almofada e pede-me que me
sente ao lado dele. Depois, larga a almofada e agarra uma das
minhas mãos, e fica ali, muito quieto, a olhar para mim.
Devia dizer qualquer coisa, perguntar-lhe o que está a fazer, por
exemplo, porque é que me está a agarrar a mão, mas prefiro ficar
calada, a saborear a temperatura da mão dele por cima da minha. É
bom...
- Então? Já ias dormir, não era?
- Sim, tenho algum sono, mas não muito.
Quero que ele perceba que fez bem em voltar atrás. Quero que
ele perceba que me sinto bem ao pé dele.
- Gosto mesmo de estar contigo, sabias?
A mão dele aperta a minha com mais força, e o olhar adoça-se.
- Eu também. Por isso é que voltei.
- Fizeste bem.
- Ouve... eu sei que nem eu, nem tu, estamos preparados para o
que quer que seja, e que o que se passou nas nossas vidas deixou
algumas marcas e fechou algumas portas... mas eu gosto mesmo de
estar contigo... e acho que estou a sentir-me tão bem que é uma
estupidez não aproveitar isto... mesmo que eu não saiba o que isto é,
percebes?
Estás a ser sincero, ou já não vais para a cama com alguém há
muito tempo?
- Onde é que queres chegar?
- Quero chegar aqui, ao pé de ti, poder telefonar-te sempre que
me apetecer e estarmos juntos com frequência. Quero, de alguma
forma, trazer. qualquer coisa de novo à tua vida, porque já me estás a
trazer à minha... não sei bem o que é, mas sei que é bom e, por isso...
E agora? Deixo-me ir ou conto-lhe a verdade? O Filipe parece
adivinhar o que me passa pela cabeça, porque se debruça sobre mim
e dá-me um beijo suave, lento, delicioso. Mas eu tenho que lhe dizer
duas ou três coisas, senão isto não me vai correr bem. Por isso,
afasto-me um pouco para trás - não muito, para ele perceber que só
quero falar, que não o estou a rejeitar, e digo:
- Ouve... Eu sinto o mesmo... e tu já percebeste que gosto de

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estar contigo e, quanto mais estou, mais gosto, mas eu ainda estou
completamente apanhada pelo meu ex-namorado, e mesmo que me
envolva contigo, se ele entrar por aquela porta um dia destes, e
disser que quer voltar, tu eclipsas-te à velocidade da luz, percebes? E
não te quero fazer isso, acho que não é justo.
- Mas eu não me importo. Eu sei os riscos que corro, já sou
crescido. A sério, não me importo.
Bolas, já tinha saudades de alguém que me agarrasse assim.
Lisboa nunca tem luz a mais nem parece demasiado bela,
sempre que se sobrevoa depois de uma longa ausência. Há um calor
próprio em cada cidade, e Lisboa tem uma temperatura especial,
morna, doce, acolhedora. Sinto a pulsação a acelerar enquanto o
piloto, numa acrobacia turística, faz um arco sobre a cidade para
mostrar aos turistas as colinas - dizem que são sete, mas conto
sempre mais - que tanto encantaram Ulisses. Como estará a minha
Penélope? De cá de cima, vejo o prédio dela, e, de repente, é como se
ela estivesse aqui sentada, na cadeira número 7 B, de mão dada
comigo, a rir-se. Oiço-lhe a voz de miúda, e conto mentalmente os
dentes brancos e certos da boca. Fecho os olhos e sinto-lhe o cheiro
da pele. Bolas!, ainda não aterrei e já estou a pensar nela. Quando
chegar lá abaixo, como é que vai ser? Só disse ao Rodrigo que
chegava hoje. Espero que ele esteja no aeroporto à minha espera,
pedi-lhe para não dizer nada ao resto das pessoas, quero um regresso
calmo e tranquilo, em tudo diferente ao da minha partida,, por isso
também não disse à Inês.
Tenho tanto medo de lhe fazer ainda mais mal, agora que
regressei e ainda a desejo, mas não quero voltar a andar com ela, o
melhor é ela pensar que ainda estou em viagem. Ficamos os dois
mais protegidos. É isso mesmo. Olha que boa ideia. Se eu não disser
a ninguém próximo dela que voltei, como é que pode saber? Lisboa é
uma aldeia, mas, se não andar pelos sítios do costume, pode ser que
ninguém dê por mim. Só se me encontrar por acaso no cinema. Mas
tenho saudades dela. Tenho saudades do corpo dela, das pernas, da
boca, tenho saudades de a comer, bolas. Mesmo nestas últimas
semanas, em que o calor e o cansaço de andar há tanto tempo a
viajar me baixaram a libido, nunca deixei de pensar nela e, agora,
que estou a voltar, o desejo acordou outra vez. Mas, é melhor, não.
Não lhe posso fazer mal outra vez. Nunca quis magoá-la, e foi isto...
Só espero que ela tenha arranjado um namorado porreiro, que goste

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mesmo dela e lhe dê tudo o que eu não sei, não posso ou,
simplesmente, não quero dar. E se ela tiver mesmo arranjado
alguém? Não é difícil, ela tem tudo para ser a namorada ideal. Para
quem quer ter namorada, claro.
Tenho que procurar trabalho, estou a ficar sem dinheiro e não
me apetece ir outra vez para casa do meu pai. Agora, fico em casa do
Rodrigo e, depois, logo procuro um apartamento para alugar. Mas,
primeiro, tenho que arranjar trabalho num atelier qualquer. E não
quero ligar ao Frederico, senão ele diz à Inês que voltei. Já sei, ligo ao
pai do Pedro, que é engenheiro civil, pode ser que ele me arranje
alguma coisa. Qualquer coisa que me dê horários e disciplina, estou
farto de ser escravo da minha própria liberdade. Mesmo que seja a
ganhar pouco, estou-me nas tintas. Estou-me nas tintas para o
dinheiro, desde que dê para comprar livros e discos, para jantar fora e
ir para os copos, tanto me faz.
O Rodrigo está um bocado emocionado, há quase três meses que
não me vê, mas lá em casa já nos esquecemos todos de chorar - deve
ter sido quando éramos miúdos, e a minha mãe se foi embora - e por
isso abraça-me e dá-me pancadas desajeitadas nas costas, enquanto
diz:
- Então, meu? Afinal não te converteste ao budismo? Estás mais
magro, pá!
E eu também estou um bocado emocionado, mas engulo em
seco e desato a contar coisas da viagem, para distrair o coração. É
estranho: parecer que o tempo que estive fora me passou ao lado,
que ainda hoje de manhã estava aqui, a sair do táxi, com as mesmas
malas, depois de ter viajado com a cabeça encostada ao vidro, a
olhar para o reflexo esbatido dos candeeiros pela luz branca da
madrugada. Não houve salvas de canhão, nem lenços acenando aos
barcos, nem as costas da mão num movimento de vírgula a limpar as
lágrimas. Afinal, as despedidas acabam por ser sempre mais
silenciosas: um táxi a atravessar Lisboa, numa madrugada quase fria,
luzes amarelas dos candeeiros públicos, sacos de plástico
empurrados pelo vento e uma ausência de pessoas que serve de
atenuante a qualquer crime de fuga. Naquele dia, não houve
testemunhas. Sou muito melhor a apanhar aviões do que a levantar o
braço à entrada do aeroporto para me despedir. Ou talvez finja
melhor.
Quando cheguei a Nova Deli, arrependi-me de não ter dito à Inês

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para ir ao aeroporto, mas não podia vê-la. Se a visse, seria tudo muito
mais difícil. Mas, com o tempo, fiquei mais triste com a minha atitude.
A verdade é que a distância parece um bisturi. Recorta o essencial,
que a proximidade costuma vulgarizar. E a Inês foi essencial na minha
vida, é ainda essencial, mesmo que não queira ou não possa voltar a
andar com ela. É fundamental que um dia talvez daqui a algumas
semanas, quando voltar a sentir que este é o meu país, e que é aqui
que pertenço, fale com ela e lhe explique que a cobardia tem mais
poder que a sinceridade, que o medo, nos homens, é um cancro
porque só se sente quando já dói, e só dói quando os estragos estão
feitos e são irreversíveis.
Mas agora quero parar, que é uma coisa que nunca aprendi a
fazer. Deve ser por isso que não acerto o passo com o pulso, nem o
tempo com o modo.
O Rodrigo está nervoso, preocupado e mostra-se agitado com o
meu regresso. Diz que o meu pai se entristeceu com a minha
ausência, que viu a Inês ao longe num centro comercial com a
Carolina e um tipo mais velho, mas como esta parte da conversa não
me interessa nada, pergunto como é que está o grupo todo, quando é
que o coração de manteiga se casa, e se ele tem atacado muito na
noite com o Pedro. A caminho de casa dele, peço para fazer um
pequeno desvio e passamos à porta de casa da Inês. É domingo, são
duas da tarde e não vejo a carrinha na rua. Não deve estar em casa,
embora as janelas estejam abertas. Apetece-me mesmo vê-la, mas
torço os dedos para conter a impaciência e o Rodrigo ri-se e aponta
para um prédio mais alto, do outro lado da rua, um pouco mais à
frente, duas janelas onde se diz: Aluga-se. Peço-lhe para parar, e
escrevo na minha agenda electrónica o número de telefone. Se for
uma casa pequena e sossegada, alugo-a aqui mesmo.
- Foste-te embora sem te despedires e agora vais alugar um
andar mesmo ao pé de casa dela? Ou ainda gostas dela, ou então és
completamente doido.
- Sou completamente doido.
- Então, por que é que não ligas já?
- Já te esqueceste que, quando uma pessoa vai viajar para sítios
como a índia e o Nepal, não leva telemóvel?
- Então liga do meu.
Não queria que isto fosse tão rápido mas, como gosto de ser
organizado, ligo mesmo e uma senhora com uma voz humilde

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atende-me, diz que posso ver a casa ainda hoje e, quando lhe digo
que estou no bairro, responde.
- Venha, venha. Bata na porteira, que eu vou lá e mostro-lhe o
apartamento. Mas, olhe que é pequeno...
- Não faz mal. Está arranjado, não está?
- Pronto a habitar.
- Então, estou aí daqui a meia hora.
E desligo. O Rodrigo pergunta por que é que não vamos já, mas
preciso de entrar num café tipicamente português - daqueles que
antes da viagem detestava e que, agora, me resgatam o sabor de
Lisboa, com cadeiras de fórmica, balcões transparentes atulhados de
bolos com creme e empregados com ar fora de moda - sentar-me,
fumar um cigarro e beber uma bica a escaldar.
- Então, conta lá? Valeu a pena?
- Claro. Mas é mesmo outro mundo. Foi óptimo, vi imensas coisas
e conheci pessoas com piada, diferentes desta gente cá.
- E conheceste gajas giras? Comeste algumas gajas boas?
- Claro.
- Cabrão!
- Pois sou.
E ficamos os dois calados, a olhar para o fumo dos cigarros que
se confunde com o que sai das chávenas de café. Nunca nos
habituámos a conversar de coisas sérias, da mesmo forma que nos
esquecemos de chorar, quando éramos miúdos. Mas o Rodrigo é feito
de outra massa, pensa menos nas coisas do que eu e por isso é um
tipo muito mais feliz e muito mais saudável. Nunca percebeu porque
é que acabei com a Inês.
- Se tens uma namorada podre de boa que te adora, de quem
gostas e com quem te dás tão bem em tudo, porque é que acabaste?
- perguntou-me, atónito, quando lhe contei.
- Não sei - respondi, na altura. E agora, três meses depois,
continuo sem saber. Mas é que não sei mesmo.
- Sabes o que é que eu acho? - começa o Rodrigo, depois de
terminar o café. Vem aí uma teoria qualquer que não me apetece
ouvir, mas ainda agora cheguei, por isso tenho que mostrar alguma
boa vontade. - Eu acho que esta viagem não te serviu para nada.
- Porquê?
- Porque te foste embora à procura de qualquer coisa, e voltaste
com as mãos a abanar.

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- Pode ser.
- E isso não te chateia?
- Nada. Porquê?
- Tá bem, tu é que sabes. O importante é que voltaste, estás
porreiro e não entraste para nenhuma seita budista maluca. - Os
budistas não fodem, meu. Achas que eu aguentava uma merda
dessas? Além disso sempre fui ateu, nunca tive a menor propensão
para ter fé no que quer que fosse. Achas que era aos vinte e cinco
que me dava uma pancada dessas?
- Sei lá. A distância pode fazer muita merda à cabeça de um
gajo.
Não lhe vou responder que nunca me fui embora, que quando se
viaja, não se deixa o lugar de partida. Eu pensava que sim, mas
aprendi que não, ao menos isso eu aprendi.
- E agora? O que é que vais fazer?
- Agora vou ver a casa.
- Está bem, não me referia a isso. Referia-me à tua vida.
- Vou arranjar trabalho, o que é que queres que faça?
Eu sei que me ia perguntar pela Inês, mas olhei para ele de tal
forma que decidiu ficar calado, e ainda bem.
- Entrem, se faz favor - diz a porteira do prédio, abrindo a porta
do apartamento. Um hall pequeno, quadrado, uma sala pequena,
quadrada, um quarto ainda mais pequeno, também quadrado, uma
casa de banho pequena, arranjada de novo com pastilha azul clara,
ainda e também quadrada, e uma cozinha espaçosa e com boa luz. A
sala tem duas janelas corridas até ao chão e dá para uma varanda
pequena e simpática. O quarto também e afinal tem a mesma área.
Só me parece mais pequeno porque uma das paredes é ligeiramente
em curva. Gosto da casa, a simetria traz-me uma vaga sensação de
ordem, como se fosse disso que eu agora precisasse. E, se calhar,
preciso mesmo. Não posso pôr cá muita coisa, o que é óptimo, porque
trago o que tenho de casa do meu pai e, assim, não gasto dinheiro.
- Quanto é a renda?
- É noventa e cinco mil escudos. Com um mês de caução.
- Então já está. Fico com a casa.
A porteira nem acredita. Deve ter posto o anúncio há pouco
tempo, não estava à espera de alugar o apartamento tão depressa.
- Mas o senhor tem a certeza?
- Tenho. E quem é o senhorio?

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- É uma senhora que foi viver para o estrangeiro. Mas tem cá um
advogado que é procurador, e o senhor trata tudo com ele.
- Está bem. Então, dê-me o número de telefone do advogado e
não mostre a casa a mais ninguém, eu fico com ela.
A porteira sai para ir a casa dela buscar o telefone do advogado,
e o Rodrigo olha para mim como se me fosse enfiar dentro de uma
camisa de forças.
- Tu és mesmo doido.
- Porquê? Porque aluguei uma casa em cinco minutos?
- Sim, ainda agora chegaste. Podias ver outras.
- Ouve, a renda está barata, a casa está impecável e o sítio é
óptimo. Não me queres lá em casa a dormir na sala, e a ver as gajas
que tu comes a passarem do quarto para a casa de banho à minha
frente, pois não? É que eu nem me importo. Para elas é que pode ser
chato...
- Tens razão, isto é capaz de ser uma boa casa para ti.
E é mesmo. Está nova, está livre, está limpa e vai-me dar a
sensação de ter uma casa. E é muito melhor que o meu apartamento
anterior, onde pagava mais dez contos.
- E posso entrar, quando?
- Assim que tiver o contrato assinado. Aqui tem o número do
senhor doutor - diz a porteira, estendendo-me um papel onde
números enormes se encavalitam - se quiser ficar mais um bocadinho
a ver a casa...
Vou à cozinha que já tem esquentador, fogão e frigorífico.
Óptimo. Vejo as tomadas na sala e no quarto, verifico o contador, o
estado das janelas, se há rachas nas paredes ou no tecto e um quarto
de hora depois, saímos. Assim é que eu gosto. Mal cheguei e já tenho
casa. Todos os malandros têm sorte, como costumava dizer a Inês.
- E agora?
- Bem, agora vamos ver o pai e a Lina, não é?
- Lá terá que ser - responde o Rodrigo, que é como eu, tem
pouca paciência para reencontros familiares.
Quem disse que a vida é um eterno regresso a casa? À medida
que a cidade se vai desenhando com familiaridade perante os meus
olhos, vou-me sentindo mais perto de qualquer coisa, mas ainda não
sei se é ou não de mim. Dá trabalho viver. Dá mesmo muito trabalho.
- Então, mas afinal tu andas com ele, ou não? - pergunta a Ana, a
dogmática, que quer saber sempre tudo preto no branco.

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- Vai andando - responde o Duarte, entre duas garfadas.
Juntámo-nos todos em casa da Ana, que ainda tem uma barriga
pequena, mas já está uma grávida completa, pele embaciada, olhar
ausente, mãos postas no colo e andar à Duffy Duck.
- Então, e o Truta?
- Isso é que ainda não sei como resolver.
- Não resolvas - atalha o Duarte, para quem tudo na vida é afinal
bastante simples.
- Isto de ires para a cama com todos os tipos que se metem
contigo tem que acabar - acrescenta a Ana, fazendo cara de
investigadora da Gestapo.
- Isso não é verdade. Há anos que me meto com ela, e nunca
levei nada - corta o Duarte, e desatamos todos a rir.
O Vasco está com boa cara, e a Teresa e ele parecem tão bem
que, por momentos, me esqueço do caso do Rambo e, quando me
lembro, fico um bocadinho atrapalhada. É estranho estar na mesma
sala com eles e ser cúmplice da infidelidade dela. Não tem mal
nenhum, mas não deixa de ser uma sensação esquisita. Ao menos, a
Ana e o Frederico não têm de certeza esse tipo de problemas. O
Frederico é fiel como um cão e a Ana mais firme que uma rocha.
Mesmo que lhe aparecesse um príncipe italiano à frente e a
convidasse para jantar, acho que ela recusava delicadamente. Já eu,
pensava duas vezes....
- Podias tê-lo trazido - diz o Frederico, sempre anfitrião.
- Qual??? O Filipe ou o Truta? - pergunta o Duarte, a fazer-se de
parvo.
- O Filipe, claro. Não queremos cá versões de Miguel em segunda
categoria.
Isto é uma chatice. Se um dia voltar a andar com o Miguel, como
é que os vou convencer que ele, afinal, é um tipo óptimo? Chorei
tanto e fiz tantas vezes o número da vítima que eles, agora não
podem nem ouvir falar dele.
- Ainda é cedo. Só passaram três semanas.
- E então? Eu e o Frederico ao fim de três semanas já tínhamos
ido a casa dos pais dele e dos meus.
- Mas isso foi diferente. Vocês perceberam logo que tinham
acertado. Vocês encontraram-se mesmo. O Filipe e eu ainda andamos
aos encontrões, percebes a diferença?
- Mas, se não gostas dele, porque é que andas com ele?

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- Deixa-a em paz, Ana - corta a Teresa, que tem pouca paciência
para estas conversas circulares. - Ela pode fazer o que quer, não
pode? Aliás, tudo o que seja para esquecer o inominável neste
momento é legítimo.
Pois é. O pior é que não resulta. Onde andará o meu nómada
afectivo? Será que já saiu de Goa? Há mais de quinze dias que não
manda nenhum mail, nem telefona. Será que já voltou? Não, isso não
pode ser, senão tinha ligado de certeza.
- Além disso, o Filipe parece-me um tipo óptimo. Bem educado,
inteligente, responsável, mais velho... enfim, alguém com algum tino,
para variar.
- Mas gostas dele? - lá vem a Ana, outra vez.
- Não sei. Acho que, no princípio, nunca se sabe bem. Gosto de
estar com ele, e quanto mais estou, mais gosto.
- E o outro?
Começo a achar que a Ana tirou a noite para me chatear.
- Sei lá do outro. Há quinze dias estava em Goa, agora não faço
ideia.
- Mas, se ele voltar, não vais cair outra vez na esparrela, pois
não?
O futuro a Deus pertence. Mas claro que vou, Ana. Para mim a
história não acabou, ou será que não percebes isso? Toda a gente
percebe, até o Filipe, só tu é que és feita de ferro e não apanhas as
subtilezas do coração.
- Claro que não. Tudo tem um fim, e o sofrimento também.
- Bem, espero que estejas mesmo tão convencida como pareces.
Não estou, mas também não me apetece ouvi-la, e além disso
ando um bocado farta de discutir a minha vida emocional em espírito
de terapia de grupo. Faço sinal ao Duarte, e meia hora depois, vimo-
nos embora. Adoro os meus amigos mas, às vezes, quando estamos
todos juntos, sufocam-me um bocado. E depois a figura do Vasco para
ali de um lado para o outro, como se fosse uma sombra, sem abrir a
boca, desligado de tudo, faz-me confusão. Por que é que a Teresa não
se separa? No fundo, sei porquê. Porque o Rambo não significa nada,
é um mero brinquedo nas mãos dela e um dia destes ela despacha-o
à velocidade da luz. Porque gosta do Vasco, ou daquilo que o Vasco já
foi, porque a droga é esta merda, leva as pessoas do mundo mesmo
quando ainda estão vivas. Porque acha que é assim que deve ser e
nós, as mulheres, devemos ter isto no ADN, a noção do que deve ser

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e do que está certo. E o mais engraçado é que nem sequer é porque
queremos ser assim, às vezes, não conseguimos ser de outra
maneira.
Quando chego a casa e pago o babysitting à Leria, liga-me o
Filipe. Queria passar por cá a dar-me um beijinho, porque as miúdas
foram para a mãe, mas hoje apetece-me estar sozinha. O Filipe fica
com pena mas disfarça, começa logo a dizer que, de qualquer
maneira, ia ter um dia muito complicado, amanhã, e que tinha que se
levantar cedíssimo. Por isso, fico com menos remorsos quando
desligo e lhe desejo uma óptima noite. O que é que eu ando a fazer à
minha vida? E por que é que finjo que ando com ele, que está tudo
bem, se, no fundo, sei melhor que ninguém que isto não tem a ver
com amor? Que o amor é outra coisa, que não se explica, não se
racionaliza, nem se justifica? Será que nunca vou deixar de amar o
Miguel? Será que isto não passa? Se passa sempre e a toda a gente,
quanto tempo vai demorar, até que eu sinta que a palavra “acabou”
faz mesmo sentido? Tenho que ver outra vez o Miguel, quando ele
voltar. Tenho que o ver a olhar para mim. Talvez volte a sentir a paz
que nunca mais recuperei, talvez ele me consiga explicar o que
aconteceu e talvez, quem sabe, até consiga perceber e aceitar a
explicação que ele me der, e então, e só então, conseguirei libertar-
me desta tristeza impotente e resgatar o meu sossego. E já agora, o
meu coração.
A Carolina acorda-me com beijinhos e abraços. Esta manhã foi
ela que se levantou primeiro, e, nessas manhãs abençoadas, sou
acordada pelo cheiro da sua pele fresca e pela voz de menina
mimada. Abro os olhos, e vejo as mãos pequenas a rodearem-me a
cara, enquanto chama baixinho:
- Mãe... mãe...
- O que é, querida?
- Hoje, sonhei com o Miguel, mãe. Sonhei que ele vinha num
avião muito, muito, muito grande - explica, abrindo os braços para
demonstrar o que quer dizer.
Foi só um sonho, querida, o Miguel também aparece às vezes
nos meus sonhos, mas agora tento não me lembrar dele para a vida
poder continuar, percebes ?
- E, no sonho, falaste com ele?
- Falei, mãe, e ele disse que gostava muito de mim. - E gosta,
querida. Gosta muito de ti.

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Se ao menos gostar servisse para alguma coisa... Mas o Miguel é
assim, pode gostar muito de mim e da Carolina, que nunca há-de
mudar nada da vida dele por nossa causa.
Visto-a à pressa, depois de lhe ter dado a sacramental pratada
de corn flakes e saímos as duas, atrasadas como sempre. A Carolina
demora algum tempo a entrar para o carro, parece que está a fazer
de propósito para nos atrasarmos ainda mais, e dou-lhe um grito para
se despachar.
- Desculpe, mãe. É que vi uma pessoa ali - e aponta para o fim
da rua - que parecia o Miguel.
Mas este inferno nunca mais acaba? Esta miúda nunca mais
deixa de ver a imagem do Miguel na televisão, nas revistas, em todo
o lado? Bolas, ainda está pior do que eu.
Mesmo assim, apesar de achar que estou a fazer um disparate,
ligo para o telemóvel dele. Talvez ele já tenha deixado a índia e, se
veio para a Europa, então já tem rede e posso apanhá-lo. Chama,
mas não atende. Onde estará agora o meu risquinhos, o meu lápis
número zero? Só de imaginar que ele já pode andar por aí, o coração
dispara em flecha, como se estivesse a correr o último quilómetro da
maratona. Que chatice, não tenho o menor controlo nisto. Pouco
tempo depois, quando estou quase a chegar à escola, liga o Truta.
Hoje não é um dos meus dias.
- Estou... Kiko... Então?
- Olá, Inês... Está tudo bem?
No dia em que estiver tudo bem, pego na Carolina e vou três
semanas para as Caraíbas, mas, como diria o grande chefe
Abraracourcix, amanhã não será a véspera desse dia.
- Mais ou menos. E tu?
- Também... mais ou menos... ouve... eu estava a pensar se... se,
por acaso tinhas tempo para almoçar comigo...
Não posso adiar mais isto. Ando a fugir dele há semanas, tenho
que despachar este assunto.
- Claro que tenho. Queres ir ter à editora, à uma?
- Preferia outro sítio...
Esqueci-me que, na editora, eu sou a directora e ele é um
candidato a autor.
- Está bem. Então, escolhe.
- Não sei...
Está atrapalhado. Coitado, vou ajudá-lo.

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- Então, passo pela Faculdade à uma e um quarto e vamos a um
sítio qualquer, lá ao pé, está bem?
- Óptimo - responde o Kiko, já com outro ânimo. Deve ter
adorado a ideia de eu o ir buscar à Faculdade, e eu também acho
piada. Há anos que não vou a nenhuma faculdade, deve ser bom
voltar a ouvir o burburinho universitário. Bons tempos em que a vida
vinha toda nos livros. Agora, por mais que me esforce, encontro muito
poucas respostas.
A Teresa liga antes do meio-dia, a contar que despachou o Van
Damme da administração.
- Porquê?
- Nem sei bem. Comecei-me a sentir mal com isto e como de
qualquer maneira não tinha importância nenhuma, achei que andava
a perder o meu tempo.
- Fizeste bem. E como é que está o Vasco?
- Muito calmo. Parece-me que, desta, é que se limpou mesmo.
- Deus te oiça.
- Deus te oiça a ti a dizer isso. Bolas, já há muito tempo que
mereço uma vida decente.
- És tu e eu.
- Mas tu estás no bom caminho. Como é que vai isso com o
Filipe?
- Mais ou menos. Vou agora almoçar com o Truta.
- Ouve lá, tu estás esquizofrénica, ou quê? Eu pergunto-te pelo
Filipe e tu respondes-me com o Truta?
- É que tenho que falar com ele, nunca mais lhe disse nada
- Isso é porque não tens nada para lhe dizer.
Ela tem razão. Como, aliás, quase sempre.
- Pois não.
- O que é que te deu para te meteres com esse miúdo?
- Não sei. Acho que foi uma espécie de vingança. Olhei para ele,
achei que era mais alto, mais novo e mais giro que o Miguel, enfim,
uma estupidez pegada. E o pior é que ele é um amor. Podia ser um
filho da mãe e é uma óptima pessoa.
- Óptimas, somos nós, Inês. Lá estás tu a achar que toda a gente
é boa! Porque é que ele não havia de te tratar bem? Não tem um
manuscrito na tua editora, e não quer ser publicado por ti? Claro que
nunca se ia portar mal, só se fosse acéfalo, não achas?
- Vês sempre tudo por esse lado, bolas! Não achas possível que

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as pessoas se possam dar umas com as outras, sem outros interesses
por detrás?
- Não. Comemo-nos todos uns aos outros e chamamos a isso
amor, e quando já não nos podemos comer uns aos outros,
chamamos a isso ódio, não é o que estás sempre a dizer? Ouve, eu
não digo que o Kiko não tenha um certo fascínio por ti, mas ninguém
sabe, nem mesmo ele, até que ponto isso não é influenciado pelo
facto de tudo o que, eventualmente, lhe podes proporcionar.
- Então, por essa ordem de ideias, porque é que andaste com o
Rambo?
- Porque ele me dava sexo e eu lhe dava protecção, aqui, no
banco. Não te parece óbvio?
- Parece. Mas com o Kiko é diferente.
- Porquê? Só porque o rapaz estuda Medicina, em vez de artes
marciais?
Ela tem razão, não é nada diferente. Eu é que tenho a mania de
romancear tudo.
- Talvez tenhas razão.
- Então, vai lá almoçar com o Truta, e vê se tratas bem o Filipe,
que isso é que é uma coisa boa na vida.
- Boa era se estivesse apaixonada por ele.
- Tem calma. As paixões não levam a nada. Mais vale uma
relação duradoura que te dê alguma estabilidade e, quem sabe, o
amor não vem depois?
- Pareces uma actriz de uma telenovela mexicana.
- E a minha vida, é o quê? Beijinhos, tenho que ir trabalhar.
O Kiko está à minha espera na esquina, de golas levantadas e o
cabelo despenteado. Bolas, este miúdo é mesmo giro, era quase
impossível não lhe ter achado graça. Entra no carro com um ar sério e
depois de três ou quatro vira à esquerda e agora à direita, vamos
parar a uma tasca com dez mesas e uma empregada de avental que
grita os pedidos para a cozinha, enquanto passa as mãos pelo cabelo
oleoso, que se arruma num carrapito indescritível. O prato do dia é
bacalhau à Braz, e sentamo-nos a um canto, mais ou menos
sufocados pelo cheiro a fritos. O Kiko está de orelha murcha porque
tem imenso que estudar e não lhe apetece, e também porque não
percebe bem o que está a acontecer entre nós. Isso não diz, mas eu
percebo ou, pelo menos, sinto.
A pouco e pouco, vamos chegando ao assunto que ele quer

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abordar, mas, como é miúdo e orgulhoso, não quer dar o braço a
torcer.
Não estou habituado a esperar por nada, nem por ninguém-
comenta, com o olhar fixo, a ver se me intimida.
Claro que não, Kiko. Com essa cara e esse corpo deves sacar as
miúdas todas que queres, sem teres que pensar muito no assunto e,
por isso, quando te põem de molho, estranhas, não é, meu menino
mimado?
- Tudo se treina, Kiko. Tudo se treina.
- Mas por que é que falas comigo com ar de professora? Achas
que só porque tenho 22 anos sou um atrasado mental? Agora dás-me
lições de vida, é? Isto não é um filme da TVI!
Este miúdo tem de facto bastante graça. Mas, ele está certo. Vou
mudar de registo e ser normal. Afinal, ele merece.
- Desculpa. É que não sei muito bem por onde começar, mas
acho que o que se passou entre nós não nos leva a nada, e....
- E quem é que disse que eu queria ir a algum lado?
- Não é isso. Nós sabemos muito pouco um do outro, e eu nunca
te contei, mas, antes de ti, tive um namorado da tua idade e...
- ficaste traumatizada? Ou achaste que nunca mais querias outra
coisa? - O tom sarcástico não deixa dúvidas. Está a ver se me irrita.
- Ouve, nem uma coisa nem outra.
- Pois eu acho que foram as duas. Ele deixou-te, não foi? E,
agora, queres um tipo mais velho, mais sólido, que te dê uma vida
calma, a ilusão de uma vida normal, não é?
Este miúdo é mesmo bom. A ilusão de uma vida normal. Sim,
senhor, muito bem apanhado. Mas, se calhar, é mesmo isso que
eu quero, a ilusão de uma vida normal.
- Exactamente.
- Então, de facto, eu não sou a pessoa indicada. Posso-te dar
imensas coisas, e até nem me importava, mas a ilusão de uma vida
normal, não te vou dar de certeza.
Está furioso. Devia estar à espera que eu discutisse um
bocadinho mais, mas não me apetece. Vou abrir o jogo duma vez por
todas, pode ser que seja recompensada pela minha sinceridade.
- Ouve... Quando o Miguel se foi embora, fiquei muito triste e
percebi que, mesmo que houvesse entre nós uma coisa muito
especial, ele queria coisas diferentes, não estávamos no mesmo
estágio de vida, percebes? Por mais que eu tente convencer-me do

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contrário, tudo o que eu quero hoje em dia é uma vida calma e
tranquila, com alguém ao meu lado, someone to watch over me,
sabes do que é que estou a falar?
- Não sei, porque não é isso que quero. Mas também gosto
imenso do Gershwin, se é isso que me estás a perguntar. Espertalhão.
Sabia que não me ias falhar esta. Gosto de ti, miúdo. Pego-lhe na
mão, com doçura e cuidado.
- Eu gostei de ti, assim que te vi. Gostei da tua voz, da forma
como dizes Inês. És especial, e tenho a certeza que vais conseguir
tudo o que queres, e, por isso mesmo, preferi afastar-me antes que...
- Tens medo. Compra um cão. Isso mesmo, compra um cão.
Arranja um namorado mais velho e compra um cão. Era o quadro
perfeito, a ilusão de uma vida normal, não era? - outra vez o tom
sarcástico. Não tenho jeito nenhum para este tipo de conversas,
corre-me sempre tudo ao contrário.
- Já arranjei.
- O quê, o cão?
- Não. O namorado.
- Puta.
- O quê?
- Nada. Podias ter-me dito.
- Estou a dizer agora.
- Então, ficamos assim. Boa sorte. Não te volto a chatear.
Levanta-se, tira do bolso dos jeans uma nota de mil e deixa-a em
cima da mesa.
- Isto é para pagar o meu almoço.
E sai disparado. Sim senhora, menina Inês, quem te ensinou a
ser sempre sincera com o próximo?
- O que se passa?
O Filipe prima pela discrição, mas a minha cara não engana
ninguém. Estou completamente a leste.
- Nada, estou só cansada e com trabalho a mais na editora. - E
não anda por aí nenhum fantasma a sair do armário? - Não. Só que,
hoje, chateei-me com um amigo meu, e fiquei irritada.
- Deixa lá. Se for mesmo teu amigo, isso passa. Amigos não se
julgam, mesmo que se zanguem, não é?
É, é, Filipe. Não queres ser antes meu amigo, em vez de
andarmos aqui a fingir que temos uma coisa qualquer parecida com
uma relação?

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- Pois não. Mas ele não era meu amigo, eu é que era amiga dele.
Lanço-lhe o isco, mas o Filipe não morde. Decide ignorar o que
eu disse e enceta uma conversação longa e animada sobre as
próximas férias que está a planear com as filhas. Observo-o
atentamente. Ele não é o meu tipo de homem. O que é que estou
aqui a fazer? Será que o medo de ficar sozinha me está a paralisar, de
tal forma que aceito uma relação que sei que não tem amor, só pelo
pânico da solidão? Ou será que estou com ele porque controlo o que
sinto e por isso sei que, assim, estou defendida e não me vou
magoar? E se eu pusesse a mão na consciência e ouvisse o meu
coração? Não, isso era muito frustrante: podia correr o risco de ouvir
batidas sincopadas, a dizer Mi-guel-Mi-guel-Miguel... que seca. E a
sinceridade, às vezes, magoa tanto as pessoas, que o melhor é ficar
calada, e ver o que é que isto dá.
- Hoje, não estás cá. O melhor é ir andando - diz o Filipe,
fazendo-me uma festa na cabeça, como se eu fosse uma das filhas
dele. Que bom, sabe mesmo bem...
- Desculpa.
- Não faz mal. Também tenho dias assim, mas não sou tão
sincero como tu, e disfarço. Mas fazes bem em não disfarçar. Se eu
fosse mesmo sincera, não ias gostar, mas deixa lá. Há coisas mais
importantes que a sinceridade.
- Mesmo que quisesse, não conseguia.
- Ainda bem. Gosto de ti assim.
- Mas achas que gostas mesmo de mim? Quer dizer, o suficiente
para andarmos juntos?
- Não sei. Nem tu. Por isso é que estamos no mesmo barco, não
é? - e abraça-me com cuidado -, mas gosto muito de estar contigo e
isso, agora, chega-me. Se também te chegar, então está tudo bem,
não está?
O Kiko tinha razão. Isto é mesmo a ilusão de uma vida normal.
- E se o fantasma voltar a aparecer? - pergunto-lhe, em tom de
quase desafio.
- Logo se vê.
- Não sei porquê, mas acho que ele deve andar por aí.
- Sabes, sabes. Tu queres que ele apareça.
- Quero. Que estúpida, estou a tentar enganar quem?
- Mas, enquanto ele não aparecer, vamos andando, não é?
Enquanto houver estrada prá andar a gente vai continuar, a gente

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não vai parar...
Jorge Palma, que bom. O Miguel ofereceu-me o disco, e eu
ofereci um ao Filipe. Daí a cantoria agora. Está a mostrar que
aprendeu a lição.
- Tens razão. Enquanto houver estrada prá andar, está tudo bem.
- Então, até amanhã, minha confusa da Silva. Vou desaparecer
da tua vida - remata, a sorrir, com cara de miúdo.
- Vocês são todos uns Houdinis.
- Eu gosto é da parte das correntes. Malandro. Já me está a
excitar.
- Vá, vai-te lá embora, senão isto hoje ainda acaba mal.
- Porquê? Por causa das correntes?
Ainda hesito em pedir-lhe que fique, antevejo uma óptima noite
de sexo, mas, e depois? Sexo não é tudo. Bem, quando há amor, é
quase tudo, mas quando não há, nem é assim tanto. É bom, mas
dispensável. Prefiro adiar, para um dia em que esteja menos aérea.
- Amanhã falamos.
E despedimo-nos com um beijo óptimo, daqueles que dá vontade
de gravar na memória e saborear de vez em quando. Vou-me deitar,
mas não consigo adormecer. Não sei porquê, mas sinto-me
sobressaltada, como se me fosse acontecer alguma coisa que não
faço a mínima ideia do que é, mas que é de certeza importante. A
minha intuição não me deixa descansada. Será que o Miguel está a
voltar? Às vezes, sinto-me tão ligada a ele que é como se o visse a
andar, a comer, a adormecer, a ler, tipo espelho da madrasta da
Branca de Neve. É um amor visceral, que vem mesmo cá do fundo.
Há muito tempo que passou para debaixo da pele, já não tem nada
de cutâneo. Ou, então, é uma obsessão estúpida e, como sou teimosa
e obstinada, resolvi agarrar-me a isto, para não ter que enfrentar o
que é a realidade sem o amor que tenho por ele. Habituei-me viver
assim e fiquei fechada na minha própria prisão. Cada escravo carrega
a chave da sua própria liberdade. Será que é mesmo assim? Ou há
existências estupidamente condenadas a sofrer? Não pode ser, tenho
que ser dona da minha própria vida, e, se não controlo o que sinto,
meto o coração no congelador, arrumo os assuntos amorosos por uns
tempos e dou paz e sossego à minha vida. Mas se o Miguel voltasse...
ah, se ele voltasse! Enchia a casa de flores, enchia-me de luz e de
força, enchia o peito de ar e a cabeça de ideias e projectos. Se o
Miguel voltasse, voltava a encher a minha vida, mesmo que fosse só

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por uma semana, uns dias, uma noite apenas... se o Miguel voltasse,
sentia-me outra vez viva, e isso já era tudo, mesmo sabendo que,
depois da partida dele, nada será como dantes, mesmo sabendo que
não faço parte das escolhas dele, mesmo sabendo que o Miguel tem
alma de pássaro e nunca se há-de fixar em ninguém, e que, por isso,
não lhe posso confiar o meu coração. Mesmo sabendo tudo, eu
voltava a estar com ele, a sentir o peso do corpo dele em cima do
meu, a saborear-lhe a boca, as orelhas, os dedos, o sexo, voltava a
viver noites brancas e iluminadas, horas e horas a fio fixada no olhar
dele, onde sempre vi o mundo inteiro, a sentir-lhe a cabeça a
descansar no meu peito. Os homens são como os deuses: nascem e
morrem nos braços de uma mulher, e eu dava tudo para o voltar a
sentir por perto, recuperar o cheiro e acordar os sentidos com a voz,
a pele e o toque da suas mãos.... o amor deve ser isto mesmo. Já não
me lembro do mal que ele me fez, da forma cobarde e infantil como
se foi embora. O Miguel voltava e eu abria-lhe a porta com o mesmo
sorriso das noites em que ele chegava tarde, me empurrava contra a
parede e me começava a amar ali mesmo, antes de me trazer para a
cama. Estou a antecipar o prazer e, a cada instante que passa, sinto
que ele pode voltar, que ele vai voltar e que talvez, então, eu feche
um ciclo da minha vida e aprenda a guardar a doçura de um amor
que tive que aprender a perder. Amar deve ser isto: deixar partir
aqueles que amamos, porque, se os amamos, já os temos para
sempre connosco. Amar talvez seja a melhor forma de ter alguém, e
ter alguém talvez seja a pior forma de amar. Nunca deixarei de amar
a minha mãe, cada ano que passa sobre a sua morte sinto que a amo
mais e que está mais perto de mim, como se o seu espírito, aos
poucos, tivesse descido à terra e entrado para o meu corpo.
Vejo-me ao espelho e sou cada vez mais ela, nos gestos, na voz,
nos silêncios, nos gestos das mãos, no olhar, na cabeça e no coração.
Eu soube guardar a minha mãe porque a amava, porque nunca deixei
de a amar, nunca a esqueci, nunca me zanguei com ela por ter
morrido, mesmo nos meses a seguir à sua morte, em que chorava
todas as noites com saudades e ela me aparecia nos sonhos. Depois,
com o tempo - que não apaga nada, mas suaviza tudo -, fui
aprendendo a lidar com a realidade, e percebi que ela estava
presente, que o corpo é só um artefacto para andarmos por cá, o
espírito vive acima de tudo, e a minha mãe está comigo para sempre.
Como talvez o Miguel esteja, ou talvez não. Mas o tempo há-de me

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mostrar o que ainda não sei, e, por isso, vou esperar e aceitar, aceitar
e esperar, e conjugar todos os dias estes verbos. The best things
come for those who wait.
No dia seguinte, a Carolina acorda-me outra vez aos beijinhos e
pede-me para irmos tomar o pequeno-almoço à pastelaria. É raro
pedir-me, está habituada a tomá-lo em casa, é viciada em corn
flakes, mas apetece-lhe um croissant com fiambre e um leite com
chocolate. Como estou exausta e me fazia bem um galão, aceito a
ideia. O cotomiço fica tão contente que se veste sozinha, e quase
morro a rir de a ver com os ganchos tortos na cabeça, muito
coquette, e as alças da saia mal cruzadas nas costas. Devia haver um
spray mágico para se pôr nos miúdos e eles não crescerem. Ficavam
para sempre pequeninos, a achar que o mundo é um sítio bestial,
onde pais, mães, tios e primos, são todos bons, e uma tarde bem
passada são três voltas no comboio fantasma e duas bolas de
algodão doce. Está extraordinária, com uma camisola de gola alta cor
de rosa às riscas e umas meias até ao joelho. É mesmo gira, a minha
filha.
Entramos no café e refastelamo-nos cada uma com o seu
croissant e é, então, que acontece uma daquelas cenas que só tinha
visto nos filmes. O MIGUEL ENTRA NA PASTELARIA. O MIGUEL EM
CARNE E OSSO, DESPENTEADO E COM CARA DE SONO. ÀS NOVE E
MEIA DA MANHÃ, ENCOSTADO AO BALCÃO A PEDIR UM CAFÉ. E não
sou só eu a vê-lo.
- Mãe! Mãe! É o Miguel! É o Miguel!
A Carolina desata aos gritos, salta da cadeira como se fosse um
míssil e corre para o balcão. O Miguel vira-se, fica ao mesmo tempo
espantado e emocionado de a ver, pega-lhe ao colo e abraçam-se. O
Miguel tem os olhos fechados e encosta a cara ao cabelo dela,
balançando-a ligeiramente e, quando abre os olhos, OLHA PARA MIM.
Devia-me levantar, mas não sinto as pernas, as mãos tremem tanto
que largo o copo do galão e o Miguel vem devagar até à mesa,
debruça-se sobre mim e dá-me um beijo na cara, ainda com a miúda
ao colo.
- Olá...
- Olá... - parece-me que tenho o queixo a tremer. Ou talvez não,
talvez seja só a voz. - Não fazia ideia que já cá estavas....
- Voltei há uma semana... Ela está linda!....
- E porque é que não ligaste?

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- Eu ia ligar... Claro que te ia ligar, mas tenho tido imensa coisa
que fazer, e... - e estavas com medo que eu te desligasse o telefone?
- Mais ou menos. Não, acho que não.
- Mas eu não desligava...
- Eu sei, querida.
Querida. Ele chamou-me QUERIDA.
- Estou tão contente por vos ter encontrado....
- Também eu.
E, feita estúpida, começo a chorar.
- Ó Mãe, porque é que está a chorar?
- Porque estou contente, querida. Quando fores grande, eu
explico-te.
De repente, o tempo pára, o Miguel fica a olhar para mim e
parece que passaram mil dias. À nossa volta, o barulho esbate-se. É
como se tivéssemos entrado noutra dimensão.
- Oh... Não fiques assim....
- Deixa estar, são os nervos, isto passa - relativizo, afogando as
lágrimas na ponta dos dedos, até conseguir secar os olhos. Por fim,
regresso à realidade e pergunto-lhe se quer passar lá por casa hoje à
noite. O Miguel responde imediatamente que sim, como se já
estivesse à espera do meu convite. Olho para o relógio, são quase
dez horas, estou mais uma vez atrasada. Conversámos muito pouco,
o suficiente para me dizer que alugou uma casa e que vai voltar a
trabalhar num atelier, mas que ainda não ligou ao Frederico. Estou
tão atordoada que todas as palavras me parecem inúteis. Precisava
de estar pelo menos meia hora abraçada a ele para isto normalizar, e,
agora, tenho que ir levar a miúda, e depois ao aeroporto buscar a
escritora chilena que chega hoje. Depois, tenho que ir almoçar com
ela e com mais sete ou oito jornalistas. Não posso parar o tempo e
ficar com ele. Por isso, despedimo-nos com um abraço longo e
enorme, já fora da pastelaria, e combinamos que ele vai ter comigo
às nove.
Assim que chego à editora, penso em ligar à Ana para ela ficar
com a Carolina mas, depois, decido falar com a Teresa, que sempre
foi mais cúmplice e compreensiva. De certeza que, por uma noite,
não se vai importar de ficar lá com a miúda.
Conto-lhe tudo e peço-lhe para ela não dizer nada, e ela
responde também não valia a pena. Por isso, combinamos que lhe
deixo a miúda às oito. Se ela não estiver, a Maria abre-me a porta e,

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no dia seguinte, ela mesma leva a miúda ao colégio, para eu poder
estar mais à vontade. Acontece tudo muito depressa, olho à volta e
vejo as cores saturadas, doem-me os olhos e sinto-me longe, as vozes
das pessoas chegam distorcidas aos meus ouvidos, estou mergulhada
numa espécie de hipnose, e quando a chilena chega, sinto o espanhol
enferrujado, passo o almoço com os jornalistas totalmente absorta. O
Nuno percebe que se passa alguma coisa mas não faz perguntas, e
quando chega o fim do dia e vou buscar a Carolina e a deixo em casa
da Teresa depois de inventar que tenho um jantar de trabalho,
regresso a casa, tomo um chá de limão e meto-me num banho de
imersão.
Deus ouviu as minhas preces. Deus ou qualquer outra entidade
divina. O Miguel está aí a chegar, o Miguel voltou para Portugal. O
Miguel está outra vez perto, o Miguel, se calhar, ainda gosta de mim.
Quando olho para o relógio, são oito e meia e o meu telemóvel toca a
música da Missão Impossível. É como se o tempo nunca tivesse
passado, e ele sempre tivesse feito parte dos meus dias. E fez, só que
não estava cá. O corpo dele não estava cá. O espírito dele esteve
sempre bem perto, dentro do meu coração.
- Olá... Estou só meia hora atrasado, mas já vou para aí, está
bem?
Meia hora. O que é meia hora, em dias, noites, semanas, meses
de espera? A espera é o tempo de deixar crescer aquilo que há-de
ser. Podias demorar mais uma hora ou duas, Miguel, para mim era o
mesmo. O mundo vai parar de qualquer maneira quando tu chegares,
e me agarrares, e eu voltar a sentir-te outra vez dentro de mim,
porque estiveste sempre aqui. Já não lhe tenho raiva, nem ódio, a
tristeza foi-se embora, sinto-me cheia outra vez, como um balão de
feira, como se tivesse cinco anos e me oferecessem três voltas no
comboio fantasma e dois novelos de algodão doce. Esperei muito
tempo por este momento e, agora, que tudo está prestes a acontecer,
agradeço-lhe esta meia hora de levitação, de delírio, de alegria, de
medo, de paixão. Agradeço-lhe o tempo que me faz esperar e que me
vai fazer amá-lo ainda melhor. O prazer tem memória. Por isso, visto-
me lentamente, uma saia leve e uma camisa de botões para, depois,
ser mais fácil de tirar. A minha pele está quente e a boca seca. Seco o
cabelo com afinco e primor até ficar liso como o de uma gueixa, é
isso mesmo que sou. Vou abrir a porta a alguém que já ma fechou na
cara, mas não me importo. Quero o Miguel, quero vivê-lo e respirá-lo

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em todos os instantes que a vida me deixar.
Oiço o estalar metálico do elevador a chegar. Logo a seguir, o
instante preciso em que a porta se abre, inundando o patamar de luz
indirecta. Ele sai rapidamente, dá dois passos largos, já vi rado para a
minha porta, que abro no segundo em que acho que é o certo. E
agora, no momento eterno e irrepetível que sempre antecede os
nossos reencontros, só mais um passo nos separa. Mas já não oiço
nada, as suas mãos, a sua boca, tudo o que ele é, está aqui, junto do
meu corpo e em cima dele, por todo o lado, inundando-me de êxtase,
prazer e, de uma forma qualquer, de amor. O Miguel está aqui, o
Miguel, o meu Miguel. Repito, baixinho, acertando o ritmo das sílabas
com o pulsar do meu coração. Mi-guel, Mi-guel.
Miguel. É engraçado como amamos o nome daqueles que
amamos.

São dez da manhã quando acordo, depois de ter dormido menos


de três horas. Do lado direito da cama o Miguel dorme de barriga
para baixo, o cabelo despenteado e fico algum tempo muito quieta a
observá-lo. Está mais magro e com uma expressão triste, a expressão
de “homeless puppie” que sempre teve a dormir. Um ou dois vincos
que nunca lhe tinha visto na cara ficaram como marca da viagem.
Percebo agora que se deve ter sentido muito sozinho durante
bastante tempo, mas ainda nenhum de nós sabe se isso o suavizou
ou o tornou mais agressivo, e aumentou ainda mais o fosso entre ele
e o mundo. Agora, não faço perguntas, nem quero saber o que vai
acontecer amanhã. O mundo são 18 metros quadrados, este quarto
iluminado pelos fios de luz que as frestas das persianas deixam
passar, o Miguel e eu juntos outra vez, mesmo que a nossa relação
seja uma equação impossível e que ele não consiga ficar ao meu
lado. As relações vivem-se como se podem, e não como se querem.
Talvez o Miguel se tenha ido embora porque era isso que queria, mas
agora que voltou e não sabe bem porquê, nem para quê, talvez
também ainda demore algum tempo e viaje dentro dele, até descobrir
o que, durante a viagem, não encontrou.
Ontem, entre e durante o amor, disse-me Hoje voltei por ti, mas
não para ti e eu respondi-lhe eu sei, só as mulheres é que fazem isso
pelos homens, mas não me importo. Tê-lo outra vez nos meus braços,
agora, é tudo. E amanhã, logo se vê.
Falámos muito, de tudo e durante muitas horas, como se o

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tempo que temos pela frente não chegasse para todas as coisas que
temos para contar, numa avidez ainda mais violenta que acompanha
as primeiras vezes em que se anuncia a paixão. E o Miguel disse-me
coisas importantes. Reconheceu que era um atrasado emocional,
enquanto que eu - e nunca me vou esquecer daquele olhar iluminado,
quando repetiu o que me dizia quando éramos namorados, há coisas
que nunca se podem esquecer, sob pena de enlouquecermos - estava
tão perto da perfeição. Explicou-me que é muito mais fácil dar do que
receber, que, enquanto viajava e absorvia tudo a uma velocidade
astronómica, se apercebeu de que há coisas e pessoas para serem
consumidas, e outras para serem cultivadas. Que a distância não é
ausência, que eu tinha estado por lá sempre, mais ou menos latente
num canto qualquer escondido do coração, e que tinha sofrido com a
ideia de nos ter feito mal, a mim e à Carolina. Há momentos na vida
que valem por uma eternidade, momentos em que sentimos que os
deuses descem à terra através do nosso corpo e respiram o mundo
pela nossa pele, nos deixam para sempre um legado de amor e de
paixão, mesmo que o amor seja uma coisa e a vida outra. Não há
palavras que cheguem para descrever a plenitude de um amor
perfeito, eterno e intemporal. E, por um dia que seja, não quero
regressar ao mundo normal, onde as pessoas correm de um lado para
o outro, vão ao supermercado e pagam impostos. Por um dia apenas,
quero ficar aqui com ele, viver os meus sonhos. Não falámos do
presente nem do futuro. O passado ainda nos pesa, ainda que de
formas diferentes. Estamos os dois virados para ele, nem um nem
outro reuniu ainda forças e armas para se libertar de tudo. Há ainda
destroços por limpar. E o medo que se instalou aos pés da cama, hoje
de manhã, voltou a perguntar-me o que é que eu estava a fazer, e
fiquei sem saber o que lhe responder.
Imagino o número de chamadas não atendidas no telemóvel
desligado desde as sete da tarde, e os recados da Teresa, do Nuno - a
perguntar se não vou hoje de manhã - do Filipe - meu Deus, esqueci-
me mesmo que o Filipe existia, que estranho! -, da Ana, a quem esta
hora a Teresa já contou o que se passa. E, de repente, sinto-me
cansada, exausta, com vontade de fugir com o Miguel e me esconder
do mundo. Mas sei que isso é impossível, que tenho a chilena à
espera na editora e contratos para assinar, que, antes das seis, tenho
que ir buscar a Carolina, trazê-la para casa, fazer-lhe o jantar e dar-
lhe banho, ler-lhe um ou dois parágrafos da Menina do Mar e

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adormecê-la nos meus braços, arrumar a cozinha e ler um bocado,
procurar um filme na televisão ou pôr a conversa em dia por telefone.
É isso que é a minha vida, e não o Miguel, deitado na minha
cama, às dez e meia da manhã, a estender-me os braços como uma
criança e a pedir-me que lhe traga leite com Ovomaltine e torradas
com geleia.
Acordo-o com beijos por toda a cara, damos um abraço imenso e
um bocadinho triste, e saio de casa com a sensação de que peso
menos dez quilos e rejuvenesci 15 anos. És tu, és tu, sempre vieste,
enfim! Oiço de novo o riso dos teus passos... E agora? Sei que a
sombra é inseparável da luz e a queda do voo, mas só quero voar
mais um bocadinho antes de cair, poder olhar o mundo de cima e
levitar, como o Miguel me ensinou, sem nunca perder a capacidade
para improvisar uma aterragem, ainda que mal calculada. Se o Miguel
veio para ficar ou não, isso agora não me interessa. O que é
importante é que está comigo, e estamos bem. E tudo o resto, a
razão, a sensatez, o que pensa a Ana ou o Teresa, o que sinto pelo
Filipe ou qualquer outro pormenor da minha existência, não são nada
perante isto. É para viver momentos como este que vale a pena estar
vivo.
Quando chego à editora, quase às onze e meia, a Alice olha-me
de lado, espantada com a minha cara e o meu atraso, mas não lhe
dou confiança, e passo-lhe logo mais de cinco chamadas para me
fazer. O Nuno foi passear a chilena e por isso fico sossegada na minha
sala a trabalhar. Agora, só falta ligar o telemóvel, mas ainda não me
apetece enfrentar o mundo. Por isso deixo-o a dormir mais um par de
horas.
A Teresa liga para a editora a reclamar o telemóvel desligado, e
pergunta-me como foi.
- Foi muito bom. Mesmo muito bom.
- E agora? -
- Não sei. Mas não quero pensar, quero saborear, não te
importas???
Mas a Teresa percebe. A Teresa sabe que nunca deixei de gostar
dele, que, mal ou bem, ele faz parte da minha vida, que a presença
dele é importante para o meu equilíbrio. Por isso, encolhe os ombros
à minha total falta de juízo e deseja-me boa sorte.
- Sabes que isto não quer dizer que ele voltou para andar
contigo, não sabes?

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- Sei.
- E sabes que, apesar de terem passado uma noite óptima, isso
não mudou nada, não sabes?
- Sei.
- E tens consciência de que ele é um miúdo lunático e
pretensioso, um egoísta que só pensa nele, não tens?
- Tenho.
- Então, adeus, que estou a pregar um sermão aos peixes. Não é,
minha pequena sereia?
E desliga. Pequena sereia. Como na história que estou a ler à
Carolina, que fala de um rapaz que ia todos os dias, ao fim da tarde,
brincar com uma Menina do Mar. Apaixonaram-se, e ele tentou fugir
com ela dentro de um balde, mas os polvos apanharam-no e quase o
sufocaram. Quando acordou, a Menina desapareceu e todos os dias
ele ia à praia à procura dela, até que uma gaivota lhe levou uma
poção que lhe permitia ir ao fundo do mar, à procura dela. Então, o
rapaz mergulhou e atravessou os oceanos nas barbatanas de um
golfinho, viajou sessenta dias e sessenta noites até chegar a uma ilha
onde voltou a encontrar a Menina e os seus amigos, o polvo, o
caranguejo e o peixe. E o rapaz ficou lá para sempre com ela e,
segundo o Rei dos Mares, desde que ele chegou, a Menina nunca
dançara tão bem.
Já li esta história vezes sem conta à Carolina, e ela diz sempre
que quer ser a Menina do Mar. Por isso, quando vai à praia, nada
como um peixe, e eu acho, embora ela nunca me tenha contado, que
cada vez que sai da água, olha para as pernas para ver se elas se
transformaram, ou não, numa cauda de sereia. Outro dia, quando
íamos a passear com o Filipe de carro pela Marginal - a tal ilusão de
uma vida normal -, a Carolina apontou para o farol do Bugio, e
perguntou: Ó mãe, se tirarmos o pipo, esta água vai-se toda embora?
O Filipe e eu rimos, enternecidos, mas a Carolina continuou a divagar,
disse que se a água se fosse embora, ela ia ficar amiga de todas as
Meninas do Mar que estivessem no fundo.
Eu também sou esta Menina do Mar, também choro e danço mal
quando tenho saudades de quem gosto, mas não houve nenhum Rei
dos Mares que mandasse vir o meu rapaz, nem o rapaz que se
apaixonou por mim largou o seu mundo para vir para a minha ilha. O
meu rapaz tem um mundo só dele, e vou aprender, duma vez por
todas, a respeitar isso. Talvez já tenha aprendido a querer cada vez

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menos dos outros, mas cada vez melhor. E talvez agora, que deixei
de lhe pedir o que quer que fosse, ele me comece a dar o que sempre
desejei. Mas tenho que esperar alguma coisa dele, porque é quando
já não esperamos nada das pessoas que elas morrem no nosso
coração, e eu quero o Miguel vivo para sempre no meu coração,
mesmo que nem sempre possa estar perto dele.
Às duas e meia, depois de ter almoçado com o Nuno e a chilena
e de ter tomado um café duplo - a falta de sono está agora a dar sinal
- a Alice passa-me uma chamada do Miguel.
- Então, está com o telemóvel desligado?
- Estou.
- É que não lhe conseguia falar. Ainda estou aqui em casa. Não
se importa, pois não?
- Se pudesse, estava aí contigo, meu querido. Fica o tempo que
quiseres.
- Não posso. Vou sair agora. Tenho uma entrevista, às quatro,
para o gabinete do pai do Rui. Era só para lhe dar um beijinho, e
dizer-lhe que foi tão bom... É sempre bom estar consigo.
Quase lhe pergunto se quer jantar, e ele quase fala nisso, mas
contenho-me. Está ainda tudo muito fresco, muito recente, o melhor é
não forçar nada. O melhor é ligar o telemóvel e preparar-me para
enfrentar o mundo. Tenho uma mensagem da Teresa, a perguntar
como é que está a ser, anterior ao telefonema dela para a editora.
Uma mensagem do Filipe, a saber de mim e a dizer que liga mais
tarde. - Outra mensagem do Filipe, espantado porque não lhe
respondi e não consegue falar comigo. Uma mensagem escrita do
Miguel, de hoje de manhã, a falar de nós, a escorrer mel e doçura e
uma mensagem do Nuno, a dizer que foi passear a chilena pela Baixa.
Apago todas, excepto a do Miguel, e fico a olhar para o ar e a
pensar a quem é que ligo primeiro, porque não me apetece falar com
ninguém. Ponho um disco de jazz no meu leitor de CD's portátil e abro
um manuscrito novo que chegou, recomendado pelo Nuno.

Sexta-feira de manhã. Há três dias que o Miguel não aparece,


mas vai ligando, duas, três vezes por dia, e vai-me contando o que
anda a fazer, indeciso entre ir trabalhar para o atelier que dá apoio ao
gabinete do pai do Rui, voltar a trabalhar com o Frederico, ou fazer
um atelier pequeno, com mais dois amigos. Quase
inconscientemente, recomendo-lhe o do Frederico, porque ali sei que

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está protegido e o deixam trabalhar a sério. O Miguel ri-se, chama-me
mãe-galinha e diz que talvez apareça no fim-de-semana. Com o
Miguel, é sempre assim. Se ele fosse um animal, era um gato, arisco,
orgulhoso, misterioso, independente. E, se fosse uma palavra, era
talvez. Mas eu já entrei no jogo, não pergunto nem insisto. Se vier
vem, se não aparecer, paciência. Nestes três dias, tive tempo para
descer à terra e falar com o Filipe. Mesmo assim, foi mais fácil do que
estava à espera. Deve ser da idade, mas, com o tempo, as pessoas já
não sofrem de forma tão absoluta a perda de alguém de quem
gostam. Quando lhe disse que o fantasma afinal tinha voltado,
encolheu os ombros, respondeu que já estava à espera, agradeceu o
facto de ter sido frontal com o assunto, e combinámos nunca deixar
de ser amigos. No fundo, sempre fomos muito mais amigos que
amantes ou namorados, e tudo fica bem quando acaba bem.
A Teresa foi jantar lá a casa, na quarta-feira, e perguntou-me que
raio de relação eu tinha com o Miguel. Mas, agora, percebo que o
Miguel tinha razão, quando me pedia para não falar de nós às outras
pessoas. É que parece incompreensível aos olhos dos outros que eu
seja feliz assim.
- Ele leva-te ao cinema? Ao teatro? A jantar fora? Ele leva a tua
filha ao circo e faz-te companhia?
- Não.
- Queres continuar a viver sozinha e apanhar migalhas de um
puto que se está a preparar para vir cá uma vez por semana a casa,
molhar o bico e no resto do tempo fazer a vida dele?
- Quero.
- Então, tu é que sabes. Olha que eu sempre fui um bocado
masoquista, com a merda da história do meu pai e esta vida do
Vasco, mas tu andas-me a bater aos pontos.
Pode ser. Mas, agora, prefiro viver assim, e esperar que o que o
Miguel quer, ou sente, se vá desenhando, primeiro, a lápis, como ele
faz nas plantas, com o medo do desconhecido, depois, a tinta da
china, quando já tem a certeza daquilo que quer fazer. Quero que vá
ele gerindo a relação, porque ele é mesmo assim, e como nunca tive
razões para não confiar nele, e o adoro, jogo o jogo que ele quer,
porque é o único que posso jogar.
- As relações vivem-se como se podem, e não como se querem,
respondi-lhe. E a Teresa, que vive assim há anos com o Vasco, não
rebateu e foi-se embora, com aquele ar triste das pessoas que já

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aprenderam a encolher os ombros à vida.
Hoje, apetece-me sair mais cedo, ir buscar a Carolina, pegar no
meu Peugeot azul escuro e ir passear até à praia com a minha
menina do Mar. São quatro e meia, quando me preparo para sair e a
Alice entra no meu gabinete, pede-me para falar comigo e fecha a
porta com ar misterioso.
- Posso entrar?
- Claro.
- Posso-me sentar?
Ó diabo, aqui há gato. A Alice cheia de cerimónias. O que será?
- O que se passa?
- É que eu preciso de lhe contar uma coisa...
- O que foi?
- Este tal Miguel Soares... Quem tem ligado para si...
- Sim... O que é que tem?
- A Inês desculpe, eu estar-me a meter na sua vida, e perguntar-
lhe isto, assim, de forma tão directa: mas, por acaso... a Inês anda
com ele?
- Porquê? Conheces o Miguel de algum lado?
A Alice está nervosíssima, com a cara contorcida e as mãos em
grande tensão, presas uma à outra como se tivessem cola, e já
passou por três tons de amarelo e quatro de verde, está
completamente atrapalhada, e eu não estou a perceber nada.
- É que... bem... parece-me, pareceu-me pela voz que ele é o
mesmo tipo que eu conheci no Algarve, há uns meses, quando estava
cá de férias, e...
- E, o quê?
- Eu... quer dizer... eu tive um caso com ele... foi uma coisa um
bocado estúpida, e...
- E...
Estou estupefacta com tudo o que estou a ouvir. Aliás, estou tão
estupefacta que nem quero acreditar. Por isso, vou sair do meu
próprio corpo como dizem que fazem as almas dos mor tos e vou
assistir de camarote a este pequeno, mas decisivo episódio de
telenovela mexicana que a vida me reservou... Afinal, não é só a
Teresa que vive momentos de telenovela de terceira categoria.
Agora, também me toca a mim.
- Eu não sabia que ele tinha namorada... Disse-me que ia fazer
uma viagem grande, daí a uns dias, e perguntou-me se... se queria ir

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com ele... Eu tinha que voltar para Londres, mas já estava farta do
trabalho lá... e... estava um bocado perdida... A Inês sabe como são
estas coisas....
- ... e foste para a índia com ele.
- Isso.
Isso. Isso é das melhores respostas que já ouvi. Ainda é melhor
que mais ou menos. Isso é mesmo muito bom. Só que o Miguel, nessa
altura, ANDAVA COMIGO. E esta CABRA foi com ele para a índia. FOI
COM ELE. COM ELE. Se estivesse no meu perfeito juízo, partia-lhe a
cara a ela e a ele, mas, como já me pus fora de mim e me sinto mais
ou menos um detective a trabalhar a soldo por uma causa alheia,
mantenho o sangue frio e continuo a conversa.
- Então, e depois?
- E depois... aquilo correu muito mal. Nós nem nos conhecíamos
bem, ele tem um feitio insuportável, mal cheguei lá, arrependi-me
logo, voltei uns dias depois para Londres, mas já tinha faltado, e fui
despedida... E depois é que vim para Portugal... Conheci o Duarte e
ele falou-me aqui da editora, e... e vocês contrataram-me.
Sabias que ele tinha uma namorada? Foste para a cama com ele,
antes de irem para a índia, minha porca? Passam-me pela cabeça
estas e mais setenta perguntas, mas enterro as unhas na palma das
mãos e concentro toda a minha fúria na pele esticada dos nós dos
dedos, e penso dois segundos antes de perguntar: - E quando vieste
cá, sabias que eu tinha sido namorada dele?
- Não. Juro que não sabia, Inês. Por favor, acredite em mim. Foi
uma coincidência infeliz.
Não há coincidências, minha parva. Não sabes que não há
coincidências? Que nada acontece por acaso?
- Pois foi. E então, porque é que só agora é que estás a contar
isto tudo?
- Porque quando ele telefonou, há umas semanas, fiquei a pensar
se era o mesmo Miguel, e achei que era impossível. Mas, hoje,
quando ouvi a voz dele outra vez, tive a certeza. Por isso, liguei ao
Duarte, perguntei.... se a Inês tinha tido um namorado Miguel, que
tinha ido para a índia... E o Duarte confirmou tudo.
Ok. A minha assistente, uma miúda que eu até achava porreira,
foi a gaja que foi com o MEU namorado para a índia. Isto é muito
bom. Eu tinha que viver para isto me acontecer. A sério. Isto é do
melhor que já vi,

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- E ele nunca te falou de mim?
- Quer dizer... ele falava... falava de uma namorada mais velha,
que tinha uma filha que ele adorava, disse-me que tinha sido a única
mulher de quem ele tinha gostado.... mas nunca disse o seu nome, ou
se disse não me lembro.
- Pois.
- Mas, quando eu entrei para cá, percebi que a Inês estava em
baixo, até pensei que a Inês e o Nuno tivessem alguma coisa... sei lá,
às vezes, nestas empresas pequenas, os sócios têm a ver um com o
outro mais do que uma relação de trabalho.... Desculpe dizer-lhe isto,
assim, mas foi mesmo o que eu pensei. Só que depois percebi que a
Inês estava a ressacar de um desgosto por causa de um tipo
qualquer, e sabe como é, ouve-se um bocado de uma conversa aqui,
outro bocado ali... e soma-se dois mais dois...
E fica calada, especada a olhar para mim. Depois, esconde as
mãos debaixo das coxas e começa a balançar o corpo para trás e
para a frente. Não sei o que pensar, o que dizer, o que sentir, não sei
nada, nem quero saber. De repente, a cadeira onde a Alice está
sentada levanta-se pelo ar com a força da minha fúria e começa a
rodopiar muito depressa. A Alice está lá em cima, amarrada, aos
gritos, completamente em pânico: Páre! Páre! E, então, eu lanço-lhe
um raio malvado da ponta das minhas unhas, e a cadeira parte o
vidro e vai-se espetar, num voo de grande efeito plástico, contra uma
das torres dos prédios em frente.
- A Inês está-se a sentir bem? - pergunta, com um ar
completamente enfiado. Afinal, não voou pela janela, nem se partiu
toda contra o prédio em frente. Continua sentada e inteira, era só eu
a delirar.
- Sim... mais ou menos. Queres-me contar mais alguma coisa?
- Não... queria só dizer-lhe que lamento imenso esta situação... e
que espero que este azar não ponha em causa o meu trabalho na
editora. É que gosto mesmo de cá estar e estou muito empenhada,
por isso...
- Por isso, nem tens que te preocupar - corto, com aspereza - vá,
vai lá à tua vida, depois falamos melhor.
A Alice sai como se fosse para o corredor da morte e eu fico ali,
colada à cadeira, a tentar organizar os meus homenzinhos, que é
como a Carolina chama aos neurónios, mas sinto-me exausta, como
se tivesse escalado o Everest num dia, ou atravessado a nado o lago

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Vitória. Dói-me tudo, pernas, braços, cabeça e coração. Doem-me os
olhos e os ouvidos. Agora, adormecia durante seis meses, era tão
bom... Punha a Carolina em casa de alguém e desaparecia. Ou, então,
apanhava um avião a jacto e ia ao céu falar com a minha mãe. Outro
dia, a Carolina perguntou se também havia viagens de férias para o
céu. Queria conhecer a avó, que só vê nas fotografias, mas que ama
como eu amo, porque os filhos são mesmo assim: uma continuação
de nós até crescerem. Por isso, eu acho que, às vezes, ela chora com
saudades da minha mãe e do Miguel, só porque eu choro, como
agora, completamente confusa com o que a Alice me contou.
O Miguel não me podia ter feito isto. Nunca, desta maneira. Não
me podia ter mentido desta forma, ou, pelo menos, ocultado a
verdade. Não lhe perdoo. Isto, não lhe posso perdoar. Não pode ser o
mesmo Miguel que dormiu na minha casa, com quem fiz amor
daquela maneira. Não pode ser. ISTO NÃO ME PODE ESTAR A
ACONTECER.

- O que é que foi, mãe? Porque é que está triste?


Pronto. Com a cara feita num croissant amassado, por causa da
merda do ataque de choro, quando chego à escola, a miúda apanha-
me logo.
- Não é nada, meu amor... É que fiquei triste com umas coisas,
mas já passou.
- É por causa da avó?
- Não, querida.
- Então, é por causa do Miguel. Quando a mãe chora, é sempre
por causa da avó ou do Miguel.
E olha-me, com o ar mais consternado do mundo, muito
empática, à espera que eu lhe conte, mas fico calada, baixo-me à
altura dela e dou-lhe um abraço gigantesco, infinito.
- Isto passa, querida. Queres ir ao cinema?
- Agora? Agorinha mesmo?
Ir ao cinema durante a semana é um programa tão invulgar que
a Carolina nem acredita.
- Vamos ver aquele filme dos cães e dos gatos que estreou esta
semana. São seis, deve haver uma sessão às seis e um quarto. E,
depois, se quiseres, vamos ao Mac Donalds.
- Siiiiiiiiiiiiim! - grita a miúda, entusiasmada, - A mãe é mesmo a
mais querida, sabia? és a mais querida e a mais linda.

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- Não me trate por tu, que eu não tenho a sua idade
Meia hora depois, estamos refugiadas no escuro com um écran
gigante à frente onde cães e gatos, todos muito inteligentes, se
debatem pelo poder no universo. A Carolina comprou um balde de
pipocas do tamanho dela, mas quase não as come, de tal forma está
absorvida no que vê. O filme é completamente idiota, mas pelo
menos tem o mérito de desligar a torneira da choradeira. Que
estupidez, pareço uma criança a quem roubaram o cão. Mas apetecia-
me ter esta idade outra vez, olhar para tudo e ser tudo novo,
adormecer com a cara encostada à mão da minha mãe, e achar que
sou a pessoa mais feliz do mundo porque há restaurantes que servem
hamburgers, com bonecos incluídos. Quando éramos miúdos não
havia nada disto, a coisa mais moderna que o Marcelo e eu podíamos
ambicionar, era um Sumol de ananás e um cachorro. Não falo com o
Marcelo há meses, não sei onde vive, nem por onde anda. Tenho
medo de, um dia, receber um telefonema anónimo a avisar-me que o
encontraram num sítio qualquer, estranho. E nem sequer tenho ido a
casa do meu pai, mas não me parece que ele se importe. A Elsa de
certeza não se importa: quanto menos a vir, melhor. Por isso, dou a
mão à minha boneca articulada que solta gargalhadas deliciosas,
daquelas que dá vontade de apanhar com a mão, e penso que a
minha família é ela, a Ana e o Frederico, a Teresa e o Duarte, e que,
se pensar bem, tenho os melhores amigos do mundo, uma vida
inteira pela frente cheia de coisas boas. Não me posso ir abaixo por
causa das Alices e dos Miguéis desta vida, tenho que ser superior a
tudo, emprestar ao que sinto uma leveza qualquer, que não sei onde
irei buscar, encolher os ombros à vida e, mais uma vez, conjugar o tal
verbo que me parece tão difícil, em qualquer tempo ou modo: o verbo
aceitar. Aceitar que o Miguel me mentiu, aceitar que, quando se foi
embora talvez já nem gostasse de mim, aceitar que ele já não faz
parte da minha vida, que ele voltou, mas não para mim, e que saber
amar alguém também é saber guardar o que fica desse amor sem
mágoa, guardar a doçura, e deixar que o tempo vá limpando tudo.
Enquanto nos empanturramos com batatas fritas e hamburgers,
o Filipe liga, mais uma vez hesito entre atender ou não e, por pouco,
a miúda não me atende o telefone. Ralho-lhe, enquanto o guardo na
carteira. Não consigo falar com ele agora, não consigo falar com
ninguém, preciso de fugir, de me isolar, talvez vá para o Alentejo com
o casal perfeito. Qualquer coisa que me tire de Lisboa e me faça

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esquecer, nem que seja por uns momentos, este episódio rasca de
série australiana dos anos 80.
- Quem era? - pergunta a Carolina, muito sonsa, a fingir que
estava entretida a montar o boneco, mas atenta a todas as minhas
reacções.
- Era o Filipe.
- Porque é que a mãe não atendeu? Ele Já não é seu namorado?
- Mas quem é que te disse que ele era meu namorado?
- Ninguém. Eu é que achei. Era, ou não era?
- Não.
- Que pena. Esse é que era um bom namorado para a mãe. E,
pelo menos, não a fazia chorar...
Já a formiga tem catarro. Vai fazer seis anos, e é isto, já tem
opiniões sobre tudo e mais alguma coisa.
- Mas, porque é que gostas tanto dele?
- Porque ele gosta da mãe, senão não telefonava tantas vezes.
Até pode ser, mas a questão não é essa, minha sereia: é eu
gostar, ou não, dele. Mas tu és muito pequena para perceber estas
coisas.
- E o que é que uma menina da tua idade sabe destas coisas?
- Sei muito. Sei que o Miguel nunca mais vai voltar, e que a mãe
não devia ter mandado o tio Filipe embora... Se a mãe se casasse
com ele, eu ficava com mais três irmãs...
Se ao menos na vida tudo fosse assim tão simples.

As mulheres são mesmo o bicho mais estranho do mundo. Um


dia, está tudo bem e, no dia seguinte, dá-lhes um ataque de
estupidez e ficam transtornadas. Eu sabia que era um erro voltar a
ver a Inês, mas há quem aprenda com os erros e quem os aproveite
para criar hábitos. A Inês não foi um erro. Pelo contrário, tudo o que
vivi com ela e que ela me deixou, ajudou a tornar-me numa pessoa
melhor. E em muito mais coisas do que eu próprio pensava que era
possível. Mas não devia ter lá ido, nem devia ter lá ficado a dormir
com ela. Para quê, se sei perfeitamente que não vou voltar a andar
com ela, e depois de tudo o que ela passou por causa de eu ter
acabado? Mas eu não podia resistir, era impossível. Aprendi, desde
muito cedo, a resistir tanto ao que me pode fazer mal como fazer
bem. Se calhar, é por isso que nunca me apaixonei a sério por
ninguém, e, para mim, as mulheres sempre foram de consumo rápido

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e fácil. Quando se treina o corpo e o espírito a não criar laços, é muito
mais fácil viver. Ascende-se a uma espécie de levitação, onde
ninguém nos toca, e vemos o mundo por cima. A Inês é o oposto de
mim. Voa alto, sonha com tudo e imagina cenários impossíveis e,
depois, quando cai, fica totalmente destruída. Não se sabe proteger,
nunca soube, e faz-me impressão a forma desprotegida como se
entrega à vida. Porque merda é que tem o telefone desligado desde
ontem? Já lhe tentei ligar mais de cinco vezes, mas não deixei recado.
Para quê? Se ela quiser, que me ligue.
Não sei o que hei-de fazer. Gostei de falar com o pai do Rui e o
atelier tem bom ambiente, mas gostava muito mais da equipa e dos
projectos do Frederico. Com que cara é que apareço lá, agora, depois
de tudo o que aconteceu? Ainda por cima, ele e a Ana estiveram de
certeza com a Inês, estes meses, a ouvi-la queixar-se de mim, como
se nunca a tivesse amado, nunca me tivesse entregue a ela, e nunca
a tivesse tratado bem. É injusto. Eu dei-lhe tudo o que na altura,
podia dar, mas queria ter a minha vida só para mim, não me podia
agarrar a alguém tão cedo. Se calhar, é esse o meu problema:
conheci a mulher da minha vida cedo demais, mas paciência. Não
preciso de amor, não preciso de nada nem de ninguém, a não ser do
meu irmão, dos meus amigos. Laços sem nós, gratuitos, que nada me
impeça de viver como quero e de fazer o que me apetece.
Mas não percebo o que aconteceu, quero falar com ela, ouvir a
voz dela, perceber como se sente, o que é que se passa. Passo por
casa dela ao fim da tarde e não está ninguém, nem o Peugeot novo
está à porta. Talvez já tenha ido para o Alentejo com o casal
maravilha. Que enjoo!... Ainda por cima, agora com uma criancinha a
caminho, ninguém tem paciência para tanta felicidade.
Ligo ao Duarte e combinamos ir jantar e beber um copo. É um
tipo porreiro, pelo menos não toma partido. No fundo, é um tipo como
eu. Tem bom coração, mas só faz o que lhe apetece.
Encontramo-nos às nove e vamos a uma tasca do Bairro Alto,
daquelas onde uma dose dá para três, abrimos uma garrafa de vinho
e falamos de futebol, e claro, de gajas. Da minha amiga Mariana, a
quem ele acha uma piada do caraças, das miúdas com ar de
empregadas de centro comercial que estão a jantar na mesa ao lado
da nossa, e claro, da Inês.
- Tu sabes que ela ficou na merda quando te foste embora, não
sabes? - pergunta o Duarte.

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- Sei. Mas não penses que tenho remorsos, ou uma merda
dessas. Eu nunca lhe prometi nada.
- Mas ela adorava-te.
- E eu também era doido por ela. Só que, olha, não deu mais.
- E agora?
- Agora, não sei. Mas não vou voltar.
- E já lhe disseste?
- Porquê? Achas que ela não sabe?
- Acho que não. Sobretudo se continuas a ir para a cama com
ela.
Foda-se. Ela não sabia estar calada?
- Foi o que ela te disse?
- Não foi preciso ela dizer-me. Mas ouve, meu, eu não tenho nada
a ver com isso, percebes? Só que ela é das minhas melhores amigas
e é chato vê-la na merda.
- Pois claro, pá, tens razão.
- Eu gramava à brava arranjar uma miúda a sério. Isto de andar a
comer gajas também, às tantas, cansa um bocado.
- A mim, não me cansa nada.
- Mas uma namorada é outra coisa.
- Pois é.
Ficamos um bocado calados. Mulheres. São mesmo o bicho mais
estranho do mundo.
- Eu acho é que tu lhe devias contar a história da Alice.
- Qual história da Alice?
- Que foste com ela para a índia.
- Mas como é que tu sabes essa merda?
- Veio-me parar aos braços, quando voltou.
- Quando voltou de onde?
- Da índia, pá. Depois de ter estado contigo.
- Não é possível!!!
- Pois não. Mas é verdade.
- Ouve, tu sabes como são as gajas, inventam merdas e têm a
mania de romancear a realidade. Eu não fui com ela para a índia. Ela
é que se pendurou, e, ao fim de dois dias, já nem a podia ver, essa
gaja é uma chata.
- Pois é. Mas é boa como o milho.
- Puta de vida!
- Podes crer.

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- Esta merda não pode ser verdade! Mas conheces a gaja, de
onde?
- Ora, de onde é que há-de ser? Da noite, como às outras todas!
- Claro. Mas andaste com ela?
- `Tás parvo? Demos umas voltinhas!
- Mas o que é que ela tem a ver com a Inês?
- Nada...
E começa-se a rir, com cara de coelho estúpido. Este gajo está-
me a gozar.
- Porque é que te estás a rir, cabrão?
- Porque a Alice é assistente da Inês na editora.
- Não!
- Sim!
Foda-se. Estas merdas não me podem acontecer. Isto não é
possível.
- E, a esta hora, a Inês já deve saber....
Ok. Isto vai de mal a pior, mas se calhar eu até mereço esta
merda. Se calhar sou mesmo um filho da puta e vou-me lixar à força
toda.
- Porquê?
- Porque me ligou a perguntar se eu conhecia um tal de Miguel
Soares, que ligava para a Inês, e percebeu que era o mesmo com
quem tinha ido para a índia.
- E porque é que lhe há de ter contado?
- Eu não sei se contou, ou não, mas a Inês é chefe dela e ela já
se lixou uma vez por tua causa.
- Calma aí, eu não tirei a menina do trabalho dela em Londres.
Ela é que se baldou para ir comigo. Se foi despedida, o problema é
dela!
- Seja como for, sabes como são as mulheres, têm aquela mania
da merda da frontalidade.
Pronto, estou fodido. Agora é que estou mesmo fodido. Se a
outra puta contou à Inês, ela nunca mais olha para a minha cara e
acabou-se tudo. TUDO. MERDA, MERDA, MERDA. E agora? Agora
aguento-me à bronca. Não era a Inês que dizia que eu tinha uma
capacidade de abstracção tal que aguentava tudo? Isto não é o fim do
mundo.
- Pode não ter contado.
- Pois pode. Mas tu podias ter-lhe contado. Assim, poupavas-te a

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esta merda.
- Mas para que é que eu lhe ia contar? Tu não sabes como é?
Quando uma gaja não tem importância nenhuma, um gajo conta aos
amigos, não conta à namorada. Só ia servir para ela ficar ainda mais
furiosa comigo, e já lhe fiz mal suficiente, merda, merda, merda.
- Mas se, por acaso, a Alice já lhe contou, então é que ela se
chateia mesmo contigo.
Pois é. Que merda! Porra, dói-me a cabeça. O copo de vinho que
está à minha frente começa a dançar sozinho.
- Estás bem, pá?
- Estou, claro que estou, meu. Esta merda também não é o fim
do mundo.
- Pois não. E é como diz o Manuel João Vieira - e começa a cantar,
com o ritmo e a entoação certas - se bates com a carola / na parede,
por uma mulher / não partas mais a tola / mata a sede com outra
qualquer...
Porra, este cabrão tem piada, mas não estou com vontade
nenhuma de rir. E se a Inês a esta hora já sabe da merda da Alice? Se
calhar é por isso que tem o telefone desligado. E agora? O que é que
eu faço? O QUE É QUE EU FAÇO?
- E o que é que eu faço, meu?
- Nada. Falas com ela. Ou, então, se ela não quiser falar contigo,
esperas que ela acalme e depois falam os dois. Mas não estejas com
esse ar de pânico, também não mataste ninguém.
- Não estou nada com ar de pânico, pá. Gostava é que esta
merda não tivesse sido assim. Agora, ela vai pensar que eu a enganei
e, quando lhe explicar que me estava cagando para a outra, vai achar
que sou um pulha.
- Pois vai. Mas depois passa-lhe. Sabes como é a Inês, tem um
coração do tamanho do mundo e, além disso, adora-te.
- Merda.
- Podes crer. Não me apetecia estar na tua pele. - Nem a mim..
Já sei. Escrevo-lhe um mail. As palavras escritas são mais sérias,
mais sinceras, mais certas e ouvem-se melhor. Ela está habituada a
falar comigo por palavras escritas. Conto-lhe como tudo aconteceu,
explico-lhe como me sinto, e que nunca lhe quis fazer mal, que a
guardo comigo para sempre, que, se pudesse, dava-lhe tudo o que
ela quer e merece, mas não posso porque não sei. Porque não é isso
que eu quero, porque sou feito de outra matéria, e só sei viver avulso,

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por mim e para mim. Mas que isso não quer dizer que não a tenha
amado, que, de certa forma, não a ame ainda. Nunca desejei tanto
uma mulher, nunca me senti tão amado e protegido, nunca dei e
recebi tanto, nunca vivi um amor assim. Talvez a Inês seja mesmo a
mulher da minha vida, mas não posso abdicar da minha vida para
ficar com ela, e ela tem que perceber isso. Ela merece mais e melhor,
merece um tipo que seja dedicado, o que eu não sou, que tenha
espírito de família, que eu não tenho, que lhe dê segurança, uma
casa, um projecto de vida, talvez mais um filho.
Agora que penso nisto tudo, tenho tantas coisas para lhe dizer
que nem sei por onde começar. Talvez comece pelo fim, pelo prazer
enorme que é estar com ela, esta ansiedade quase incontrolável que
antecede os nossos reencontros, de a ter, de a agarrar, de ficar horas
e horas na cama com ela, a descansar encostado ao peito dela, a
ouvir as batidas dos nossos corações até se encontrarem no mesmo
tempo e modo. Como eu gostava de poder ver crescer a Carolina e
dar-lhe beijos todos os dias! Como ela me encheu a vida e o coração,
e me mostrou uma forma completamente nova de ser e de estar, me
emprestou uma luz que não conhecia, como ela sempre foi a mais
querida e mais linda, a melhor pessoa que conheci, apesar dos seus
medos, das suas tristezas e das suas infantilidades. Como o seu
nome, escrito nos vidros do comboio, quando atravessava a terra à
procura de mim próprio, me fazia companhia e me guiava como uma
bússola, como sonhava com ela e a desejava e tantas vezes a via,
sem saber, em outros corpos com quem apenas trocava fluidos e
desespero, ainda e sempre à procura de mim, dela, não sei já bem de
quê. De como ela me ensinou a conhecer-me melhor, a ouvir-me
melhor, a procurar em mim os defeitos em vez das qualidades. Do
legado imenso de doçura e paixão que ela me emprestou para
sempre. Do seu olhar de menina pequenina, das suas mãos claras, do
tamanho das minhas, da sua pele com cheiro a bebé, igual à da
Carolina, da sua cara mimada quando dormia ao meu lado, do seu
jeito especial para falar comigo e me suavizar o coração. De como eu
gostava, daqui a uns anos, que nos voltássemos a encontrar, de ter
um filho com ela e dar-lhe o que agora não posso, não quero, ou não
sei.
- Estás cá, Miguel? Sentes-te bem?
- Claro que me sinto bem, meu. Estava só a pensar aqui numas
merdas.

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- Queres sobremesa?
- Não, só um café.
- E onde é que vamos?
- Acho que não vou.
- Então?
- Tenho que ir para casa.
- Para casa? Numa sexta-feira à noite, em que isto deve estar
cheio de material novo?
- Não estou numa de saque. Não me apetece ver gajas.
- Bem, como queiras. Mas eu, vou prá guerra, que a noite é um
depósito.
- E tu estás a precisar de mudar o óleo, não é?
- Podes crer. Há coisas fundamentais para a saúde de um tipo, e
mandar uma trancada é uma delas.
- Então, pede a conta. E boa caçada, meu.
- Olha... Não entres em stress por causa daquela merda da Inês.
Fala com ela, vais ver que vocês se vão conseguir entender. - Isto é
uma merda, Duarte. Eu gosto mesmo dela, percebes? Eu gosto dela
como pessoa, a última coisa que queria era magoá-la.
- Mas já magoaste. Olha, eu amanhã vou ao Alentejo almoçar
com ela e com a Ana e o Frederico.
- Então tu sabes onde é que ela está e não me dizias nada? -
Pensei que soubesses, mas isso agora também não é importante.
Deixa estar. Eu amanhã falo com ela e tento perceber o que é que se
passa. Mas tem calma, meu. Ela vai ter que te ouvir e vais resolver
isso.
Gajas. Fodem-nos mesmo a vida. Mesmo quando gostamos delas
e elas de nós, dá sempre merda. Estou mesmo chateado com isto
tudo. Nunca contei à Inês a história da Alice, fui cobarde e estúpido.
Omiti-lhe uma coisa que não tem importância nenhuma e, agora,
passo por mentiroso e filho da puta. Mas ela vai perceber. Ela é
inteligente, ela TEM que perceber que isto não interferiu em nada do
que eu senti ou sinto por ela. Eu só gosto mesmo dela, bolas. Só
soube gostar, ao longo da vida, de meia dúzia de pessoas, mas a Inês
é uma delas, está à frente de todas as outras mulheres, é uma
referência obrigatória na minha vida e eu só lhe quero bem, só lhe
quero fazer bem.
A caminho de casa, paro numa loja de conveniência e compro
uma embalagem de cervejas, algumas revistas e um maço de

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cigarros. Espera-me uma noite longa, e quero que não fique nada por
dizer. Quero que ela perceba tudo, mesmo que não aceite. Mesmo
que nunca mais me fale, quero que me oiça. As palavras estão do
meu lado. E o tempo, também. Abro o computador e demoro alguns
minutos antes de mergulhar no teclado. Vai-me doer escrever esta
carta, mas a tristeza de a saber a sofrer por minha causa já me está a
destruir. Não posso, não quero, não vou deixar que, por uma merda
destas, eu a perca como pessoa. A Inês está acima de tudo isto, está
acima de tudo.
Lisboa, meia-noite e um quarto Minha querida Inês...

- Então? Vais ficar o fim-de-semana todo calada?


- Não. Deixa-me estar que eu já falo.
A última vez que estive aqui, com o Frederico, a Carolina e a
Ana, o Inverno estava a chegar ao fim. Andámos a passear, o Miguel
estava no Algarve e tudo parecia bem. A Ana já devia estar à espera
de bebé, mas não sabia e eu já devia estar à espera que o Miguel me
trouxesse problemas, mas também não sabia. É sábado à tarde e
desliguei o telefone para o Miguel não conseguir falar comigo. Desde
ontem que não o atendo. Fiquei de tal forma em estado de choque
com a história da Alice que nem sei o que pensar. Por isso, depois do
cinema, cheguei a casa, deitei a Carolina e enfiei um calmante pela
boca abaixo, à espera que o sono viesse. Não sei se o Miguel ligou ou
não, porque desliguei tudo e, hoje de manhã, só liguei o telefone para
combinar a que horas é que a Ana e o Frederico me vinham buscar e
depois desliguei logo. Não foi fácil, tive que me controlar e não ouvir
as mensagens recebidas, mas nem sei o que pensar de tudo isto. Só a
ideia de ouvir a voz do Miguel dá-me vómitos. Ontem à noite, depois
de tudo, ainda me enfiei debaixo do duche meia hora, esfreguei a
pele, mas a sensação de nojo continuava entranhada e chorei até
ficar rouca e com a cara marcada. Acho que só o tempo vai resolver
esta história, mas a tristeza voltou outra vez e agora agarro-me a ela
para não ter que pensar. Não sei se a Carolina percebeu, ou não,
alguma coisa, mas estou-me nas tintas. Não consigo ser sempre
perfeita, a mulher impassível, a editora competente, a super-mãe e
uma pessoa cem por cento bem disposta, calma e equilibrada todos
os dias, sobretudo naqueles em que descubro que a minha assistente
se meteu debaixo do meu namorado e foi com ele para a índia. Há
limites para tudo, e eu estou a chegar ao meu. Por isso, decidi fazer

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como as avestruzes: enterro a cabeça por debaixo da realidade, à
espera que passe. E o pior é que não estou sequer em estado de
ouvir recriminações e o clássico, eu bem te disse, que tanto me irrita.
Não me arrependo de ter estado outro dia com o Miguel. Ele traz à
minha vida uma luz que me faz sentir uma pessoa diferente, como se
emprestasse à minha existência uma dimensão totalmente nova, mas
até que ponto isto é mesmo real, e não um sonho adolescente que
vou alimentando à custa da minha sanidade mental, porque
simplesmente não consigo aceitar a ideia de viver sem ele?
O Miguel não foi um caso, não foi mais um namorado, uma
tentativa, um acidente de percurso. Foi só e apenas a pessoa que
mais amei em toda a minha vida, com quem me dei melhor e com
quem fui mais feliz. E esquecê-lo é agora o meu maior desafio. Como
e quando é que não sei. Mas vai ser muito difícil falar com ele sobre
isto tudo, confrontá-lo com a história da Alice - que eu sei que nem
sequer teve importância nenhuma, mas que me recuso a engolir - e
sobre tantas outras coisas que nos unem e nos separam.
A Ana convida-me para ir dar um passeio, mas tacitamente
recuso, esperando que o Frederico perceba que quero desabafar um
bocado com ele. Ele percebe imediatamente e a Ana também, por
isso enfia um chapéu de palha na cabeça e outro na da Carolina, dá-
lhe a mão, e diz:
- Só voltamos daqui a um bom bocado - com aquele sorriso doce
que as mulheres oferecem umas às outras, quando percebem que
não as podem ajudar de outra maneira. E sai porta fora, muito
orgulhosa, de mão dada com a Carolina, a brincar às mães.
O Frederico senta-se ao meu lado, dá-me a mão e fica muito
quieto, a olhar em frente, porque ambos sabemos que quando os
nossos olhares se cruzarem desato a chorar. Mas ele conhece-me
como ninguém. É o irmão que nunca tive: desde o liceu que me ouve
e me entende. São quase vinte anos de convivência e proximidade. A
ele posso dizer tudo o que penso e sinto, porque ele ouve tudo,
percebe tudo, ou, pelo menos, aceita tudo, mesmo que não perceba e
as suas palavras são sempre de conforto e alento.
- Estás quase a ser pai.... - começo, timidamente.
- Pois é. Agora é que a minha vida vai mudar. Só espero é que
corra tudo bem. Depois do que a Ana passou....
- Claro que vai correr. Vocês merecem.
- E tu também merecias, não achas? - Merecia o quê?

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- Ter alguém ao teu lado, que gostasse mesmo de ti, te tratasse
bem, te protegesse e te fizesse companhia...
- Mas já te tenho a ti! - e rimo-nos os dois. O Frederico olha para
mim, e é então que começo a chorar.
- Quando é que isto pára? - pergunta - Quando é que deixas de te
meter em situações que só te podem fazer mal?
- Não sei.
- E, desta vez, o que é que aconteceu?
Então, conto-lhe a história da viagem, a conversa com a Alice, a
noite que o Miguel passou lá em casa, antes de eu descobrir esta
coincidência completamente estúpida, e como me sinto uma idiota
perante o absurdo e o ridículo da situação, e o Frederico ouve-me
sem me interromper, até que me esgoto nas descrições,
considerações e especulações a que o tema me leva. - E já falaste
com ele?
- Não. Achas que devia falar?
- Não sei. Se calhar, era melhor nunca mais falares. Assim,
cortavas o mal pela raiz e afastavas-te definitivamente dele e desse
tipo de situações, percebes? Pode ser muito doloroso agora, mas
depois vais ver que é mais fácil. Ou menos difícil.
- Mas não achas que eu lhe devia, ao menos, perguntar o que é
que se passou e porque é que ele fez isto?
- E o que é isso te adianta? Não percebes que é essa maneira de
ser e de estar que está toda ela errada? Quer dizer, não sei se está,
ou não, errada... e eu não sou ninguém para julgar os outros, mas não
achas que isso demonstra que ele não tem valores, nem princípios?
- Ele pode ter agido mal comigo, mas, no fundo, é bom. Ou vais-
me dizer que nem tu nem eu nunca fizemos mal a outras pessoas? -
respondo, em tom de protesto.
- Não, não é: pode não ser má pessoa, mas não é uma pessoa
pura. As pessoas nunca são nem completamente boas, nem
totalmente más; mas há pessoas com princípios, e outras que vivem
ao sabor dos instintos e dos desejos mais primários. E ele é desses.
Não que eu o ache um tipo mau, mas não lhe vejo nenhuns princípios.
Ele andou contigo um ano, vivia praticamente em tua casa, brincava
com a tua filha, dizia que gostava de ti e, de um dia para o outro, foi
fazer uma viagem, só porque ganhou dinheiro com um prémio que eu
incentivei a concorrer! Que tipo de pessoa é esta que, mesmo
gostando de ti, se vai embora de um dia para o outro? Ainda por

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cima, sabemos agora, com uma tipa qualquer, que conheceu uns dias
antes, na noite? Não sei, se calhar sou eu que não vivo neste mundo.
Mas não quero viver neste mundo em que as pessoas agem sem
pensar, sem o mínimo de responsabilidade.
-- Eu também não quero.
- Eu sei, por isso é que toda esta história me revolta. Eu vi-te,
nestes meses todos, a sofrer por uma relação que, no fundo, tu sabes
que é inviável. O que é que um miúdo de vinte e cinco anos te pode
dar? E por mais coisas boas que ele te dê, - e que acredito que até
foram algumas e importantes - não tem um projecto de vida contigo,
não está ao teu lado para o que der e vier, não te apoia
incondicionalmente, não te leva leite com mel à cama se tu ficares
doente, não te protege, não está contigo, percebes?
- Mas eu gosto tanto dele!
- Eu sei. Ele é que não gosta de ti da mesma maneira, e tu tens
que aprender, duma vez por todas, que não se pede amor a ninguém,
nem se dá a quem não merece. Mais vale estares sozinha do que
prolongar essa tristeza. Livra-te disso, aproveita este episódio triste e
caricato para arrumar o assunto de vez e recomeça da estaca zero,
mas recomeça por ti e para ti, sem bengalas, nem Filipes, nem
Trutas, nem nada. Tens uma filha que te adora, tens um trabalho
óptimo, tens-nos a nós, tens 35 anos e a vida toda à tua frente. Mas
és tu que tens que dar o salto e livrar-te do que te faz mal. Senão,
daqui a uns anos, estás cansada, sozinha e, pior do que tudo,
amargurada com a vida. E aí é que vais envelhecer.
- Tens razão.
O Frederico abraça-me com cuidado e encosto a cara ao ombro
dele. Aqui, sinto-me protegida, tranquila, a salvo. É estranho, não me
lembro da última vez que abracei o meu pai...
- Eu não quero ter razão. Quero que penses um bocado em ti;
que isto te sirva de pretexto para mudar alguma coisa. Se não te
sabes proteger, arranja alguém ao teu lado que te proteja, como eu
fiz com a Ana. A nossa relação nem sempre é uma loucura de paixão,
mas sabemos que podemos contar um com o outro para tudo, e isso,
minha querida, é que é amor. O homem certo não é o que te faz
declarações e te dá flores, e te escreve do outro lado do mundo, e
que te diz que és perfeita. O homem certo é o que quiser estar
mesmo ao teu lado, incondicionalmente. O que gostar de ti sempre,
que te acompanhe para o que der e vier. Não é o que olha todos os

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dias para ti e te diz que és linda e que és o amor da vida dele, mas
alguém que olha por ti todos os dias, percebes? E é esse homem que
merece todo o amor que sentes agora, não é um miúdo convencido
que é o maior, que nem sequer te sabe tratar bem. Tens que ser mais
sensata e mais cautelosa. É só isso.
É só isso. Como se isso fosse pouco.
- E onde é que ele está?
- Não sei, mas não está de certeza na faixa dos 25 anos. Nessa
idade, ainda se viveu pouco, ainda não se perderam as pessoas
suficientes para se dar valor às coisas mesmo importantes.
Por um momento, pára de falar, vai à cozinha buscar dois copos
de sumo e estende-me um. Depois bebe, respira fundo e recomeça.
- Sabes, quando a minha mãe morreu, eu tinha dezasseis anos.
Talvez não tenha sofrido da mesma maneira que tu sofreste, quando
te aconteceu o mesmo. Ou talvez sim, mas de forma completamente
diferente porque, com dezasseis anos, sentes tudo, mas há imensas
coisas que não percebes, nem queres perceber. Tu acompanhaste
tudo e sempre te espantaste com a minha calma, mas eu fartava-me
de pensar porque é que não conseguia chorar. E sofria, era impossível
não sofrer. Mas não conseguia chorar e era uma sensação
estranhíssima. Criei defesas muito fortes. Tão fortes que demorei
quase vinte anos a interessar-me por alguém, e agora sei porquê. O
meu subconsciente deve ter decidido que não queria voltar a sofrer a
perda de ninguém.
- Se calhar, foi o que o Miguel fez, quando a mãe dele morreu.
- É estranho, os dois homens mais próximos de ti terem uma
história de família semelhante entre eles, e parecida com a tua, não
achas?
- Talvez.
Pois é. Nunca tinha pensado nisto. Será que, no fundo, sou como
a Teresa, procuro nos outros o que já me fez mal? Será que também
só sei viver em sofrimento? Tenho mesmo que pensar nisto tudo com
calma. Há-de haver um caminho. Há sempre um ou mais caminhos. O
que é preciso é segui-los. Claro que é mais fácil apanhar um comboio
qualquer, ou fazer como a Dorothy, o leão medroso, o espantalho e o
homem de lata, mas não foi esse o caminho que a levou a casa...
- Ouve, há sempre maneiras diferentes de encarar os problemas.
Eu tive sorte, tenho algum bom senso e equilíbrio inatos e, por isso, é
que dizias sempre que eu era uma rocha, mas as rochas perdem o

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melhor da vida porque endurecem, não sentem e por isso não vêem
nada. A tua fragilidade e intensidade a viver tudo foi uma das coisas
que me trouxe outra vez à vida, em vez de a ver de fora.
- Por sermos tão diferentes é que somos tão amigos.
- Claro. Mas sabes, eu só percebi isto tudo há muito pouco
tempo, já depois de ter casado com a Ana. Percebi que podia ter sido
como o Miguel, podia nunca mais me ter aberto para alguém, e isso
assustou-me, fez-me impressão.
- Mas o Miguel abriu. O Miguel adorava-me e foi felicíssimo
comigo.
- Pois abriu. Abriu o que soube, o que pôde, o que conseguiu. E
isso não chegou, pois não?
- Não.
Talvez o Miguel tenha dado tudo quando esteve comigo e se
tenha esgotado. Talvez ele próprio seja o primeiro a sofrer com a sua
pobreza emocional. Talvez nisto ele seja mesmo diferente de mim.
Por isso é que se foi embora, apesar de ainda ter laços comigo. Talvez
o que ele fez, e da forma como o fez, seja legítimo do ponto de vista
dele. Mas o Frederico está-me a abrir caminhos, a mostrar pistas e, a
pouco e pouco, sinto-me mais calma, mais lúcida, com uma visão
mais perceptível da realidade.
- Eu não sou muito bom nestas coisas afectivas. Até acho que
sou um bocado primário, mas vê isto do ponto de vista pratico: uma
relação não deve servir para nos trazer nem angústia, nem tristeza,
nem ausência, nem sofrimento, pois não? E o homem certo para ti, se
é que isso existe - e vocês, as mulheres, precisam de acreditar no
príncipe encantado, por isso eu prefiro dizer-te que ele existe mesmo
-, é aquele para quem tu também fores a pessoa certa.
- Mas ainda não me disseste onde é que ele está!...
- Querida, isto não é o jogo da caça ao tesouro! Não interessa
onde é que ele está. Interessa que saibas viver em paz,
independentemente dele aparecer, ou não. Achas que consegues?
- Não sei.
E não sei mesmo.
- Mas tens que conseguir. Senão, pessoas como o Miguel vão
continuar a atropelar a tua existência e nunca a viverás plenamente.
E tu tens esse direito, essa oportunidade, esse dever. Por ti mesma e
pela tua filha.
Bendito Frederico. Devia gravar esta conversa e ouvi-la todos os

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dias numa cassete à noite, tipo mentalização progressiva, como os
vendedores ouvem a caminho do emprego, de manhã. Sei que entre
a realidade que sempre quis para mim e aquela que me vejo agora
obrigada a enfrentar, vai um mundo. Um mundo de abnegação e
vontade férrea. Mas talvez consiga. Talvez.
- Bem, esta conversa já está muito longa, mas sabes o que é que
eu acho? Que tu no fundo ainda não cresceste, ainda vives o amor de
uma forma lírica, muito adolescente. Eu espero que tu nunca percas
essa frescura e entusiasmo pela vida e pelos outros, mas tens que
crescer um bocado, Inês, não podes continuar a achar que és a Gata
Borralheira...
- Ou a Dorothy, a correr pela estrada dos tijolos de ouro.
- Olha, eu não sou o leão, nem o homem de lata, nem o outro...
Quem era o outro?
- O espantalho.
- Pois, esse então não sou de certeza. Por isso, não posso ir
contigo. Mas, se quiseres mudar de história, posso ser o teu grilo
falante.
Devagar, muito devagar, começo a perceber uma série de
coisas. Que a metáfora do Feiticeiro de Oz me assenta como uma
luva, que os meus companheiros de viagem são todos o Miguel, as
suas limitações e fragilidades.
- Também já tenho um espantalho, um leão medroso e um
homem de lata que quer ser uma pessoa, mas ainda não percebeu....
- Pois tens. Mas tens que te ver livre disso. Não é dele, percebes? É
disso tudo.
Pois tenho. E, quando voltar do fim-de-semana, vou falar com o
Miguel. Vou ter calma, ouvir o que ele tem para me dizer e explicar-
lhe tudo o que nunca lhe disse, tudo o que sempre quis e que ele
nunca me soube, ou quis, ou pôde dar.
- Mas vou falar com ele. E vou ser sincera. Já não tenho nada a
perder.
- Isso. Abre-lhe o teu coração. Ele já não te pode magoar mais,
pois não? E talvez, de alguma forma, isto tudo o ajude a suavizar o
dele.
- Ajuda, com certeza.
- Mas tu queres mais, não queres?
- Não sei, mas de certeza que quero melhor.
- Pois queres. E queres receber mais e dar menos. Olha que

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receber também é difícil!
Como se eu não soubesse.
- Mas não te zangues com ele, nem te entristeças contigo
mesma. Se calhar, daqui a uns meses, depois da desordem do amor,
talvez possam ficar amigos e ter uma relação tranquila. Mas agora
afasta-te um bocado, protege-te, fala com ele, mas resguarda-te.
- Eu sei. Mas tenho que guardar a doçura disto tudo, senão fico
com a sensação de que nada valeu a pena.
- Claro que valeu. Vale sempre a pena gostar de alguém a sério,
como tu gostaste dele. Um dia destes aparece alguém que vai gostar
de ti da mesma maneira, com a mesma grandeza e a mesma doçura.
É sempre assim: recebemos o que damos. Por isso é que eu comecei
esta conversa a dizer que tu mereces. Bendito, abençoado, adorável
Frederico. Adoro-te, adoro-te, adoro-te, dás-me paz e segurança, és o
meu melhor amigo e nem imagino o que seria a minha vida sem ti.
Mas também não preciso, porque estás aqui comigo, dentro do meu
coração, e és de certeza uma das cinco melhores pessoas que
conheço. E, sem dizer nada, porque o nó na garganta é do tamanho
de uma bola de futebol, dou-lhe um abraço imenso, infinito, maior do
que o mundo.
- Olha que eu sempre disse que tens aqui dois ombros, um para
rir e outro para chorar, mas agora fecha a torneira, que eu já não sei
o que te hei-de fazer.
A Ana e a Carolina entram em casa com ramos de alfazemas e
alecrim. A Ana olha-me longamente, dá um beijo ao Frederico e diz,
como se nada fosse:
- Então, seus preguiçosos, vamos fazer o almoço, ou quê? O
Duarte telefonou a avisar que vem aí e está cheio de fome. - Deve
estar estafado por causa de uma Cláudia qualquer que sacou ontem
na noite.
- Claro. Não sabes que há coisas que nunca mudam???

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