Você está na página 1de 13

Luciana Tramontin Bonho e Pollyanna Maria da Silva

A CRIDE DO CONHECIMENTO RACIONAL E SEUS REFLEXOS NA


JURISDIÇÃO

1. Para efeitos de introdução: a ciência moderna e a racionalidade

O pensamento do século XVIII foi pautado pela racionalidade, a


crença no progresso do conhecimento, no controle do homem sobre a natureza e em
um individualismo secular. Baumer1 destaca algumas metas do Iluminismo:

[...] Iibertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam: do


tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua
sombra sobre o mundo, da superstição das igrejas (distintas da
religião "racional" ou “natural"), da irracionalidade que dividia os
homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de
acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A
liberdade, a igualdade e, em seguida. a fraternidade de todos os
homens eram seus slogans. No devido tempo se tomaram os
slogans da Revolução Francesa.

Nos primórdios do século XVIII o estudo das humanidades


encontrava-se bastante desprestigiado, muito em função do predomínio das
concepções descartianas, que relegavam aquela espécie de conhecimento ao
status de miscelânea de informações periféricas e de reduzida importância, que não
deveriam ocupar mais do que alguns minutos do tempo dos homens racionais. O
conhecimento válido e proveitoso só poderia ser obtido através da aplicação do
método enunciado em seu "Discurso", reduzindo-se o problema à categorias
estanques claras e distintas, e, a partir da resolução do simples, ascendendo-se
progressivamente até os problemas mais difíceis, a fim de assim alcançar a
verdade. Esta noção de conhecimento verdadeiro encontrava-se fortemente
arraigada ao modelo matemático, tanto que as humanidades sofreram à época
sucessivas tentativas de imposição de métodos próprios às ciências naturais e
1
BAUMER, Franklin Le Van. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX. Traduzido por
ALBERTY, Maria Manuela. Lisboa: Edições 70, 1977,p. 165-170.
2

exatas, que aos seus objetos eram freqüentemente inadequados. Essa pretensão
de “transporte” veio ditar a desilusão em relação à técnica e a ciência2.

Por outro lado, a renegação ao conhecimento subjetivo, sendo que


somente o saber cientifico seria apto a revelar a verdade na concepção moderna,
sofreu um grande abalo com as descobertas de Freud e a objetivação da
subjetividade e sua compreensão de parte do saber cientifico. Surgiram
questionamentos aos determinismos impostos pela ciência moderna e seu déficit de
previsibilidade originados pela teoria da relatividade de Einsten e a possível
existência de uma pluralidade de verdades dada pela reversibilidade das verdades
cientificas no tempo3.

Os catastróficos acontecimentos que tiveram lugar entre o final do


século XIX e meados do XX atingiram o ideário humano a ponto de provocar uma
crise de sentido e de representação, e o questionamento do que se entendia por
ciência (crise epistemológica), ensejando a discussão sobre a mutilação perpetrada
ao se considerar científico somente o conhecimento obtido através da razão, e
sobre a violência deste racionalismo totalitário.

Cercado por todos os lados, o Racionalismo encara um


desmascarar não antes visto.

2. A Crise da racionalidade

A Ciência Moderna, desde a sua constituição como paradigma


hegemônico e seus desdobramentos posteriores, apresentou sinais visíveis de
esgotamento. A sucessão de lutas e acumulação de frustrações aprofundou a crise
do modelo dominante, fazendo com que os sinais de seu esgotamento se tornassem
mais evidentes. Não se pode negar o estado de crise, decomposição e declínio da
racionalidade. Segundo Santos4

...a crise do paradigma da ciência moderna não constitui um pântano


cinzento de cepticismo ou de irracionalismo. É antes o retrato de uma
família intelectual numerosa e instável, mas também criativa e

2
GAUER, Ruth. Qualidade do tempo: para além das aparências histórias. Org. Lúmen Iuris: Rio de
Janeiro, 2004.p. 03.
3
Idem. Ibiem. p. 06-09.
4
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
São Paulo: Cortez, 2000, p. 74
3

fascinante, no momento de se despedir, com alguma dor, dos


lugares conceptuais, teóricos e epistemológicos, ancestrais e
íntimos, mas não convincentes e securizantes, uma despedida em
busca de uma vida melhor, a caminhos doutras paragens onde o
optimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde,
finalmente, o conhecimento volte a ser uma aventura encantada. A
caracterização da crise do paradigma dominante traz consigo o perfil
do paradigma emergente.

O final do século XIX foi marcado, desta forma, por consecutivos


ataques à concepção racionalista redutora do humano ao logos. Com o impulso
proporcionado pelo darwinismo, que afirmou o homem como membro do reino
animal e portador de instintos irracionais, a psicanálise freudiana, através de suas
teorias sobre o inconsciente, corroeu a idéia logocêntrica totalizadora.

Freud pressupunha ser o inconsciente a base geral da vida psíquica,


uma esfera mais ampla que incluiria em si a esfera menor do consciente. Para ele,
era essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente
para que se pudesse formar um juízo correto do que é psíquico, apregoando a
necessidade de estudar o inconsciente, “tão desconhecido quanto a realidade do
mundo externo, e (...) apresentado de forma tão incompleta pelos dados da
consciência quanto o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos
sensoriais”5.

Destaca-se a valorização por Freud da interpretação dos sonhos para


a compreensão e tratamento das patologias que acoimavam os indivíduos. Ele
reconhecia na faculdade onírica uma forma de expressão dos impulsos que se
encontravam sob resistência durante o dia, mas que vinham à tona no tempo do
sono porque encontravam reforço em fontes profundas de excitação.

Dessa forma, ao relegar à consciência apenas o papel de “um órgão


sensorial para a percepção de qualidades psíquicas”6, propondo que as mais
complexas operações da psiquê residiriam no inconsciente, a psicanálise freudiana
desferiu um duro golpe na megalomania da razão, que era manifestamente
percebida como a operação consciente por excelência.
5
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Traduzido por OLIVEIRA, Walderedo Ismael de. Rio
de Janeiro: Imago, 1999, pp. 584-586.

6
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Traduzido por OLIVEIRA, Walderedo Ismael de. Rio
de
Janeiro: Imago, 1999, p. 587.
4

Era evidente a atmosfera de desorientação que pairava no âmago da


sociedade da época, conforme Baumer7 “uma sensação de não saber exactamente
onde estava a certeza, ou mesmo se haveria uma certeza, para além da própria
mudança, e de não saber o que o futuro podia trazer”.

A crise do paradigma moderno, como bem leciona Boaventura de


Souza Santos, culminou nas descobertas de Einstein acerca da relatividade e
simultaneidade dos acontecimentos, e nos experimentos de Heisenberg e Bohr, no
âmbito da mecânica quântica. Enquanto Einstein, no campo da astrofísica, põe por
terra a concepção de um espaço e tempo absolutos propugnada por Newton,
Heisenberg provoca transformações no universo da microfísica, ao questionar a
idéia de causalidade, face ao princípio da indeterminação8.

De fato, a transformação e o movimento pareciam ser as únicas


certezas, e a consciência da aceleração dos acontecimentos representava para os
europeus tanto a possibilidade de novas experiências quanto motivo de medo frente
ao imprevisível e desconhecido. A segurança de uma concepção histórica
determinista e suscetível ao entendimento e controle racional restou minada. A
história passou a ser compreendida como o resultado da vontade humana
(consciente ou inconsciente), e assim seguiria o rumo imposto pelas escolhas dos
homens, em direção ao progresso ou à decadência.

Por este prisma, os europeus entendiam que não possuíam motivos


para comemorar. O sentimento de decadência mostrava-se superior ao de
progresso. Como se não bastasse o declínio do sentido de comunidade, a perda dos
valores espirituais, a cultura de massas e a corrupção burguesa, “tinham comido da
árvore da ciência e, agora, viam mais claramente do que antes o modo como as
coisas eram: o homem aparentado com os animais, perdido num grão de areia num
universo imenso e indiferente, privado da noção da sua própria identidade”9.

O reconhecimento da crise da racionalidade deve conduzir a um


cuidado especial ao buscar explicitar, mesmo em forma sintética, o processo de

7
BAUMER, Franklin Le Van. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX. Traduzido por
ALBERTY, Maria Manuela. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 132.
8
SOUZA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre a ciência. 11ª ed. Portugal: Edições
Afrontamento, 1999, p. 24-26.
9
BAUMER, Franklin Le Van. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX. Traduzido por
ALBERTY, Maria Manuela. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 160.
5

declínio do paradigma moderno de ciência. Nesse sentido, alerta Boaventura de


Souza Santos10:

Ao contrário do que à primeira vista pode parecer, não é fácil


determinar se um dado período histórico é dominado por uma crise
de crescimento ou por uma crise de degenerescência. Como não é
possível definir com segurança o ciclo vital de um determinado
paradigma científico, tampouco se sabe quantas crises de
crescimento são necessárias para que ocorra uma crise de
degenerescência.

Curiosamente, Boaventura de Souza Santos11 também entende que


o apogeu da dogmatização da ciência significa também o início do seu declínio e,
portanto, o início de um movimento de desdogmatização que não cessou de se
ampliar e aprofundar até nossos dias. Além disso, salianta-se:

Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como


pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do
mundo, as idéias de que o passado se repete no futuro. Segundo a
mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas
operações se podem determinar exactamente por meio de leis físicas
e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço
vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível
por via da sua decomposição nos elementos que o constituem [...]12.

Com a crise da racionalidade surge a idéia de conhecimento como


produto da solidariedade entre a razão e a sensibilidade, o emocional e o instinto.
Valoriza-se uma racionalidade autocrítica, aberta e criativa, como forma de se
pensar com maior clareza sobre possibilidades viáveis de uma ciência mais
consciente de si e por isto otimizadora da co-existência humana.

Como bem aduz Ruth Gauer,


a ciência moderna baseada no dogma de um determinismo
universal desabou, enquanto lógica, chave mestra da certeza do
raciocínio, revelou incertezas na indução, impossibilidades de
decisão e limites no princípio do terceiro incluído. Assim, o objetivo
do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e
globalizar) e aceitar o desafio da incerteza13.

10
SOUZA SANTOS, Boaventura. Introdução a uma ciência pós-moderna. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1989, p. 18.
11
Op. Cit., 1989, p. 23.
12
SOUZA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre a ciência. 11ª ed. Portugal: Edições
Afrontamento, 1999, p. 17.
6

3. A Complexidade

Verifica-se o desmoronamento da racionalidade científica, fundada


na objetividade, que afastou do mundo as qualidades sensíveis e tudo o que diz
respeito à subjetividade e à vida.

Se a Razão não consiste mais em um "porto seguro" capaz de


proteger-nos contra as intempéries das ideologias, dos dogmatismos e das
manifestações do irracional (fundamentalismos, racismos, integrismos, etc.), o
mundo fica sem horizonte fixo e sem fundamento.

Assim, no mundo complexo se vive, mais ou menos, à deriva. Contra


as ameaças de um pensamento uniformizador e homogeneizador, fundado na
dominação da racionalidade tecnocientífica, novos valores são buscados: a
multiplicidade dos pensamentos, a pluralidade das visões de mundo, a diversidade
dos modos de viver, pensar e agir. Com isso, atuar a partir das disciplinas, além e
através das mesmas, consiste em um desafio para visualizar e compreender a
complexidade de qualquer fenômeno.

A complexidade exige a superação das concepções alienantes de


mundo, “a determinista, que recusa ao homem a possibilidade de imaginar ou de
criar, e a outra cética, que diz que o universo é aleatório, estranho à razão” 14. Em
face do universo complexo, flutuante e evolutivo há a necessidade um linguagem
nova, tanto nas ciências físicas como nas humanas. Edgar Morim15 defende a idéia
de que uma sociedade complexa concede muitas liberdades de atuação aos
indivíduos e aos grupos, permitindo-lhes que sejam criativos, muitas vezes até
delinqüentes. A complexidade requer o mínimo de coerção possível e o único
sentimento que resta é o da solidariedade vivida. Neste sentido, cita-se Prigogine16:

Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a


situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da
complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a

13
GAUER, Ruth M. Chittó. As Certezas e Incertezas do Conhecimento. AJURIS, Porto Alegre, v. 2, 2001.
p. 06.
14
PRIGOGINE, Iya. O reencantamento do mundo. In: Sociedade em busca de valores. Lisboa: Piaget
pp. 229-238.
15
MORIM, Edgar. Complexidade e liberdade. In: Sociedade em busca de valores. Lisboa: Piaget.
16
PRIGOGINE, Iya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Unesp. 1996, p. 14.
7

criatividade humana como a expressão singular de um traço


fundamental comum a todos os níveis da natureza.

Pretende-se construir um mundo onde seja possível a expansão de


todas as criatividades e onde possam conviver todas as pluralidades. Busca-se
valorizar uma nova epistemologia: da indeterminação, da descontinuidade e do
pluralismo, não aceitando mais nenhum tipo de dogmatismo, pois gera violência.

A violência e o assassinato cometidos por motivos individuais


desempenham apenas um papel insignificante no curso da História. O que matou e
mata milhões é a convicção de possuir a verdade e a vontade de impô-la aos outros.
O homem ocidental matou em nome de Deus, em nome de princípios nazistas,
stalinistas e até científicos (racismo). Sempre se matou em massa para se defender
princípios ideológicos ou religiosos. Não é somente o interesse que leva os homens
a se matarem. Também é o dogmatismo. Nada é tão perigoso quanto a certeza de
ter razão. Nada causa tanta destruição quanto à obsessão por uma verdade
considerada como absoluta. Todos os crimes da História são conseqüências de
algum fanatismo. Todos os massacres foram realizados por virtude: em nome da
religião verdadeira, do racionalismo legítimo, da política idônea, da ideologia justa;
em suma, em nome do combater contra a verdade do outro, do combate contra
Satã17.

4. A transdisciplinaridade

Jean Piaget18, na década de 70, foi primeiro a usar o termo


"transdisciplinaridade", dando a seguinte definição:

[...] no estágio das relações interdisciplinares, podemos esperar o


aparecimento de um estágio superior que seria transdisciplinar, que
não se contentaria em atingir as interações e reciprocidades entre
pesquisas especializadas, mas situaria essa ligações no interior de
um sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas.

Dessa forma, pode-se entender a transdisciplinaridade como o


reconhecimento da interdependência de todos os fenômenos da realidade.

17
JAPIASSU, H. Desistir de pensar? Nem pensar! São Paulo: Letras & Letras, 2001.
18
WEIL, Pierre e outros. Rumo à nova transdisciplinaridade. Sistemas abertos de
conhecimento. São Paulo: Summus, 1993.
8

Em novembro de 1994, no Primeiro Congresso Mundial de


Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal), editou-se a Carta da
Transdisciplinaridade. Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu formaram o
comitê de redação da Carta que, consiste em um conjunto de princípios
fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, formando um contrato
moral que todo signatário do Protocolo fez consigo mesmo, sem qualquer pressão
jurídica e institucional.

Cabe resgatar o Artigo 3 da Carta da Transdisciplinaridade19, que


traz o seu conceito:

A transdisciplinaridade é complementar à abordagem disciplinar; ela


faz emergir do confronto das disciplinas novos dados que as
articulam entre si; e ela nos oferece uma nova visão da Natureza e
da Realidade. A transdisciplinaridade não busca o domínio de várias
disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e
ultrapassa.

Além disso, destaca-se que com relação à interdisciplinaridade e à


multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade é multidimensional. Levando em conta
as concepções do tempo e da história, a transdisciplinaridade não exclui a existência
de um horizonte trans-histórico.

Com isso, uma jurisdição autêntica não pode privilegiar a abstração


no conhecimento. Deve ser criativa, contextualizando, concretizando e globalizando
o caso. Nesse sentido, o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do
corpo no ato de julga deve ser reavaliado.

5. O papel do juiz e os desafios da jurisdição

O conhecimento racional moderno cultivou a concepção de um


Judiciário neutro, como se fosse um produtor de conhecimento científico e, como tal,
imune a influências externas. A decisão justa dependeria da circunstância de estar o
magistrado livre de todos os obstáculos ao uso da sua racionalidade na decisão.

19
Disponível em: http:// www.abeg.org.br/comunicacoes/Carta%20de
%20Transdisciplinaridade.doc. Acesso em 18 out. 2007.
9

Nota-se, facilmente, a semelhança entre esse procedimento e o adotado na ciência:


o cientista, senhor do pleno uso da própria razão, pode produzir um saber puro.

Kelsen, na Teoria Pura do Direito, trouxe grande transformação no


estudo do Direito. O princípio da pureza era aplicável não só quanto ao método, mas
também quanto ao objeto do conhecimento jurídico, e era utilizado como recurso
que dava os limites da ciência do Direito.

Após a revolução francesa, a vitória da burguesia trouxe para o


pensamento jurídico a tendência da preservação dos interesses individuais,
limitados apenas pela norma, expressão dos ideais coletivos. Dessa tendência
decorreram, como conseqüências, um extremo apego à lei na interpretação e
aplicação do Direito pelo juiz, assim como a proibição imposta ao Judiciário, de
participar da criação jurídica, atividade exclusiva do Legislativo, órgão representante
da vontade popular. Tais conseqüências reforçavam o ideal de neutralidade do
magistrado.

O mesmo ocorria com a concepção mecânica da função


jurisdicional, segundo a qual formulação da sentença deveria assemelhar-se a um
mero silogismo, em que a premissa maior seria a lei, a menor, o fato e a conclusão,
a sentença. Esses foram os parâmetros da Escola da Exegese, que se desenvolveu
na França e cujos representantes foram os mais ilustres mestres e tratadistas do
Direito, durante decênios. Entretanto, críticas à postura legalista não demoraram a
surgir. Exemplos dessas críticas foram as proferidas por Benjamin Cardozo,
François Gény, Roscoe Pound, entre outros. Isso porque o referido dogma da
neutralidade prestou um desserviço ao principal objetivo da sentença, a realização
da justiça.

Atualmente, diante da questão da escolha entre diferentes princípios


igualmente válidos, tem primacial importância a personalidade do magistrado. E em
razão da tradição formalista, os julgadores omitem o verdadeiro modo como
raciocinam ao decidir, ou seja, como meros seres humanos, ainda que
conhecedores do Direito.

Ora, os homens pensam, comumente, sem o uso do silogismo, mas


raciocinam partindo das conclusões para as premissas. Além disso, explica que os
fatos nunca são observados diretamente pelo juiz, que tem deles um conhecimento
10

indireto, através dos depoimentos das testemunhas, da análise dos documentos,


das opiniões dos peritos, etc. O juiz, ao analisar um depoimento, deixa-se influir,
inconscientemente, por fatores emocionais de simpatia, de antipatia, que se
projetam sobre as testemunhas, os advogados e as partes. As experiências
anteriores do julgador também podem acarretar reações inconscientes favoráveis ou
desfavoráveis a respeito de mulheres ruivas ou morenas, homens com barba,
italianos, ingleses, padres, médicos, filiados a determinado partido político, por
exemplo. Esses preconceitos, que podem ser involuntários ou inconscientes, afetam
a memória ou a atenção do julgador e influem sobre a credibilidade das testemunhas
ou das partes.

Dentro dessa ordem de idéias, a idéia de um magistrado neutro e,


portando, alheio ao litígio, como se o desfecho da ação não decorresse,
necessariamente, dele, está superada. Da mesma maneira, já está superada a
concepção de um juiz indiferente ao resultado da causa e sem qualquer
preocupação com o alcance da justiça.

As rápidas mutações da nossa época exigem do Poder Judiciário um


constante diálogo com a sociedade. Com efeito, não se deve, pois, confundir a
pretensa neutralidade e a imparcialidade dos juízes, pois são figuras diferentes. O
princípio da imparcialidade faz com que a ação judicial não seja um instrumento
através do qual o julgador, resguardado pelo seu cargo, favoreça uma das partes,
em detrimento da outra. Constitui um limite à independência do juiz e se efetiva
através da vedação legal ao impedimento e à suspeição, garantindo assim, uma
decisão justa20.

O atual Estado de direito moderno não mais admite o juiz “neutro”,


desinteressado, mas requer que a atuação do magistrado no processo seja ampla e
só limitada pela regra jurídica. Explica-se: se, por um lado, pretende-se que a
decisão da demanda busque atender ao objetivo da lei, sem apego ao formalismo,
por outro, o julgador deve se preocupar com a integridade do “devido processo
legal”, que representa a proteção da segurança das partes21.

A imparcialidade, bem como a suspeição do juiz, estão reguladas


pela lei processual civil, tendo, assim, contornos bem traçados pelo Direito. Dessa
20
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo, Saraiva, 1983, pp. 438-489
21
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1.191, nº 28.3, p. 281.
11

forma, constituem figuras cuja existência é desejável no universo jurídico. por


possibilitar a igualdade das partes durante a resolução judicial dos conflitos, o que,
aliás, é previsto pela Constituição Federal no artigo 5°, caput. Já, o dogma da
neutralidade, herança do Iluminismo, relaciona-se com a idéia do magistrado
formalista, exageradamente preso às leis e afastado dos desejos da comunidade e
das características de seu próprio psiquismo. Assim, a adoção desse dogma
constitui um desserviço ao principal objetivo da sentença, a realização da justiça.

A neutralidade impossibilita o juiz de julgar, um juiz neutro é um juiz


boca-da-lei, que simplesmente reproduz sua letra morta. O que se espera de um
juiz, após a crise da racionalidade e a epistemologia da incerteza, é que não busque
a verdade real, mas a verdade possível no processo, amparada sempre pelas
garantias de fundamentação das decisões judiciais e do livre convencimento
motivado.

Face aos desafios da jurisdição diante à crise da racionalidade,


Volnei Ivo Carlin22 coloca:

O papel do juiz tem consideravelmente se modificado nos últimos


anos, sob o efeito das mais numerosas solicitações. Esta evolução,
explica Garapon, traduz-se por uma crise de identidade que conduz,
largamente, à diluição do próprio objeto da Justiça. Interpretar a lei
significa quase, em cada caso, adaptá-la, reajustá-la.

Nesta procela estrutural, cabe ao juiz também se interessar no


aprimoramento da administração da Justiça. Neste sentido, cita-se José Renato
Nalini23:

Inquieto diante da complexidade procedimental, criará alternativas


propiciadoras de conhecimento efetivo das controvérsias, não se
tranquilizando com auto-escusa calcada nas deficiências do
sistema. Reconhecendo-se provido de talentos e poder, não
repousará na inconsciência, mas direcionará suas potencialidades
para o resgate de semelhantes vulnerados em seus direitos e
crentes na eficácia da Justiça humana.

Jacinto Coutinho defende a idéia de um papel atual do juiz como


participante, em contraponto ao juiz neutro. O autor vê no juiz um sujeito do

22
CARLIN, VIlnei Ivo. Deontologia jurídica ética e justiça. Florianópolis, 1996, pág. 49.
23
NALINI, José Renato. Uma nova ética para o Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1994, p. 7
12

conhecimento como agente participativo, construtor da realidade e que não tem


interesse em esconder suas ideologias24.

Para Aury Lopes Jr. a legitimação do juiz no Estado Democrático de


Direito não é política e sim Constitucional, “consubstanciada na função de proteção
dos direitos fundamentais de todos e de cada um ainda que para isso tenha que
adotar uma posição contrária a opinião da maioria”25.

O juiz deve ser o garante dos direitos fundamentais do indivíduo


submetido ao processo deixando a tarefa de acusação a cargo do Ministério Público
e a de coletada das provas a cargo das partes, condenando quando houver provas
lícitas da autoria e absolvendo quando não houver provas plenas da mesma.

De fato, o papel do magistrado frente ao ordenamento jurídico, após


a crise da racionalidade não é tarefa fácil. Conforme, Alexandre de Moraes da
Rosa26: “A hermética e anacrônica construção do ordenamento jurídico exige uma
atuação corajosa e competente dos operadores jurídicos, com a paulatina
publicização do processo, com o fim de realizar os escopos jurídico, social e político
da jurisdição”.

Referências Bibliográficas:

BAUMER, Franklin Le Van. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX.


Traduzido por ALBERTY, Maria Manuela. Lisboa: Edições 70, 1977.

CARLIN, VIlnei Ivo. Deontologia jurídica ética e justiça. Florianópolis, 1996.


COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. (coord.) “O papel do novo juiz no processo
penal”. In: Critica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Renovar: Rio de
Janeiro, 2001.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo, São Paulo,


Revista dos Tribunais, 1.191, nº 28.3.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Traduzido por OLIVEIRA, Walderedo


Ismael de. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

24
COUTINHO, Nelson de Miranda. (coord.) “O papel do novo juiz no processo penal”. In: Critica à
Teoria Geral do Direito Processual Penal. Renovar: Rio de Janeiro, 2001, p. 45.
25
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I. Lúmen
Júris: Rio de Janeiro, 2007,. p. 116.
26
ROSA, Alexandre de Moraes da. O papel dos juízes na sociedade contemporânea -
uma visão particular. Disponível em: http://www.neofito.com.br/artigos/art01/jurid205.htm. Acesso em 16 out. 2007.
13

GAUER, Ruth. Qualidade do tempo: Para além das aparências histórias. Org.
Lúmen Iuris: Rio de Janeiro, 2004.

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional.


Volume I. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2007.

MORIM, Edgar. Complexidade e liberdade. In: Sociedade em busca de valores.


Lisboa: Piaget.

NALINI, José Renato. Uma nova ética para o Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais.
1994,

PRIGOGINE, Iya. O reencantamento do mundo. In: Sociedade em busca de valores.


Lisboa: Piaget.

PRIGOGINE, Iya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução
Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp. 1996, p. 14.

SOUZA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício


da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Introdução a uma ciência pós-moderna. 3ª ed. Rio
de Janeiro:
Graal, 1989.

SOUZA SANTOS, Boaventura de.Um discurso sobre a ciência. 11ª ed. Portugal:
Edições Afrontamento, 1999.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo, Saraiva, 1983.

ROSA, Alexandre de Moraes da. O papel dos juízes na sociedade contemporânea -


uma visão particular. Disponível em:
http://www.neofito.com.br/artigos/art01/jurid205.htm. Acesso em 16 out. 2007.

WEIL, Pierre e outros. Rumo à nova transdisciplinaridade. Sistemas abertos de


conhecimento. São Paulo: Summus, 1993.

Você também pode gostar