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Apresentação

o leitor que acaso começasse a examinar este livro de Peter Szondi


pelo índice das matérias poderia facilmente imaginar que está diante
de algocomo uma brevehistória ou um panorama do teatro moderno.
De fato,indo de 1880a 1950e mantendo com bastante constância a ba-
lizada sucessãocronológica,o autor passa em revista de maneira dire-
ta e concentrada a obra de onze importantes dramaturgos e de um
encenador, além de examinar, sob outras rubricas e menos acurada-
mente, também o legado de cercade uma dezena de outros autores -
quase todos europeus, exceçãofeita a uns poucos norte-americanos.
Seriação e cronologia são,certamente, indispensáveis ao projeto
de Szondi, porém nada mais distante dele do que o habitual pano-
rama histórico, em que a mera acumulação de fatos sobre a linha do
tempo faz as vezes de história - e, tantas vezes, história de uma evolu-
ção ou de um progresso.
De maneira apenas tácita,porém inflexível,é antes contra essehis-
toricismo que escreve sua Teoria do drama moderno esse pensador tão
discreto quanto intensamente impregnado da teoria crítica e, em par-
ticular, da filosofia da história de Walter Benjamin. A escolha exposi- matlce um estudo que guarda também não poucos aspectos de uma
tiva de Szondi, em geral não-polêmica e aparentemente restrita ao
formação do romance.Mas,talvezseja o caso de dizê-Iodesde já, neste
rigor técnico, não deve, então, enganar: no seu caso, rigor técnico, dis- ponto tocamos no nervo mesmo do trabalho de Szondi - algo como
tância não-polêmica e, até, um acentuado laconismo são signos dessa a linha-mestra que o sustenta e tensiona, neste como em outros estu-
inflexibilidade e, por certo, constituem outras tantas estratégias de um dos. De fato, o Lukács que postulara a necessidade metodológica de'
pensamento que, precisando aclimatar-se ao ambiente universitário
uma "dialética histórico-filosófica"das "formas de arte"l é visto por
alemão do pós-guerra, sabe que evolui em meio hostil.
Szondi como uma das pontas avançadasde uma longa tradição a que
Na Teoria do drama moderno, a estrita observância da sucessão
ele próprio se filia,e em cujos desdobramentos contemporâneos situa
temporal não desemboca nos panoramas atulhados e cediços do his- seus próprios esforços.
toricismo. Ao contrário, o procedimento de Szondi é o de fazer o fluxo Para ele, este Lukács surge, conforme resumiu um de seus mais
do tempo, na plenitude de seu curso, refluir sobre si mesmo e, assim, agudos leitores, no bojo de um "desenvolvimentoprogressivo da poé-
refletir-se. Como diz Walter Benjamin a respeito do teatro épico de tica dos gêneros, desde seu início com Platão e Aristóteles, até o idea-
Brecht, também o método de Szondi "faz o destino saltar do leito do lismo alemão, e mais particularmente de Kant a Hegel,em direção a
tempo como um jorro de água, o faz reverberar um instante imóvel no uma filosofiadialética da história: as oposições entre os sistemas for-
vazio,para fazê-Ioentrar de uma novamaneiraemseu leito".I Desse mais e as mudanças históricas, entre os exemplos do passado e as
modo, conjugando fluxo e refluxo,movimento e parada, - pondo o práticas do presente, são mais e mais mediatizadas em uma filosofia
curso das coisas em reflexão-, o trabalho de Szondi faz que a suces- especulativa que pode (...) unir dialeticamente história e sistema. (...)
são temporal,ao invésde esgotar-seem puro fluir,seprecipitena consti- No domínio do idealismo alemão,esta dialética toma a forma de uma
tuição de um objeto rigorosamente construído, que guarda, antes, as "crise" nas poéticas kantianas e não-históricas, crise "superada" em
características de um pequeno sistema saturado de tensões. A esse seguida no "triunfo" e no "acabamento" figurados pela Estética de
objeto ele chamará o drama moderno. Compreende-se, aqui, que ele Hegel:a terceira crítica de Kant começa já uma "superação de si mes-
designe como "teoria" um estudo de andamento tão marcadamente ma", ultrapassando a estética normativa ('estética do efeito') do sécu-
histórico: no trabalho de Szondi,constituído pela conversão recíproca lo XVIII;e a mediação do classicismoe do historicismo se efetua nos
do fluxo temporal e de sua suspensão - ou de história e sistema - as
projetos teóricos próprios de Goethe e Schiller,de Schlegel,de Hõl-
mudanças históricas espelham-se sempre em sua feição sistemática e, derlin, de Schellingprincipalmente, mas também de Winckelman, de
os sistemas formais, em seu desdobramento histórico.
Herder e de Moritz, à medida que a "necessidade histórica' - O mais
O propósito faz lembrar de imediato o jovem Lukács (cuja infl uên- -
freqüentemente contra a intenção dos autores afeta o pensamento
da é sempre reivindicada por Szondi), que chamou de A teoria do ro- dos sistemas' formais, tornando-os dinâmicos, até o momento em
que, com Hegel e, sem dúvida, já com Hõlderlin, esta dinâmica se pelos conteúdos que trata de assimilar, mas que já são incompatíveis
confunde com o próprio processo histórico",) com seus pressupostos.

Assim,para Szondi,as três categoriasfundamentaisda antiga teoria Restaura-se, assim, para a reflexão estética, a possibilidade de reto-

dos gêneros - a épica, a lírica e a dramática - encontrariam em Hegel mar em nova chave as formas herdadas da tradição e nela fixadas

o seu acabamento, ou seja, ao mesmo tempo sua culminação e seu esgo- como modalidades permanentes de expressão, ou seja, como modos
tamento, na medida em que, já inteiramente historicizadas, perderiam de formar codificados. Já inteiramente historicizadas e desprovidas de
suaessênciasistemática.Segundoele,"apósessatransformaçãonos fun- seus conteúdos normativos, as categorias fundamentais dos gêneros

damentos da poética, a ciência viu-se diante de três vias": ela poderia, poéticos tornam-se dialéticas em um sentido radical, isto é, assimilam-
como em Croce, julgar que, juntamente com sua essência sistemática, os se inteiramente ao regime da contradição.
gêneros pOéticos fundamentais haviam perdido sua razão de ser, tor- Com a precisão que lhe é habitual, $zondi situa neste ponto - está-
nando-se necessário excluí-Ios da reflexão estética. Poderia ainda, no gio extremo de uma reflexãode longo curso - o lugar de onde nasce
pólo oposto, observar as bases históricas da poética, isto é, os gêneros a Teoriadodramamoderno.Com efeito,o dispositivoqueestáemsua
concretos, para projetar, agora, o "épico", o "lírico" e o "dramático" como matriz consiste em explorar sistematicamente a "antinomia interna"
três modos de ser atemporais do homem, conforme fez Emil Staiger. que. e.mcada obra em particular, estabelece-se entre o "enunciado da
com quem o próprio Szondi estudara.~ Mas, diz Szondi, poderia tam- forma" e o "enunciado do conteúdo".Ambos. assim, criticam-se um
bém "perseverar no terreno historicizado", como haviam feito, na su- - ao outro, apontam um no outro os limites próprios e, dessa forma,
cessão de Hegel, A teoria do romance de Lukács, a Origem do drama reciprocamente se historicizam.
barroco alemão, de W. Benjamin, e a Filosofia da 1101'amúsica de Th. W. Para fazê-Io,Szondi identifica,na tradição, o momento em que se
Adorno. Nestes, mas particularmente no último, explicita-se a possibi- constituiua formado dramapropriamentedito.Paraele,o dramada
lidade de compreender a forma como conteúdo "precipitado", ou seja. época moderna surgiu no Renascimento - quando a forma dramá-
como uma dialética entre dois enunciados: o "enunciado da forma" e o tica. após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se
"enunciado do conteúdo". Note-se que, aqui, os "conteúdos" temáticos, exclusivamente na reprodução das relações intel;':b).,lm~1,}a~,
ou seja, en-
advindos da vida social; não são, por oposição à forma artística, algo controu no 9.iálogo sua mediação universal. O drama que surge daí é
informe a que esta daria forma:elesjá constituem por seu turno, eml1J- "absoluto", no sentido de que só se representa a si mesmo - estando

ciados,isto é, são jáformados. fora dele, enquanto realidade que não conhece nada além de si, tanto o
Abre-se aqui, para $zondi, a possibilidade de que ambos esses autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a própria convi-

enunciados, o da forma e o do conteúdo, entrem em contradição _ zinhança dos espaços.Tornado inteiramente presençae presente.e ani-
quando uma forma estabelecida e não questionada. é posta em questão mado por uma dinâmica interna de que o diálogo é o motor exclusivo,
I
I.
I
o drama constitui-se como forma fechada e completa em si mesma - "épica encoberta da matéria", o próprio diálogo é progressivamente
ele se absolutiza. Por isso, não se incluem no conceito de drama tanto tomado por funções épicas. tributárias da cisão de sujeito e objeto,
a tragédia antiga quanto a peça religiosa medieval, o teatro mundano quando não se manifesta,paradoxalmente,como insulamento líricoou
barroco ou a peça histórica de Shakespeare etc. até, como é o caso de Tchékhov, literalmente como um diálogo com
O drama, tal como definido na Teoria do drama moderno, não é, um surdo. Colocado sistematicamenteem confronto com a e.~t:.~~-4i2--
assim, algo que se encontre em qualquer tempo ou em qualquer lugar. lógi~~de seu próprio modelo -
na qual se manifesta a centralidade
Também neste sentido poderia se decepcionar com o estudo de Szondi das relaçõesintersubjetivas -, o dramamoderno,rondadopelosoli-
quem esperasse encontrar a visão panorâmica, com visos de exaustivi- lóquio e pela mud~z.,pela objetivação
. . e pela reificação. dá testemunho,
dade, uma vez que ele constrói um objeto muito específico, historica- em sua própria crise formal. de um estado de coisas que Adorno cha-
mente determinado, que não se encontra em toda parte. maria de "a vida danilicada".5

Esse modelo de drama, que, tendo se constituído no Renascimento, Szondi não é nem um pouco enfático a esse respeito, antes pelo

desenvolveu-se na Inglaterra elisabetana e, principalmente, no século contrário. Mas o rigor de seu dispositivo. em seu laconismo abrupto
XVIIfrancês, sobrevivendo no classicismo alemão, Szondi irá encontrá- e irretorquível. fala por ele: as transformações da estética teatral em
10vigente no final do século XIX:ainda na década de 80 desse século, a direção às formas modernas e às vanguardas não é lida simplesmente
forma do drama não era "apenas a norma subjetiva dos teóricos", mas como a superação do antigo e o avanço do novo, mas é obrigada. a
"representava também o estado objetivo das obras". Estudando, então, partir do exame de sua dialética interna, a ret1uirsobre si mesma -
sucessivamente, Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck e Haupt- a refletir-se - e. assim, a deixar entreve~ a figura de um 4estino, cujas
mann, o procedimento de Szondi será o de examinar sistematicamente marcas principais mostram-se como as do isolamento, da regressão,
a contradição crescente, nas peças, entre a forma do drama, presente da perda de sentido.
nelas como modelo não diretamente questionado, e os novos conteúdos Nessa perspectiva, disse-se antes que, em Szondi. as antigas catego-
que elas tratam de assimilar. O núcleo do confronto. que caracteriza a rias dos gêneros poéticos, historicizadas de modo decisivo por Hegel,
crise da forma dramática. encontra-se na crescente separação de sujeito tornavam-se radicalmente dialéticas, ou eram inteiramente assimiladas

e objeto - cuja conversão recíproca era a base da absolutez do drama ao regime da contradição. Nesse discípulo e admirador de Hegel, a ima-
-. separação que mais e mais se manifesta nas obras, principalmente gem da Aufhebung, da síntese que supera conservando, dá lugar a con-
pela impossibilidade do diálogo e pela emersão do elemento épico. tradições que se põem e repõem continuamente, que permanecem inso-
De certo modo, seria possível descrever a Teoria do drama moderno lúveis e, sob esse aspecto, aparentam-se, antes, à dialética negativa de
como a história do lento e inexorável avanço do elemento épico no seio Adorno, assim como remetem às noções de "alegoria" ou de "tradução",
da forma dramática, a qual, em princípio, o excluiria. Neste avanço da tal como aparecem em Benjamin. Ainda uma vez, o próprio Szondi ma-
nifesta, em outro ensaio, perfeita consciência de sua própria posição. versação" se refugiará em um sucedâneo degradado da antiga efetivi-
Curiosamente, ele a vê como um recuo para antes de Hegel: ao comen- dade do diálogo, - a conversação burguesa -, e só dará bons frutos
"-

tar a idéia, também sua, de que em Hegel se dava o "acabamento" da quando, como em Hofmannsthal ou Beckett, a conversação "se vê no
estética clássica alemã, ele afirma: "quem diz acabamento diz, ao mesmo espelho", isto é, quando se volta sobre si mesma para tornar significa-
tempo, fim. Não se pode ultrapassar o fim a não ser recuando. Eis por- tivo seu próprio vazio. Já a "peça de um só ato", o "confinamento" e 0-\
que nada de novo na poética dos gêneros foi criado na seqüência do sis- "existencialismo" se mostrarão como tentativas de salvar a forma dra-
tema hegeliano (...), ao contrário, foi preciso voltar ao fundamento do mática, seja pela redução à exigüidade temporal ou ao conflito mínimo,
hegelianismo, às perspectivas que não dependem do Sistema, ou seja, seja pela redução espacial a núcleos concentracionários, só bem-suce-
à concepção romântica da filosofia da história e das relaçõ~s3ue ela dida em experimentos existencialistas como o de Sartre, em Huis CIos,
mantém com os gêneros poéticos. É disso que dão testemunho o livro quando a concentração e o estreitamento tornam-se temáticos e são rei-
de Benjamin sobre A origem do drama barroco alemão e A teoria do terados no plano formal.
romal/ce, de Lukács,escrito dez anos antes. Um e outro escreveram
As "tentativas de solução" da crise do drama formam a última e
esses livros na seqüência de um estudo aprofundado de Schlegel".6 mais extensa parte do livro. Nela são examinados mais de dez autores
Visto dessa perspectiva, o método de Szondi, cujo traço essencial e um encenador (Piscator). do expressionismo aA. MilIer, passando por
talvez seja o de "estabelecer a cada momento uma relação de oposição, Pirandello e Brecht. Não caberia resumi-Ia pormenorizadamente aqui,
ultrapassando a identidade aparente e revelando a diferença"7 radica- mas talvez seja o caso de dizer que, com todas as diferenças que apre-
se, mais longinquamente, em sua predileção pelo conceito de ironia, de sentam entre si, os dramaturgos aí estudados caracterizam-se pela
Schlegel, que tem larga refração em suas outras obras. assunção e enfrentamento da crise da forma dramática, não se limi-
Na seqüência da análise dessa dramaturgia que, de Ibsen a Haupt- tando a manifestá-Ia ou a procurar refugir a ela. Ao contrário, pode-
mann, configura a "crise do drama", Szondi examinará o que chama de se dizer que, da perspectiva de Szondi, praticamente todos eles pro-
"tentativas de salvamento" da forma dramática. Justamente por tenta- curaram "solucionar" a crise do drama assumindo como elementos
rem unificar o que irremediavelmente já se cindira, estas "salvações" do temáticos e formais, tão plenamente quanto possível, os elementos'-
drama permitirão tornar mais patente a contradição insolúvel que se contraditórios em cuja emersão ela se manifesta e. assim, procurando
desdobra ao longo de toda a Teoriado drama moderno:o "naturalismo" recuperar para o teatro uma integridade estética à altura dos impasses
se revelará uma escolha finalmente conservadora, mesmo regressiva, que ele defronta.
por abrigar-se, na representação compassiva do proletariado como Porém, entre estas análises de Szondi, talvez seja o caso de comen-
última instância da "naturalidade", contra a fratura que cindia igual- tar, ainda que sucintamente, a da obra de Brecht. Se, como se disse an-
mente todos os indivíduos e o conjunto da sociedade. A "peça de con- teriormente, é possíveller a Teoriado drama modemo como a história
da emersão progressiva do elemento épico, é no mínimo curioso que Não é possível, aqui, ir além dessas indagações, mas o tratamento

Szondi passe de modo tão célere e francamente redutor justamente dado a Brecht neste livro de Szondi suscita de imediato um paralelo,

pelo dramaturgo que colocou sua obra sob a rubrica englobante de no contexto brasileiro, com o conhecido O teatro épic~, de Anatol Rosen-
feld,9 Este livro excelente deve bastante, aliás, ao estudo de Szondi, como
"teatro épico", teorizando e praticando as formas correspondentes em
todos os níveis de suas peças e encenações, Szondi, aliás, o reconhece várias vezes indica seu autor, mas salta à vista que Rosenfeld reo!:,g.ani-

plenamente, com a concisão e o brilho que lhe são peculiares: "Atra\'és zou de outra maneira o trabalho de Szondi, partindo declaradamente

desses processos de distanciamento, a oposição sujeito-objeto, que está da obra de Brecht, para executar o mergulho nas formas anteriores do

na origem do teatro épico - a auto-alienação do homem, para quem o teatro épico e, finalmente, desembocar de novo em Brecht, a quem

próprio ser social tornou-se algo objetivo -, recebe em todas as cama- dedica todo o capítu~o final. A diversidade de contextos e de propósi-
das da obra [de Brecht] sua precipitação formal e se converte assim no tos, além das inefáveis diferenças individuais, certamente explicam tais

princípio universal de sua forma", Mas, a despeito dessa percepção, seu diferenças, cabendo apenas saudar o fato de que ambos esses livros

enfoque de Brecht praticamente se resume ao comentário do conhecido finalmente possam se reencontrar nas estantes brasileiras, Em um e

esquema de oposição entre as formas "dramática" e "épica" de teatro outro, guardadas as diferenças também quanto a esse aspecto, o eixo

(1931), eximindo-se de exames mais detalhados, seja das suas peças de reflexão passa pela teoria dos gêneros. No nível em que o fazem,

mais importantes, seja da própria evolução do conceito de teatro épico essa teoria tem ainda
.~ uma outra função: ela "representa uma possibili-

em sua obra, O que pensar desse fato? Que Szondi, analista e historia- dade rara de aplicar rigorosamente uma reflexão de ordem filosófica a

dor da emersão do épico, encontrara em Brecht o "acabamento" de sua um objeto puramente literário",lo Nesse caso, "a poética dos gêneros

própria perspectiva e, assim, tal como no caso da teoria dos gêneros em restitui ao objeto sua dignidade; a dificuldade de reflexão, à qual nos
estudos literários não se está habituado, tem um efeito de distancia-
relação a Hegel, só poderia recuar para antes desse final, ultrapassá-Ia
para trás? Nesse caso, o teatro épico de Brecht seria algo como o defla- mento",11Com muito mais razão, essas reflexões se aplicariam ao domí-
nio dos estudos teatrais,
gador oculto da pesquisa histórico-sistemática de Szondi? Mas não
seria igualmente possível pensar que, dado o contexto alemão dos anos Muitas vezes já se falou de "nostalgia" em relação aos pontos de

50, tal como jamais menciona Marx (embora impregnado dele) pela vista deste estudo de Szondi.u Se levarmos em conta a admiração fran-

"razão muito fina de distinguir os valores emancipatórios do marxismo ca com que ele recolhe e analisa as soluções mais brilhantes e inventi-

das diferentes realizações que se reivindicam dele",8 assim também vas da dramaturgia contemporânea, veremos que essa palavra talvez
Szondi evita deter-se sobre Brecht? E, ainda, não se poderia levar em não seja adequada, Mas não resta dúvida de que a sua adesão tão rigo-

con ta seu vínculo com Adorno, além de uma possível antipatia em rela- rosa ao teatro e, nele ao drama em seu estado mais puro - constituído

ção às posições políticas de Brecht? de presença e presente, inteiramente situado na esfera do intersubje-
tivo e mediatizado pelo diálogo -. tem algo de um anacronismo bem
pensado:demonstra que ele sevolta para uma época,~ormais im.~-
feita que fosse.em que a divisa do homem talvez não precisasseser
aquelafrase de Balzac.que ele cita mais de uma vez,e com a qual pra-
ticamente termina seulivro: "nous mourrol/s tousir/col/nus".

Notas

W.Benjamin.Essais stlr Berto/t Brecht, Paris: Maspero. 1969,p. 23. Introdução


2 G. Lukács.A teoria do romance, São Paulo: Duas Cidades/34.1999.
Estética histórica e
3 Thimoth}' Bahti, "Destin au passé". em Bollack.]. (org.). L'acte critique, Parisl
poética dos gêneros
Ulle: Presses Universitaires de Ulle e Ed. de Ia Maison des Sciences de I'Homme,

1979, 1'1'. 128 e 129.

4 E. Staiger. Grulldbegriffe der Poetik. Zurique. 1946.

5 Th. W.Adorno. Millima mora/ia.Reflexõesa partir da I'ida danificada. São Paulo:


Ática.1992.

6 P. Szondi. "La théorie des genres poétiques chez F.Schlegel",em Poésieet poéli-

que de l'idén/isme nllemtWd, Paris: Gallimard, 1974,p. 126.

7 J. Bollack (org.). L'acle crilique, Paris/ Lille: Presses Universitairs de Lille c Ed.

de Ia Maison des Sciences de !'Homme.1979. p. 151.

8 Ibidem.p. 263.
9 A. Roscnfeld. O lealro épico. São Paulo: Perspectiva, 1997.

10 }.Bollack. 01'. cit.. 1'.151.

11 Ibidem. p. 154.

J:> n. Frank. Manfred em Bollack. J.. 01'. cit.. 1'1'.93 e 94.


I..>c~Jt:Al'istóteles. os teóricos têm condenado o aparecimento de traços
épicos no domínio da poesia dramática. Mas quem tenta hoje expor o
desenvolvimento da dramaturgia moderna não pode se arrogar esse pa-
pel de juiz, por razões que deve esclarecer previamente para si mesmo
e para seus leitores.

O que autorizava as primeiras doutrinas do drama a e~gir o cum-


primento das leis da forma dramática era sua concepção particular de
forma, que não conhecia nem a história nem a dialética entre forma e
conteúdo. Parecia-Ihes que, nas obras de arte dramáticas, a forma pre-
estabelecida do drama realizava-se quando unida a uma ~~.~~!.i~sele-
cionada com vistas a ela. Se essa realização era malsucedida, se o dra-
ma apresentava traços épicos, o erro se achava na escolha da matéria.
Na Poética,Aristóteles escreve:"O poeta deve (...) lembrar-se de não
dar forma épicaà sua tragédia. Por épico eu entendo, porém, um con-
teúdo de muitas ações, como se alguém quisesse dramatizar, por exem-
plo, a matéria inteira da Ilíada".1Igualmente, o empenho de Goethe e
Schiller em distinguir poesia épica e poesia dramática tinha por fim
prático evitar a escolha errada da matéria.2 2.
Essaconcepção tradicional, fundada na dualidade originária de tentativa de afastar-se de uma poética historicamente fundada, dos gê-
forma e conteúdo, tampouco conhece a categoria do histórico. A forma neros poéticos concretos, rumo ao atempo~al. Dela dá testemunho (ao
preestabelecida é historicamente indiferente; só a matéria é historica- lado da obra pouco profícua de R.Hartl, Versucheinerpsychologischen
mente condicionada, e o 9rama aparece segundo o esquema comum a Grundlegungder Dichtungsgattungen [Ensaio de uma fundamentação
todas as teorias pré-historicistas, como realização histórica de uma psicológicadosgênerospoéticos]), a Poéticade E.Staiger,que anc?r.~?s
forma atemporal. conceitos de gênero em diversos modos de ser do homem e, em última
A consideração da forma dramática corno não vinculada à histó- instância, nos três "êxtases" do tempo. A substituição necessária dos
ria significa, ao mesmo tempo, que o drama é poss~vel emgualquer três conceitos fundamentais "lírica", "épica" e "dramática" por "lírico",
tempo,e pode ser invocado na poética de qualquer época. "épico" e "dramático" torna patente que essa nova fundamentação altera
Esse nexo entre a poética supra-histórica e a concepção não-dialé- a poética em sua totalidade e particulllrmente em sua relação com a
tica de forma e conteúdo nos remete ao vértice do pensamento dialético própria criação poética.
e histórico: à obra de Hegel. Na Ciência da lógica encontra-se a frase: "As Mas uma terceira alternativa consistia em perseverar no terreno
verdadeiras obras de arte são somente aquelas cujo conteúdo e forma se historicizado. Na sucessão de Hegel, ela levou a escritos que projetaram
revelam completamente idênticos".3 Essa identidade é de essência dialé- uma estética histórica não limitada à poesia: A teoria do romance,de G.
tica: na mesma passagem, Hegel a nomeia "relação absoluta do con- Lukács,Origem do drama barroco alemão, de W. Benjamin, e Filosofia
teÚdo e da forma (...), a conversão de uma na outra, de sorte que o da novamúsica,de Th. W.Adorno.Aquia concepção dialética de Hegel
conteúdo não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a da relação forma-conteúdo rendeu frutos, ao se compreender <:f?rma
forma não é nada mais que a conversão do conteúdo em forma".4 A como conteúdo "precipitado".6 A metáfora expressa ao mesmo tempo
identificação de forma e conteúdo aniquila igualmente a oposição de o caráter sólido e duradouro da forma e sua origem no conteúdo, ou
atemporal e histórico, contida na antiga relação, e tem por conseqüência seja, suas propriedades significativas. Uma semântica da forma pôde
a historicização do conceito de forma e, em última instância, a historici- desenvolver-se por essa via, e a dialética de forma e conteúdo aparece
zação da própria poética dos gêneros. A lírica, a épica e a dramática; se agora como dialética entre o enunciado da forma e o enunciado do con-
transformam, de categorias sistemáticas, em categorias históricas. teúdo. Desse modo, no entanto, é colocada já a possibilidade de que o
Após essa transformação nos fundamentos da poética, a ciência enunciado do conteúdo entre em contradição com o da forma. Se, no
viu-se diante de três vias. Ela podia adotar a concepção de que as três caso da correspondência entre forma e conteúdo, a temática vinculada
categorias fundamentais da poética haviam perdido, juntamente com ao conteúdo opera, por assim dizer, no quadro do enunciado formal
a essência sistemática, sua razão de ser - daí Benedetto Croce excluí- como uma problemá tica no interior de algo não problemático, surge a
'4 Ias de Slla estética. No pólo diametralmente oposto, encontrava-se a contradição quando o enunciado formaL estabelecido e não questio-
nado, é posto em questão pelo conteúdo. Mas essa antinomia i_nt~_~~é mente em seu conteúdo, mas também em sua origem. Visto que a for-

a que permite problematizar historicamente uma forma poética, e o ma de uma obra de arte expressa sempre algo de inquestionável, o claro
que aqui se apresenta é a tentativa de explicar as diversas formas da entendimento desse enunciado formal geralmente só é obtido em uma

dramática moderna a partir da resolução dessas contradições. época para a qual o que era antes inquestionável se tornou questioná-
Portanto ela permanece no campo da estética e se nega a dilatar-se vel, para a qual o evidente se tornou problema. Dessa maneira, o dra-
em um diagnóstico de época. As contradições entre a forma dramática ma é aqui conceitualizado nos termos de sua impossibilidade atual, e
e os problemas do presente não devem ser expostas in abstracto, mas esse conceito de drama é já compreendido como o momento de um
apreendidas no interior da obra como contradições técnicas, isto é, questionamento sobre a possibilidade do drama moderno.
como "dificuldades". Seria natural querer determinar. com base em um Portanto é designado a seguir por "drama" apenas uma determi-
sistema de gêneros poéticos, as mudanças na dramaturgia moderna nada forma de poesia teatral. Nem as peças religiosas da Idade Média
que derivam das problematizações da forma dramática. Mas é preciso nem as peças históricas de Shakespeare fazem parte dela. A perspec-
renunciar à poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para tiva histórica requer a abstração também da tragédia grega, já que sua
escapar a uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, essência só poderia ser reconhecida em um outro horizonte. O adje-
mas porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira tivo "dramático" não expressa, no que segue. nenhuma qualidade (como
os fundamentos da poética sistemática enquanto tal. nos COl/ceitosfundamentais da poética, de Staiger),mas significa sim-
Desse modo, o ponto de partida terminológico é constituído so- plesmente "pertencente ao drama" ("diálogo dramático" = diálogo no
mente pelo conceito de drama. Como conceito histórico, ele representa drama). Em oposiçãO a "drama" e "dramático", o termo "dramáticà' ou
um fenômeno da história literária, isto é, o drama, tal como se desen- "dramaturgia" é usado também no sentido mais amplo, designando tudo
volveu na Inglaterra elisabetana e sobretudo na França do século XVII, o que é escrito para o palco. Se em algum momento o termo "drama"
sobrevivendo no classicismo alemão. Ao colocar em evidência o que for entendido também nesse sentido. ele será posto entre aspas.
"precipitou" na forma dramática como enunciado sobre a existência Como a evolução da dramaturgia moderna se afasta do próprio dra-
humana, ele faz de um fenômeno da história literária um documento ma, o seu exame não pode passar sem um conceito contrário. É como tal
da história da humanidade. Deve-se mostrar as exigências técnicas do que aparece o termo "épico": ele designa um traço estrutural comum da
drama como reflexo de exigências existenciais, e a totalidade que ele epopéia, do conto, do romance e de outros gêneros, ou seja, a presença
projeta não é de essência sistemática mas filosófico-histórica. A histó- do que se tem denominado o "sujeito da forma épica" 7ou o "eu-épico".8
ria foi banida para os hiatos entre as formas poéticas, e unicamente a Os dezoito estudos que procuram apreender essa evolução a partir
reflexão sobre a história é capaz de lançar pontes sobre eles. de exemplos seletos são precedidos de uma exposição do próprio dra-
No entanto o concei'to de drama não tem vínculos históricos so- ma, ponto de referência para tudo que se seguirá.
Notas

Aristótcb" "Obcr dic Dichtkunst", A. Gudcman(org.), em Philos. Bibl., vol. 1.,


Leipzig, 1921, p. 37.

:1. Cf. Gocthe, OberEpisclre III/c/ Dramlltischc Diclltlll/g,c carta dc Schillcr a Goc-
Ihc de 26 dc dczembro de 1797.

3 Hegel, Siimtlichc Werke (Jubiliiumausgabc), vol. VIII, p. 30.'.


4 Ibidem, p. 302.
o drama
5 l.yrik, Epik c Dra1l/lItik: oplamos por seguir o conselho de Analol Rosenleld

(em O tentro épico) dc"forçar um pouco a Ilngua"c empregar pam os dois lilti-

mos gêneros os adjetivos substantivados "épica" c "dramática", a fim de enfali-

zar o aspecto estrutural. Também é essa a escolha de Paulo Quinlcla, em sua


o drama da época moderna surgiu no Renascimento, Ele representou
tradução de Wolfgang Kayser,And/ise e imerpretllçãoda obra litertirin.Por outro a audácia espiritual do homem que voltavaa si depois da ruína da visão
lado, o sentido amplo que Dra1l/ntik gan~a na abordagem de Szondi nos le\'ou
de mundo medieval, a audácia de construir, partindo unicamente da
a recorrer diversas vezcs ao termo "dramaturgia" (N. do T.J.
reprodução das relações intersubjetivas, a realidade da obra na qual
6 Th. W.Adorno, Philosophieder nel/ell MI/sik, TObingcn. 1949,p. 28. quis se determinar e espelhar.1O homem entrava no drama, por assim
7 G. Lukács, Die Theorie des Romlllls. Bcrlim. 1920,p. 36. Rccdição: Ncuwicd- dizer, apenas como membro de uma comunidade. A esfera do "inter"
Berlin, 1963.
lhe parecia o essencialde sua existência;liberdade e formação, vontade
8 It 1'.'I<<:h,l\bclllllld Formell der Erziihlkl/Ilst, Ballc. ]934.
e decisão,o mais importante de suas determinações. O "lugar" onde ele
alcançavasua realização dramática era o ato de decisão. Decidindo-se
pelo mundo da comunidade, seu interior se manifestava e tornava-se
presença dramática. Mas o mundo da comunidade entrava em relação
com ele por sua decisão de agir e alcançava a realização dramática
principalmente por isso. Tudo o que estava aquém ou além desse ato
tinha de permanecer estranho ao drama: o inexprimívele o já expresso,
a alma fe.chada
e a idéia já separada do sujeito. E sobretudo o que era
desprovido de expressão, o mundo das coisas,na medida em que não
participava da relação intersubjetiva. 29

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