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O grande mérito da reportagem foi ter exposto que a ciência também tem suas
intrigas, que muitas vezes (mas muitas mesmo) extrapolam a esfera
profissional e se transformam em inimizades pessoais. É importante que se
saiba isso. Por ser humano, o mundo científico está cheio de rivalidades, como
qualquer outro mundo, dos executivos, dos políticos e dos jornalistas, para
citar alguns exemplos. Parece que Marcelo Leite quis deixar bem evidente
esse contorno social em torno do fato científico, mas se equivocou ao sugerir
que esses entraves poderiam estar impedindo o avanço do conhecimento. Na
verdade, as grandes polêmicas são as verdadeiras alavancas da ciência. As
soluções para discussões deste calibre só podem surgir com novas pesquisas,
novos fatos e evidências, não com acordos pessoais.
A descrição que Marcelo Leite faz da arqueóloga Niède Guidon exige de mim
um outro comentário. Há diversos tipos de cientistas, cada qual com um tipo
de talento. Segundo o que foi contado, Niède se enquadra perfeitamente
naquele perfil que chamo de cientista-empreendedor. São pessoas que
apresentam grande talento para levantar coisas, criar grandes centros de
pesquisa, organizar congressos, agregar pessoas competentes, presidir
sociedades, dirigir institutos, chefiar departamento etc.
Esses talentos não estão presentes em qualquer cientista. Muitos deles não se
sentem hábeis para se meterem nesses assuntos, preferindo permanecer
debruçados sobre suas pesquisas, orientando de perto seus pós-graduandos,
publicando seus artigos. Em geral, o cientista-empreendedor, para se manter
produtivo do ponto de vista acadêmico, acaba se cercando de orientandos mais
independentes, capazes de crescer com uma supervisão mais esporádica de
seu orientador, que está sempre muito ocupado com seus diversos
compromissos; se esse cientista não souber escolher bem sua equipe de
trabalho, acabará tendo produção acadêmica medíocre. O outro tipo de
cientista, o que se dedica mais integralmente à pesquisa, mergulha com mais
profundidade no assunto que domina, está mais perto de seus orientandos e se
torna mais crítico e mais exigente em relação aos resultados da pesquisa
própria e da alheia.
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05042000.htm
ASPAS
Marcelo Leite
"A falha arqueológica do Brasil", copyright Folha de S.Paulo, 19/3/00
"A voz de Niède Guidon soa divertida, ainda que cansada, quando fala de seus
desafetos nos feudos da arqueologia brasileira. Estava certa a agente de
turismo Rosa Trakalo ao dizer que a melhor hora para entrevistar a ‘doutora’
seria de carona com ela em suas andanças por São Raimundo Nonato, no
sudeste do Piauí. Guidon, 67, dirigindo uma picape Nissan Frontier cabine
dupla, conta com tração nas quatro rodas para enfrentar qualquer atoleiro da
caatinga verde de inverno (estação de chuvas), e não tem travas na língua.
Para o bioarqueólogo Walter Neves, 42, da USP, o caso Guidon versus Prous
representa ‘a ponta do iceberg de uma comunidade de arqueólogos que é
autoritária’. Ele descarta uma interpretação corrente, que atribui esse traço a
duas décadas de governos militares, preferindo apontar raízes endógenas para
as arbitrariedades -’despreparo e mediocridade’.
Preguiça gigante
Precipitação e premonição
A cautela de Walter Neves é mais retórica que prática. Ele repete para quem
quiser ouvir que as datas de São Raimundo Nonato e a hipótese de migrações
marítimas não passam de ‘pirotecnias’ arqueológicas. Com sua reputação de
gosto pela polêmica, dias antes do concurso de livre docência na USP
comentava-se nos corredores do Instituto de Biociências que ‘correria sangue’
na arguição, desta vez entre ele e geneticistas de populações humanas. Dois
renomados professores de universidades federais compunham a banca,
Francisco Salzano (RS) e Sérgio Danilo Pena (MG), cujos estudos de
comparação estrutural de DNA (a molécula-código dos genes) de populações
atuais indicam que o ‘Adão americano’ migrou da Ásia (Sibéria Central) para
a América, numa única leva. O trabalho mais famoso de Neves, uma análise
morfológica do crânio de Luzia, aponta conclusões divergentes: pelo menos
uma entrada mais antiga no continente, anterior ao limite de Clóvis (12 mil
anos), realizada por grupos aparentados com africanos e australianos, não com
asiáticos. O debate entre ele e Pena teve momentos de genuína picuinha, como
a grafia do nome deste numa referência daquele e a pronúncia do nome do
filósofo da ciência Karl Popper (tanto Pena quanto Neves estavam errados),
mas se manteve dentro dos limites do aceitável, em matéria de malícia e
maledicência acadêmicas. ‘No ano 2000, ainda se fala de fósseis versus
moléculas’, lamentava o arguidor. ‘É típico de geneticistas fazer afirmações
sem base etnográfica’, retrucava o candidato, de gravata e rabo-de-cavalo.
‘New archaeology’
Por obra de Rivet e Duarte vieram pesquisar no Brasil dois jovens franceses,
Joseph Emperaire e Annette Laming-Emperaire. Paulo Duarte também foi
responsável pela iniciação em arqueologia de duas professoras secundárias do
interior paulista, Niède Guidon e Luciana Pallestrini (diretora do IPH quando
saíram Neves e Caldarelli). Mais à frente, Guidon e André Prous trabalhariam
sob a orientação de ‘madame’ Emperaire, autora da escavação que descobriu
em 1975 os ossos de Luzia em Lagoa Santa (MG).
O padrão atual dos povoamentos teria sido a norma desde sempre: pequenos
grupos, alguns seminômades, dependentes de agricultura rudimentar baseada
na mandioca, assim como da caça e da pesca escassas. A exceção seriam as
várzeas, em que os sedimentos provenientes dos Andes fertilizam a faixa
alagável de rios barrentos. Nessas regiões teriam vicejado umas poucas
culturas mais complexas, como as produtoras das cerâmicas Marajoara e
Santarém, mas ainda assim de forma instável e por incursões de povos de fora
da Amazônia, provenientes do Caribe ou dos Andes.
O rio da dúvida
Mas quem furou o cerco foi outra americana, com um sobrenome ilustre:
Anna Curtenius Roosevelt, bisneta de Theodore Roosevelt, que, em 1914,
depois de ter sido presidente dos Estados Unidos, se aventurara pelas selvas
de Mato Grosso com o coronel Cândido Rondon, para mapear o rio da
Dúvida. Eram muitas as pistas de que a ocupação da Amazônia pré-
colonização não ocorrera exatamente segundo o figurino empobrecido de
Betty Meggers. Havia relatos de cronistas do século 16, como Gaspar de
Carvajal, que acompanhara o espanhol Francisco de Orellana numa expedição
em busca do Eldorado e falava de cidades nas margens amazônicas e de
hordas de guerreiras (as ‘amazonas’ que emprestariam mais tarde o nome ao
rio). A elaboração das cerâmicas sugeriam sociedades capazes de comportar
tal especialização, muito mais complexas e hierarquizadas do que grupos
esparsos no Falso Paraíso.
Roosevelt sofreu seus reveses, porém. Segundo Goes Neves, ela baseou suas
escavações na ilha de Marajó sobre a premissa de que os vários tesos eram
contemporâneos e construídos por uma sociedade de milhares de pessoas,
organizada como um cacicado e provavelmente sustentada pela agricultura do
milho. Em uma apreciação da arqueologia amazônica escrita para uma
coletânea recente (‘Archaeology in Latin America’, de Gustavo Politis e
Benjamin Alberti, 1999), Goes Neves afirma que ‘o relatório preliminar do
trabalho no Teso dos Bichos não traz prova conclusiva do cultivo intenso de
milho, ou mesmo de que o milho fosse um gênero alimentício importante em
Marajó durante o período da Fase Marajoara’.
Melhorar as amostras
Guidon, por exemplo, acusa seus adversários de falar muito e fazer pouco: ‘O
que eu acho é que não temos ainda informações suficientes para dizer que foi
assim ou não foi assim. Nós temos de ter a cabeça aberta para pesar tudo que
tem. O que está faltando é mais trabalho de campo. A arqueologia americana
perde muito tempo com discussões e trabalha pouco no campo’. Seu desafeto
André Prous conclui seu artigo na ‘Revista da USP’ com outra exortação:
‘Quem quiser trabalhar o problema das origens do homem nas Américas
deverá procurar novos locais que ofereçam condições melhores para a
interpretação, ou descobrir novos métodos para resolver as dúvidas surgidas
nos ‘velhos’ sítios. São frustrantes o tempo e os esforços despendidos para
tentar obter, nas mesmas condições, resultados sempre duvidosos. A ênfase
deve ser na melhoria qualitativa e não na multiplicação quantitativa das
pesquisas’.
Sobre a questão amazônica, Eduardo Goes Neves fecha seu texto no volume
de 1999 dizendo que ‘o valor heurístico da dicotomia várzea/terra firme
precisa ser testada com trabalho arqueológico adicional em áreas de terra
firme, considerando os dados etnográficos que indicam que algumas
sociedades de várzea subexploram consistentemente os recursos de seus
hábitats’. Walter Neves, em seu concurso de livre docência na USP, afirmou
que as hipóteses sobre povoamento das Américas estão baseadas em um
número muito pequeno de esqueletos. ‘Precisamos melhorar nossa amostra.
Vou voltar a ser arqueólogo’, avisou.
Mãos à obra, então. O Brasil não pode esperar outros 500 anos para saber o
que acontecia por aqui antes de encontrar-se com o colonizador europeu."
***
"Arqueóloga é a alma do parque", copyright Folha de S.Paulo, 19/3/00
"Sem Niède Guidon e sua disposição para a guerra, apesar dos 67 anos e dos
dois pinos nos joelhos roídos pelo sobe-e-desce de barrancos, não haveria o
Parque Nacional da Serra da Capivara, a 30 km de São Raimundo Nonato
(sudeste do Piauí). Também não existiria a Fundação Museu do Homem
Americano (Fumdham), maior empregador e contribuinte da cidade. Nem o
Hotel Serra da Capivara, o melhor da região, escolas rurais, estradas
transitáveis, oficinas de cerâmica, projetos de apicultura...