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Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargosn públicos,
ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por
várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como
válido, é o seguinte: "35 Sonnets" (em inglês), 1918; "English Poems I-II" e "English
Poems III" (em inglês também), 1922, e o livro "Mensagem", 1934, premiado pelo
Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria "Poema".
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895,
em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em
Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Raínha Vitória de estilo inglês na
Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15
anos.
Ideologia política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para
uma nação orgânicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a
Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre
regimes votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto
é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.
Posição iniciática:
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"...E contudo - penso-o com tristeza - pus no Caeiro todo o meu poder de
despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental,
vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não
dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes
têm que ser, na prática da publicação preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e
simples!
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho,
por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para
dizer, Graças a Deus!
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou
ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de
histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais
propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta Segunda hipótese, porque há
em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no
registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está
na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.
Estes fenómenos - felizmente para mim e para outros - mentalizaram-se em mim;
quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com
outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher -
na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada
poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme
para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente
aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio e poesia.
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronismo. Vou agora
fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram,
e de alguns dos quais já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remota
da minha infância quase esquecida.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns
poemas de índole pagâ. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro
de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-s-
me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a
fazer aquilo (tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-
Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já
me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o
poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de
1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever,
de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha
vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título Guardador de Rebanhos. E o
que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome
Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi
essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escrito que foram esses trinta e
tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis
poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e
totalmente. Foi o regresso de Fernando Pessoa - Alberto Caeiro a Fernando Pessoa -
ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como
Alberto Caeiro.
Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei
as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o
menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E
parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética
entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não
sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa
para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um
poema "antigo" do Álvaro de Campos - um poema de como o Álvaro de Campos seria
antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário,
em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme
haveriam de ser depois de reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto
com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que
fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim,
creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto
em que precise de um esclarecimento mais lúcido - estou escrevendo depressa, e
quando escrevo depressa não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho darei. E,
é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das
Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado
lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais
Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante da mim, no espaço incolor mas
real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 não me lembro do dia
e mês (mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.
Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu
quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 horas da
tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora,
está certo). Este, como sabe é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui
em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil quanto era. Ricardo Reis é um pouco, mas
muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75m de
altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada
todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos
entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e
normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução
primária; morreram-lhe cedo e pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns
pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num
colégio de jesuítas, é, como disse, médico: vive no Brasil desde 1919, pois se
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e
um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar
de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e
depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário.
Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria
escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que sùbitamente se
concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei
o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se
parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de
sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela.
Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de
ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
escrevia mal o português, "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do
que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim, é escrever
a prosa de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é
mais espontânea, em verso).
O requerente tem 44 anos de idade, é natural de Lisboa, freguesia dos Mártires, e filho
legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Nogueira Pessoa, ambos já
falecidos. Não junta certidão de idade, nem, aliás, certidão de registo criminal, por o
citado artigo 6º e seus §§ não exigirem, nem explicita nem implìcitamente, outros
documentos que não sejam os rigorosamente precisos para apreciar a afirmação das
habilitações neles indicadas, como motivos de preferência.
Quanto o serem ou não estes escritos "de reconhecido mérito", melhor o poderão
V.Exas averiguar com perguntas casuais nos meios literários e artísticos portugueses
do que o poderá demonstar, de modo realmente probante, qualquer documentação. O
requerente chama, porém, a atenção de V.Exas para os dois estudos que lhe foram
dedicados pelo jovem - e não fica mal dizer notável - crítico coimbrão João Gaspar
Simões, a págs, 171 a 191 do livro Temas (Edições Presença, Coimbra, 1929) e a
págs, 164 a 193 do livro O Mistério da Poesia (Coimbra, Imprensa da Universidade,
1931), assim como para o que do requerente diz Pierre Hourcade no artigo Panorama
du Modernisme Littéraire ao Portugal inserto no número de Janeiro-Maio (nº1.2) do
Bulletin des Études Portugaises, publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra
e pelo Institut Français au Portugal. Quanto a opiniões, presumivelmente autorizadas,
sobre os versos ingleses do requerente juntam-se as críticas que aos dois primeiros
folhetos (os dois segundos não foram enviados a jornais) foram feitas pelo Suplemento
Literário do Times e pelo Glasgow Herald, apresentado assim, em certo modo, opiniões
representativas da crítica inglesa e escocesa.
Alberto Caeiro
O Guardador De Rebanhos
II (8-3-1914)
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estôrvo,
Um Dia de Chuva
(8-11-1915)
Amar é pensar.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Todos os Dias
(23-7-1930)
É um universo barato.
THE TIMES
16-8-1928
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7-11-1933
Se calhar é...
Símbolos...
Sim, eu sei...
Yes, I know.
Cartas de Amor
Tôdas as cartas de amor são
Ridículas.
Ridículas.
Ridículas.
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Cartas de amor
Ridículas.
As minhas memórias
É que são
Ridículas.
São naturalmente
Ridículas).
A Fernando Pessoa
(1915)
À beira do mar,
(1-3-1917)
Ou qualquer fato?
Clearly Non-Campos!
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpressivo,
Que me dá de repente
Um desejo de indefinido,
Do tempo consequente;
(18-8-1934)
A criança.
Assim é melhor,
(27-9-1934)
Grande tranquilidade...
Aproveita, dormita!
Dormita!
(9-10-1934)
Êste cansaço,
Cansaço.
E o resultado?
Um supremíssimo cansaço,
17-1-1933
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
Ah, Um Soneto
Meu coração é um almirante louco
Ricardo Reis
(26-5-1930)
(30-7-1914)
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
A liberdade existe.
Convencimento antigo
(1-7-1916)
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Iguais a nós-próprios.
Viver simplesmente.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Dizer-te. A resposta
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
(26-4-1928)
Os que se conheceram!
(6-7-1930)
(14-2-1933)
(11-7-1914)
(17-7-1914)
A irrespiráveis píncaros,
E refletindo um pouco.
Eros e Psique
...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que nos foram dadas no Grau de
Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que
opostas, a mesma verdade.
A quem só despertaria
A Princesa Adormecida,
À cabeça, em maresia,
Cancioneiro
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
(10-8-1929)
(5-9-1933)
Momento imperceptível,
(18-9-1933)
E vivemos de maneira
(19-9-1933)
E nunca despertar.
(20-9-1933)
Viajar! Perder países!
Ir em frente, ir a seguir
E da ânsia de o conseguir!
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Das coisas
De tôdas as coisas,
De um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
Como um perdão?
XI
De balas traspassado
De braços estendidos,
Um nome o mantivera:
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
E boa a cigarreira.
A brancura embainhada
A criança loura
De sangue e de nada.
À beira da estrada.
A criação do futuro...
E o da criança loura?
DISPERSAS
Além-Deus
(1913?)
I
ABISMO
De encontro ao devaneando -
E do pensar se me some.
II
PASSOU
De Porquê, e de Passando...,
Turbilhão de Ignorado,
Sem ser turbilhonado...,
III
A VOZ DE DEUS
Ó Universo, eu sou-te...
Sermente em ti eu sou-me...
IV
A QUEDA
Caí...
Clarão de Desconhecido...
Mesmo o ter-um-sentido...
É a curva do horizonte...
Só a noite enorme.
A terra e os céus.
Tudo acabou?
E a fé perdida?
Altivo e doce?
E ungida espada.
O amor de um povo!
O sagrou Rei!
De fôrça calma.
Da nossa cruz!
Chora e confia.
Sombra conosco.
O bem-amado.
Êle já não.
Ao tempo e ao espaço.
Inda compele;
'Sprada, a Ilusão.
Se esmoreceu.
É lenha só a Realidade:
A fé é a chama.
E fé perdida!
A Morte o tem!
A amanhecer;
Na alma, a distãncia;
Um êrmo lago.
Nos desprezou.
A herdou de Deus;
De salvação.
A terra aflita.
Cair na treva;
E a alma pressinta!
Porque o recorde!
'Strêla do céu.
Vivemos só de recordar.
A morta vida;
O DESEJADO.
No campo infando.
Nova Alcacer-Kibir na noite!
Assim é dado?
A quem amou.
Antemanhã da Redenção,
Dom Sebastião.
Em vãos assomos,
E o vil cansaço.
No escuro frio?
Brilha no escuro?
A ânsia feliz.
A vaga luz.
E um verbo ocidental
Tua memória!
Por descobrir,
Morto a vencer!
Sorrindo arroste,
Ao que já fomos.
A Portugal!
TERCEIRO TEMA
(extractos)
I
............................................................
Dantes eu queria
Mudando sempre,
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Quero
O sentimento da desolação
Folgaria
A um inferno real.
II
................................................................................
................................................................................
Gozá-la?
.................................................................................
Ferve a revolta em mim
E desprêzo [...]
III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
IV
Perdido
..........................................................
Do meu ser.
...
XXI
..................................................................
...................................................................
Se me faltas [...]
.............................................................
............................................................
...............................................................
...............................................................
De o sentir...?
...............................................................
XXII
Os pensamentos na compreensão.
É maior.
XXIII
Inéditas
SÁ CARNEIRO
1934
Nesse número do Orpheu que há de ser feito com rosas e estrêlas em um mundo novo.
Nunca supus que isto que chamam morte
[...]
(14-10-1930)
E só se cumpra o dever
(14-6-1932)
(17-6-1932)
(28-3-1930)
Da filarmônica de um Barreiro
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo.
Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no
fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um
muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de
cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos,
mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueca. Tudo isto
aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo,
que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se
ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de
lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a
valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos
os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e
assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para
esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento.
Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-
me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito
pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e
que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas
você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de
chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas
folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste
momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore
a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego".
Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa
inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já
antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma
caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre,
um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
FERNANDO PESSOA
P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei
amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu
psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua
histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na
consciência de si-próprio que dele são tao características...
(...) Estou começando - lentamente, porque não é coisa que possa fazer-se com
rapidez - a classificar e rever os meus papéis; isto com o fim de publicar, para fins do
ano em que estamos, um ou dois livros. Serão provavelmente ambos em verso, pois
não conto poder preparar qualquer outro tão depressa, entendendo-se preparar de
modo a ficar como eu quero.
Primitivamente, era minha intencão começar as minhas publicações por três livros, na
ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de
que o Mar Português (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassosego
(Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o B. S. não é um heterónimo, mas
uma personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio
de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordacão do Álvaro de Campos).
Mais tarde, no outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro
título igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos
muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa
maneira inexpressiva.
Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever,
não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E,
quanto ao Caeiro, estou indeciso. (...)