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Os múltiplos sentidos da categoria


“empowerment” no projeto
de Promoção à Saúde

The multiple meanings of “empowerment”


in the health promotion proposal

Sérgio Resende Carvalho 1

Abstract Introdução

1 Departamento de Medicina Starting with a review of the literature and doc- Perante as mudanças sociais, políticas e cultu-
Preventiva e Social,
uments pertaining to health promotion in the rais, o esgotamento do paradigma biomédico e
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade developed countries, highlighting the Canadian a mudança do perfil epidemiológico desenvol-
Estadual de Campinas, output, the author reflects on the multiple ve-se, nas últimas décadas, o projeto da Pro-
Campinas, Brasil.
meanings ascribed to the “empowerment” cate- moção à Saúde enquanto uma resposta aos de-
Correspondência gory/strategy. After a summary of the conceptu- safios sanitários contemporâneos. Surgida nos
S. R. Carvalho al development of health promotion ideals, the países desenvolvidos, nos anos 70, esta propos-
Departamento de Medicina
paper analyzes the theoretical aspects of “em- ta assume o status de uma das principais linhas
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências powerment”, suggesting its classification into de atuação da Organização Mundial da Saúde
Médicas, Universidade two main approaches: psychological and com- influenciando, nos anos seguintes, a elabora-
Estadual de Campinas.
Rua Macedo Soares 1110,
munity-based. The author contends that com- ção de políticas de saúde de diversos países.
Cidade Universitária II, munity “empowerment” helps define health No Brasil, este ideário tem sido objeto de
Campinas, SP promotion as a proposal aimed at transforming interesse de inúmeros estudiosos e dirigentes
13083-130, Brasil.
srcarvalho@terra.com.br
the status quo and the production of healthy do setor saúde. Seus princípios e diretrizes in-
subjects. The paper concludes by exploring the fluenciam a elaboração do arcabouço teórico do
potential contributions of social/community modelo de Vigilância à Saúde, sustenta a pro-
“empowerment” to health education practices posta de Cidades Saudáveis, subsidia práticas
and reorganization of the Brazilian National de Educação à Saúde e se faz presente junto a
Health System (SUS). projetos de reorganização da rede básica que
vêm, nos últimos anos, se desenvolvendo sob o
Public Health; Health Promotion; Health Edu- manto do Programa Saúde da Família 1,2,3,4.
cation Partindo do pressuposto de que o concei-
to/estratégia de “empowerment” constitui um
eixo central da Promoção à Saúde, procuro
neste trabalho clarificar esta terminologia e de-
monstrar a importância desta estratégia para o
mencionado ideário.
Realizei, para isto, uma investigação em que
utilizei como fontes a produção relevante de
autores anglo-saxões das áreas da Saúde Públi-

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ca e Ciências Sociais, documentos institucio- obtendo impacto limitado sobre as condições


nais e anotações pessoais de seminários, aulas de vida da população marginalizada, resultado
e entrevistas realizadas durante estágio realiza- que alguns investigadores explicam, pela ênfa-
do junto ao Departamento de Ciências Sociais se unilateral em intervenções sobre estilos de
da Universidade de Toronto, no Canadá 5. vida às custas de um enfoque ampliado sobre
Após uma breve síntese sobre o desenvolvi- as causas sociais da não-saúde 7.
mento conceitual do ideário da Promoção à Esta constatação irá fazer com que, nos
Saúde, este ensaio analisa em profundidade as- anos 80, autores como Labonte & Penfold 8 ve-
pectos teóricos da categoria “empowerment”, nham a público para alertar que a perspectiva
buscando refletir sobre os seus múltiplos senti- behaviorista de Promoção à Saúde, ao escamo-
dos e conseqüências para um projeto de saúde tear as mazelas e estruturas sociais causadoras
que tenha compromisso com a transformação da não-saúde, poderia servir de anteparo à im-
do status quo e a produção dos sujeitos e da plementação de políticas neoliberais social-
saúde. Concluo este trabalho sugerindo ele- mente restritivas, culpabilizando, no processo,
mentos e questões que julgo pertinentes para a as vítimas (“blaming the victims”) da iniqüida-
consolidação dos princípios e diretrizes do Sis- de social.
tema Único de Saúde (SUS).

A Carta de Ottawa e o ideário


O Relatório Lalonde e a vertente Nova Promoção à Saúde
behaviorista da Promoção à Saúde
nos anos 70 Limites teóricos e práticos da abordagem be-
haviorista estimulam o surgimento, nos anos
A Promoção à Saúde moderna tem como docu- 80, de uma perspectiva socioambiental. Esta
mento de referência o Relatório Lalonde, pu- corrente, que aqui denomino como “Nova Pro-
blicado em 1974. Esse documento, um memo- moção à Saúde” visando a diferenciá-la da que
rando de discussão produzido pelo Ministério lhe antecedeu, introduziu novas idéias, lingua-
de Bem Estar e Saúde do Canadá, sintetizou gens e conceitos sobre o que é saúde e apontou
um ideário que preconiza como eixo central de novos caminhos para a produção da saúde.
intervenção um conjunto de ações que procu- Este ideário está detalhado em inúmeros
ram intervir positivamente sobre comporta- documentos institucionais merecendo desta-
mentos individuais não-saudáveis. que, entre outros, o memorando de trabalho
Esse documento procura elaborar um arca- disseminado pelo Escritório Europeu de Pro-
bouço conceitual sobre a saúde que fosse inte- moção à Saúde em 1984, que sintetiza pela pri-
lectualmente aceitável e suficientemente sim- meira vez as grandes linhas de ação da Nova
ples para permitir uma rápida localização pe- Promoção à Saúde 9 e a Carta de Ottawa produ-
rante qualquer idéia, problema ou atividade zida durante a 1a Conferência Internacional de
relacionada à saúde: uma espécie de mapa do Promoção à Saúde, realizada no Canadá no
território da saúde. O resultado concretiza-se ano de 1986 (http://www.who.int/hpr/docs/
na produção de um modelo que inter-relacio- ottawa.html, acessado em 16/Mar/2004).
na quatro grupos explicativos do fenômeno Em linha de continuidade com Alma Ata
saúde/doença: ambiente (natural e social), esti- (http://www.who.dk/policy/almaata.htm, aces-
lo de vida (comportamento individual que afe- sado em 16/Mar/2004) esta corrente considera
ta a saúde), biologia humana (genética e função que a justiça social, a eqüidade, a educação, o
humana) e organização dos serviços de saúde 6. saneamento, a paz, a habitação, o salário dig-
Partindo do pressuposto de que práticas no, a estabilidade do ecossistema e a sustenta-
pouco saudáveis são “riscos auto-impostos” e bilidade dos recursos naturais são pré-requisi-
causas relevantes da não-saúde, afirma-se a tos essenciais à saúde da população. Recomen-
necessidade de uma nova agenda de interven- da como eixos de suas estratégias e ações: (a) a
ção que lograsse interferir sobre os hábitos de constituição de políticas públicas saudáveis;
vida. Essas estratégias, centrais às práticas de (b) a criação de ambientes sustentáveis; (c) a
Promoção à Saúde até os dias atuais, têm tido reorientação dos serviços de saúde; (d) o de-
efeitos positivos no que se refere à adoção de senvolvimento da capacidade dos sujeitos in-
estilos de vida mais saudáveis de determinados dividuais e (e) o fortalecimento de ações co-
grupos sociais, porém, no seu conjunto, vêm munitárias.

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Um dos núcleos filosóficos dessa aborda- por sua vez, “tornar livre, independente” 13. A
gem é o conceito de “empowerment” presente, inexistência do termo “empoderamento” na
implícita ou explicitamente, no interior das língua portuguesa e a diversidade de sentidos
premissas e estratégias mencionadas. Esta ca- do termo “apoderamento”, ilustram a dificul-
tegoria corporifica a razão de ser da Promoção dade de realizar a tradução fidedigna de “em-
à Saúde enquanto um processo que procura powerment” para o nosso idioma. Opto, por es-
possibilitar que indivíduos e coletivos aumen- tas razões, por utilizar no estudo em questão o
tem o controle sobre os determinantes da saúde termo “empowerment”.
para, desta maneira, terem uma melhor saúde 10. Para explicitar este conceito é preciso bus-
No que se segue, descrevo, analiso e reflito car a resposta para algumas questões: o que es-
os diversos significados da categoria “empo- tá por trás da categoria “empowerment”? Qual
werment” buscando, posteriormente, discutir a teoria sobre o poder que sustenta este con-
seus aportes e suas limitações para se pensar ceito? Processos de “empowerment” devem vol-
um projeto sanitário comprometido com a mu- tar-se para mudança individuais ou coletivas?
dança e produção de sujeitos e da saúde. É possível um processo de “empowerment” que
não questione as estruturas existentes? Qual a
relação entre o sentimento de poder e o poder
O “empowerment” e seus sobre os recursos concretos? Qual a conse-
múltiplos sentidos qüência do “empowerment” para as relações
internas às equipes de saúde e entre profissio-
“Empowerment” é um conceito complexo que nais e usuários dos serviços? Qual a relação en-
toma emprestado noções de distintos campos tre “empowerment” e comunidade? A quem
de conhecimento. É uma idéia que tem raízes servem o “empowerment” e a participação co-
nas lutas pelos direitos civis, no movimento fe- munitária? Variações nas respostas dadas a es-
minista e na ideologia da “ação social” presen- tas perguntas irão determinar distintos signifi-
tes nas sociedades dos países desenvolvidos na cados do conceito de “empowerment”.
segunda metade do século XX. Nos anos 70, es- A seguir reflito sobre estas questões ao des-
te conceito é influenciado pelos movimentos crever, e comentar, duas noções distintas sobre
de auto-ajuda, e, nos 80, pela psicologia comu- a categoria “empowerment” – a psicológica e a
nitária. Na década de 90 recebe o influxo de comunitária – que se fazem presentes em dis-
movimentos que buscam afirmar o direito da tintas interpretações do ideário da Promoção à
cidadania sobre distintas esferas da vida social Saúde.
entre as quais a prática médica, a educação em
saúde e o ambiente físico.
No artigo intitulado Empowerment: o Cálice O “empowerment” psicológico
Sagrado da Promoção à Saúde?, Christopher e a Promoção à Saúde
Rissel 11 reconhece os potenciais aportes desta
categoria para a promoção à saúde; alertando, Podemos definir o “empowerment” psicológico
não obstante, a necessidade de alguma precau- como um sentimento de maior controle sobre
ção antes que esta noção seja abraçada entu- a própria vida que os indivíduos experimen-
siasticamente como uma raison d’être desse tam através do pertencimento a distintos gru-
ideário. Entende, esse autor, que a carência de pos, e que pode ocorrer sem que haja necessi-
um embasamento teórico consistente e as múl- dade de que as pessoas participem de ações
tiplas interpretações sobre essa noção na lite- políticas coletivas. Influenciando esta formula-
ratura são elementos que dificultam a utiliza- ção encontramos uma perspectiva filosófica
ção desse conceito no campo da saúde, o que individualista que tende a ignorar a influência
demanda um pensamento crítico, que adjetive dos fatores sociais e estruturais; uma visão que
e esclareça o significado do mesmo. fragmenta a condição humana no momento
Essa dificuldade está refletida no modo em que desconecta, artificialmente, o compor-
com que esta categoria vem sendo traduzida tamento dos homens do contexto sociopolítico
em textos nos idiomas português e espanhol: em que eles encontram-se inseridos.
para alguns é sinônimo de “empoderamento”, Esta postura leva, segundo Riger 14 (p. 280),
“apoderamento” e, para outros, de “emancipa- à formulação de uma imagem do indivíduo “em-
ción” 12. Significados distintos, uma vez que powered” (com poder) como sendo aquele que
“apoderar” é sinônimo de dar posse, “domínio é “comedido, independente e autoconfiante,
de”, “apossar-se”, “assenhorear-se”, “dominar”, capaz de comportar-se de uma determinada
“conquistar”, “tomar posse”. São definições que maneira e de influenciar o seu meio e atuar de
diferem do verbo “emancipar”, que significa, acordo com abstratos princípios de justiça e de

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equilíbrio” 14. Deste arcabouço deriva a formu- justificar a diminuição e o retrocesso na pres-
lação de estratégias de promoção que têm co- tação de serviços sociais e de saúde em tempos
mo objetivo fortalecer a auto-estima e a capa- de conservadorismo fiscal. Nos Estados Uni-
cidade de adaptação ao meio e o desenvolvi- dos, por exemplo, políticas de corte neoliberal
mento de mecanismos de auto-ajuda e de soli- vêm combinando a noção de “empowerment”
dariedade. com a ideologia política da responsabilidade
Entre essas encontram-se práticas educati- pessoal para sugerir que as pessoas façam, ca-
vas que buscam contribuir para a formação da da vez mais, uso de seus recursos próprios e/ou
“consciência sanitária” por meio de um esforço da comunidade antes de recorrer à ajuda de
pedagógico sistemático e permanente, que en- instituições estatais 16.
volve técnicas focais e de marketing social e Essas críticas e constatações ensejam a ela-
que tem como objetivo finalístico a manuten- boração de uma outra abordagem sobre o “em-
ção da harmonia social e de uma relação sau- powerment”, que será objeto de descrição e
dável entre indivíduo com o seu meio externo. análise no que se segue.
Weissberg 15 caracterizou esta perspectiva
como uma espécie de “cogito empowerment,
ergo sum empowered”; o sentimento de poder O “empowerment comunitário”
criando a ilusão de sua existência efetiva de e a Promoção à Saúde
poder por parte dos indivíduos, no momento
em que a maior parte da vida é controlada por Tomando como referência a produção de auto-
políticas e práticas macrossociais. O que está res como Julian Rappaport, importante teórico
em questão não é o poder real, mas sim, o “sen- do movimento da psicologia comunitária, Pau-
so de empowerment” levando à personalização lo Freire, educador brasileiro, e Saul Alinsky,
da política que pode favorecer a manutenção ativista social norte-americano, estudiosos an-
do status quo. “A experiência do indivíduo em glo-saxônicos vêm propondo a noção alterna-
relação ao poder, ou à falta deste, pode não ter tiva de “empowerment” comunitário como um
relação com a capacidade real de influência, e elemento-chave de politização das estratégias
um aumento do sentido de empowerment nem da Nova Promoção à Saúde.
sempre reflete um aumento do poder real. (...) No processo de ressignificação e repolitiza-
Isto não significa que o indivíduo não possa ter ção do sentido do “empowerment”, esta abor-
nenhuma influência ou que suas percepções in- dagem trabalha com a noção de poder enquan-
dividuais não sejam importantes, mas, antes, to um recurso, material e não-material, distri-
significa que reduzir o poder à psicologia indi- buído de forma desigual na sociedade, como
vidual é ignorar o contexto político e histórico uma categoria conflitiva na qual convivem di-
em que as pessoas atuam. Confundir a habili- mensões produtivas, potencialmente criativas
dade real de alguém em controlar as coisas com e instituintes, com elementos de conservação
um sentido de empowerment despolitiza este do status quo. Para os teóricos do “empower-
último” 14 (p. 292). ment” comunitário, a sociedade é constituída
Esta concepção de “empowerment” nem de diferentes grupos de interesses que possuem
sempre incide sobre a distribuição de poder e níveis diferenciados de poder e de controle so-
de recursos na sociedade e pode constituir-se bre os recursos, fazendo com que processos de
em mecanismo de regulação social. Declara- “empowerment” impliquem, muitas vezes, a
ções de princípios contra a iniqüidade social, a redistribuição de poder e a resistência daque-
favor de uma sociedade saudável e socialmen- les que o perdem.
te justa, e que preconizam o “empowerment” Este entendimento tem conseqüências prá-
de indivíduos e coletivos podem transformar- ticas subsidiando, por exemplo, a afirmação de
se em discursos vazios no momento em que que um projeto de transformação demanda,
não se discute as raízes dos problemas nem se mais do que discursos vazios contra a pobreza,
busca apontar alternativas ao status quo. Por uma postura ativa de enfrentamento das deter-
meio destes artifícios, governos e instituições minações macro e microssociais da iniqüidade
conservadoras podem legitimar suas práticas social, colocando em questão diferenciais de
neutralizando, de passagem, proposições que poder porventura existentes na relação entre
questionam a ordem social. especialistas e não-especialistas, entre popula-
Isso vem permitindo que, embora expresso ções de países ricos e desenvolvidos e de paí-
na linguagem que afirma importância da auto- ses pobres, entre homens e mulheres, e entre
nomia das pessoas e da diminuição da depen- heterossexuais e homossexuais.
dência de instituições macrossociais, o “empo- O afirmado anteriormente permite-nos de-
werment” psicológico venha sendo usado para finir, em termos genéricos, o “empowerment”

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comunitário como um processo, e um resulta- monstram o papel freqüentemente profundo


do, de ações que afetam a distribuição do po- da miséria e de outros fatores sociais, econô-
der levando a um acúmulo, ou desacúmulo de micos e políticos na determinação do estado
poder (“disempowerment”) no âmbito das es- da saúde do indivíduo, outros estudos demons-
feras pessoais, intersubjetivas e políticas. Nesta tram que indivíduos são capazes de reconfigu-
categoria encontram-se inscritos elementos que rar o contexto social no qual vivem e que isto
caracterizam um patamar elevado de “empo- tem conseqüências positivas para a saúde.
werment” psicológico, a participação ativa na Essas observações são importantes para
ação política e a conquista de (ou possibilida- lembrar-nos de que devemos cuidar para que,
de de) recursos materiais ou de poder por par- em nome da luta contra a “tirania do indiví-
te de indivíduos e coletivos 11. duo”, presente nos modelos teóricos biomédi-
No processo de “empowerment” comunitá- cos e da Promoção à Saúde behaviorista, não
rio observa-se a presença de fatores situados em se corra o risco de criarmos uma formulação
distintas esferas da vida social. Estão presentes que induza à “tirania do coletivo”. Este alerta
microfatores encontráveis no plano individual, deve-se ao fato de que muitas leituras da Pro-
a exemplo do desenvolvimento da autoconfian- moção à Saúde tendem a moldar uma noção
ça e da auto-estima; na mesosfera social encon- de “empowerment” que o reduz unicamente a
tramos estruturas de mediação nas quais os ações políticas coletivas negando, portanto, o
membros de um coletivo compartilham conhe- caráter multidimensional do poder. Embora o
cimentos e ampliam a sua consciência crítica; desenvolvimento crítico dos indivíduos não se-
ao nível macro de fatores há estruturas sociais ja suficiente para a transformação da socieda-
como o estado e a macroeconomia. de, ele é absolutamente necessário para que
Este entendimento permite afirmar que o ela ocorra, uma vez que o envolvimento em
poder convive, a todo o momento e ao mesmo processos de mudança demanda um mínimo
tempo, sob o influxo dos macro e microdeter- de percepção do poder individual que sustente
minantes presentes na vida em sociedade. Não um processo produtivo de convivência nos es-
é possível pensar, por exemplo, em processos paços coletivos 16.
de “empowerment” comunitário sem levar em A politização da saúde e de estratégias de
conta as demais instâncias de funcionamento promoção não significa que apenas a ação po-
da vida em sociedade, entre as quais: a intra- lítica direta é que tem validade. Quer dizer, isto
psíquica, a intersubjetiva, a familiar, a comuni- sim, que devemos sempre “enquadrar os pro-
tária, a étnico-cultural. Pensar esta categoria blemas de saúde e sua solução no seu contexto
como um continuum que ocorre desde o nível social, político e econômico” 16 (p. 302). O “em-
do individual ao macro, passando pela de in- powerment” pode dar-se tanto em nível do co-
termediação de coletivos e grupamentos so- letivo quanto da relação intersubjetiva, poden-
ciais, conforme sugerido por Labonte 17 e Ris- do ocorrer em distintos espaços da ação sani-
sel 11, parece-me um maneira produtiva de se tária, sejam eles o de promoção, de prevenção,
pensar as práticas de saúde em uma perspecti- de cura e/ou de reabilitação.
va integral. Considero que um aspecto central do “em-
O “empowerment” comunitário inclui, por- powerment” comunitário seja a possibilidade
tanto, a experiência subjetiva do “empower- de que indivíduos e coletivos venham a desen-
ment” psicológico e a realidade objetiva de volver competências para participar da vida
condições estruturais que são modificadas no em sociedade, o que inclui habilidades, mas
momento em que ocorre a redistribuição de re- também um pensamento reflexivo que qualifi-
cursos. O “empowerment comunitário” deman- que a ação política.
da, por conseguinte, a convivência da noção de Entendo que esta noção demanda mais do
determinismo social com a de agenciamento que o “controle sobre os determinantes da saú-
humano 11,18 e o reconhecimento da mútua re- de”, o “controle dos indivíduos sobre o próprio
lação de condicionamento e determinação en- destino” 19. Ser dono do próprio destino é um
tre as macroestruturas e a ação de sujeitos in- processo, e uma condição, que demanda a aqui-
dividuais e coletivos. sição de competências tais como o desenvolvi-
Esta categoria requer, por conseguinte, uma mento da auto-estima e da confidência pessoal;
prática que responda, simultaneamente à ex- a capacidade de analisar criticamente o meio
periência subjetiva da “falta de poder” e que, social e político e o desenvolvimento de recur-
ao mesmo tempo, contribua para a mudança sos individuais e coletivos para a ação social e
das condições sócio-culturais. Ilustrando este política.
fato na saúde é possível constatar que, se por Mais do que repassar informações e induzir
um lado, muitos estudos epidemiológicos de- determinados comportamentos, o “empower-

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ment comunitário” deve buscar apoiar pessoas de gestão de organizações, de reorganização


e coletivos a realizarem suas próprias análises do processo de trabalho em saúde e estratégias
para que tomem as decisões que considerem de participação comunitária.
corretas, desenvolvendo a consciência crítica e A título de exemplo, finalizo este trabalho
a capacidade de intervenção sobre a realidade. destacando duas dessas interfaces que julgo de
O “empowerment comunitário” pode ser especial relevância para a consolidação do SUS
considerado, portanto, como um processo de no Brasil.
validação da experiência de terceiros e de legi-
timação de sua voz e, ao mesmo tempo, de re- Contribuições do “empowerment
moção de barreiras que limitam a vida em so- comunitário” para a educação à saúde
ciedade. Indica processos que procuram pro-
mover a participação, visando ao aumento do A implementação de práticas e processos que
controle sobre a vida por parte de indivíduos e tenham como meta o “empowerment comuni-
comunidades, a eficácia política, uma maior tário” demanda abordagens educativas que va-
justiça social e a melhoria da qualidade de vida. lorizem a criação de espaços públicos (rodas e
grupos de discussão, colegiados, gestores etc.),
que logrem promover a participação dos indi-
Considerações finais víduos e coletivos na identificação e na análise
crítica de seus problemas, visando a elabora-
O estudo realizado conclui que “empowerment” ção de estratégias de ação que busquem a
é um conceito ambíguo, o que reforça achados transformação do status quo.
de estudiosos da Promoção à Saúde quando Sob a influência de Paulo Freire, os teóricos
afirmam, a exemplo de Stevenson & Burke 20 do “empowerment comunitário” vêm preconi-
(p. 54), que o discurso deste ideário sobre te- zando a efetivação de um modelo pedagógico
mas como a “prevenção de doenças, promoção que assuma a “educação como uma prática da
à saúde, iatrogenia, ‘empowerment’ individual liberdade”. Este projeto, que alguns denomi-
e coletivo, redes sociais, cuidados domiciliar e às nam de “empowerment education” e que pode-
famílias podem facilmente converter-se em jus- ria ser igualmente denominado de “educação
tificativas ideológicas para a privatização e a popular” e/ou “educação para a transforma-
desregulamentação dos serviços de saúde, com ção” 19, procura romper com métodos educati-
tudo o que isto implica para a qualidade e a vos centrados no exercício do “poder sobre” o
eqüidade do cuidado podendo, ao mesmo tem- outro, substituindo-o por métodos que valori-
po, representar um arcabouço teórico que su- zem o debate e a discussão de idéias, opiniões
porta a progressiva transformação e democrati- e conceitos com vistas à solução de problemas
zação das políticas sociais”. (“poder com”).
Perante esta constatação, julgo de interesse O “empowerment education” busca, por-
nos perguntarmos: é possível estabelecer crité- tanto, contribuir para a emancipação humana
rios que nos ajudem a identificar o sentido po- por meio do desenvolvimento do pensamento
lítico e ideológico das estratégias e práticas de crítico e o estímulo a ações que tenham como
Promoção à Saúde? O estudo em questão mos- objetivo realizar a superação das estruturas
tra que sim, sustentando a pertinência de to- institucionais e ideológicas de opressão.
mar-se, como parâmetro valorativo, o posicio- Esta perspectiva pedagógica, derivada do
namento da “Nova Promoção à Saúde” em re- “empowerment comunitário”, toma os indiví-
lação ao compromisso com a produção de saú- duos e grupos socialmente excluídos como ci-
de e com a produção de sujeitos reflexivos, au- dadãos portadores de direitos e do “direito a ter
tônomos e socialmente solidários. direitos”, distanciando-se do projeto behavio-
Para que isto ocorra é fundamental a am- rista que tende a representar os marginaliza-
pliação das práticas democráticas no campo dos como pessoas dependentes que devem ser
da saúde, sendo útil viabilizar estratégias que ajudadas, socializadas e treinadas. O “empower-
busquem garantir a participação de sujeitos na ment” transforma-se, neste contexto, em um
definição do seu modo de encaminhar a vida e ato político libertador que se contrapõe à con-
que valorizem, no cotidiano do fazer saúde, o cepção bancária de educação.
encontro entre profissionais e usuários e as lu-
tas pela garantia dos direitos da cidadania. “Empowerment comunitário”
O conceito/estratégia do “empowerment” e a reorganização dos serviços de saúde
comunitário contribui para a consecução dos
objetivos apontados, sendo-nos útil para re- A categoria “empowerment comunitário” pode,
pensarmos práticas de educação para a saúde, igualmente, contribuir para superar uma das

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grandes deficiências do movimento de Promo- produção de destacados investigadores da Pro-


ção à Saúde: a ausência de propostas consisten- moção à Saúde, a exemplo de Labonte 17, no
tes de reorganização das práticas assistenciais. momento em que sustentam a importância
Ela pode nos instrumentalizar, por exem- dos serviços assistenciais como um espaço de
plo, no delineamento de ações que tenham co- realização do “empowerment”, uma vez que
mo objetivo a superação da desigualdade de instituições burocráticas e seus profissionais
poder que predomina na relação entre os pro- são passíveis de mudança.
fissionais e usuários. Sugere-se, aqui, trabalhar Este entendimento concorre para o fortale-
com uma noção de parceria entre profissio- cimento de uma perspectiva que afirma a ne-
nais, indivíduos e comunidades no lugar da re- cessidade de que, perante o esgarçamento do
lação hierárquica que confunde o trabalhador tecido social brasileiro, se valorize a rede de
com o provedor de serviços e o usuário com o prestação de serviços do SUS, procurando am-
cliente. A incorporação do “empowerment co- pliar o sentido de suas ações, visando a conso-
munitário” às práticas assistenciais demanda lidá-lo enquanto espaço privilegiado de socia-
que novos modos de se fazer saúde, incorpo- bilidade e politização de usuários, trabalhado-
rem como diretriz, uma postura que encare os res e gestores. Serviços de saúde que previnem
usuários na sua singularidade de sujeitos por- a doença, que curam e que reabilitam devem,
tadores de direito, em substituição a uma pers- no Brasil, ter como objetivo contribuir para o
pectiva que entende os usuários como supli- aumento da capacidade reflexiva e de inter-
cantes e beneficiários dos serviços. venção de diferentes sujeitos sobre o social. Ao
Não caberia aqui a visão reducionista que contribuir para a constituição de cidadãos sau-
idealizando o trabalho de profissionais, que dáveis, conscientes de seu direito e portadores
atuam sobre o ambiente físico e social, subes- do “direito a ter direitos”, esses serviços au-
timam o papel desempenhado por profissio- mentam a possibilidade de ações sociais que
nais que prestam assistência clínica ao usuá- incidam positivamente sobre os múltiplos de-
rio. Esta é uma visão que encontra respaldo na terminantes do processo saúde/doença.

Resumo

Partindo da revisão de literatura e documentos rele-


vantes da Promoção à Saúde, procedentes de países
desenvolvidos – com destaque para a produção cana-
dense –, reflito sobre os múltiplos sentidos da catego-
ria/estratégia “empowerment”. Após uma breve síntese
sobre o desenvolvimento conceitual do ideário da Pro-
moção à Saúde, o ensaio analisa em profundidade as-
pectos teóricos do “empowerment”, sugerindo classifi-
cá-lo em dois enfoques principais: o psicológico e o co-
munitário. Considera que o “empowerment” comuni-
tário contribui para definir a Promoção à Saúde en-
quanto um projeto voltado para a transformação do
status quo e a produção de sujeitos saudáveis. Con-
cluo o ensaio explorando potenciais contribuições do
“empowerment” social/comunitário para as práticas
de educação à saúde e para a reorganização da rede de
serviços do Sistema Único de Saúde.

Saúde Pública; Promoção da Saúde; Educação em


Saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(4):1088-1095, jul-ago, 2004


OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DA CATEGORIA “EMPOWERMENT” NO PROJETO DE PROMOÇÃO À SAÚDE 1095

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