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Eric J. Hobsbawm
O fragmento do texto do historiador Eric Hobsbawm analisa as conseqüências humanas da
Revolução Industrial, lançando luz sobre aspectos que, em geral, esquecidos. Leia esse
texto tendo em mente o texto de Peter Laslett. O mundo que nós perdemos.
O debate a respeito dos resultados humanos da Revolução Industrial ainda não se libertou
inteiramente dessa atitude. Nossa tendência ainda é perguntar: ela deixou as pessoas e
melhor ou em pior situação? E até que ponto? Para sermos mais precisos, interrogamo-nos
qual foi o volume de poder aquisitivo, ou bens, serviços e assim por diante, que o dinheiro
pode comprar, que ela proporcionou a que quantidade de indivíduos, supondo-se que uma
dona de casa possuidora de uma máquina de lavar roupa esteja em melhor situação do que
outra, destituída desse eletrodoméstico (o que é razoável), mas também supondo (a) que a
felicidade individual consiste numa acumulação de coisas tais como bens de consumo e (b)
que a felicidade social consiste na maior acumulação possível de tais coisas pelo maior
número possível de indivíduos (o que não é verdade). Tais questões são importantes, mas
também conduzem a equívocos; Saber se a Revolução Industrial deu à maioria dos
britânicos mais ou melhor alimentação, vestuário e habitação, em termos absolutos ou
relativos, interessa, naturalmente, a todo historiador. Entretanto, ele terá deixado de
apreender o que a Revolução Industrial teve de essencial, se esquecer que ela não
representou um simples processo de adição e subtração, mas sim uma mudança social
fundamental. Ela transformou a vida dos homens a ponto de torná-las irreconhecíveis. Ou,
para sermos mais exatos, em suas fases iniciais ela destruiu seus antigos estilos de vida,
deixando-os livres para descobrir ou criar outros novos, se soubessem ou pudessem.
Contudo, raramente ela lhes indicou como fazê-lo.
Existe, na verdade, uma relação entre a Revolução Industrial como provedora de conforto e
como transformadora social. As classes cujas vidas sofreram menor transformação foram
também, normalmente, aquelas que se beneficiaram de maneira mais óbvia em termos
materiais (e vice-versa). Ninguém é mais complacente que um homem rico ou coroado de
êxito e que também se sente à vontade num mundo que parece ter sido construído com vista
a pessoas exatamente como ele.
Igualmente plácida e próspera era a vida dos numerosos parasitas da sociedade aristocrática
rural, tanto a alta como a baixa - aquele mundo de funcionários e fornecedores da nobreza
e dos proprietários de terras, e as profissões tradicionais, entorpecidas, corruptas e, a
medida que se processava a Revolução Industrial, cada vez mais reacionárias. A Igreja e as
universidades inglesas pachorreavam, acomodadas em suas rendas, privilégios e abusos,
protegidas por suas relações com a nobreza, enquanto viam sua corrupção ser atacada com
maior dureza na teoria do que na prática. Os advogados, e aquilo que passava por ser um
funcionalismo público, eram incorrigíveis. ( ... )
A classe média vitoriosa e os que aspiravam a essa condição estavam contentes. O mesmo
não acontecia aos pobres, aos trabalhadores (que, pela própria essência, constituíam a
maioria), cujo mundo e cujo estilo de vida tradicionais tinham sido destruídos pela
Revolução Industrial, sem que fossem substituídos automaticamente por qualquer outra
coisa. É essa desagregação que forma o cerne da questão dos efeitos sociais da
industrialização.
Em terceiro lugar, na era industrial o trabalho passou a ser realizado cada vez mais no
ambiente sem precedentes da grande cidade; e isso a despeito do fato de a mais antiquada
das revoluções industriais efetuar grande parte de suas atividades em vilas industrializadas
de mineiros, tecelões, fabricantes de pregos e correntes e outros trabalhadores
especializados. ( ... ) .
Em quarto lugar, nem a experiência, nem a tradição, nem a sabedoria nem a moralidade da
era pré-industrial proporcionavam orientação adequada para o tipo de comportamento
exigido por uma economia capitalista.
HOBSBAWM, E. As origens da Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979. Pp.121-
125.
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M. H. de 20 anos tem duas crianças, a menor é um bebê e o mais velho toma conta da
casa e do irmão; vai para a fábrica de manhã, pouco depois das 5 horas, e volta às 8
horas da noite. Durante o dia, o leite corre-lhe dos seios a ponto de os vestidos se
molharem.
O emprego de narcóticos com o fim de. manter as crianças sossegadas não deixa de ser
favorecido por este sistema infame e está agora disseminado nos distritos industriais. O Dr.
Johns, inspetor-chefe do distrito de Manchester, é da opinião que este costume é uma das
causas principais das convulsões mortais muito freqüentes. O trabalho da mulher na fábrica
desorganiza inevitavelmente a família, e esta desorganização tem, no estado atual desta
sociedade baseada na família, as conseqüências mais desmoralizantes, tanto para os pais
como para as crianças.
É difícil dar uma estimativa numérica da moralidade sexual, mas, tendo em conta as
minhas próprias observações, a opinião geral daqueles com quem falei, assim como
o teor dos testemunhos que me forneceram, a influencia da vida na fábrica sobre a
moralidade da juventude feminina parece justificar um ponto de vista bastante
pessimista.
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Acontece que a servidão da fábrica, como qualquer outra e mesmo mais que todas as
outras, confere ao patrão o Jus primae noctis. Deste modo o industrial é também o dono do
corpo e dos encantos das suas operárias. A ameaça de demissão é uma razão suficiente
para, em 90 ou 99% dos casos, anular qualquer resistência da parte das jovens que, além
disso, não têm disposições particulares para a castidade. Se o industrial é suficientemente
infame (e o relatório da comissão cita vários casos deste gênero), a sua fábrica é ao mesmo
tempo o seu harém. O fato de nem todos os industriais fazerem uso do seu direito não altera
nada a situação das moças. Nos princípios da indústria manufatureira, na época em que a
maior parte dos industriais eram novos ricos sem educação que só respeitavam as regras da
hipocrisia social, não abandonavam por nada o exercício dos seus direitos adquiridos.