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“Leve, breve, suave”

 
Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou…
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
 
Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.
 
Análise:
 
Neste poema ressalta a grande musicalidade conseguida pela harmonia dos timbres
vocálicos, abertos nos quatro primeiros versos, alternando os timbres em –a e os timbres
em –ia. A esta harmonia acrescenta-se a aliteração em –ve. O próprio desenho da
mancha gráfica do poema aponta para uma atmosfera de harmonia e ritmo ondulatório,
a que se acrescenta o significado dos três adjectivos iniciais, contém o que mais importa a
ideia da leveza, da brevidade, da suavidade do momento psicológico simbolizado pelo canto.
A irregularidade métrica coaduna-se com a irregularidade do canto da ave. Nos quatro
primeiros versos impera um clima geral de euforia, com a valorização positiva do canto
da ave, e de eufonia (harmonia fónica).
Mas, o quinto verso vem romper a harmonia com a mudança expressa nos timbres
vocálicos fechados em –u/-ou. O poeta associa dois tempos verbais, presente e pretérito
perfeito, marcando a simultaneidade das acções de escutar e de passar (o canto), ou seja,
insinua que foi o esforço de atenção que estragou a impressão captada
inconscientemente pelos sentidos e que era de encantamento inconsciente.
A segunda estrofe, como a anterior em 7 versos de métrica irregular, alternando versos
longos e curtos, com reflexos sobre o ritmo, visíveis igualmente na mancha gráfica, é
toda ela marcada por sinais de disforia, de negatividade, começando pela sucessão de
advérbios de negação – “nunca, nunca, em nada” – e continuando pelas antíteses e jogo
de aliterações em –d (“Raie a madrugada/ Ou ‘splenda o dia”), reforçada pelas palavras
de conotação negativa (perda, nada) e culminando com a confissão de um total
desencanto: como se de uma maldição se tratasse, porque pensa, porque não é
inconsciente, os únicos momentos de prazer que pode ter são os instantes em que ele se
apercebe que havia motivo de prazer, mas que acaba por perder sem poder concretizar.
Os temas presentes neste poema são naturalmente o da dor de pensar, de ser lúcido, o da
perda (da inocência), o da incapacidade de fruir, senão por breves instantes, do prazer
inefável da música e da harmonia por ela proporcionada.

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