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Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros
eram um tapete mágico que me levavam instantaneamente a viajar pelo
mundo... Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e me tornava um
outro. Eu me vejo assentado no chão, num dos quartos do sobradão do meu avô.
Via figuras. Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas alguém
colara gravuras, recortadas de revistas. Não sei quem o fez. Só sei que quem o
fez amava as crianças. Eu passava horas vendo as figuras e não me cansava de
vê-las de novo. Um outro livro que me encantava era o “Jeca Tatu“, do Monteiro
Lobato. Começava assim: “Jeca Tatu era um pobre caboclo...“ De tanto ouvir a
estória lida para mim, acabei por sabê-lo de cor. “De cor“: no coração. Aquilo que
o coração ama não é jamais esquecido. E eu o “lia“ para minha tia Mema, que
estava doente, presa numa cadeira de balanço. Ela ria o seu sorriso suave,
ouvindo minha leitura. Um outro livro que eu amava pertencera à minha mãe
criança. Era um livro muito velho. Façam as contas: minha mãe nasceu em
1896... Na capa havia um menino e uma menina que brincavam com o globo
terrestre. Era um livro que me fazia viajar por países e povos distantes e
estranhos. Gravuras apenas. Esquimós, em suas roupas de couro, dando tiros
para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Embaixo, a explicação: “Onde os
esquimós vivem a noite é muito longa; dura seis meses.“ Um crocodilo, bocarra
enorme aberta, com seus dente pontiagudos, e um negro se arrastando em sua
direção, tendo na mão direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria
era introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse conta. Quando o
crocodilo fechasse a boca estaria fisgado e haveria festa e comedoria! Na gravura
dedicada aos Estados Unidos havia um edifício, com a explicação assombrosa:
“Nos Estados Unidos há casas com 10 andares...“ Mas a gravura que mais mexia
comigo representava um menino e uma menina brincando de fazer um jardim.
Na verdade, era mais que um jardim. Era um mini-cenário. Haviam feito
montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago cuja água,
transbordando, se transformava num riachinho. E, às suas margens, o menino e
a menina haviam plantado uma floresta de pequenas plantas e musgos. A
menina enchia o lago com um regador. Eu não me contentava em ver o jardim:
largava o livro e ia para a horta, com a idéia de plantar um jardim parecido. E
assim passava toda uma tarde, fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã
como as árvores da floresta... Onde foi parar o livro da minha mãe? Não sei.
Também não importa. Ele continua aberto dentro de mim.
Faz de contas que a sua alma é um útero. Ela está grávida. Dentro dela há um
feto que quer nascer. Esse feto que quer nascer é o seu sonho. Quem engravidou
a sua alma eu não sei. Acho que foi um ser de um outro mundo... Imagino que o
tal de “Big-Bang“ a que se referem os astrônomos foi Deus ejaculando seu
grande sonho e soltando pelo vazio milhões, bilhões, trilhões de sementes. Em
cada uma delas estava o sonho fundamental de Deus: um jardim, um Paraíso...
Assim, sua alma está grávida com o sonho fundamental de Deus...
Mas toda semente quer brotar, todo feto quer nascer, todo sonho quer se
realizar. Sementes que não nascem, fetos que são abortados, sonhos que não
são realizados, se transformam em demônios dentro da alma. E ficam a nos
atormentar. Aquelas tristezas, aquelas depressões, aquelas irritações - vez por
outra elas tomam conta de você – aposto que são o sonho de jardim que está
dentro e não consegue nascer. Deus não tem muita paciência com pessoas que
não gostam de jardins...