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TRIBUNA

Antunes ALIVRE
et al ARQUIVOS DE MEDICINA,
Consentimento 13(2): 121-127
da Prática Clínica
ISSN 0871-3413 • ©ArquiMed, 1999

CONSENTIMENTO INFORMADO NA PRÁTICA CLÍNICA

Alexandra Antunes*, Rui Nunes**

Resumo: Nas sociedades plurais e secularizadas observou-se Key-words: Informed consent; presumed consent; professional
uma mudança de paradigma na prestação de cuidados de saúde. A liability.
necessidade de obtenção de consentimento informado é o rosto visível
dessa transformação. Três elementos são essenciais para que o
consentimento seja considerado livre e esclarecido: a) competência na 1 - INTRODUÇÃO
esfera da decisão; b) informação apropriada; c) inexistência de coerção.
Competência para decidir implica que o paciente seja capaz de com- Ao não aceitar uma única ortodoxia cultural, política ou religiosa
preender a informação, de decidir relativamente às escolhas possíveis - utilizando as palavras de Tristram Engelhardt Jr. (1) - a comunidade
e de comunicar a sua decisão. humana teve de procurar um novo rumo, uma nova linha de orientação,
A doutrina dos direitos humanos fundamentais - expressa com que permitisse a convivência pacífica dos elementos que a constituem.
clareza na Declaração Universal dos Direitos Humanos - tem sido A doutrina dos direitos humanos fundamentais - expressa com clareza
considerada como o fundamento da ética nas sociedades plurais e na Declaração Universal dos Direitos do Homem - tem sido considerada,
secularizadas e como fonte de inspiração do debate público. Esta desde a sua proclamação, como fundamento da ética nas sociedades
Declaração, e os direitos que lhe estão associados, mais não faz do que plurais e secularizadas e como fonte de inspiração do debate público.
reconhecer a dignidade da pessoa humana como marco axiológico Esta Declaração, e os direitos que lhe estão associados, mais não faz
fundamental. Os objectivos deste estudo são; a) fazer uma análise do que reconhecer a eminente dignidade da pessoa humana como
compreensiva da principiologia de Beauchamp e Childress enqua- marco axiológico fundamental.
drando-a na doutrina do consentimento informado, e b) avaliar outras Se o conceito de dignidade humana serve de referencial normativo
formas de consentimento na prática clínica. Uma correcta informação a todo o tipo de intervenção no Homem, tanto na esfera política como
sobre a doutrina do consentimento informado pode concorrer para que social, a prestação de cuidados de saúde não podia fugir a esta realida-
a afirmação da dignidade humana no âmbito da saúde venha a ser uma de. Numa sociedade que se rege cada vez mais por um imperativo
realidade. tecnológico, torna-se fundamental questionar se aquilo que é tecnica-
Palavras-chave: Consentimento informado; consentimento mente possível é eticamente legítimo. O conceito de bioética, tal como
presumido; responsabilidade médica. foi apresentado por Van Potter em 1970 (2), tornou-se avassalador ao
abranger não apenas as questões éticas relacionadas com o exercício
Summary: It is accepted that competent autonomous people are clínico - a ética em cuidados de saúde - mas também tudo o que
able to give informed expressed consent to most medical and surgical interfere com o fenómeno vital (3).
procedures. In the last decades medical paternalism gave way to the Ao paciente passa a ser-lhe reconhecida liberdade na esfera da
full exercise of individual responsibility. Ethical liberty and the decisão, devendo ser considerado como um ser autónomo e
principles of equal dignity among human beings and of the non- independente, com crenças e valores que deverão ser respeitados.
instrumental value of the human person are the main ethical framework. Aliás, era neste sentido que Immanuel Kant acreditava que um ser
However, personal autonomy is not unlimited. Human dignity implies racional age autonomamente de acordo com a sua perspectiva do bem
that the human body has a symbolic value and therefore its unethical individual e do bem comum. Porque o ser humano ao possuir desejo
use implies instrumentalization of the human person. e vontade é, necessariamente, um fim em si mesmo. Tal significa que
The objectives of this study are a) to make a comprehensive não deverá nunca ser instrumentalizado (4). Trata-se da consagração
analysis of Beauchamp and Childress principles of biomedical ethics, do postulado essencial do valor intrínseco, não-instrumental de toda a
as far the doctrine of informed expressed consent is concerned, and b) pessoa humana.
to analyse the ethical foundations of other forms of consent in clinical O consentimento informado insere-se nesta dinâmica e ao conter
practice. The authors conclude by stating that in pluralistic societies duas grandes linhas de orientação - o respeito pela liberdade da pessoa
the consent process should be made in accordance not only with the e a promoção do seu melhor interesse - incentiva, claramente, o
bioethical principle of respect for personal autonomy but also with the exercício da responsabilidade individual.
principles of beneficence and of nonmaleficence.
2 - PRINCÍPIOS DE ÉTICA BIOMÉDICA

A pessoa é o centro do universo bioético. Entende-se por pessoa


qualquer “substância individual de natureza racional” (Boécio). Trata-
-se de uma visão personalista da ética que tem como pressupostos
fundamentais a dignidade e a responsabilidade. O exercício da liberdade
* - Investigadora do Serviço de Bioética e Ética Médica da FMUP
ética individual surge, assim, como o único valor absoluto, como o
** - Professor Auxiliar da FMUP
único valor normativo no relacionamento entre pessoas pertencentes
a universos culturais distintos. Na sequência do pensamento de Hans
Jonas, compete ao Homem respeitar e fazer respeitar o valor fundamen-
Correspondência:
tal que é a vida, em particular a vida humana. Porém, mesmo os
Drª Alexandra Antunes
conceitos de vida e de vida humana prestam-se hoje a valorações
Serviço de Bioética e Ética Médica
distintas. Bons exemplos disso são a discussão em torno da legitimidade
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
da eutanásia ou da interrupção voluntária de gravidez.
Alameda Professor Hernâni Monteiro
Na prestação de cuidados de saúde o debate ético reveste-se de
4200 Porto
uma particular acuidade, pela evolução assustadora da tecnologia
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biomédica, tal como a manipulação genética da vida humana ou o seu Quadro I - Princípios de ética biomédica
prolongamento artificial. Surgiu, assim, a necessidade de articular ADAPTADO A PARTIR DE BEAUCHAMP E CHILDRESS - 1994
valores contraditórios sobre o significado e alcance da intervenção - RESPEITO PELA AUTONOMIA
médica. As sociedades ocidentais criaram um vazio de poder onde o - BENEFICÊNCIA
médico deixou de ser soberano na decisão clínica. Esta decisão, numa - NÃO-MALEFICÊNCIA
fase inicial, passou a ser partilhada com a restante equipa de saúde, e, - JUSTIÇA
mais recentemente, com o doente e sua família. - VULNERABILIDADE
Mas, se as correntes mais representativas do pensamento humano
giram em torno de duas teorias éticas fundamentais - a deontologia e
o utilitarismo - não resta hoje dúvida que estas duas perspectivas
entram frequentemente em colisão. Todas as acções humanas têm uma Foi a aceitação da hipótese de que pode existir um conflito de
dimensão ética intrínseca, que as categoriza em certas ou erradas valores (éticos e culturais), que gerou a necessidade do doente exercer
segundo os valores predominantes na sociedade. Contudo, não é o seu direito à auto-determinação. No entanto, este direito não é
menos verdade que o interesse colectivo (o melhor para o maior ilimitado. Deve ser exigido apenas no contexto do leque de intervenções
número de pessoas possível) é igualmente um bem essencial. Recorde- propostas. O doente não tem o direito de exigir um tratamento não
se que numa sociedade plural e secularizada, onde as pessoas se encon- médico ou inconsistente com a finalidade da medicina (amputação por
tram como “estranhos morais”, não é possível obter-se um consenso motivo de superstição, a título de exemplo). O respeito pela autonomia
no que respeita à adopção de uma visão única do bem comum (5). deve ser observado em dois sentidos diferentes: a do doente e a do
Para resolver este conflito latente entre teorias éticas contraditórias, profissional de saúde. A objecção de consciência é o paradigma do
Beauchamp e Childress (6) idealizaram um conjunto de princípios exercício da auto-determinação profissional.
que, em sua opinião, seriam o pilar estrutural da ética nos cuidados de Os princípios da beneficência e da não-maleficência (não provocar
saúde (Quadro I). Este conjunto de princípios *, que fundamentam, ou dano ao paciente, de forma intencional ou negligente) foram, durante
melhor que constituem a teoria ética proposta por estes autores, séculos, a base do exercício da medicina. Numa perspectiva actual,
decorrem de uma interpretação subjectiva das teorias éticas clássicas trata-se de respeitar a vontade do doente na óptica do seu melhor
e anteriormente referidas. Isto é, a ausência de um consenso a nível interesse e, preferencialmente, sem o prejudicar (primum non nocere).
teórico, não implica que não se reconheça a importância de um A intervenção clínica deve ter em consideração estas três componentes
conjunto de princípios que orientam a actuação clínica. Ou, noutra para ser eticamente responsável, numa sociedade cada vez mais alheia
perspectiva, será possível encontrar uma fundamentação teórica para ao sofrimento individual.
estes princípios, enquanto regras práticas de actuação, na dependência O princípio da justiça, neste contexto, pode querer referir-se à
estrita da doutrina da dignidade da pessoa humana. justa distribuição de recursos na sociedade. Esta “justiça distributiva”
Estes princípios - autonomia, beneficência, não-maleficência e ao relacionar-se com a afectação de recursos para a prestação de
justiça - não possuem uma ordem hierárquica particular, devendo ser cuidados de saúde tornou-se num dos principais problemas de ética
interpretados casuisticamente, de acordo com cada circunstância biomédica da actualidade. Por exemplo, quem deve ser seleccionado
específica. para transplantação cardíaca quando existem vários candidatos
O princípio do respeito pela autonomia individual refere-se ao elegíveis? Repare-se que não é apenas uma decisão clínica mas
direito de cada pessoa ao seu “auto-governo”. Este princípio decorre também uma questão ética fundamental. O próprio conceito de direito
naturalmente da doutrina da dignidade humana e dos direitos humanos à prestação de cuidados de saúde passa a estar em escrutínio, dado
fundamentais. É, no fundo, o exercício da liberdade da pessoa enquanto existirem diferentes perspectivas a este propósito. Robert Nozick, no
agente social. As decisões individuais, porque são autónomas, tornam- seu livro “Anarchy, State and Utopia” (7) refere-se a esta problemática
-se num bem essencial. Desde que não venham ferir o valor dignidade considerando que não obstante se tratar de um infortúnio pessoal, a
humana e a sua expressão básica - a vida e o respeito que lhe é devido. situação de doença só é injusta quando for consequência da acção
Na prática clínica, a adopção deste princípio implica que os profissionais voluntária de outra pessoa. Dificilmente se aceita esta tese na Europa
de saúde passem a ter em linha de conta a vontade dos doentes, ocidental. Também no nosso país, a saúde é considerada como um bem
nomeadamente no que respeita à abstenção ou suspensão de meios básico, indispensável ao exercício da liberdade individual, pelo que a
desproporcionados de tratamento. sua promoção é um imperativo que todos devemos assumir. Mas deve
Mas foi apenas ao longo das últimas décadas que se reconheceu reconhecer-se que, com o envelhecimento da população, a contenção
o direito do doente a ser envolvido nas decisões médicas. Tal poderá de custos dará lugar à necessidade de tomar difíceis opções, como a de
dever-se ao facto da tradição hipocrática não se referir à necessidade racionar os cuidados nos sistemas públicos.
do médico informar o doente sobre o seu diagnóstico e tratamento. Não é apenas uma diferente visão da justiça distributiva que
Nessa época, a relação médico-doente era baseada exclusivamente no distingue o pensamento europeu continental da ética anglo-americana.
princípio da beneficência. Estava em causa a noção de paternalismo, A nível da formulação global dos princípios de ética biomédica existe,
na qual o médico deve comportar-se, tal como o nome indica, como um também, alguma discrepância. Recentemente, Kemp e Rendtorff, (8),
pai para um filho. Assim, o médico teria o dever de proteger este baseados num estudo multicêntrico europeu, consagraram
“filho” fazendo-lhe o bem, estabelecendo regras de comportamento e definitivamente o princípio do respeito pela vulnerabilidade, como
prescrevendo o tratamento apropriado. Nesta óptica, o doente deve entidade autónoma e como referencial normativo. Trata-se da
respeitar este ser “superior” que é visto como o “dono da verdade”, constatação de que algumas pessoas - deficientes mentais, doentes em
obedecendo-lhe sem questionar. Esta é a base estruturante do princípio coma, crianças, etc. - estão particularmente frágeis a ponto de a sua
da beneficência. O clínico, benevolentemente, actua de acordo com integridade física ou psicológica estar ameaçada. De certo modo é uma
aquilo que lhe parece ser o melhor interesse do paciente. Melhor inte- resposta à sacralização da autonomia como valor máximo da relação
resse, porém, comporta pelo menos duas vertentes fundamentais: a clínica. Este princípio da vulnerabilidade, nas suas múltiplas expressões,
dimensão estritamente clínica e os valores pessoais do doente, enquanto encontra-se na mais pura tradição humanista europeia, colocando
sujeito inserido numa cultura que lhe é própria. alguns limites ao exercício da autonomia e reconhecendo o primado da
beneficência na actuação clínica.
* Devido à sua enorme difusão, a teoria de Beauchamp e Childress é correntemente designada por Esta estruturação em princípios éticos de aplicação prática tem a
principiologia de Georgetown. Corresponde à escola de pensamento do Kennedy Institute of Ethics,
uma das mais prestigiadas instituições a nível mundial que se dedica ao ensino e investigação da virtude de ser facilmente perceptível no plano conceptual. Porém,
ética aplicada. pode não escapar à crítica de nada afirmar sobre a bondade intrínseca
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da actuação clínica, definindo apenas qual a decisão a tomar num De acordo com o nosso normativo jurídico, a partir dos dezoito anos
determinado contexto e qual o agente com efectiva capacidade de está preenchido este requisito. Porém, o conceito de consentimento
decidir. Não obstante, o consentimento informado é, segundo Luís informado é, essencialmente, uma doutrina de natureza ética, pelo que,
Archer (9) “um dos corolários do primeiro princípio da bioética: a ainda que o paciente seja menor do ponto de vista legal, existem
autonomia de todo e qualquer ser humano, baseada na dignidade da situações em que a obtenção do consentimento pode ser obrigatória
pessoa e no direito que ela tem à sua auto-realização individual”. nesta faixa etária. Tratando-se de um adulto, este deverá estar consciente,
mentalmente competente e não ser sujeito a qualquer tipo de coerção
3- O CONSENTIMENTO INFORMADO que influencie a sua decisão.
Segundo Beauchamp e Childress (1994) o consentimento informa-
A doutrina do consentimento informado, livre e esclarecido é do é constituído por cinco elementos distintos (Quadro II).
relativamente nova em medicina. Foi apenas há cerca de setenta anos Estes elementos são os blocos de construção para que o consenti-
atrás que um tribunal nos Estados Unidos da América, deliberou: mento seja considerado válido. O agente dá um consentimento
“... todos os seres humanos maiores de idade e com saúde mental informado se for competente para agir, se receber a informação com-
(competentes), têm o direito a determinar o que deverá ser feito com pleta, se compreender essa mesma informação, se decidir voluntaria-
o próprio corpo; e um cirurgião que realize uma operação sem o mente, e, finalmente, se consentir a intervenção.
consentimento do paciente, comete uma violação estando por isso Estes elementos poderão, ainda segundo os mesmos autores, ser
sujeito à exigência de responsabilidade” Olmstead versus United subdivididos em três componentes fundamentais:
States (1928), (10).
Na sequência da segunda Guerra Mundial, em 1948, a Associação I. Pré-condições:
Médica Mundial proclamou a Declaração de Genebra, considerada 1. competência (para compreender e agir);
como um juramento hipocrático actualizado. Posteriormente surgiram, 2. voluntariedade (em decidir);
entre outros, o Código de Nuremberga e a Declaração de Helsínquia
(e as suas repetidas revisões), que enfatizam a necessidade do consenti- II. Elementos da informação:
mento voluntário para a prática da investigação em seres humanos 3. comunicação da informação;
exprimindo duas características essenciais ao exercício da medicina: 4. recomendação de um plano;
a) a elevada responsabilidade face às necessidades e desejos do doente 5. compreensão;
e, b) a exigência de um equilíbrio entre os direitos do doente, como
indivíduo autónomo, e os interesses da sociedade como referencial III. Elementos do consentimento
colectivo (11). 6. decisão (em favor de um plano);
A expressão “consentimento informado” terá surgido pela primeira 7. autorização do plano escolhido.
vez em 1931 na legislação alemã que regulamentava a experimentação
humana (12), mas foi apenas em 1948, durante os julgamentos de Esta classificação necessita de um breve comentário. Em primeiro
Nuremberga, que esta doutrina começou a ser publicamente discutida. lugar, quando existe dissentimento, o item III deve referir-se a Elementos
No decurso dos anos setenta, mais do que um novo conceito, tratou- de recusa. Também, quando está em causa investigação em seres
se de uma nova postura, tendo-se instaurado definitivamente na humanos, a obtenção de consentimento não implica necessariamente
relação com o doente. Esta evolução não foi alheia ao facto do respeito uma recomendação (item II-4). Se esta for efectuada, deverá ser num
pela autonomia do paciente, enquanto sujeito portador de direitos, se âmbito diferente da realizada na prática clínica. Finalmente, e como
tornar num pilar fundamental da relação clínica (13). Porém, o aliás já referimos, a competência na esfera da decisão deve ser
conceito de consentimento informado é distinto do direito à auto- considerada mais como um pressuposto do que, verdadeiramente,
-determinação individual; mas é através do respeito pela autonomia e como um elemento do consentimento.
dignidade do paciente que se fomenta e cria a verdadeira necessidade Após esta tentativa de sistematização dos vectores fundamentais
do consentimento informado. do consentimento informado, importa efectuar uma análise mais
Entende-se, assim, que este novo “modelo de autonomia” tenha criteriosa relativamente a cada um deles.
dado origem a um novo modelo de relação médico-doente, se assim se
quiser designar, no qual a decisão terapêutica, deixa de ser da exclusiva COMPETÊNCIA
responsabilidade do profissional de saúde, para ser partilhada com o
paciente. Em última instância a decisão é do paciente, que exprimirá Genericamente, o significado de competência pode ser “capacidade
a sua vontade, aceitando ou não a estratégia terapêutica proposta. para efectuar uma tarefa”. No entanto, o critério de competência a
O respeito pela autonomia do doente alterou a sua postura no seio níveis mais específicos, varia de contexto para contexto, uma vez que
da relação clínica, passando de uma completa dependência para uma esse mesmo critério está relacionado com as tarefas, também elas,
participação activa. Esta transição do paternalismo para o exercício da consideradas específicas. Isto é, o nível de competência exigido para
autonomia, trouxe uma nova responsabilidade aos profissionais de um sujeito decidir participar num projecto de investigação, para
saúde. Assim, passam a ter o dever de partilhar a informação e discutir assinar um cheque, para realizar tarefas domésticas ou, ainda, para
alternativas com os pacientes, os quais devem tomar uma decisão final estudar num curso superior, é radicalmente diferente. A competência
quanto ao seu tratamento, ou, se for esse o caso, decidir quanto a para decidir está relacionada com a decisão a ser tomada. Mais, a
participar em projectos de investigação. Importa, ainda, salientar o pessoa raramente poderá ser julgada incompetente relativamente a
facto de o respeito pela autonomia individual não ser apenas um todas as suas decisões. Usualmente apenas é necessário considerar um
preceito da medicina clínica, para abranger todos os profissionais da
área da saúde, como sejam, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas,
dentistas, etc.. A Convenção de Bioética do Conselho da Europa Quadro II - Elementos do consentimento informado
afirma claramente que “uma intervenção no campo da saúde só deverá
ser efectuada após a pessoa o permitir, dando para tal o seu consentimen- 1- Competência
to livre e informado.” (14). 2- Comunicação
Quais as condições necessárias para que um consentimento seja 3- Compreensão
considerado válido? Em primeiro lugar, a pessoa deverá ser competente. 4- Voluntariedade
O adulto, a priori, deve ser considerado competente na esfera decisional. 5- Consentimento
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tipo de competência, como a competência para decidir quanto a um perturbação, no sentido de perceber se a decisão é livre de este tipo de
tratamento ou à participação num projecto de investigação. Assim, influência, perturbadora por excelência.
estes julgamentos de competência e incompetência afectam somente Seguindo este raciocínio, coloca-se a questão referente à determina-
um determinado estádio de tomada de decisão. Por exemplo, uma ção da competência. Isto é, quais os requisitos que devem ser preenchi-
pessoa poderá ser incompetente para decidir quanto a questões dos para que uma pessoa seja considerada competente. Tanto no plano
financeiras e ser competente para decidir quanto à sua participação em médico como no plano jurídico, os níveis de competência tendem a
projectos de investigação, ou ainda, estar apta a desempenhar tarefas associar-se às capacidades mentais características de pessoas autóno-
simples mas não as complexas. Neste sentido, o conceito de competência mas, tal como a capacidade cognitiva e a independência de julgamento.
torna-se mais compreensível se for abordado de uma forma contextual. O nível de competência está relacionado com a capacidade para
Nos cuidados de saúde, o julgamento sobre a competência de uma compreender e processar a informação e para raciocinar sobre as
pessoa distingue a classe de indivíduos cujas decisões deverão ser consequências de uma acção. Perdendo algumas destas capacidades,
respeitadas, daqueles que necessitam de um representante que substitua a competência do agente para decidir, consentindo ou recusando uma
a sua vontade (legítimo representante). Pode afirmar-se que competência intervenção, fica comprometida.
envolve diversos graus, sendo fundamental determinar a capacidade, A expressão da vontade individual prende-se com o conceito de
no plano cognitivo, em tomar uma decisão. Porém, na prática clínica liberdade de decisão. Isto é, a pessoa deverá estar livre de qualquer
corrente, deve ser estabelecida uma linha, ainda que arbitrária, entre influência exterior, nomeadamente de forças manipulativas ou
pessoas competentes e incompetentes. A competência decisional coercitivas. Este tipo de influência na vontade do agente deve ser
relaciona-se, assim, e claramente, com a capacidade de exercício da considerado como violador do direito à auto-determinação individual
auto-determinação do agente. Quando a incompetência é devida a uma porque a pessoa não age segundo a sua vontade mas influenciada por
causa reversível - como dor, sofrimento ou o efeito da medicação - o factores que lhe são estranhos. Não está incluído neste conceito a
objectivo primordial deve ser o de restituir ao paciente a capacidade utilização de argumentos de natureza exclusivamente racional -
necessária à tomada de decisão. persuasão - que é legítima no plano ético e correntemente utilizada na
Para além de poder ser reversível, a competência individual pode prática clínica. De facto, médicos, psicólogos e enfermeiros fazem
flutuar no tempo. Pode mesmo afirmar-se que, ao longo da nossa vida mais do que enunciar o diagnóstico, prognóstico e estratégia terapêutica.
adulta, todos somos transitoriamente incompetentes - durante o sono, Indicam claramente qual a sua opção, sendo essa uma expectativa
a anestesia ou sob o efeito de uma forte dor. Nalgumas pessoas, porém, implícita na relação clínica. Porém, reconhecidamente, existe uma
este estado passageiro de incompetência é mais pronunciado, devido linha muito ténue entre a persuasão, legítima e desejável, e a utilização
à idade avançada ou a uma doença que afecte a estrutura psicológica de qualquer tipo de ameaça* ainda que à luz do princípio da beneficência.
da decisão. O julgamento sobre a competência destas pessoas é mais Mas, como atrás se referiu, pode haver interferência na vontade
delicado, visto estar em causa a influência de alterações a nível da da pessoa, e assim na sua capacidade de decisão, por factores inerentes
linguagem, inteligência ou memória, caracterizadas por oscilações em ao próprio sujeito. Desta forma, deparamo-nos com dois tipos de
torno de um limiar mínimo. A título exemplificativo, um acidente influência, extrínseca e intrínseca, dependendo da forma como é
vascular cerebral pode associar-se claramente a uma reversibilidade exercida. Na tradição kantiana de autonomia, a pessoa só é livre para
da capacidade de decisão. decidir quando se encontra no uso pleno da sua racionalidade, sem
No passado, doentes epilépticos, psicóticos ou com diversos constrangimentos emocionais, passionais ou de outra natureza (dor
graus de atraso mental eram globalmente considerados como incompe- intensa, por exemplo).
tentes. Hoje em dia, a evolução do conhecimento científico, nomeada-
mente no que respeita à etiologia dessas doenças, associada ao valor COMUNICAÇÃO DA INFORMAÇÃO, RECOMENDAÇÃO E
que a sociedade atribui ao exercício da autonomia individual, leva a COMPREENSÃO
considerar o doente mental, em algumas circunstâncias, como um
parceiro na tomada de decisão. Outros tipos de incompetência transitória No âmbito da obtenção do consentimento informado, uma decisão
referem-se, por exemplo, a pessoas com demência senil ou doença de deve ser respeitada se e só se: a) o sujeito tiver a capacidade para com-
Alzheimer, alcoólicos ou toxicodependentes. Assim, em termos preender a informação material, b) for capaz de fazer um julgamento
práticos, o conceito de competência não pode ser considerado um sobre essa informação - à luz do seu sistema próprio de valores - c)
continuum, ao contrário da autonomia, mas corresponde a ser ou não elaborar mentalmente uma resposta e d) comunicar livremente o seu
capaz de executar determinada tarefa. Nesta perspectiva, o sujeito não desejo ao profissional de saúde ou à equipa de investigação.
é mais ou menos competente, ou é ou não é. Existem reservas de natureza ética no que respeita à forma de
Podemos afirmar que, no exercício clínico, esta necessidade de classificar um sujeito que tem capacidade diminuída para compreender,
determinação do nível de competência é fundamental, acima de tudo, deliberar e decidir. Isto porque existem pessoas que possuem, ainda
para proteger os pacientes contra decisões que possam tomar e que não que parcialmente, estas capacidades, não sendo contudo consideradas
sejam no seu melhor interesse. como competentes. É o caso de determinados doentes psicóticos, ou
pessoas com quociente intelectual baixo, poderem ou não ter a
VOLUNTARIEDADE capacidade de recusar tratamentos médicos de rotina.
O recurso à utilização de testes empíricos para determinar o
Tal como já foi aludido, nem todas as pessoas competentes são standard de incompetência é por vezes uma necessidade clínica.
igualmente capazes, e nem todas as pessoas incompetentes são Assim, poderão ser utilizadas escalas de avaliação de demência, testes
igualmente incapazes; mas, em termos práticos, a determinação de de avaliação do nível intelectual ou de avaliação da orientação espaço-
competência coloca as pessoas nestas duas categorias básicas. Quando temporal, memória, compreensão e coerência, entre outros. Como
traçamos a linha divisória, fazemo-lo de acordo com as tarefas refere Albert Jonsen (15), a propósito da avaliação da capacidade para
pretendidas. Por vezes, uma pessoa que é considerada globalmente decidir através de testes mais ou menos sofisticados (com recurso a
competente, pode não o ser em determinada ocasião específica. Como
* Por vezes não se trata de ameaça física, mas psicológica - abandono, por exemplo. Pode mesmo nem
é sabido, o sofrimento físico intenso tem repercussões a nível psíquico, ocorrer qualquer tipo de ameaça, havendo no entanto a sugestão de que ela possa vir a ocorrer. É
com alterações do estado emocional do doente. Nesta situação de o caso da ilegitimidade de muitos estudos experimentais em pessoas privadas de liberdade,
precisamente porque o recluso pode ter a falsa percepção de que terá qualquer vantagem ou prejuízo
particular vulnerabilidade, a pessoa doente pode não estar totalmente por ingressar ou não no estudo em causa. Deste modo, existe um acordo generalizado de que pessoas
competente para decidir, visto existir uma influência clara na sua privadas de liberdade não devem participar em investigação não terapêutica, visto existir sempre um
forte elemento de coerção no meio prisional.
liberdade de decisão. Compete ao profissional avaliar o grau de
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psiquiatras e/ou psicólogos clínicos, para a sua realização), o recurso compreensão da informação devido a problemas relacionados com a
a estes instrumentos deverá variar de acordo com a gravidade da linguagem, ou com o ambiente cultural, religioso ou étnico do paciente.
doença e a urgência do tratamento. Mais ainda, acrescenta, “o nível de Assim, antes de mais, deverá haver um esclarecimento e um ajustamen-
capacidade requerido para tomar decisões varia com o grau e to, o que pressupõe uma aproximação dos dois interlocutores (18).
probabilidade de risco, com a extensão e a probabilidade de benefício,
e com o consentimento e recusa”. Por exemplo, um doente necessita DECISÃO, AUTORIZAÇÃO
de um baixo grau de capacidade de decisão para consentir uma
intervenção com elevada razão benefício/risco, mas, para recusar essa Convirá referir que, no exercício da medicina clínica, a obtenção
intervenção, deve ser exigido um elevado nível de competência. de consentimento explícito não é obrigatória em toda e qualquer
Esta forma de avaliação, em que o nível de competência exigível circunstância: só quando a intervenção incorrer num risco superior ao
deve ser avaliado de acordo com a situação, e, melhor, de acordo com mínimo - entende-se por risco mínimo o de uma intervenção médica
os riscos e benefícios envolvidos é designada, segundo Beauchamp e ou psicológica de rotina - é que o consentimento é exigível. Porquê,
Childress, como uma “estratégia de escala deslizante”. Assim, caberá porque no decurso da relação clínica, intervenções comuns sem risco
ao profissional de saúde, acima de qualquer outro critério de avaliação, apreciável para o paciente, estão tacitamente autorizadas, sendo, de
saber qual o nível de competência exigível a cada situação e mais ainda facto, uma expectativa normal neste contexto. Não é geralmente
compreender o paciente no sentido de se inteirar sobre as suas capaci- necessário obter o consentimento expresso, por exemplo, para fazer a
dades e/ou incapacidades quer físicas quer psíquicas (16). auscultação cardíaca no âmbito de uma consulta de clínica geral. O
A informação a prestar ao paciente no processo de consentimento consentimento está verdadeiramente subjacente à prática clínica,
é uma das questões mais controversas. De facto, embora idealmente o sendo designado, correntemente, por consentimento implícito.
doente deva ser informado com a maior acuidade possível, o desnível Mais, no plano ético, não existe qualquer distinção entre o
de conhecimento técnico e científico impede que isto se verifique. consentimento oral ou escrito. Trata-se, verdadeiramente, de uma
Alguns profissionais de saúde consideram que uma informação formalidade, mas útil juridicamente como documentação de prova.
extremamente detalhada, onde sejam expostos os riscos reais, pode Por seu turno, o documento conhecido por “termo de responsabilidade”,
levar à recusa de consentimento. Contudo, esta questão poderá e e largamente difundido em muitos hospitais portugueses, pode ser
deverá ser ultrapassada através da forma como a informação é prestada; considerado como eticamente equivalente a um documento de consenti-
este passo é fundamental para uma verdadeira tomada de decisão por mento informado. Mas só no caso de se verificarem os elementos atrás
parte do paciente. Não é através da omissão de informação que deverá descritos, enquanto vectores de uma entidade significativa única. A
ser obtido o consentimento, mas sim informando o paciente através de mera assinatura do paciente, ou do seu legítimo representante, embora
uma linguagem acessível, que lhe seja familiar, não utilizando possa ser considerado como responsabilizante no plano formal, carece
terminologia demasiado técnica, explicando os riscos mais prováveis de suporte eticamente válido. Também o consentimento testemunhado,
de ocorrência de complicações. Os profissionais de saúde deveriam escrito ou oral, não apresenta maior validade no plano ético pelo facto
estar particularmente vocacionados para a arte de comunicar de ser presenciado por uma terceira parte. Trata-se, mais uma vez, de
ultrapassando os obstáculos linguísticos e pessoais com que muitas uma imposição formal, exigida frequentemente no âmbito hospitalar,
vezes se deparam. mas não de um imperativo ético fundamental.
German (17) estabelece algumas linhas condutoras quanto à Existem, no entanto, algumas circunstâncias em que a transmissão
quantidade de informação necessária para que o paciente possa decidir da informação pode ser manifestamente prejudicial para o doente.
de acordo com os seus valores e com o seu background cultural. Quando tal é constatado pelo profissional de saúde, este pode omitir
Assim, enumera os seguintes pontos de referência: parte ou a totalidade da informação, de acordo com o princípio da
- uma explicação quanto às condições clínicas envolventes; beneficência. Este “privilégio terapêutico”, no entanto, deve ser evita-
- a necessidade do procedimento ou tratamento proposto; do ao máximo, reservando-se a sua utilização para casos verdadeira-
- o reconhecimento dos riscos e benefícios envolvidos; mente excepcionais, como algumas doenças psiquiátricas ou cardíacas
- procedimentos alternativos adequados à situação, seus benefícios e que, pela sua natureza, sejam agravadas com a transmissão da
efeitos secundários; informação. Porém, deve ser feita uma clara distinção entre o privilégio
- as consequências para o paciente em não aceitar a proposta terapêutica; terapêutico e o desconforto psicológico associado ao desvendar da
- o direito do paciente em não consentir, ou uma vez dado o consenti- verdade no caso de doenças graves com prognóstico reservado. Existe
mento, em retirar-se do procedimento em qualquer altura. sempre um certo grau de ansiedade nestas circunstâncias, não podendo
Existem algumas vozes discordantes que consideram que a servir de motivo, contudo, para que a verdade não seja transmitida num
obtenção de consentimento informado não é benéfica na prática clima de afecto e compreensão.
clínica. Assim, em vez de considerarem o consentimento como um Outra situação de escusa pode ser o pedido do próprio doente, isto
direito individual, como um processo que promove a relação clínica, é, quando se trata da expressão da sua vontade em não ser informado.
julgam tratar-se de um artefacto que apenas serve para confundir o Mais uma vez, considerações de beneficência podem ser invocadas
paciente. Outra crítica frequentemente invocada refere-se ao facto de para respeitar e fazer respeitar a vontade do paciente. Mas, trata-se
a informação prestada ao paciente poder ser prejudicial em termos igualmente do exercício do direito à auto-determinação da pessoa
psicológicos, opondo-se, assim, ao princípio da não-maleficência. O doente, do livre arbítrio das suas decisões. Este é um direito que lhe
processo de obtenção de consentimento, ao ser longo e demorado, assiste, tal como o de ser informado, pelo que deverá ser plenamente
pode, segundo esta linha de pensamento, arrastar a tomada de decisão. acautelado.
Relativamente a estas considerações apenas a vertente psicológica Tratando-se de doentes terminais, em fase irreversível de incompe-
merece uma particular atenção; todas as outras deverão ser ultrapassadas tência, reconhece-se cada vez mais a plausibilidade de respeitar o seu
pela própria natureza da relação clínica que, sendo uma relação direito à auto-determinação através da utilização de documentos de
fiduciária, baseia-se na confiança e lealdade. Se existe um nível míni- cuidados avançados. O testamento vital foi sugerido nos anos setenta
mo de competência por parte do sujeito que lhe permite compreender como consequência da utilização de meios desproporcionados de
a informação transmitida de uma forma clara e eficaz, pode presumir- tratamento em doentes na fase terminal da vida. Inicialmente, a
se que o processo de consentimento está terminado. Porém, deve utilização do testamento vital previa apenas a recusa informada de
também averiguar-se se o paciente compreendeu a informação transmiti- intervenções médicas que prolongam artificialmente a vida.
da. Por vezes, a forma de averiguação deverá passar por pedir-lhe que Posteriormente permitiu seleccionar os tratamentos pretendidos pelo
explique aquilo que foi exposto. Muito pertinente é a dificuldade de doente desde que medicamente indicados (19).
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ARQUIVOS DE MEDICINA Vol. 13, Nº 2

4 - VARIANTES DO CONSENTIMENTO Geralmente, os pais tomam decisões acertadas relativamente aos


seus filhos. No entanto, nos últimos anos, este poder discricionário tem
A Convenção de Bioética do Conselho da Europa confere um sido questionado, nomeadamente quando são decisões que colocam
relevo especial às situações em que não é possível obter o consentimento em risco a vida da criança. Isto porque, em alguns casos, o melhor
informado, livre e esclarecido do sujeito. Na ausência de um ou mais interesse da criança pode não estar necessariamente de acordo com a
dos critérios referidos para que a obtenção de consentimento seja decisão dos pais. Este facto reporta-nos ao exemplo das Testemunhas
considerada válida, soluções alternativas podem ser idealizadas de de Jeová, em que os pais não autorizam uma transfusão de sangue
acordo com o melhor interesse do sujeito e seguindo as leges artis, numa situação possivelmente fatal para a criança. Perante este cenário,
regras da boa prática clínica. o médico, pode requerer judicialmente uma petição que lhe permita
Refere o legislador português a este propósito, no Código Penal efectuar o tratamento apropriado. Em Portugal a existência de um
(Art. 39), que “1. Ao consentimento efectivo é equiparado o consenti- Tribunal de Menores veio facilitar a tomada de decisão neste contexto.
mento presumido. 2. Há consentimento presumido quando a situação Porém, nem todos os menores de idade são considerados
em que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do incompetentes. A Convenção de Bioética do Conselho da Europa
interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no refere-se a esta problemática no seu Art. 6 quando afirma que “a
acto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado”. Seguin- opinião do menor deve ser tida progressivamente em consideração, em
do a lógica deste argumento é legítimo presumir o consentimento proporção à sua idade e grau de maturidade”. Assim, quando o
quando não seja possível obter-se um consentimento expresso. Natural- adolescente tem capacidade de discernimento é legítimo que seja
mente que quando estejam reunidas as condições necessárias para que envolvido no processo de decisão. Aos pais é reservada a tarefa de
possa ser obtido o consentimento na forma explícita a presunção não partilhar o consentimento com o seu filho quando este atingiu um grau
é eticamente legítima. de compreensão e inteligência que lhe permita apreciar o que é
A situação de urgência surge como o grande paradigma do proposto. Então, tal como um menor emancipado, independentemente
consentimento presumido, dado não haver hipótese de obter o da idade, pode dar um consentimento que é considerado eticamente
consentimento pelo facto do doente poder encontrar-se incompetente. válido. Considera-se que a partir dos catorze anos de idade, o adolescente
Logo, o profissional de saúde deve agir tendo em conta o princípio da dispõe já de capacidade de discernimento que lhe permita tomar uma
beneficência. Quando o doente está transitoriamente incompetente decisão válida no plano ético. Ciente de esta realidade o Código Penal
(durante uma intervenção cirúrgica, a título de exemplo) e deu apenas Português refere, no seu Art. 38-3 que “o consentimento só é eficaz se
consentimento parcial (para determinado acto), mas pode ver a sua for prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento
situação agravada pela não obtenção do consentimento para uma necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o
intervenção adicional é igualmente legítima a presunção do presta".
consentimento. Em tais circunstâncias tornou-se usual para os médicos De igual modo, algumas pessoas com deterioração mental
e outros profissionais de saúde presumir que o doente daria o seu (demência, por exemplo) não podem dar um consentimento válido
consentimento, se para tal tivesse capacidade, já que a alternativa pode pelo que, nestas circunstâncias, e na ausência de representantes legais,
ser a morte ou grave incapacidade. o profissional de saúde deverá agir de acordo com o melhor interesse
A dação de órgãos para transplantação (após a morte) é outra do paciente. Sempre que possível, as decisões deverão ser tomadas
circunstância onde é legítimo presumir-se o consentimento. A ordem atendendo às preferências do paciente (julgamento substitutivo). Caso
jurídica portuguesa atesta esta realidade concedendo a possibilidade não exista este conhecimento, então, a decisão deverá ser sempre em
de qualquer cidadão mostrar o seu dissentimento inscrevendo-se no favor da preservação da vida (melhor interesse). Ou, antes, no sentido
Registo Nacional de Não-Dadores (RENNDA). Isto é, após a sua da promoção do bem-estar do indivíduo. Este conceito é definido por
morte, o cidadão comum é presumivelmente dador de órgãos excepto Jonsen (15), como o alívio do sofrimento, a preservação ou restauração
quando exista uma razoável presunção de que ele se oporia a tal da função, e a manutenção da qualidade de vida, que uma pessoa
intervenção. O Registo Nacional de Não-Dadores funciona mais como razoável em circunstâncias análogas poderia escolher.
um instrumento operativo do que como uma doutrina substantiva. Relativamente aos casos de doença mental (depressão, por
Permite a expressão da vontade pessoal de oposição à transplantação. exemplo), o paciente, de um modo geral, pode ter condições para dar
Caso contrário, e porque o sentir geral da população vai de encontro o seu consentimento informado. Quando a perturbação é demasiado
a este bem social – a promoção da saúde e da vida – torna-se eticamente grave, a ponto de não permitir uma decisão de forma competente, o
legítima a utilização dos seus órgãos para transplantação. consentimento deverá ser obtido junto dos seus representantes legais.
Também os menores de idade são geralmente considerados No internamento compulsivo, em que o doente não é considerado
incapazes para dar um consentimento válido. Como tomar decisões competente para tomar decisões, recusa o tratamento e é considerado
críticas nestas circunstâncias? Defende-se, desde há largos anos, que um perigo para si e para os outros, o tratamento (neste caso o interna-
o conceito de autonomia pode ser alargado a toda a estrutura familiar, mento) poderá ser efectuado contra a sua vontade, de acordo com a
dado que os pais são, presumivelmente, as pessoas que melhor recente lei de saúde mental.
defendem os interesses dos seus filhos. Assim, compete-lhes decidir A participação de doentes mentais em projectos de investigação
dentro de padrões éticos socialmente aceites. Só quando as suas é igualmente foco de grande controvérsia. A Declaração de Madrid
decisões entram em colisão com o melhor interesse da criança é (1996) refere que os doentes psiquiátricos são sujeitos particularmente
legítimo questioná-las. vulneráveis; logo, deverão ser tomadas precauções adicionais para
São, pois, os seus pais ou tutores que dão o consentimento para os salvaguardar a sua integridade física e mental. Esta salvaguarda da sua
tratamentos médicos ou para a participação em protocolos experimentais autonomia deverá ser levada ao limite quando se trata de uma investiga-
(20). Porém, a investigação na esfera pediátrica rege-se por critérios ção não terapêutica. Isto porque o doente não obtém benefício directo
específicos, visto que só é legítimo este tipo de estudo quando da pelo facto de participar no estudo. Nesta situação, o risco deverá ser
experimentação advenha benefício directo para a criança. Isto é, como considerado baixo e proporcional à importância científica do projecto.
regra geral, as crianças só podem participar em investigação com O consentimento deverá ser obtido em consonância com a capacidade
objectivo terapêutico e os riscos devem ser mínimos. Igualmente, em de decisão do doente e a sua recusa em participar ou em abandonar a
situação de urgência, e não estando presentes os legítimos representan- investigação deverá ser respeitada. Nos casos mais graves o consenti-
tes, o profissional de saúde deve agir segundo as leges artis, não mento deverá ser obtido através do representante legal, tal como
necessitando de consentimento expresso. ocorre nas crianças. Quando se tratar de investigação cujo objectivo

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Antunes A et al Consentimento da Prática Clínica

seja a aquisição de conhecimentos relevantes na complexa área da 3 - Archer L: Origem científica e âmbito transcientífico da bio-ética in A
saúde mental, compreende-se que estes doentes não possam ser substi- Bioética e o Futuro, Publicações do II Centenário da Academia de
tuídos por outros mentalmente capazes e daí a sua legitimidade. Ciências de Lisboa, Lisboa, 1995.
4 - Agius E: Informed consent: ethical and philosophical issues In Informed
consent: Proceedings of a symposium for medical and paramedical
CONCLUSÃO practitioners. Bioethics Consultative Committee, Ministry of Health,
Care of the Elderly and Family Affairs. Gozo Press, Sta. Venera, 1998.
Nas sociedades plurais e secularizadas observou-se, ao longo das 5 - Nunes R: Ética, bioética e responsabilidade. Humanística e Teologia XVIII,
últimas décadas, uma mudança de paradigma na prestação de cuidados 2-3: 279-290, 1997.
de saúde. A necessidade de obtenção de consentimento informado é o 6 - Beauchamp T, Childress J: Principles of Biomedical Ethics. Oxford
rosto visível dessa transformação. Três elementos são essenciais para University Press. New York, Fourth Edition, 1994.
que o consentimento seja considerado informado, livre e esclarecido: 7 - Nozick R: Anarchy, state and utopia. Basic Books, New York, 1974.
8 - Kemp P, Rendtorff J: Basic principles in bioethics and biolaw: Autonomy,
a) competência na esfera da decisão; b) informação apropriada; c)
dignity, integrity and vulnerability. Draft Report of the Biomed-II-Project,
inexistência de coerção. Competência para decidir implica que o Centre for Ethics and Law in Nature and Society, Copenhagen, 1998.
paciente seja capaz de compreender a informação, de decidir relativa- 9 - Archer L: Ainda os direitos do homem. O consentimento informado.
mente às escolhas possíveis e de comunicar a sua decisão. Neste Brotéria 148: 155-164, 1998.
contexto, o papel do profissional de saúde é essencial, no sentido de 10 - Cauchi M: The Bioethics Consultative Committee and informed consent.
criar um clima acolhedor e de confiança e de se aperceber que existiu In Informed consent: Proceedings of a symposium for medical and
compreensão por parte do paciente. Porém, considerar um indivíduo paramedical practitioners. Bioethics Consultative Committee, Ministry
incompetente para tomar decisões sobre a sua saúde, não implica of Health, Care of the Elderly and Family Affairs. Gozo Press, Sta. Venera,
1998.
incompetência para efectuar outra tarefa cujo nível de exigência seja
11 - Freitas A: O consentimento informado enquadrado no tema global da
manifestamente inferior. Quando não é possível a obtenção do consen- decisão médica. In Actas do I Seminário promovido pelo Conselho
timento por parte do indivíduo doente, como no caso de menores de Nacional de Ética para as Ciências da vida. Consentimento Informado.
idade, pessoas com perturbação mental ou situações de emergência, Presidência do Conselho de Ministros, Lisboa, 1992.
deve o profissional de saúde agir segundo a doutrina do melhor 12 - Papadatos C: Guidelines for medical research in children. Infection 17: 65-
interesse do paciente. Quando chamados a decidir, os representantes 71, 1989.
legais devem orientar-se preferencialmente pelos valores e opções do 13 - Serrão D: Consentimento informado. In Bioética, Editorial Verbo. Lisboa,
doente e não por outro tipo de motivação. 1996.
14 - Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human
Parece fundamental, para que este conceito seja generalizado,
Being with Regard to the Application of Biology and Medicine: Convention
que todos, incluindo doentes e profissionais de saúde, tenham on Human Rights and Biomedicine. Council of Europe, Strasbourg, 1996.
conhecimento da sua existência e aplicabilidade. Nesse sentido, torna- 15 - Jonsen A, Siegler M: Ética Clínica: uma abordagem prática de decisões
se fundamental o seu ensino e divulgação junto da classe médica, de éticas em medicina clínica. Editora McGraw-Hill de Portugal, Lda,
enfermagem e de outros profissionais de saúde, durante a formação Alfragide, 1999, Quarta edição.
académica. A sociedade poderá receber essa informação através das 16 - May T: Assessing competency without judging merit. The Journal of
instituições de saúde ou por qualquer outro meio disponível. É sabido Clinical Ethics 9 (3): 247-257, 1998.
o enorme impacto das questões éticas no seio da população. Como tal, 17 - German L: Informed consent: the medical perspective. In Informed
consent: Proceedings of a symposium for medical and paramedical
uma correcta informação sobre a doutrina do consentimento informado,
practitioners. Bioethics Consultative Committee, Ministry of Health,
enquadrado num âmbito mais alargado dos direitos e deveres da Care of the Elderly and Family Affairs. Gozo Press, Sta. Venera, 1998.
pessoa doente, pode concorrer para que a afirmação da dignidade 18 - Adami J: Informed consent forms. In Informed consent: Proceedings of a
humana no âmbito da saúde venha a ser uma realidade. symposium for medical and paramedical practitioners. Bioethics
Consultative Committee, Ministry of Health, Care of the Elderly and
BIBLIOGRAFIA Family Affairs. Gozo Press, Sta. Venera, 1998.
19 - Nunes R: Humanização na doença terminal in Comissões de Ética: Das
1 - Engelhardt Jr, HT: The foundations of bioethics. Oxford University Press, Bases Teóricas à Actividade Quotidiana. (Coord. M. Patrão Neves),
New York, 1986. Centro de Estudos de Bioética (Açores), Ponta Delgada, 1996.
2 - Potter V: Bioethics, the science of survival. Perspectives in Biology and 20 - Ondrusek N et al: Empirical examination of the ability of children to
Medicine, Autumn: 127-153, 1970. consent to clinical research. Journal of Medical Ethics 24: 158-165, 1998.

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