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A Atenção Primária à Saúde e o

Programa de Saúde da Família:


Perspectivas de Desenvolvimento
no Início do Terceiro Milênio
José Lucas Magalhães Aleixo1

Resumo Summary
O artigo discute o potencial e os li- This article discusses the Brazilian Fa-
1
Médico sanitarista, professor mites do Programa de Saúde da Família mily Health Program potential and limita-
licenciado da Escola de (PSF) como estratégia e opção política para tions as an strategy and political option
Saúde Pública de Minas a reestruturação do Sistema Único de Saú- to reshape the public health system. It
Gerais e coordenador
de no Brasil, à luz dos conceitos e do de- takes, as a starting point, the historical evo-
técnico do Núcleo de
Capacitação e Assessoria senvolvimento histórico da Atenção Primária lution and definition of Primary Health
em Saúde da Família à Saúde (APS). O autor aponta a necessida- Care. The author concludes for the ne-
(Nucasf/ESP-MG) de de se superarem os obstáculos da políti- cessity to overcome the focus in basic,
ca de focalização em cuidados básicos e selective actions turned to the poorest and
Endereço para seletivos, bem como de se investir na for- to invest in the development of person-
correspondência: mação de recursos humanos para que o nel, as essential conditions to Health Fa-
Escola de Saúde Pública programa atinja seus propósitos. mily strategies succeed.
de Minas Gerais
Avenida Augusto de Lima, Palavras-chave Key-words
2.061, Belo Horizonte/MG
CEP 30190-002 Atenção Primária à Saúde; Programa de Primary Health Care; Family Health Pro-
nucasf@esp.mg.gov.br Saúde da Família gram

REVISTA MINEIRA DE SAÚDE PÚBLICA, Nº 01, ANO 01– 


JANEIRO A JUNHO/2002
Introdução proposição do Sistema Único e Descen-
tralizado de Saúde (SUDS), finalmente
O início do terceiro milênio traz culminando com a instituição do Siste-
uma série de reflexões, conjecturas e ma Único de Saúde (SUS), devidamen-
expectativas para toda a humanidade. te inserido na Constituição Brasileira de
Embora a reflexão deva constituir-se 1988, fruto do movimento da chamada
numa atitude permanente e habitual, Reforma Sanitária Brasileira.
certos momentos podem ser utilizados
para maior mobilização e concentração, O SUS vem tentando desenvol-
devidamente direcionadas a análises mais ver-se apesar das políticas restritivas aos
consistentes e potencialmente transfor- investimentos nas áreas sociais e, so-
madoras. Na área da saúde, chegamos mente em 1994, emerge algum alento
ao final do século XX pressionados pela no nível da atenção básica, com a cria-
meta “Saúde para todos no ano 2000” ção do Programa de Saúde da Família
(SPT/2000), proposta em 1978 na Con- (PSF). Esse programa foi caracterizado,
ferência Internacional sobre Cuidados inicialmente, como mais um projeto de
Primários de Saúde, promovida pela extensão de cobertura, instalado prin-
Organização Mundial de Saúde (OMS). cipalmente na região Nordeste e em
A principal estratégia para atingir tal alguns municípios do Sudeste. Mas,
meta seria o desenvolvimento da Aten- hoje, configura-se como o maior pro-
ção Primária à Saúde (APS), dentro de grama assistencial desenvolvido em es-
uma organização sistêmica do setor. cala em todo o Brasil, carregando
enorme potencial para estruturar, de
Os diversos avanços ocorridos em
forma consistente, a Atenção Primária
direção à meta SPT/2000 não encobrem
à Saúde em nosso País.
o fato de não se ter conseguido cum-
pri-la integralmente. O início do tercei- Importa, neste momento de refle-
ro milênio está marcado pela exclusão xão, termos claramente identificados
social de significativa parte da humani- alguns dos obstáculos que determina-
dade. Tudo isso nos impele para este ram o não-cumprimento da desejada
momento especial de reflexão, de aná- meta, objetivando a sua remoção ou
lise dos principais determinantes do neutralização. Simultaneamente, impor-
não-cumprimento dessa meta e na bus- ta destacarmos os possíveis avanços
ca de alternativas concretas que pos- conquistados, objetivando preservá-los
sam proporcionar saúde para todos o e implementá-los com maior efetivida-
mais rápido possível. de. Dentre esses avanços, incluímos o
Na década de 70, o Brasil encon- Programa de Saúde da Família (PSF).
trava-se na contramão da história, vi-
vendo sob o regime militar e APS: uma história centenária
privilegiando um modelo setorial na
saúde centralizado no empresariamen- Em 1978, realizou-se a Conferên-
to subsidiado e na construção de cus- cia Internacional sobre Cuidados Primá-
tosos hospitais. A bem da verdade, nem rios de Saúde na cidade de Alma-Ata,
esteve presente na referida Conferên- Cazaquistão, antiga União Soviética,
cia da OMS, em 1978. Redimiu-se no promovida pela Organização Mundial
ano seguinte, para não ficar fora do de Saúde. A Conferência, que reuniu
conjunto de 134 países que ratificaram cerca de 134 países, culminou com a
e subscreveram a meta “Saúde para to- chamada “Declaração de Alma-Ata”, a
dos no ano 2000”. qual, devidamente aprovada pela 32ª
O primeiro aceno concreto, em- Assembléia da OMS em 1979, prescre-
bora tímido, em direção à estruturação veu a Atenção Primária de Saúde como
da Atenção Primária foi dado a partir a principal estratégia para atingir o ob-
do Programa de Ações Integradas de jetivo maior de promoção e assistência
Saúde (AIS), em 1982, depois com a à saúde para todos os seres humanos,
dentro da meta de “Saúde para todos Unidos, uma série de experiências or-
no ano 2000” (OMS/UNICEF, 1978). ganizativas nos denominados “Centros
A Atenção Primária de Saúde (ou Comunitários de Saúde”, para prestação
cuidados primários, ou cuidados bási- de ações de saúde – até então, quase
cos de saúde) compõe-se de algumas exclusividade de hospitais e dispensá-
atividades ou ações básicas de saúde, rios centrais –, associadas a outras ações
como as que se seguem: educativas e de assistência social (Ro-
sen, 1980). Naqueles centros de saúde,
- educação para a saúde e sobre os mé-
apesar das suas variadas formas de con-
todos de prevenção da doença;
cepção, organização, abrangência e
- atendimento dos problemas de alimen- aplicação em escala das ações presta-
tação, abastecimento de água e sane- das, certamente pode ser localizado o
amento básico; marco inicial da aplicação articulada e
- imunização; consistente de algumas das ações bási-
- combate às enfermidades endêmicas cas de saúde, da maneira como hoje
locais; são concebidas pela OMS.
- tratamento das doenças e traumatis- Assim, era aplicado sobre uma
mos comuns; dada população de risco, dentro de uma
base territorial delimitada e sob a res-
- provisão dos medicamentos essenciais.
ponsabilidade de uma unidade descen-
Essas ações básicas devem ser tralizada, um conjunto maior ou menor
desenvolvidas, ainda de acordo com a de atividades de assistência social, pre-
OMS, dentro de um contexto obrigató- venção e assistência médica (pré-natal,
rio de: infantil, tuberculose, doenças venéreas
- integração ao sistema nacional de saúde, e excepcionalmente outras), além de
- estreita cooperação dos setores sociais educação sanitária, capacitação ocupa-
e econômicos, cional, algumas ações sobre o meio
ambiente, locais de moradia e questões
- redistribuição dos recursos disponíveis
de trabalho.
em direção aos desassistidos,
Alguns desses centros de saúde
- eficiente organização do sistema, dos
procuraram trabalhar mobilizando as
serviços e das ações básicas, secun-
comunidades, incluindo a co-gestão e
dárias e terciárias de saúde, em ter-
o controle por colegiados e conselhos,
mos de suficiência e qualidade,
além de contar com membros eleitos
- maior participação e controle pela ou designados pela comunidade para
sociedade. atuação preventiva e mobilizadora no
A Atenção ou os Cuidados Primá- seu seio (assistentes de quarteirão).
rios de Saúde, como entendemos hoje, Em algumas cidades, os centros
constituem um conjunto integrado de formaram uma rede organizada em dis-
ações básicas, articulado a um sistema tritos, cobrindo toda a municipalidade
de promoção e assistência integral à saú- e até mesmo com extensão para áreas
de. Embrionariamente, esse conceito rurais (Rosen, 1980). Muito do que hoje
pode ser identificado desde o fim do consideramos o abrangente conceito de
século XIX, quando o professor Pierre sistema de assistência, promoção e vi-
Budin estabelece, na Paris de 1892, um gilância à saúde, inclusa a Atenção Pri-
sistema de centros de atendimento in- mária de Saúde como porta de entrada,
fantil onde eram realizadas, descentrali- tiveram nos Centros Comunitários de
zadamente e concentradas sob um Saúde americanos do início do século
mesmo teto, algumas das hoje chama- XX a sua primeira tentativa de sistema-
das ações básicas de saúde (Rosen, 1980). tização organizacional.
Ainda no primeiro quarto do sé- Interessante observar que essas
culo XX desenvolveu-se, nos Estados experiências americanas, desencadeadas

!
por volta de 1910, já antevendo, mes- que são paulatinamente desmontados,
mo incipientemente, a importância da em razão do conjunto de mudanças
integralidade das ações preventivas e sociais do segundo quarto do século.
curativas, da abordagem biopsicossocial Além disso, essas experiências sofrem
do indivíduo e da família numa ação os efeitos do corporativismo médico,
interdisciplinar e intersetorial, incluindo das discriminações de cunho político-
a participação comunitária, coincidem ideológico ocorridas na chamada era
cronologicamente, no nascedouro, com “MacArthista” nos Estados Unidos e pela
sua própria antítese. Coincidem com as inconveniência de sua pouca vocação
propostas contidas no trabalho prepara- para o consumo de remédios e apare-
do pelo professor Abraham Flexner para lhos biomédicos.
a Fundação Carnegie de Educação, pu- Outro fato marcante evidenciado
blicado naquele mesmo ano e que viria no início do século XX foi a crescente
a marcar incisivamente os rumos da aten- participação do Estado no setor saúde
ção médica em todo século XX. como financiador, regulador, distribui-
dor e prestador de atenção médica
Esse trabalho, denominado “Re- (Fleury Teixeira, 1979). Essa crescente
latório Flexner”, realizado após visita a participação estatal desenvolve-se em
155 escolas médicas americanas, pre- aliança e subordinação ao conjunto de
gava uma série de modificações nos cur- interesses dominantes e determinantes
rículos médicos, baseando-se em na estruturação da prática médica e na
determinados pressupostos ideológicos organização do setor saúde, quais se-
para a Medicina, como o mecanicismo jam, a necessidade capitalista de con-
(o homem é comparável a uma máqui- trole, reprodução e manutenção da força
na), o biologismo (predominância da de trabalho, as necessidades expansio-
natureza biológica das doenças), o in- nistas do complexo industrial farmacêu-
dividualismo (exclusão dos aspectos so- tico e de equipamentos, as necessidades
ciais), o especialismo (superespecia- político-ideológicas de negação do so-
lização do médico), a tecnificação preco- cial e as prescrições pedagógico-cientí-
ce e crescente do ato médico e a ênfase ficas do Relatório Flexner.
na medicina curativa (Mendes, 1993). Entretanto, ao mesmo tempo que
O Relatório Flexner ajustou-se o modelo flexneriano se expande pela
muito bem aos requisitos de uma práti- sua adequação às políticas socioeconô-
ca médica voltada para o binômio con- micas do capitalismo industrial e, em
trole social/reprodução da força de particular, da indústria capitalista da
trabalho, necessários à transição de uma doença, notadamente equipamentos e
sociedade rural-agrícola para outra, ur- remédios (Landmann, 1984), esse mes-
bano-industrial, em curso no princípio mo modelo revela-se como inadequa-
do século XX. Seus preceitos de espe- do e incapaz de promover saúde em
cialismo e tecnificação do ato médico escala para todos. Aplicado isoladamente
serviam bem à necessidade de expan-
são da indústria de remédios e apare-
lhos médicos diversos. Ademais, seus Em parceria com a
preceitos de biologismo e individualis- UFMG, a Escola de
mo contrapunham-se, oportunamente, Saúde Pública
desenvolve o curso
às ameaças das idéias que implicavam
de especialização em
causas sociais na gênese das doenças. Saúde da Família,
No contexto flexneriano de assis- atendendo a
profissionais de todo
tência médica à doença, de fragmenta-
o Estado por meio do
ção do indivíduo e de negação dos projeto “Veredas de
determinantes sociais, não há espaço Minas”. Na foto, a
para os Centros Comunitários de Saúde, turma de 2002

"
FINAL DO SÉCULO XIX - INÍCIO DO SÉCULO XX
– Transição de uma sociedade rural-agrícola para outra,
urbano-industrial e capitalista
⇒ que determina e implica:
– Necessidade de controle social, de reprodução e
manutenção da força de trabalho

INÍCIO DO SÉCULO XX
– Expansão da sociedade urbano-industrial e capitalista:
⇒ que determina e implica:
– Necessidade de controle social, de reprodução e
manutenção da força de trabalho
– Necessidade de expansão capitalista e da indústria de
aparelhagem e medicamentos
– Necessidade de legitimação científico-pedagógica (Relatório Flexner)
⇒ que determina e implica:
– Subordinação da prática médica e da organização do setor saúde
⇒ que determina e implica:
– Centralização e concentração da atenção médica em
hospitais caros e pouco acessíveis
– Graduação voltada para valorização da especialização e
tecnificação do ato médico
– Valorização mercadológica da ação curativa, especializada e tecnificada

a indivíduos, esse modelo de fundamen- Estado de Bem-Estar Social), implemen-


tação eminentemente clínica pode ser ta-se com recursos públicos, na maioria
eficaz do ponto de vista biológico, mas dos países, um modelo assistencial
se revela crescentemente dispendioso universalizado e que, mesmo mais ou
e perdulário no nível coletivo, excluin- menos influenciado pelos preceitos
do grandes camadas populacionais, e flexnerianos, consegue estabelecer um
absolutamente ineficaz frente a deter- bom nível de atenção primária à saúde.
minantes sociais e psicossociais, aos Na União Soviética e Europa Comunis-
quais desconhece ou minimiza por ce- ta Oriental, desenvolve-se um modelo
gueira congênita. de cobertura médica universalizada,
Após a Primeira Guerra Mundial também com adequado nível assisten-
(1914-1918), o eixo da hegemonia eco- cial básico, patrocinado exclusivamente
nômica, cultural e científica começa a pelo Estado e com ênfase na etiologia
se deslocar da Europa para os Estados social da doença (Venediktov, 1998).
Unidos da América. Esse fato, consu- Aqui cabe um parêntese na tenta-
mado após a Segunda Guerra Mundial tiva de proceder a uma “des-ideologiza-
(1939-1945), permite a consolidação ção relativa” dos conceitos fundamentais
hegemônica do modelo flexneriano em que regem a APS para podermos, mais à
boa parte do mundo ocidental, princi- frente, continuar prescrevendo-a como
palmente nos países periféricos, como potencialmente efetiva em variados con-
o Brasil. Na Europa Ocidental, como textos político-ideológicos (mesmo re-
parte da política do “Welfare State” (o conhecendo a existência de contextos

#
melhores e piores). Fato é que as dife- os recursos financeiros em grandes gru-
rentes visões dos mundos capitalista e pos empresariais, indústrias de equipa-
comunista procuram relacionar deter- mentos médicos e de medicamentos
minados preceitos de assistência inte- (geralmente transnacionais) e em cor-
gral à saúde, notadamente a APS, porações profissionais fortes. Tudo isso
intrínseca e inerentemente, aos seus em detrimento da assistência básica, pra-
respectivos modelos ideológicos. ticamente relegada a insuficientes ser-
As experiências internacionais per- viços públicos desequipados ou a
mitem dizer que, embora existam dife- entidades de caridade.
renças fundamentais, como o conceito Poucos países em desenvolvimen-
primordial da determinação social da to optaram por investir preferencialmente
doença, os demais conceitos aplicáveis na estruturação de seu sistema de saú-
à Atenção Primária e Assistência Integral de, tendo como fundamento organiza-
à Saúde não são exclusividades ideoló- cional o nível básico de assistência, como
gicas, podem vingar e se desenvolver é o caso de Cuba. Nos países capitalis-
bem nas mais diferenciadas circunstân- tas periféricos, algumas poucas castas de
cias, seja nos países capitalistas centrais trabalhadores conseguiriam alguma as-
(Canadá) ou periféricos (Costa Rica), seja sistência razoável em regime securitário,
nos comunistas periféricos (Cuba). permanecendo os demais cronicamente
marginalizados, com acesso restrito ou
Prosseguindo, o terceiro quarto
fragmentado à assistência médica.
do século XX, passada a difícil recupe-
ração econômica do pós-guerra, mos-
tra o desenvolvimento da assistência
O advento da recessão econô-
mica nos anos 70, agravada ou desenca-
básica caminhando em direções diver- deada pela crise do petróleo (aumento
sificadas. Na Europa Ocidental, desen- substancial dos preços do barril), pro-
volve-se bem, sob o manto das políticas voca sérias crises em cadeia. A política
plenas de bem-estar social. Na Europa européia de bem-estar social é afetada
Oriental, o mesmo ocorre sob a tutela com cortes nos investimentos sociais.
do Estado, mas sofrendo forte concor- Os Estados Unidos se alarmam cada vez
rência do setor militar, por conta de re- mais com os custos crescentes da assis-
cursos financeiros (Venediktov, 1998). tência médica. As economias socialis-
Já os Estados Unidos aprofundam tas também são afetadas com maiores
sua imersão no modelo flexneriano, gastos de importação e restrições a fi-
gastando cada vez mais com o setor nanciamentos externos. As frágeis e
saúde, mas com participação estatal dependentes economias dos países em
apenas parcial nos gastos. O acesso ao desenvolvimento são as mais afetadas.
sistema de saúde é particularmente di- A enorme dívida externa contraída nas
fícil para negros, hispânicos, imigran- décadas anteriores é cobrada com altos
tes e todos aqueles com baixo poder juros, empobrecendo cada vez mais es-
aquisitivo. O nível básico não tem o sas nações, gerando miséria e doença
mesmo padrão de acesso e resolubili- em índices alarmantes, agravadas com a
dade que nos países da Europa Oci- diminuição de recursos para o setor saú-
dental e no vizinho Canadá. de e praticamente relegando ao aban-
O mais trágico ocorre nos países dono a assistência básica.
do chamado Terceiro Mundo, os quais, Importa assinalar que os níveis
cevados pelos países capitalistas cen- secundário e terciário de assistência
trais com grande volume de emprésti- médica consomem cerca de três quar-
mos, acabam imergindo no modelo tos dos recursos financeiros disponi-
flexneriano e investindo, preferencial- bilizados em um determinado sistema
mente, em grandes hospitais centrali- de saúde. Tais setores estão, geralmen-
zados e equipamentos biomédicos de te, nas mãos de grandes grupos em-
alto custo, favorecendo e concentrando presariais ou corporativos, os quais

$
conseguem resistir mais fortemente a Para começar bem, procuraremos
eventuais cortes nas áreas de seus inte- analisar algumas das questões enuncia-
resses. Por conseguinte, os cortes vão das há pouco. Para tanto, consideremos
acontecendo sobretudo no nível bási- como referências as próprias avaliações
co, onde a resistência é mais fraca, o feitas pela OMS em 1988, 1993 e 1999 e
eco do clamor público é menos resso- as análises do médico americano Da-
nante e a repercussão política é menor, vid Werner (ativista do grupo de traba-
embora o custo humano e social seja lho americano Health Wrights,
muito alto e, muitas vezes, irreparável. experiente em trabalhos comunitários
Dentro desse contexto de regres- em Chiapas, México, e autor do livro
são das políticas sociais, forte crise “Onde não há médicos”).
socioeconômica mundial, agravamento A OMS realizou e publicou três
das condições de vida nos países em de- avaliações sobre a aplicação da estraté-
senvolvimento, piora do quadro sanitá- gia mundial de SPT/2000. Reportaremos,
rio mundial, ineficiência e alto custo do neste trabalho, à Segunda (OMS, 1993)
modelo de assistência médica flexneria- e à Terceira Avaliações (OMS, 1999), nos
no, é que foram abertas as discussões capítulos específicos para a região das
em Alma-Ata, naquele ano de 1978. Américas.
Na avaliação de 1993, a OMS con-
Implantação da APS: sidera vários fatores como obstáculos ao
obstáculos e avanços desenvolvimento pleno da APS, mas
implica principalmente a relação socio-
O último quarto do século XX econômica entre países capitalistas cen-
assistiu a uma verdadeira saga na tenta- trais e os demais países do Terceiro
tiva de se atingir a meta de “Saúde para Mundo como o principal entrave impe-
todos até o ano 2000”. O Professor David ditivo à meta SPT/2000. O alto grau de
Werner, em 1995, já considerava muito endividamento dos países latino-ameri-
remota a possibilidade de atingi-la. canos transformou-os em exportadores
A meta foi muito ambiciosa? O de capital para as nações credoras (cer-
tempo foi curto, ou a APS fracassou? A ca de 130 bilhões de dólares entre 1986
APS foi realmente posta em prática em e 1990). Essa sangria continuada de re-
escala mundial? Por que diferentes paí- cursos obrigou a programas de ajuste
ses obtiveram resultados diversos na econômico, que, dentre outros efeitos,
aplicação da APS? Quais os principais provocam recessão, desemprego e cor-
obstáculos dessa primeira fase? Estes tes nos investimentos em educação e
persistem? Como enfrentá-los? É possí- saúde (OMS, 1995).
vel remover, neutralizar ou conviver com Os cortes na saúde ficaram eviden-
esses obstáculos? Que avanços podem tes em áreas como o saneamento básico,
ser destacados? Como implementá-los? a manutenção de equipes e planta física.
Por partes: reconhecer a evidên- Prejudicaram os programas de atenção a
cia da meta não-cumprida não implica problemas prevalentes, o desenvolvimen-
abandonar o propósito superior de saú- to administrativo e a capacitação de pes-
de para todos. Assim sendo, a meta SPT/ soal para o setor. Em decorrência,
2000 pode ser considerada uma primei- constata-se grande dificuldade dos minis-
ra fase do projeto SPT, e a segunda fase térios em conseguir informação contínua
já teve seu início até mesmo anterior- e organização permanente para satisfa-
mente a 2001, quando se prenunciava a zer demandas sobre dados econômicos,
sua inviabilidade. Portanto, deve-se agora financiamento e custo do setor.
prosseguir aceleradamente nas reflexões Nessa avaliação, a OMS relata uma
sobre o acontecido e nas proposições deterioração dos esforços para manuten-
sobre o que deve ocorrer. ção do processo de vigilância e avaliação

%
das estratégias APS e SPT/2000. Os obs- na atenção primária. Na graduação uni-
táculos são divididos em três grupos: versitária, são relatadas diversas expe-
- escassez de recursos humanos e de riências de revisões curriculares, com
infra-estrutura para coleta e análise de incremento do ensino de saúde públi-
dados; ca e atenção primária, incluindo proje-
tos de integração docente-assistencial.
- pouca qualidade dos dados, sub-re-
No tocante à educação continuada em
gistro, dispersão de fontes, atrasos na
APS, ocorre uma boa disponibilidade
entrega e falhas no processamento dos
de ações voltadas aos profissionais de
dados;
saúde, segundo a avaliação da OMS.
- escassa vinculação entre gestão e sis-
A má distribuição de recursos
temas de informação para a tomada
humanos persiste na região, devido à
de decisão no setor saúde. resistência dos profissionais à interiori-
Na seqüência, a avaliação aponta zação, agravada pela crise econômica,
intenção declarada e esforços (muitas que restringe recursos financeiros para
vezes obstados pela falta de recursos) equacionar essa oferta.
da maioria dos países da região em con- Outro setor duramente atingido
sonância com a estratégia de atenção pela crise econômica é o de pesquisas
primária à saúde para todos, em diver- e desenvolvimento tecnológico, aumen-
sos aspectos, tais como: tando cada vez mais a distância em re-
- integração das instituições responsá- lação aos países desenvolvidos.
veis pelo setor saúde; Quanto a algumas áreas e ações
- interação interinstitucional entre órgãos de saúde específicas, a avaliação assi-
ligados ao desenvolvimento social; nala:
- preocupação em estabelecer sistemas - Água e saneamento: moderado au-
locais dentro das prerrogativas de in- mento de cobertura; qualidade duvi-
tegração ampliada. dosa nos meios urbanos, com perigo
A OMS também assinala os esfor- de epidemias de cólera;
ços generalizados no tocante à promo- - Imunização: antipólio, anti-sarampo
ção da participação comunitária, e DPT com coberturas superiores a
apontando os diversos graus e tipos de 90%;
envolvimento das comunidades, desde - Assistência a gravidez, parto e lac-
o trabalho de voluntários até a partici- tantes: falta de informações sistema-
pação organizada e oficial em níveis de tizadas; com dados isolados
planejamento e decisão. apontando queda de cobertura em al-
Praticamente todos os países lati- guns países;
no-americanos procederam neste perío- - Cobertura de APS: dados insuficien-
do a algumas reformas estruturais no se- tes para análise;
tor saúde, mais ou menos profundas. As - Mortalidade, natalidade e esperan-
mudanças envolveram aspectos jurídicos, ça de vida: melhora dos indicadores,
orgânicos e funcionais, contemplando, porém com desaceleração relativa a
na prática, processos de integração ou períodos anteriores;
fusão interinstitucionais, definição de - Situação nutricional e baixo peso ao
papéis institucionais e instâncias de ges- nascer: dados isolados indicando a
tão, regulação, normatização e operacio- persistência de altos índices regionais.
nalização, incluindo estratégias de des- Em todo o relatório de avaliação
centralização interníveis. da OMS, são apontados esforços e ex-
No tocante ao desenvolvimento periências concretas positivas no desen-
de recursos humanos, a maioria dos volvimento da APS. O fato é que todos
países não apresentou planos setoriais esses empreendimentos estão fortemente
específicos para os profissionais de saúde contingenciados pela dura realidade

&
econômica regional, impedindo sua Segundo Werner, apenas a reidra-
implementação continuada e na escala tação oral e a imunização foram aplica-
necessária para a consecução do impac- das em escala. Mesmo assim, os
to desejado. De qualquer forma, a tôni- resultados ficaram aquém dos desejados,
ca dessa avaliação pode ser sintetizada muito diferenciados entre os diversos
na seguinte afirmação: países. Na África do Sub-Saara, verifi-
cou-se uma inversão da tendência de
Aunque se han hecho algunos avan- declínio da mortalidade infantil a par-
ces, aún queda mucho por hacer en tir do final dos anos 80. Dessa manei-
este campo en la Región, aunque el ra, as causas profundas de natureza
compromiso real observado desde el social e política permaneceram inalte-
informe de 1998 no permite ser opti-
radas, retroalimentando a problemáti-
mista al respecto. (OMS, 1993, p.52).
ca sanitária.
A segunda referência avaliativa da O segundo ponto destacado por
APS são as considerações do Dr. David Werner são os ajustes das economias
Werner, proferidas na preleção “Trans- em desenvolvimento, estagnadas pelo
formando a atenção à saúde em inves- peso das enormes dívidas externas e
timento: os mais recentes ataques em de termos comerciais desfavoráveis,
grande força contra a atenção primária patrocinados e/ou exigidos pelo Ban-
à saúde”, na qual se destacam três pon- co Mundial e pelo Fundo Monetário
tos cruciais: APS seletiva, crise econô- Internacional (FMI). A política de ajus-
mica e atuação do Banco Mundial tes implica cortes drásticos em saúde,
(Werner, 1995). educação e subsídio alimentar.
A chamada APS Seletiva, adota- Esses fatos também são assina-
da pela OMS/Unicef/Usaid, tem como lados nas avaliações da OMS, mas
justificativa o “alto custo e [a] imprati- Werner acrescenta um dado inquietan-
cabilidade de um programa global de te: um plano adotado pelo próprio
saúde, no quadro de recessão mundial Unicef, seguindo as recomendações do
e de orçamentos sociais encolhidos”. Foi Banco Mundial e do FMI, de “financia-
então selecionado um pacote de ações mento-pelo-usuário” e “recuperação-
de baixo custo, destinadas a determi- de-custos”. Por meio de uma iniciativa
nadas populações de risco, projeto este chamada Bamako, o Unicef defende-
denominado Revolução da Sobrevivên- ria a “recuperação de custos” em al-
cia Infantil. Desse pacote constavam guns países africanos, pelo pagamento
originalmente: monitoração do cresci- parcial dos medicamentos fornecidos
mento, terapia de reidratação oral, ama- em determinadas unidades de saúde
mentação e imunização. de vilarejos.

Atenção Primária de Saúde (cuidados primários / básicos de saúde)

Parâmetros APS Seletiva APS Integral


Ações Seleção de ações Conjunto de ações integradas
Aplicação Localizada Sistêmica
Relação custo/benefício Ênfase no custo Ênfase na rel. custo/benefício
Público-alvo Tendência restritiva Tendência universalizante
Princípio básico Racionalizador/ Distributivo/
Compensatório Eqüitativo
Modelo Controle de doenças Promoção da saúde

'
As conseqüências desse plano De maneira geral, o relatório apon-
podem ir desde o imediato desvio do ta uma série de avanços na saúde, como
dinheiro destinado à alimentação fami- a desconcentração-descentralização, a
liar para o pagamento de remédios, até participação social (mesmo consideran-
implicações sociais e éticas a médio do existirem ainda participações mera-
prazo, como o abandono da política de mente utilitárias) e a coordenação inter
impostos progressivos (maior tributação e intra-setorial (embora a não-inclusão
dos afortunados) e da assistência à saú- de determinados atores, principalmente
de como direito básico de cidadania. do setor privado, tenha limitado o al-
Werner também ressalta o poder cance das políticas propostas). São obti-
assumido pelo Banco Mundial na de- das altas coberturas de imunização,
terminação das políticas de saúde – fato melhorias na esperança de vida ao nas-
inserido na política maior de subordi- cer e quedas nas taxas de mortalidade
nação econômica dos países em desen- infantil e por doenças transmissíveis,
volvimento, cada vez mais dependentes além de pequenos incrementos na ofer-
de apoio externo para se equilibrarem ta de água e saneamento básico.
financeiramente, mantendo em dia o
Por outro lado, assinalam-se dis-
pagamento das dívidas externas e, ao
torções na área de recursos humanos,
mesmo tempo, mantendo um controle
pois persistem as dificuldades para a in-
mínimo sobre a desagregação econô-
teriorização de médicos (apesar do cres-
mica e social interna.
cente número de profissionais formados)
O Banco Mundial torna-se, então, e a maior alocação de recursos nas ativi-
importante financiador de projetos nas
dades-meio. O resultado é uma relação
carentes áreas sociais – segundo Wer-
de cinco administrativos para cada mé-
ner, dentro de uma lógica desumaniza-
dico e apenas um profissional atuando
da, mecanística e mercadológica dos
em prevenção para cada grupo de dez.
serviços de saúde, conforme o paradig-
ma de ajuste estrutural, que tanto pe- Além disso, constata-se a falta ou
nalizou os mais pobres. Em suma, contra a debilidade das políticas nacionais para
os efeitos colaterais de determinada formação e capacitação dos recursos
droga, propõe-se como antídoto uma humanos, evidenciadas pelo isolamen-
associação de drogas que, paradoxal- to das instituições da área e pela consta-
mente, contém o veneno original. tação de que quase metade dos países
não apresenta mecanismos para avaliar
A terceira referência avaliativa da a adequação, a suficiência e a distribui-
APS e da meta SPT/2000 é o documen- ção dos quadros formados, especialmen-
to disponibilizado pela OMS em 1999. te daqueles egressos do setor privado.
Nessa avaliação, consta ter havido, ao Finalizando, a terceira avaliação da
longo dos anos 90, um agravamento da OMS assinala a intenção declarada da
pobreza na América Latina e no Caribe, América em persistir rumo à SPT e à APS.
em relação à década anterior, acentu- O documento termina propugnando a
ando-se, cada vez mais, a chamada dí- SPT como “um estado futuro desejado”
vida social desses países. Os sinais de e propondo uma série de objetivos,
recuperação econômica regional não orientações de políticas e determina-
produzem reflexos marcantes nos inves- das estratégias para que seja alcançado.
timentos sociais. Embora tenha havido Entretanto, alertamos que tal “visão de
importante incremento dos gastos na- futuro” deve assentar-se em bases rea-
cionais com saúde (GNS) – passando listas, considerando estarmos ainda em
de $200, em 1980, para $250, em 1994 estado de incipiência explícita.
–, nesse ano, o setor público conseguiu
apenas retornar ao patamar de investi- Sin embargo, la concepción de la APS,
mentos do início da década de 80, ou tanto en su forma integral como en
seja, $110 per capita. la focalizada, no se há internalizado


ni operacionalizado en forma com- Ministério não é a única estruturação
pleta en los servicios de salud. (OMS, possível. (Fiocruz: Tema/Radis, 1997,
1999, p. 39) p. 26)

Dezenas de projetos desenvolvi-


O desenvolvimento da APS no
dos no âmbito do SUS alcançaram bons
terceiro milênio: qual o papel resultados estruturantes, inclusive em
do PSF neste empreendimento? Belo Horizonte. É o caso do Projeto Vida
(redução da mortalidade infantil), do
Considera-se que o Programa de
Sinasc (sistema de notificação de todos
Saúde da Família tem bom potencial para os recém-nascidos vivos pelas materni-
estruturar a atenção básica em nosso País. dades à Secretaria Municipal de Saúde),
Entretanto, alguns cuidados precisam ser da implementação da vigilância à saú-
tomados para a atualização desse referi- de infantil (busca ativa dos recém-nas-
do potencial. É importante levarmos em cidos por critérios de risco, com visitas
conta alguns questionamentos ao pro- domiciliares), da recepção acolhedora
grama, tendo como base referencial e ou acolhimento nas unidades básicas
cenário as considerações feitas sobre a de saúde (estratégia complementar para
APS nos parágrafos anteriores. proporcionar uma acesso mais amplia-
Da mesma maneira que as avalia- do, facilitado, humano e criterioso ao
ções sobre APS e SPT, uma análise atu- usuário) e do Projeto de Controle e
al e em perspectiva do PSF permite Assistência às Doenças Respiratórias
diversas abordagens, mas, neste traba- Agudas (controle ambulatorial de asma).
lho, elegeremos algumas para maiores A questão fica lançada: teria o PSF
considerações. potência suficiente para estruturar a
atenção básica sem integrar, incorpo-
Monocultura ambulatorial rar, adequar, otimizar, contribuir, rece-
Um dos equívocos estratégicos ber e participar dos demais projetos
apontados pela OMS na implantação da correntes no SUS? A possível obvieda-
APS refere-se à não-inclusão de outros de da resposta não é capaz de escon-
atores e setores (públicos ou privados) der uma prática relativamente solitária
com interesses ou poderes sobre a re- do PSF. A percepção de “massa e volu-
ferida proposta. O organismo interna- me” do programa, proporcionada pelo
cional, aliás, recomenda explicitamente grande número de equipes e municípios
essa colaboração ampliada, como par- participantes, não é garantia de suces-
te das orientações para políticas sobre so, mas significa apenas que podere-
o futuro da SPT (OMS,1999, p.39 e 41). mos atingir o “paraíso” ou um “beco
sem saída” em larga escala.
O PSF tem caminhado a largos pas-
sos. Porém, para alguns, sua trajetória é De acordo com a experiência da
monolítica e isolada, até mesmo em rela- OMS quando da implantação da APS,
ção a outros projetos estruturantes do Sis- seria estratégico levarmos em conside-
ração os demais atores, setores e proje-
tema Único de Saúde (SUS). Esse alerta já
tos alinhados na mesma direção,
era aventado em 1997 pelo ex-prefeito
especialmente aqueles já testados e
de Santos (SP), David Capistrano da Cos-
desenvolvidos dentro do próprio SUS.
ta Filho, que destacava vários projetos com
A integração com outros projetos po-
o mesmo potencial em seu município,
derá concretizar o potencial do PSF
como os programas odontológico e de
como um primeiro contato com o siste-
internação domiciliar.
ma de saúde, ampliando o leque de
Não concordo que se usem os me- ações disponibilizadas, bem como sua
canismos de financiamento para for- acessibilidade e resolubilidade.
çar todos os municípios a usarem A consecução dessa estratégia de-
esta fórmula... O PSF formatado pelo verá pôr em prática o decantado objetivo


de transformar o PSF, de um programa assistência integral à saúde, confundin-
verticalizado, em uma estratégia de or- do-as, à primeira vista, com o modelo
ganização do nível básico de atenção, integral proposto pela reforma sanitária.
aglutinando, otimizando ou articulan- Moldura nova no “SUS-para-po-
do todos os programas e ações perti- bres” e/ou no “SUS-real”, o programa
nentes. Iniciativas, como a “Oficina aumentará a distância até o objetivo SPT,
Regional Sudeste: Integrando Pro- se aceitarmos as ponderações de David
cessos de Capacitação de Profissionais Werner sobre a APS, relatadas anterior-
para Atenção Básica”, patrocinada pelo mente. Faz-se necessário saber discernir
Ministério da Saúde e realizada no Rio e apontar, claramente, as diferenças rela-
de Janeiro em junho de 2000, devem tivas a essas propostas menores, inclusi-
ser incentivadas, ampliadas e aprofun- ve estabelecendo mecanismos e instâncias
dadas regionalmente, no sentido de in- que avaliem as condições de “bioequiva-
crementar-se a integração das ações de lência” entre propostas similares.
saúde no campo da atenção básica.
Ainda nessa linha, outra carac-
terística do PSF consiste na sua im-
“Cesta básica” e plantação em áreas de alto risco
“medicina para pobres” socioeconômico, isoladamente de ou-
tros projetos sociais em caráter inte-
O PSF nasceu e se desenvolve rinstitucional e intersetorial, sem a
num ambiente carregado de ambigüi- estruturação dos demais níveis hierar-
dades, no cenário de um SUS fragmen- quizados de referência do setor saú-
tado e decomposto em diversas de. No mais das vezes, isso levanta
realidades: o “SUS-para-pobres” (como enormes expectativas, porém com bai-
medicina simplificada para as massas), xa resolubilidade e frustração geral
o “SUS-real” (refém da política econô- (Esmig/Cesf, 1997). Por definição, a
mica federal), o “SUS-formal” (estabe- APS ligar-se-ia a toda uma estrutura
lecido na Constituição Federal de 1988) sistêmica da saúde, com disponibili-
e o “SUS-democrático”, projetado pela zação dos níveis secundário e terciá-
reforma sanitária brasileira (Paim, 1996). rio. Fica o alerta: talvez devido ao
Vivendo o dia-a-dia com nossos custo e à complexidade, a implemen-
alunos das equipes do PSF, percebemos tação desses níveis tem sido protela-
suas angústias por se sentirem inseridos, da, sobrecarregando o nível básico.
em nome do PSF, no “SUS-para-pobres”
e/ou no “SUS-real”. Os profissionais so- Capacitação de recursos humanos
frem as conseqüências indesejáveis des-
sas concepções menores, embora não A única referência ao Programa de
consigam localizar com clareza e articu- Saúde da Família brasileiro feita na Ter-
lar alguma atuação sobre a etiologia do ceira Avaliação da OMS, de 1999, con-
processo ao qual estão submetidos. siste em relatar (numa só linha) a
O PSF pode e tem sido eventual- existência de um projeto de formação
mente utilizado para “dourar a pílula” de pessoal, sem maiores detalhes. Por-
de uma medicina simplificada para po- tanto, não poderemos utilizar a referida
bres, oferecendo uma “cesta básica”, avaliação para subsidiar as considerações
maior ou menor, de cuidados básicos seguintes, mas contaremos com a nossa
seletivos ou focalizados (Esmig/Cesf/ própria experiência de cinco anos nesse
Oficinas do Curso de Especialização em campo de atuação.
Saúde da Família, 1997). Essa “maquia- A Escola de Saúde Pública de Mi-
gem” pode representar considerável nas Gerais (ESP-MG) atua, desde 1995,
reforço àquelas concepções não-demo- na capacitação de profissionais para o
cráticas do SUS, ao introduzir algumas programa, elaborando e desenvolvendo
diretrizes e pressupostos isolados da várias atividades educacionais, como o


primeiro Curso de Especialização em perspectiva de que os pólos provoquem
Saúde da Família no Estado, treinamen- mudanças paulatinas na graduação,
tos introdutórios, cursos básicos, ca- atendendo à formação de profissionais
pacitação pedagógica e treinamento para a APS. Por outro lado, o mesmo
para agentes comunitários de saúde critério é linearmente excludente, se
(ACS), além de seminários de educa- aplicado às Escolas de Saúde Pública,
ção continuada. No período de 1996 a as quais, em sua maioria, não têm como
1999, cursaram as diversas atividades edu- finalidade e missão institucional atuar
cacionais, coordenadas e/ou aplicadas em nível de graduação. Muitas vezes,
pela Esmig, 964 profissionais de nível essa definição acaba alijando a expe-
universitário e 3.197 agentes comunitá- riência e a legitimidade das escolas em
rios de saúde (Esmig/Nucasf, 2000). relação ao SUS e ao próprio PSF, como
Na área de recursos humanos, são é o caso da ESP-MG, tradicional refe-
igualmente inúmeros os enfoques pos- rência para os municípios mineiros no
síveis, mas também aqui elegeremos desenvolvimento de recursos humanos
alguns para considerações maiores. O em saúde pública.
primeiro ponto se refere à estratégia do O estabelecimento de conjuntos
Ministério da Saúde de constituição dos de parâmetros adequados a cada tipo
chamados “Pólos para Capacitação e de instituição de ensino poderá resga-
Formação de Pessoal em Saúde da Fa- tar e incluir diferentes experiências e
mília”, para desenvolver a formação de propostas de formação em saúde pú-
recursos humanos nos Estados. blica, numa perspectiva complementar
A Coordenação da Atenção Bási- e otimizadora dos recursos disponíveis.
ca do Ministério da Saúde considera o Essa medida também estaria em conso-
setor de recursos humanos e a pouca nância com as lições colhidas na pri-
qualificação dos profissionais um dos meira fase de implantação da APS e da
principais obstáculos à implementação meta SPT/2000, transportando as reco-
do programa. Nesse sentido, o MS tem mendações explícitas da OMS acerca da
considerado muito positiva a atuação necessária integração dos variados ato-
dos pólos estaduais, destacando, nessa res influentes e interessantes à propos-
avaliação, a participação das instituições ta (OMS,1999, p. 39 e 41).
universitárias (cerca de 54 em todo o
País ) na coordenação e no desenvolvi- O segundo enfoque seleciona-
mento das propostas regionalizadas do na área de recursos humanos abor-
(Sousa, 1999). A experiência da ESP-MG, da a enormidade do esforço necessário
primeiramente como núcleo de capaci- à capacitação de profissionais para o
tação e atualmente como eventual co- PSF, de acordo com as metas propostas
laboradora de um dos pólos estaduais pelo MS. Muitos consideram esse esfor-
– o Pólo da Universidade Federal de ço como uma das “doze tarefas de Hér-
Minas Gerais – permite corroborar essa cules na era moderna”. Vejamos: o MS
avaliação positiva. sinaliza para a meta de implantar 20 mil
Entretanto, o MS tem estabeleci- equipes do PSF até o ano 2002, o equi-
do critérios para credenciamento dos valente a 20 mil médicos e 20 mil en-
núcleos e pólos que, em alguns pon- fermeiros (Brasil/Ministério da Saúde,
tos, excluem importantes instituições 2000). Isso significa que, num universo
envolvidas no desenvolvimento de re- total de 250 mil médicos em atividade
cursos humanos para o SUS, como é o no País, previsto para este ano, cerca
caso das Escolas de Saúde Pública Es- de 8% estaria atuando como generalis-
taduais. Por exemplo, ao creditar pon- ta, em tempo integral no PSF.
tos para instituições que ofereçam De onde virão, devidamente capa-
graduação em Medicina e Enfermagem, citados, cerca de 20 mil generalistas para
o MS caminha – corretamente – na atuação imediata no PSF? Logicamente, o

!
mercado – parcialmente influenciado pela de Residência Multiprofissional em Saú-
própria implantação do PSF – deverá de da Família, energizando, novamen-
pressionar para a adequação da forma- te, a formação de quadros para a área
ção profissional na graduação. Entretan- de Saúde Coletiva, até mesmo com uma
to, saliente-se que qualquer modificação perspectiva de complementariedade e
estrutural no ensino médico de gradua- o “estabelecimento de interfaces e pro-
ção só se concretizará no ciclo mínimo cessos de cooperação entre as duas pro-
dos seis anos necessários para formar uma postas: ...Residência em Medicina
nova leva de médicos. E, para caracteri- Preventiva ... e Residência em Saúde da
zar-se como tendência, deverá contabili- Família” (Campos, 2000).
zar significativo número de escolas Mas a principal modalidade de
objetivando tal modificação no ensino. capacitação em escala nacional propos-
Que modalidades de ensino po- ta pelo MS para o PSF, a partir de 2000,
dem ser empregadas para capacitação tem sido os Cursos de Especialização,
dessa clientela? Em relação ao profis- com carga de 360 horas, consubstan-
sional médico, qual o status quo dessa ciando-os como a principal estratégia de
clientela, em termos da formação e de capacitação de profissionais universitá-
experiências profissionais anteriores? rios. Os primeiros Cursos de Especiali-
A graduação em Medicina tem zação em Saúde da Família iniciaram suas
preparado, basicamente, dois tipos de atividades em 1995 ou 1996 (caso da ESP-
médicos: o generalista e o médico de MG), formando um contigente ainda re-
formação geral. O generalista teria uma lativamente pequeno, mas com o mérito
formação intensiva e concentrada nas de integrar enfermeiros e médicos numa
áreas de clínica de criança, adulto, gi- proposta pedagógica conjunta.
necologia e saúde pública e deveria Os cursos propostos pelo MS de-
estar apto a iniciar suas atividades no verão ocorrer em regime modular, inter-
nível de atenção básica logo após a for- calando dez períodos de concentração
matura. O médico de formação geral, e dispersão, desenvolvidos no prazo de
por sua vez, teria sua graduação con- um ano, contando com cerca de 240
centrada na preparação para acessar horas em atividades presenciais e 120
uma residência, ou seja, seria candida- horas em atividades de campo.
to a uma especialização, mesmo em área Aqui cabem alguns alertas. O pri-
básica (Costa Neto, 2000). meiro deles se refere ao número de
A pós-graduação lato sensu baseia- horas presenciais previstas, uma vez que
se na residência médica e nos cursos de a maioria dos Cursos de Especialização
especialização de 360 horas mínimas. A em Saúde da Família anteriores ou em
residência em Medicina Social/Preventi- andamento trabalha com uma carga
va ou Geral/Comunitária contava, em horária presencial em torno de 360 ho-
1991, com 23 cursos em todo o Brasil, ras. A redução para 240 horas presen-
disponibilizando 124 vagas por ano ciais pode atender à necessidade de
(Abrasco, 1991). Em 1995, primeiro ano formação de um grande número de pro-
de implantação do PSF, havia 5.504 fissionais em período relativamente cur-
(2.864 nas capitais e 2.640 no interior) to – uma relação de escala/tempo –, mas
especialistas em Medicina Geral/Comu- certamente implicará a redução dos
nitária (Fiocruz/CFM, 1996). Entretanto, conteúdos a serem abordados.
ao longo da década de 90, diminuiu o O ensino e a consultoria à dis-
interesse institucional e a procura dos tância poderiam equacionar a questão,
médicos pelas residências em Medicina mas até que ponto e com que grau de
Preventiva e Social, culminando com a extensão e acesso ao alunado das di-
desativação de alguns programas. ferentes regiões permanecem como in-
Com a implementação do PSF no terrogações centrais. A discussão está
final da década de 90, surgem programas aberta, visando a estabelecer a distância

"
segura de uma visão “fast-food”, apli- Devido a essa heterogeneidade,
cada na capacitação de recursos huma- a implementação de estágios práticos
nos para o PSF. em áreas, como atenção à mulher e à
Na mesma linha de raciocínio, criança, por exemplo, pode vir a ser ne-
outro alerta vale para as atividades de cessária para os grupos de recém-for-
campo. Muitos coordenadores e alunos mados com “formação geral”, para os
do Curso de Especialização ressentem- especialistas de áreas não-básicas e até
se de uma presença sistemática de pro- para os especialistas básicos. Isso aten-
fessores e coordenadores junto às deria a abrangência e a qualidade da as-
equipes locais do PSF, orientando os sistência básica preconizada pelo PSF, em
trabalhos práticos e a própria organiza- termos do enfoque familiar e da atenção
ção dos serviços municipais. a todo o ciclo de vida dos indivíduos.
Também essa questão poderia ser
Considerações finais
atendida, em parte, com a consultoria à
distância, mas defendemos a inclusão Nada do que foi abordado até
de técnicos das Diretorias Regionais e aqui representa impedimento absoluto
Secretarias Municipais de Saúde nos à implementação da APS/SPT, mas cer-
Cursos de Especialização. Os programas tamente indica que os obstáculos são
poderiam ser complementados com maiores que os imaginados na década
conteúdos específicos para essa clien- de 70. A desejável implementação do
tela, sempre no intuito de melhor pre- PSF, cada vez mais direcionado como
pará-la para as funções de assessoria e eixo estratégico reorganizador do SUS,
supervisão técnica nos níveis regional, exige levarmos em séria conta os aler-
municipal e local. tas anteriores e outros mais.
Mais um alerta, dentre tantos pos- Nada mais desgastante que repetir
síveis, concerne a eventuais estágios erros historicamente apontados e consa-
práticos supervisionados, provavel- grados por experiências recentes. Assim
mente necessários para atender a uma sendo, ao PSF urge aliarem-se outros pro-
clientela heterogênea em termos de for- jetos estruturantes do SUS. Urge afastá-lo
mação, experiência e origem profissio- de concepções menores, como medicina
nal. No recrutamento e capacitação do familiar (sutilmente “equivalente”) ou
enorme contigente de 20 mil profissio- medicina simplificada para pobres (ro-
nais médicos para atuação como gene- manceada como de natureza “robin-hoo-
ralistas, poderemos encontrar desde diana”). Finalmente, urge uma ação
recém-formados na linha generalista ou altamente concertada para o desenvolvi-
de “formação geral”, passando por es- mento de recursos humanos, contribuin-
pecialistas das chamadas especialidades do pelo menos numa das “doze tarefas
básicas, até as especialidades mais par- de Hércules na era moderna”, qual seja,
ticularizadas. a capacitação dos profissionais do PSF.

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