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Na visão do autor de “Dos delitos e das penas”, as normas que regulam a sociedade, de

maneira geral, sempre privilegiaram uma minoria e legaram ao restante do povo os


sofrimentos e as misérias. Contudo, embora seja relevante observar o fato de que tais regras
reguladoras, que têm como função a distribuição eqüitativa daquilo que constitui um direito
de todos, na prática nunca cumpriram efetivamente com esse propósito de sua existência, mais
relevante talvez seja a reflexão sobre o paradoxo que envolve as normas reguladoras no
sentido da punição aos delitos, que embora pretendam combater as transgressões que colocam
em risco a sociedade e punir os que cometeram crimes, acaba adquirindo um aspecto de
tirania que em nada contribui para a prevenção dos delitos e, ao mesmo tempo, ainda agem
em desequilíbrio com a premissa da justiça, à medida que, por vezes, são abusivas.
A partir da análise da trajetória humana podemos observar as razões que fizeram com
que surgissem as leis e as penas. Com o aumento das necessidades humanas que já não
podiam ser atendidas mantendo-se o modelo de vida nômade, os homens foram obrigados a
agrupar-se e fixar-se. Com esses agrupamentos a beligerância cresceu de forma a representar
ameaça à liberdade dos homens. Entendeu-se então que de nada adiantaria a liberdade plena,
se não houvesse a segurança necessária para usufruir dela, e, a partir desse entendimento, o
homem criou as leis reguladoras da sociedade, visando um bem comum. Contudo somente as
leis não bastaram para pôr fim à beligerância e à iminente ameaça à liberdade humana e,
portanto, foram criadas as penas com o intuito de punir os transgressores, também visando o
bem comum.
Dessa forma, embora saibamos que o homem não abre mão de sua liberdade
espontaneamente senão nos romances, as penas não passam de tentativas de colocar freio às
paixões e impulsividades humanas. Abre-se mão de parte da sua liberdade, regulada por leis
cuja desobediência acarreta penas, para assegurar que o restante dessa liberdade possa ser
usufruído com maior segurança e estabilidade.
Como fica claro, portanto, na análise das razões por que surgiram as penas, seu intuito
é somente o de fazer com que as leis não sejam transgredidas e a sociedade não seja
ameaçada. Quaisquer atitudes punitivas que ultrapassem esse intuito que visa tão somente o
bem comum é abusivo e paradoxal, à medida que trai as próprias razões originárias do
princípio penal. Sendo assim os abusos são incoerentes e inaceitáveis.
Neste sentido Cesare nos diz que o único a quem compete o estabelecimento das penas
é o legislador, que representa toda a sociedade através de um contrato social. Se alguém
transgride uma lei soberana do Estado, estão de um lado o acusado, que nega tal fato, e de
outro o Estado, que afirma ter tido leis transgredidas pelo acusado. É por isso que cabe um
terceiro para julgar se a acusação é procedente. Esse terceiro só pode ser o magistrado que,
por sua vez, estará sendo injusto e incorreto caso aplique punições que excedam o pré-
estabelecido na legislação.
Não cabe ao magistrado a interpretação das leis, visto que cada homem interpreta de
um jeito e, um mesmo homem, em diferentes momentos de sua vida, interpreta o mesmo
objeto de maneiras distintas. Isso tornaria os julgamentos arbitrários e não haveria justiça. Do
mesmo modo é igualmente danoso que as leis sejam obscuras, com textos escritos numa
língua morta e, por essa razão, inacessíveis à massa. Essa inacessibilidade faz com que as leis
estejam concentradas nas mãos de uma minoria, e os demais estariam dependentes dos
detentores desse conhecimento jurídico.
O autor ainda sugere que, caso as leis fossem mais claras, escritas em linguagem mais
familiar, os delitos seriam reduzidos, visto que as pessoas teriam conhecimento das leis, o que
diminuiria as transgressões.
Quanto à aplicação das penas, o autor observa que hoje há um estigma muito forte
sobre as prisões, que a princípio servem para a detenção do transgressor, mas é vista pela
sociedade como uma infâmia, um depósito de delinqüentes.
Observando que não é detido apenas aquele que já é acusado convicto, mas também o
suspeito, por várias razões dentre as quais podemos destacar o risco oferecido à sociedade, o
clamor público, a possibilidade de criação de dificuldades por parte do suspeito para o
andamento do processo, etc, e tendo em vista a análise dessa visão comum da prisão, fica
complicada a situação do inocente preso, que carregará a mácula de haver estado numa prisão.
O autor, porém, ressalta que nem sempre foi assim. Na Roma antiga o inocente preso
era recebido com amor pela sociedade e lhe eram ofertados alguns benefícios.
Porém antes de haver aplicação de pena, há que se ter o julgamento, para que se
verifique se houve ou não delito e, em caso de constatação do mesmo, para que se aplique a
pena que lhe cabe de acordo com a lei. Nesse sentido, é importante cuidar para que esse
procedimento não seja levado de forma sentimental, e sim da maneira mais idônea possível.
Por isso não pode haver qualquer relação de amizade ou ódio por parte de quem julga com
relação ao réu. Isso retiraria o aspecto da imparcialidade, fundamental quando a decisão que
se vai tomar pode mudar drasticamente a vida dos envolvidos.
Em relação às provas, o autor nos mostra duas divisões que ele chama de “prova
perfeita” e “prova imperfeita”. A prova perfeita não deixaria dúvida da culpabilidade do
acusado, enquanto as provas imperfeitas poderiam dar margem à inocência do mesmo. O
autor ainda nos diz que é melhor que haja um número razoável de provas independentes umas
das outras, onde cada indício pode ser comprovado ou descartado individualmente sem afetar
os demais, do que estarem várias provas atreladas a uma única, pois se essa é refutada, as
outras perdem seu valor.
Quanto às testemunhas, há que se verificar o interesse de cada uma em falar a verdade
ou mentir. Isso pode ser medido por meio da proximidade ou inimizade delas com o acusado.
Sem a medição do valor que se dará ao que diz uma testemunha, a idoneidade da centena
pode estar comprometida.
Já sobre as acusações, o autor condena ferrenhamente aquelas que ocorrem em
segredo. Se as leis e as penas não passam de mecanismos por meio dos quais se defende o
bem público, é inaceitável e incoerente que continuem ocorrendo acusações secretas.
Outra contradição gritante, segundo o autor, está relacionada à questão dos
interrogatórios sugestivos, que, por lei, são proibidos. No entanto, se essa proibição foi
concebida por concepções que julgavam monstruosa a produção de provas pelo indivíduo
acusado contra si mesmo, acabou caindo, por outro lado, em uma contradição muito grande. É
que vigoraram – e ainda hoje vemos alguns casos – as torturas, e talvez não exista nada mais
sugestivo do que a dor.
O juiz que se decide pela aplicação de torturas a fim de “arrancar” a verdade ao
acusado expõe-se ao risco de agredir inocentes, uma vez que, se ainda não há sentença e
conclusão dos processos jurídicos, não há culpado.
As torturas, como parecem não enxergar muitos juristas, têm um aspecto ineficaz em
sua própria essência. É que o inocente tem mais a perder com elas do que o culpado. Se não
suportar as torturas, acabará por confessar um crime que não cometeu e sofrerá as
conseqüências disso. Por outro lado se suportar as torturas sem confessar e for absolvido, trará
consigo as marcas desses atos bárbaros. Já o culpado, se souber suportar as torturas poderá ser
absolvido, escapando das punições legais para o crime que cometeu.
Roma já parecia ter consciência de todas essas questões envolvidas na tortura, pois
permitia a prática apenas quando o acusado era um escravo que, para os romanos, eram
considerados homens não-dotados de direitos iguais aos dos demais. Outros países como a
Prúcia e a Inglaterra também aboliram essa prática desumana, infrutífera e desnecessária.
Uma outra questão contraditória ainda acerca dos interrogatórios está relacionada ao
juramento de dizer apenas a verdade. Como pode o acusado jurar dizer a verdade quando seu
maior interesse pode ser o de mentir para livrar-se? Como a justiça pode obrigá-lo a jurar,
muitas vezes sobre a bíblia, quando o juramento é infrutífero?
Essas questões tornam-se ainda mais graves quando observamos que a
confissão de um acusado, via de regra, não se faz necessária para o desfecho do crime e a
aplicação das penas. Basta que haja provas irrefutáveis e que não deixem dúvidas da autoria e
das circunstâncias do delito para que se apliquem as punições cabíveis, sendo, nesse caso,
totalmente dispensável a confissão. As torturas, porém, além de contraditórias, bárbaras e
ineficazes, também não tem razão de ser.
O autor ainda trata da polêmica questão da pena de morte. Para tanto se vale de
considerações que faz nos primeiros capítulos do livro sobre a organização da justiça. Para
viverem em sociedade e em uma organização capaz de oferecer segurança, cada homem abre
mão de uma pequena parcela de sua liberdade em benefício de toda a sociedade. Isso seria
contraditório à medida que a vida pode ser considerada o bem mais precioso do homem e,
portanto, seria falso pensar que ele pudesse dá-la à disposição de outros homens. É óbvio que
ele não daria a ninguém o direito de matá-lo.
Nesse sentido a pena de morte é controversa à medida que, se as leis e as penas são
feitas de pequenas parcelas de liberdade das quais cada homem abre mão em benefício da
organização social, e se essa parcela de liberdade pode ser a própria vida, então o suicídio é
válido e legítimo. Ora, se um homem pode dispor assim de sua vida, entregando-a a cargo de
outros, então por que não poderia dispor dela como bem quisesse suicidando-se, por
exemplo?
Ademais há que se olhar para uma outra questão. As penas têm duas finalidades, sendo
uma delas a de evitar que um criminoso coloque em risco a sociedade, e a outra a de evitar
que outros indivíduos pratiquem delitos. Nesse último aspecto as penas assumem um caráter
modelar e disciplinador. Assim sendo, temos que pensar que o homem é mais sensível a penas
duradouras como o trabalho forçado de um criminoso a fim de reparar os males que causou à
sociedade, do que a penas imediatas como a morte, que se teme a princípio, mas que logo se
consuma e leva consigo os pavores e os sofrimentos.
Há ainda que se ter cuidado com penas que ultrapassam os limites humanos, porque
nenhuma tortura ou morte do criminoso arranca do passado os males que este causou.
As penas ainda devem se ater aos costumes morais de certa maneira. É que se a pena
aplicada a dado delito for mais infame do que aquilo que a moral julga necessário, então
haverá descrédito por parte do povo com relação à justiça. Assim as penas perderiam seu
aspecto modelar.
É importante sempre relembrar que as penas não devem ser encaradas como a
oportunidade de oferecer aos criminosos os maiores e mais dolorosos suplícios possíveis,
visto que o judiciário não é o vingador da humanidade. Nesse sentido é preciso amenizar
aspectos cruéis como as prisões de criminosos que aguardam julgamento. O tempo de espera
no interior de uma cela é um período de angústias e dores profundas, de incertezas cruéis.
Nesse sentido o julgamento deve ser rápido, e o preso apenas detido caso ofereça risco de
liquidar as provas do crime ou de fugir. Também é direito dos presos mais antigos serem
julgados primeiro.
Mas a agilidade no julgamento e na aplicação das penas também é eficiente para o
aspecto modelar das penas já mencionado. Isso mostra a efetividade do judiciário, das
punições aos delitos.
Aliás, quanto ao julgamento o autor ainda levanta uma questão primordial, que é
aquela que se refere ao asilo. Estes seriam um pólo onde a lei não chega, e então os homens
desse asilo estariam sujeitos a duas legislações contraditórias e independentes. A soberania
das leis estaria sendo desrespeitada.
Tal agilidade é altamente recomendável e justa independentemente da natureza do
crime cometido. Sobre essas naturezas, aliás, o autor as divide em alguns grupos.
Primeiramente ele trata dos “crimes contra a majestade”, que seriam os mais graves
porque põe em risco a organização social uma vez que os monarcas são os representantes do
povo. No entanto o autor salienta que a ignorância e o despotismo fizeram com que, ao longo
da história, crimes dessa natureza, por mais leves que fossem eram punidos com um rigor
excessivo e cruel.
Logo depois desses vêm os crimes contra os homens comuns, os quais se subdividem
em crimes contra a existência, crimes contra a honra e crimes contra a propriedade. Seriam os
crimes contra a existência os mais graves e, portanto, os passíveis de punições corporais.
As penas devem ser aplicadas na proporção em que prejudicam a sociedade. Essa é a
exata medida das penas. Dessa forma a lei caminha para seus objetivos que são, além de
diminuir a incidência dos crimes, o de evitar os crimes que mais prejudicam a sociedade.
Poderia um homem de Constantinopla ser julgado em Paris? Essa é a pergunta que faz
Cesare, e a resposta que ele mesmo dá é negativa. O sujeito de Constantinopla está sujeito às
leis de Constantinopla. Querer que ele seja punido em Paris é transformar o magistrado em
um vingador da humanidade, e esse não é, nem de longe, o papel da justiça.
Mas há ainda um outro aspecto polêmico que o autor discute em sua obra, que é o
“colocar a cabeça a prêmio”. Uma das facetas negativas dessa atitude é a demonstração de
debilidade do governo que ela representa. Ora, se um governo tem de pedir a ajuda de outrem
para cumprir com suas próprias leis e defender os interesses de seu povo, então ele é débil.
Ademais se o oferecimento do prêmio pela cabeça de um suspeito – porque antes de haver
julgamento é só isso que alguém pode ser, por mais convictos que se declarem os seus
acusadores – em âmbito internacional é uma injúria às leis das outras nações.
No entanto o aspecto mais grave dessa atitude talvez seja a contrariedade presente
nela. É que se a justiça pretende evitar os crimes, como é que pode atirar vários homens ao
encalço de um seu semelhante? Como é que de um lado a justiça aperta os laços e o sangue e
de outro oferece prêmios a quem caça um igual? Como é que pretende punir um crime por um
lado e, por outro, provoca cem? E há que se considerar que, ao tomar essa atitude
contraditória e mesquinha, se assume o risco de instigar centenas de homens a matar um
inocente.
O autor ainda discorre sobre vários crimes, falando das contrariedades das penas
muitas vezes adotadas e sugerindo aquilo que, em sua concepção, seria o mais justo e eficaz a
ser feito. Nesse sentido ele fala dos duelos, práticas comuns em muitas sociedades. Esses
crimes estavam ligados à honra e, portanto, aplicar pena de morte, como fizeram os
modernos, aos que se envolviam em situações criminosas como essas de nada adiantou. Isto
porque a honra, a possibilidade de desfrutar da vida social, do prestígio perante os outros,
amiúde é mais cara aos homens do que a própria existência. Desse modo, mais eficiente seria
castigar o causados da confusão e declarar perante a sociedade o outro inocente.
Sobre o roubo, o autor acredita haver um exagero desumano e ineficiente nas prisões
ou castigos físicos de outra natureza a quem o praticou, se esse ato não envolveu lesões
corporais à vítima. Em seu ponto de vista, mais eficaz seria “escravizar” – no único sentido
em que para si essa palavra é juta – o delinqüente. Forçá-lo a trabalhar e a devolver assim à
sociedade aquilo que lhe tirou. No entanto se há lesões à vítima, o autor acredita ser justo que,
nesse trabalho forçado imputado ao criminoso, sejam acrescentados castigos físicos.
Já sobre o contrabando, aquele que o pratica, segundo o autor, não conseguem ver a
amplitude do mal que fazem. Acreditam que estão lesando apenas ao governante, que deixa
de arrecadar os impostos, mas não vêem que, com isso, também estão prejudicando a
sociedade como um todo, uma vez que esses impostos não arrecadados também não se
invertem em suprimento às necessidades da população. Portanto seria justo confiscar os
produtos contrabandeados.
Ainda tratando dos crimes, o autor fala sobre a falência. Em sua concepção há que se
avaliar se essa falência é de boa fé ou não. Se não é, se constitui apenas um artifício para
deixar de cumprir com suas obrigações para com o credor, então ele deve ser tratado da
mesma forma que um falsificador de moedas, uma vez que está falsificando sua realidade para
fins criminosos. No entanto se a falência é de boa fé, de nada vale confiscar o pouco que
possa ter restado ao falido ou atirá-lo ao fundo de uma prisão. Mais válido e útil seria usar de
seus talentos profissionais para conseguir pagar gradualmente o seu credor.
O autor trata ainda da perturbação à tranqüilidade pública, como a arruaça ou os que se
debatem em brigas no meio da rua. Ademais há ainda os fanáticos com seus discursos
inflamados, que querem atrair, pela paixão, o povo a concepções pouco salutares. Segundo o
autor, o controle desse tipo de crime cabe aos governos. Medidas como a iluminação pública,
o policiamento nos diversos pontos da cidade, tudo feito com o dinheiro público, são uma
forma eficaz de controle desse tipo de delito.
O autor passa ainda a uma questão delicada, que é a do suicídio. Parece ilógico que se
possa imprimir castigos a alguém cujo que resta é tão somente um corpo destituído de vida.
Imprimir-lhe castigos causaria tanta impressão na população quanto a causaria a aplicação de
castigos físicos a uma estátua. Imprimir castigos à família do suicida também é uma prática
despótica e odiosa.
O autor ainda compara o suicida com aquele que abandona sua pátria, argumentando
que o primeiro causa duas vezes menos prejuízos à Nação do que o segundo.
Partindo das considerações extraídas de Dos delitos e das penas, podemos depreender
que as leis muitas vezes são contraditórias e injustas, e que essa contradição incita os homens
ao delito. Mais vale prevenir os delitos do que puni-los, uma vez que ser um bom governante
é propiciar a seu povo o maior bem-estar possível e o mínimo de pesares.
No entanto prevenir os delitos requer algum esforço como construir leis claras e
acessíveis a todos e construir leis que proteja indistintamente todos os homens, para que não
haja minorias que tente destruí-las.
Por fim, vale lembrar que o temor inspirado pelas leis é benéfico, uma vez que
promove sensações nos homens capazes de afastá-los da prática dos crimes. Porém o temor
inspirado pelos homens e por sua tirania apenas impele à prática dos delitos.
Amanda Martins de Castro
RA: 9000807
1º Semestre

DIREITO PENAL:
Resenha de “Dos delitos e das penas”

FAM – Faculdade de Americana


18/06/09

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