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A mulher do presidente
Edição 217 - Abr/09
A Dilma Rousseff que todos conhecem lutou contra a ditadura, foi presa e torturada. Virou
ministra, enfrentou várias crises no governo e é candidata não oficial à presidência nas
próximas eleições. A Dilma que quase ninguém conhece sentia culpa de ir trabalhar e deixar a
filha em casa, ri de si própria e se diverte com os programas de sátira a seu respeito. Diz que
se sentiu nua quando a imprensa começou a vasculhar sua vida pessoal. Em entrevista
exclusiva à Marie Claire, ela fala que preferia os tempos em que os homens cortejavam as
mulheres, acha que esse negócio de ficar não funciona bem para nós e diz que é a favor da
legalização do aborto

O gabinete da ministra da casa civil, Dilma


Rousseff, 61 anos, é amplo e bem
arrumado. Um sofá, duas poltronas, uma
mesa de centro com livros ilustrativos do
Brasil. Atrás da grande mesa de trabalho, um
bufê com alguns porta-retratos: uma foto da
filha, Paula, advogada de 31 anos, seu maior
xodó, outra com o presidente. Uma imagem
de Iemanjá, 'presente do governador da
Bahia, Jaques Wagner', e outras duas de
santas barrocas. Em uma das paredes, duas
fotos ampliadas dela com Lula. A mais
famosa é a que ele coloca as mãos sujas de
petróleo nas costas da ministra, em uma
espécie de 'batismo' de óleo. Um telefone
que é usado somente para falar com ele. São
sinais que mostram sua relação afinada com
o presidente. Dilma é hoje a mulher mais
forte do governo. À frente do PAC (Plano de
Aceleração ao Crescimento), é a candidata
natural do PT à presidência da República.
Entramos no gabinete esperando encontrar a
Dilma que todo mundo conhece - ou acha
que conhece. Dura, séria, um tantinho
mal-humorada. Encontramos uma mulher
sorridente, que nos cumprimentou com dois
beijinhos. Vestida num terninho azul-claro,
regata branca, colar de pérolas, relógio,
fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no
pulso (presente de Flora Gil, objeto de um
pedido do qual nem lembra mais), Dilma nos
deixou à vontade logo nos cinco primeiros A ministra em seu gabinete. Uma linha de telefone
minutos de conversa. Sem brincos e sentada só para falar com o presidente
em uma mesa redonda de reunião, com vista
para a Esplanada dos Ministérios, Dilma puxou uma edição de Marie Claire trazida por sua
assessora e apontou uma foto da atriz Larissa Maciel, que fez o papel da cantora Maysa na
minissérie global. 'Como essa menina está linda nesta foto. Mais bonita do que na minissérie',
disse. 'Sabe por quê? Porque aqui as feições estão suavizadas.' Assim como as dela mesma, depois
da plástica feita no início do ano. Ela age como se ainda estivesse se acostumando ao novo visual -
enquanto fala, ajeita os cabelos, puxa para frente, joga um pouco para o lado.

Economista de formação, mas política de carreira, Dilma fala alto, bastante e rápido. Bate com as
mãos cerradas na mesa quando discursa sobre as medidas econômicas do governo. Usa o mesmo
tom grave ao se referir à ditadura militar. Seus subordinados costumam ser tratados com a mesma
severidade. Mas na hora da conversa, é bem-humorada. Adora falar sobre a filha. Sagitariana e
separada de dois casamentos, a mineira de Belo Horizonte passou boa parte da vida adulta em
Porto Alegre. Mistura os sotaques e as expressões das duas cidades. Ora usa 'tu', ora 'ocê'. Ri alto
quando o assunto são as caricaturas que a imprensa fez dela depois da plástica, não se esquiva de
perguntas sobre sua vida íntima e se empolga na hora de falar das influências intelectuais que
fizeram parte da sua geração.

A ministra da Casa Civil começou a fazer história quando, aos 15 anos, entrou para o movimento
estudantil para lutar contra a ditadura militar. Aos 19, vivia na clandestinidade. Foi uma das
líderes de duas importantes organizações da esquerda radical, o Colina e a VAR-Palmares. Foi
nessa época que se casou, pela primeira vez, com o jornalista Cláudio Galeno. Fez treinamentos de
guerrilha, aprendeu a montar e desmontar fuzis, mas diz que nunca trocou tiros com soldados do
exército ou policiais militares. Ela afirma que fazia parte da inteligência das organizações. Presa em
1970, ficou três anos na cadeia, onde foi barbaramente torturada. Ao falar sobre essa época,

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mostra sentimentos dúbios. Às vezes discursa com indignação. Às vezes fala baixo, pausado. Mas
em nenhum momento sugere arrependimento. Deixa claro que tem orgulho do que viveu.Em
liberdade, casou-se com o advogado gaúcho Carlos Araújo, também ligado à militância de
esquerda. Os dois se mudaram para Porto Alegre, onde fizeram carreira política pelo PDT. Dilma foi
secretária na área de energia do governo gaúcho. Os resultados do trabalho feito no Sul a
conduziram ao primeiro posto no governo Lula, no Ministério de Minas e Energia, em 2003.

O segundo casamento terminou em 2000. Dilma perdeu o pai, o búlgaro Pedro Rousseff, em
consequência de diabetes, quando tinha 15 anos. Em 1977, aos 30, perdeu a irmã mais nova,
Zana, de um tipo raro de infecção. Ela conta esses fatos sem a voz embargada ou em tom de
vítima. Dilma Rousseff parece não ter nascido para esse papel. Sempre que lembra algum
momento triste, a imagem da mulher forte permanece. Nada de olhar para baixo, voz trêmula ou
esquiva. Mas fica claro que prefere conversar sobre assuntos alegres. Empolga-se e dá um sorriso
gostoso quando diz que se prepara para ser avó. E com o mesmo sorriso afirma que não se sente
solitária pelo fato de não ter um namorado ou marido.

Na política, ganhou notoriedade depois de assumir a chefia da Casa Civil, em 2005, no lugar de
José Dirceu. Se, por um lado, conseguiu manter uma imagem de respeito em um governo
desgastado pela crise do mensalão, por outro protagonizou algumas crises políticas. Foi acusada de
favorecer um grupo de empresários na venda da Varig Log (a empresa de transportes de carga da
antiga Varig) e de ter mandado produzir um dossiê clandestino com os gastos do governo
Fernando Henrique Cardoso. Só a última acusação acabou em inquérito policial e o Supremo
Tribunal Federal retirou a ministra da investigação (a decisão ainda não é definitiva). Aqui, ela fala
sobre maternidade, amor, tortura, cotidiano e um pouquinho de política.

Marie Claire Com seu passado, como é para a


senhora se tornar uma figura pública, quase uma
celebridade?
'Falam muito para mim
Dilma Rousseff No início senti mais. Levei um tempo depois da plástica: 'Não
para entender como me sentia. É como se eu fosse
uma tartaruga e tivessem extraído minha casca. Isso
liga não, você estava
é a nudez. É uma desproteção diante do mundo, só muito velha!''
que momentânea. E acho que não tem maiores
consequências, sabe?

MC Até as suas manicures foram entrevistadas...


DR Podem invadir meu cabeleireiro. Não tô nem aí. Eu vi o repórter de campana. Fiquei até com
pena, coitado, porque eram oito da manhã - horário que consigo ir fazer escova. Estava lavando a
cabeça quando ele me perguntou se eu poderia dar uma entrevista. Alguém quer dar entrevista às
oito da manhã lavando a cabeça? Ele ficou me esperando do lado de fora. Saí por uma porta que
não era a que ele estava. Saí devagar, para ele me ver. Mas não viu, estava distraído... Deve ter
ficado com raiva, mas, olha, andei bem devagarinho, viu [risos]?

MC E as máscaras de carnaval que fizeram com seu rosto depois da plástica?


DR Acho uma glória. Rio demais do Pânico [programa humorístico de TV]. Me achei genial com o
nariz assim [arrebita a ponta do nariz com o indicador e ri]. Gente? Tem de rir, né? Outro dia me
deram um presente no Rio Grande do Sul, uma máscara com uma peruca escura. Era eu de peruca
e bigode. Um horror. Falei pro cara: 'Escuta, não tenho bigode'. Mas as caricaturas são ótimas. Tem
algumas manifestações - não nas agressões, claro, porque não sou masoquista - que até me
deixam constrangida porque são afetivas. Quando pedem para tirar foto comigo, fico com
vergonha. É um elogio afetivo. Brasileiro tem muito disso, é pior que japonês, adora uma foto.
Inclina a cabeça, encosta, aperta a mão. Precisa ter um coração de cimento para não se
enternecer. Escuto coisas do arco da velha.

MC De que tipo?
DR O povo é muito engraçado. É perspicaz, irônico e muito gentil. Falam muito pra mim [depois da
plástica]: 'Não liga não, você estava muito velha' [risos]! Não é fantástico?

MC Gostou do resultado?
DR Estou me sentindo ótima. Tenho senso crítico, né? Estou mais parecida comigo aos 40 do que
aos 60. Não cheguei aos 30, que era meu sonho de consumo [risos].

MC Melhorou a autoestima?
DR Autoestima é algo que se recebe de casa. Sempre tive uma relação muito estreita com meu
pai. Ele gostava muito de mim e eu achava isso ótimo. Com o passar do tempo, descobri que ele
gostava muito da minha mãe também. Mas isso sequer havia passado pela minha cabeça [risos]. O
fato de os pais gostarem da gente é o que dá firmeza para encarar a vida.

MC Sua relação com a Paula, sua filha, sempre foi próxima?


DR Ah... teve fases. Primeiro foi o ciclo de absoluta ligação, quase umbilical: a identificação total, o
amor profundo. Uma relação muito próxima comigo e distante com o pai. Quando ela tinha 1 ano e
ele a beijava com bigode, ela dava um escândalo e dizia: 'Este homem me beijou' [risos]. Mas
quando entrou na puberdade, ela se aproximou mais dele e se afastou de mim. Passei a ser
procurada só quando tinha um problema, quando ela terminava com o namorado, ficava com
alguém. Essa história de ficar confundiu a cabeça dela e a das amigas... Quando percebi o que
estava acontecendo, pensei: 'Estão danadas'. Ou melhor, nós, mulheres, estamos danadas.

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MC Por quê?
DR Porque esse negócio de ficar não funciona bem 'A gente precisa da
para as mulheres. Não adianta, não é igual. A gente sedução, da conquista.
precisa de uma certa sedução, de corte, do processo
de conquista. Não pode ser aquele sincericídio Não pode ser o
horroroso que há no ficar. No meu tempo, não era um sincericídio do ficar '
convívio tão sem charme. Tinha que ter uma relação
emocional com a outra pessoa. A gente construía algo
até chegar ao ficar. Não era só em uma balada.

MC A senhora acha que sua geração é mais romântica que a da sua filha?
DR Acho que não. Todas as meninas hoje querem casar. Dão mais valor à família. Vejo isso na
minha filha. Ela se importa em ter um relacionamento estável com o marido. E acho que a família
toda é muito importante para ela: as avós, as tias, os primos. A família estendida é algo que essa
nova geração valoriza também. E a gente também queria casar nos anos 60 e 70, só que não
sabia.

MC Não sabia ou não assumia?


DR Não sabia mesmo. A afirmação de independência era forte pra gente. Fomos a primeira geração
que viveu a experiência de sair de casa, trabalhar. Vivíamos em meio a colchões e almofadas. Ah, o
mundo dos colchões e das almofadas... E não ousávamos também ter filhos. Fui mãe aos 28 anos,
que era tarde para minha época. A gente dizia que toda mulher queria casar e ser feliz para
sempre em tom de ironia, mas no fundo é o que a gente quer mesmo. Essa é a eterna busca.

MC Seus amigos costumam dizer que a senhora se vê muito na sua filha. Quais valores se
preocupou em passar a ela?
DR Acho que a Paula tem um grande senso de justiça. E espero que ela tenha herdado isso de
mim e do pai. Ela sempre será levada a defender os injustiçados. E também de dignidade,
capacidade de viver pelos próprios meios. Outra característica que transmitimos a ela foi senso de
humor, a capacidade de rir de si mesma. Pelo menos nos esforçamos para que ela tivesse isso
[risos]. Se a gente se leva a sério demais, fica cheia de 'nós pelas costas', uma expressão gaúcha
de que gosto muito.

MC Hoje, a senhora se dá bem com o seu ex-marido?


DR Muito. Esse processo todo de distanciamento, depois da separação, levou, no máximo, seis
meses. Faz parte. É o luto. Hoje em dia a gente passa os natais juntos. Preservamos as datas
familiares. Natal é uma festa solene.

MC A senhora trabalhava no governo gaúcho quando a Paula era pequena. Sentia culpa de
sair e deixá-la em casa?
DR Ah, sem dúvida. Quem fala que não sente culpa está faltando com a verdade. A gente tem
necessidade de ficar perto da criança. Quando ela tinha febre, eu chispava para casa. Não
conseguia mais trabalhar. Parava de focar. E a minha filha tinha asma, que é um desespero só.
Uma noite, coitadinha, ela estava mal e entendeu a minha preocupação tão bem que falou:
'Mamãe, sua noite vai ser ruim, hein?'.

MC Uma das bandeiras da Marie Claire é defender a legalização do aborto. Fizemos uma
pesquisa com leitoras e 60% delas se posicionaram favoravelmente, mesmo o aborto não
sendo uma escolha fácil. O que a senhora pensa sobre isso?
DR Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um
aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma
questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres brasileiras que morre porque
tenta abortar em condições precárias. Se a gente tratar o assunto de forma séria e respeitosa,
evitará toda sorte de preconceitos. Essa é uma questão grave que causa muitos mal-entendidos.

MC Hoje, o que é preciso para legalizar o aborto


no Brasil?
DR Existem várias divisões no país por causa dessa
'Achava que podia ser
confusão, entre o que é foro íntimo e o que é política heroína até ir para a
pública. O presidente é um homem religioso e,
mesmo assim, se recusa a tratar o aborto como uma
cadeia. conheci meus
questão que não seja de saúde pública. Como saúde limites na prisão'
pública, achamos que tem de ser praticado em
condições de legalidade.

MC A senhora acredita em Deus?


DR Fui batizada na Igreja católica, mas não pratico. Mas, olha, balançou o avião, a gente faz uma
rezinha [risos]. Tenho uma relação muito forte com Nossa Senhora, decorrente da minha formação
em um colégio de freiras.

MC O que a levou a ser a mulher mais forte do governo, praticamente o braço direito do
presidente Lula? A que atribui esse status?
DR À minha história. O governo do presidente é como um rio com vários afluentes que
convergiram para fazer esse projeto [de governo]. Sou um dos afluentes, que vem da luta
libertária contra a ditadura. Mas há vários outros importantes: o pessoal do movimento sindical, do
PT, do PMDB. Jogam muita pedra no PMDB, mas se esquecem do papel que ele desempenhou.
Lembro-me do [Pedro] Simon [senador do partido] lutando pelas Diretas, brigando pela

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democratização. Então, não vamos esquecer quem somos, quem são essas diferentes trajetórias
que desaguaram aqui.

MC A senhora passou por várias crises políticas graves durante seu governo (Dossiê FHC,
Varig Log). O que faz para se manter forte internamente? Terapia, tem alguma crença?
Chora escondido?
DR Não faço nada, não. Cargos públicos no Brasil são assim. Basta olhar a pressão que exerceram
sobre o presidente. A gente aguenta, uai. É preciso se lembrar de ter um distanciamento e
entender que isso faz parte do jogo político. Uma coisa que dá força é a sensação imensa de
injustiça. Outra é que temos grande convicção no projeto que estamos fazendo. Em terceiro lugar é
importante ter apoio. Tenho apoio do presidente, dos outros ministros. Também é fundamental ter
foco. O mundo pode estar caindo que tenho de trabalhar. Tenho de fazer as obras do PAC andar,
implementar os projetos que o presidente definiu. Mas também adquiri um lombo meio grosso e
certas coisas não me atingem mais como antes. E isso é muita espuma, né? Tem um lado disso
que é espuma, que vai embora.

MC Quando a senhora se engajou na militância política, no movimento estudantil?


DR Saí do colégio Nossa Senhora de Sion, em Belo Horizonte, de meninas de elite, aos 15 anos. As
freiras estavam numa fase de transição. Uma das transformações era dar mais importância às
questões sociais, à miséria. Senti essa influência. De lá mudei para o colégio Aplicação, porque se
continuasse no Sion, teria que fazer 'normal', seria professora, e não queria isso. Meu primeiro dia
de aula foi em 10 de março de 1964, um mês antes do golpe. O colégio era uma efervescência só.
Era moderno, tinha representantes de vários grupos da esquerda. Com o golpe, alguns segmentos
da classe média de que eu fazia parte se radicalizaram. Como alguém de 16 anos acha que pode
existir democracia se um mês depois do início das aulas há um golpe de estado? Começaram as
manifestações estudantis, teatrais, os festivais etc. Em 1968, quem fazia parte da militância de
esquerda, quem lutava contra a ditadura, foi para a clandestinidade. Eu fui uma dessas pessoas.

MC Que influências intelectuais a senhora recebeu naquele momento?


DR Foi nesse período que ganhei minha sensibilidade social, a noção de que era impossível o País
viver com tanta miséria. A percepção crescente dos problemas sociais, políticos e econômicos, do
arroxo salarial, do não-reajuste do salário mínimo, direito de greve etc. Ganhei consciência da
participação, da democracia. Ao mesmo tempo que estava despertando para a política, despertava
para a cultura, literatura. Minha geração foi influenciada pela Simone [de Beauvoir], pelo [Jean
Paul] Sartre, por todo o povo existencialista, pela nouvelle vague e muito profundamente pela
revolução cubana.

MC Como sua família via isso?


DR Eu queria ser profissional, ganhar a vida, ser
independente. Tive de convencer minha mãe, meu pai
'Como questão de saúde
já tinha morrido. Ele morreu quando eu tinha 15 pública, achamos que o
anos. Talvez se ele estivesse vivo, o nível de proteção
que ele construiria em torno de mim fosse tão forte
aborto deve ser feito na
que eu tivesse de levar algum tempo para ser o que legalidade'
eu fui. Mas eu seria, inexoravelmente. Sartre, que
também perdeu o pai, tem uma frase ótima sobre
isso: 'Morreu meu superego'. Em que pese eu ter gostado muito e ter uma relação fortíssima com
meu pai, de uma certa forma, é no momento da morte dele que - não é que eu deixo de ter um
superego - deixo de ter um super-superego [risos].

MC E o que mudou daqueles tempos para cá? Que ideais a senhora perdeu?
DR Gostei muito de ser jovem naquele período. Mas em 1968, com o fechamento e a
clandestinidade, a gente passou a acreditar que não era possível construir a democracia no Brasil.
Mas, alguns anos depois, essa geração que foi para a cadeia e o exílio ganhou uma noção perfeita
do valor da democracia e o que significa não tê-la. Não é só porque o cara deixa de cantar música,
porque a peça não vai ser encenada, pois o teatro foi invadido, ou porque a imprensa é censurada.
É porque se mata, se tortura, se extermina. Mudamos e entendemos que a democracia era
fundamental.

MC Em uma entrevista que a senhora deu ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, conta que
durante 22 dias sofreu sessões de tortura, entrou com a palmatória, foi para o pau de
arara. Como foi isso?
DR Tomei choques em várias partes do corpo, inclusive nos bicos dos seios. Tive até hemorragia.
Depois de apanhar, era jogada nua em um banheiro, suja de urina e fezes. Tremia de frio até que a
sessão de tortura começasse novamente.

MC Mesmo sofrendo tudo isso, não deu as informações que os militares queriam sobre
seus companheiros. A senhora diz que foi aí que aprendeu a conhecer seus limites. Que
processo foi esse?
DR Achava que podia ser heroína. Havia um tabu dentro da esquerda que não discutia o que é a
dor, a tortura [a voz se torna mais grave]. Quando fomos para a cadeia, achávamos que não
falaríamos nada diante da tortura. Errado. Dizer aos torturadores que não vamos falar o que
sabemos é coisa de gente maluca. O único jeito de resistir é dizer que não tem as informações que
eles estão perguntando: 'Não sei, não fiz, não estava lá'. Não há outra maneira. Se eles acharem
que ao baterem mais conseguirão o que querem, a pessoa está roubada. Na tortura, as pessoas
acabam falando porque têm limites para aguentar tudo aquilo. E nós tivemos de ampliar os limites
para suportar as porradas e os choques sem dar informações. Pensava: 'Vou aguentar mais um
tempo e depois seja o que Deus quiser'. É uma negociação de você consigo mesma. Se alguém

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tentar, em algum momento, dar de bacana, está lascado. Eles batem ainda mais. É um jogo de
resistência psíquica. Mas, de certa forma, todo mundo conseguiu enganá-los. Os próprios militares
falavam que preso velho era o que de pior havia. Um bicho 'cestroso', cheio de manha. Um preso
novo não sabe o tamanho da dor que pode enfrentar. Em quatro meses, um preso já se torna
relativamente velho. Fiquei três anos na cadeia. Só faltava ter auréola, de tão boazinha [risos].

MC Foi por isso que ficou tão irritada quando o senador José Agripino Maia, do DEM, disse
que a senhora teria facilidade para mentir ali, durante uma sessão no senado, porque
mentiu sob tortura?
DR Naquela ocasião, respondi a ele com veemência, um pouco de dor e muita emoção. É de uma
ignorância supina alguém supor que mentir não seja difícil. A mentira é algo extremamente difícil
de ser feito em uma cadeia. Diante da tortura, encaramos nós mesmos, nossas fraquezas, medos,
pavores. Olhamos para o nosso pior lado, que não passa do lado humano mais frágil, mais
desprotegido. Quem passa pela tortura e não tem complacência nem misericórdia com seus
companheiros é maluco ou culpado. Porque quem não entende que uma pessoa falou sob tortura é
louco. Mas aprendi que só conseguimos enxergar o outro se nos enxergarmos. O que é inadmissível
é o terror de Estado, capaz de fazer isso com alguém.

MC Que balanço a senhora faz hoje desse período?


DR Fizemos uma análise errada. Achamos que a ditadura estava em crise, mas, na verdade, o
milagre econômico estava apenas começando. A gente não percebeu o quanto eles ainda iam
endurecer. Tivemos muitas derrotas. Apanhamos muito, não só fisicamente. Fomos ingênuos em
achar que conseguiríamos um Brasil melhor, com mais igualdade e educação de forma fácil. A
forma de fazer é árdua, difícil, leva tempo e exige mediações. Mas, no final, a gente ganhou. Tenho
um imenso orgulho de fazer parte de um governo que mostrou que é possível crescer e distribuir
renda ao mesmo tempo.

MC Muitos líderes, políticos e empresários acabam se envolvendo tanto com o trabalho


que deixam a questão afetiva de lado. A senhora está solteira. Como é lidar com a
solidão?
DR Mas não sou sozinha, não. Sou muito bem acompanhada. Me sinto muito bem comigo mesma.
Pra gente se sentir só, precisa estar muito carente. Não se fica sozinha aos 60. Ficamos sozinhas
aos 30.

Foto: Anderson Schneider

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