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Intrigas na arqueologia brasileira

Luciana Christante de Mello (*)

A matéria publicada no caderno Mais! da Folha de S. Paulo em 19 de março


[leia em Aspas, abaixo] bem que poderia se transformar em instigante roteiro
para o cinema. Assinada pelo editor de Ciência, Marcelo Leite, a história é
repleta de polêmicas, desafetos, dúvidas e achados controversos sobre a
chegada do homem às Américas. Há personagens e fatos interessantes: uma
pesquisadora arrojada e empreendedora, disposta a lutar até o fim por suas
convicções, uma dupla de adversários céticos, uma disputa judicial e uma
bisneta do ex-presidente americano Theodore Roosevelt, o qual, após ter
cumprido o mandato, se aventurou pelas selvas brasileiras ao lado do nosso
marechal Cândido Rondon.

Em meio a tantas bajulações em torno dos 500 anos do Brasil (descoberto,


invadido ou o que for), essa história me parece bem mais interessante porque
remonta a um passado bem mais longínquo, escondido nas irregularidades da
pedra e desgastado pelo efeito do tempo; porque coloca interrogações no
calendário arqueológico sobre o povoamento da América e sugere a existência
de uma grande civilização amazônica anterior à chegada das caravelas ao
litoral baiano.

O grande mérito da reportagem foi ter exposto que a ciência também tem suas
intrigas, que muitas vezes (mas muitas mesmo) extrapolam a esfera
profissional e se transformam em inimizades pessoais. É importante que se
saiba isso. Por ser humano, o mundo científico está cheio de rivalidades, como
qualquer outro mundo, dos executivos, dos políticos e dos jornalistas, para
citar alguns exemplos. Parece que Marcelo Leite quis deixar bem evidente
esse contorno social em torno do fato científico, mas se equivocou ao sugerir
que esses entraves poderiam estar impedindo o avanço do conhecimento. Na
verdade, as grandes polêmicas são as verdadeiras alavancas da ciência. As
soluções para discussões deste calibre só podem surgir com novas pesquisas,
novos fatos e evidências, não com acordos pessoais.

Precisamos dos dois

Há que se dizer ainda que quando a atividade científica é delimitada por um


espaço geográfico, a rivalidade pode se tornar mais intensa. O ser humano é
uma espécie territorial, e o conhecimento confere poder. Do mesmo modo que
um bioquímico não vai admitir a entrada de um rival em seu laboratório, um
arqueólogo não permitirá a invasão de seu território, e um antropólogo não
admitirá um semelhante observando a "sua" tribo. O curso da história pode
mudar à medida que as pessoas forem substituídas, depois que outras
linhagens de cientistas assumirem o posto; isso demora algumas décadas,
como quase tudo no mundo científico.

A descrição que Marcelo Leite faz da arqueóloga Niède Guidon exige de mim
um outro comentário. Há diversos tipos de cientistas, cada qual com um tipo
de talento. Segundo o que foi contado, Niède se enquadra perfeitamente
naquele perfil que chamo de cientista-empreendedor. São pessoas que
apresentam grande talento para levantar coisas, criar grandes centros de
pesquisa, organizar congressos, agregar pessoas competentes, presidir
sociedades, dirigir institutos, chefiar departamento etc.

Esses talentos não estão presentes em qualquer cientista. Muitos deles não se
sentem hábeis para se meterem nesses assuntos, preferindo permanecer
debruçados sobre suas pesquisas, orientando de perto seus pós-graduandos,
publicando seus artigos. Em geral, o cientista-empreendedor, para se manter
produtivo do ponto de vista acadêmico, acaba se cercando de orientandos mais
independentes, capazes de crescer com uma supervisão mais esporádica de
seu orientador, que está sempre muito ocupado com seus diversos
compromissos; se esse cientista não souber escolher bem sua equipe de
trabalho, acabará tendo produção acadêmica medíocre. O outro tipo de
cientista, o que se dedica mais integralmente à pesquisa, mergulha com mais
profundidade no assunto que domina, está mais perto de seus orientandos e se
torna mais crítico e mais exigente em relação aos resultados da pesquisa
própria e da alheia.

Precisamos dos dois tipos de cientistas: essas diferenças na condução da


atividade científica são saudáveis, embora nem sempre sejam pacíficas. No
caso da arqueologia brasileira, no que se refere especificamente a essa
polêmica, o clima não é ameno, os territórios são bem marcados e o fogo é
cruzado, o que rende uma bela história.

(*) Farmacêutica, aluna do curso de Jornalismo Científico da Unicamp

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05042000.htm

ASPAS
Marcelo Leite
"A falha arqueológica do Brasil", copyright Folha de S.Paulo, 19/3/00

"A voz de Niède Guidon soa divertida, ainda que cansada, quando fala de seus
desafetos nos feudos da arqueologia brasileira. Estava certa a agente de
turismo Rosa Trakalo ao dizer que a melhor hora para entrevistar a ‘doutora’
seria de carona com ela em suas andanças por São Raimundo Nonato, no
sudeste do Piauí. Guidon, 67, dirigindo uma picape Nissan Frontier cabine
dupla, conta com tração nas quatro rodas para enfrentar qualquer atoleiro da
caatinga verde de inverno (estação de chuvas), e não tem travas na língua.

Ar condicionado ligado, garrafa de água mineral Perrier acondicionada entre o


banco e o freio de mão, a arqueóloga dispara tranquila seus ataques a
adversários como André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais,
contra o qual move processo por danos materiais: ‘Eu só fiz isso porque assim
ele gasta dinheiro com advogado, para aprender a falar besteira’.

O recurso à Justiça em meio a uma disputa científica -as polêmicas datações


do sítio piauiense Boqueirão da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da
Capivara-pode parecer drástico, mas é sintomático. Autoritarismo é uma
qualificação corriqueira, quando se trata de caracterizar esse campo
acadêmico, que só vingou depois da Segunda Guerra. Um setor de pesquisa
aparentemente sem estatura para enfrentar duas das questões mais importantes
da arqueologia mundial, suscitadas pela pré-história americana: quando,
afinal, o homem chegou ao Novo Mundo; e qual o grau de densidade
populacional e de complexidade cultural na Amazônia antes da colonização.

Para o bioarqueólogo Walter Neves, 42, da USP, o caso Guidon versus Prous
representa ‘a ponta do iceberg de uma comunidade de arqueólogos que é
autoritária’. Ele descarta uma interpretação corrente, que atribui esse traço a
duas décadas de governos militares, preferindo apontar raízes endógenas para
as arbitrariedades -’despreparo e mediocridade’.

De bermuda e camiseta, cabelos compridos, a figura de Neves contrasta na


cantina do Instituto de Biociências da USP com a do historiador e arqueólogo
André Prous, 55, em suas calças e camisa sociais. De comum têm a barba
grisalha e um paciente trabalho sobre ossos humanos escavados do sítio de
Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, MG, provavelmente os mais antigos das
Américas. No momento, dividem ainda a curadoria de duas exposições
arqueológicas que serão montadas no Parque Ibirapuera, em São Paulo, a
propósito dos 500 anos de colonização do Brasil. Prous se nega a dar
declarações sobre o processo.

A ação foi desencadeada por um artigo seu sobre o povoamento da América


na ‘Revista da USP’ de agosto de 1997, como parte de um dossiê por Walter
Neves e Marta Mirazón Lahr, hoje na Universidade de Cambridge (Reino
Unido). Segundo Neves, Niède Guidon foi convidada a escrever no mesmo
número e declinou. Em seu texto, Prous alinhavava certezas e dúvidas sobre
vários sítios arqueológicos sul-americanos candidatos a derrubar a chamada
barreira de Clóvis (11.200 anos, idade dos restos encontrados nesse sítio do
Novo México, na década de 30). De um modo geral, a grande discussão sobre
a ocupação das Américas consiste em estabelecer se a espécie humana se
espalhou pelo continente na época atual, o Holoceno (de 10 mil anos para cá),
camada geológica superficial de que foi retirada a maioria desses restos
arqueológicos, ou se a ocupação adentra as profundezas do Pleistoceno, a
Idade do Gelo (10 mil a 1,6 milhão de anos atrás).

Preguiça gigante

O Museu do Homem Americano de São Raimundo Nonato é uma das obras


surpreendentes plantadas por Niède Guidon na caatinga piauiense. A poucas
centenas de metros da entrada da cidade, na estrada que vem de Petrolina (PE)
e Remanso (BA), o prédio moderno e deserto está pintado em tom pastel de
terra adequado ao terreno e à paisagem, assim como a sede da Fundação
Museu do Homem Americano (Fumdham, no centro) e as instalações
impecáveis do Parque Nacional da Serra da Capivara, a 30 km, patrimônio
cultural da humanidade desde 1991. O museu foi inaugurado em 1998 e
ganhou em novembro passado o Centro Cultural Sérgio Motta, durante visita
do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Na exposição, painéis afirmam que a entrada nas Américas teria ocorrido há


70 mil ou 80 mil anos, pois estaria estabelecida a presença humana no sítio da
Pedra Furada há 60 mil anos, quando a região era coberta por floresta tropical
úmida e por ela circulavam mamutes, tigres de dente-de-sabre e preguiças
gigantes. Além disso, não necessariamente teria sido utilizada apenas a
Beríngia, passagem então aberta no que hoje é o estreito de Bering, entre os
extremos da Ásia e da América. ‘Considero que (a América) é um continente
muito grande, que vai de pólo Sul a pólo Norte, e que não se pode imaginar
que foi povoado única e exclusivamente por um caminho’, afirma a
arqueóloga. ‘Eu acho que nós vamos um dia poder evidenciar claramente que
o povoamento americano se deu por vários caminhos e a várias épocas.’ O que
Niède Guidon sustenta é que o homem pode ter chegado primeiro à América
do Sul, por mais de uma via marítima, e daí se espalhado -inclusive para o
Norte, uma idéia científica e geopoliticamente perturbadora, tanto quanto a da
Amazônia como um centro de civilização.

Precipitação e premonição

O artigo de Prous resenha as objeções de praxe às datações obtidas no sítio


Boqueirão da Pedra Furada: tanto os artefatos de rocha lascada quanto os
carvões encontrados, que Guidon considera obra de humanos, podem ser
resultado de processos naturais. Por muitos toscos, é possível que os
‘instrumentos’ nada mais sejam que o produto da queda e esfacelamento de
blocos. Igualmente as ‘fogueiras’ -nada provaria que seus carvões não tenham
sido produzidos por incêndios florestais. Tais ambiguidades minam a
credibilidade da interpretação oferecida por Guidon, acredita Prous, que
também critica ‘afirmações precipitadas e nunca verificadas’ e ‘as tentativas
sistemáticas de apresentar Pedra Furada como o lugar onde qualquer tipo de
vestígio é mais antigo’. Para o arqueólogo francês radicado em Minas,
‘mesmo achados que mereceriam melhor crédito e um exame criterioso
acabam sendo colocados ‘a priori’ sob suspeita’. Seu texto continha, ainda,
uma espécie de premonição: ‘No Brasil, particularmente, onde cada
arqueólogo costuma ser ‘dono’ de um território de pesquisa e onde não existe
uma tradição de debate aberto e crítica mútua e pública, os pesquisadores
costumam apresentar sobretudo relatórios incompletos, fazendo afirmações
que não são sustentadas pela documentação e nem podem ser verificadas.

Mesmo as propostas que parecem absurdas à comunidade científica


geralmente não são respondidas nas revistas ou nos congressos científicos,
fazendo com que os pré-historiadores estrangeiros acreditem que todos os
brasileiros endossam sem restrições as teses mais discutíveis’. Numa tentativa
de ganhar o reconhecimento estrangeiro, em dezembro de 1993, Niède Guidon
colheu resultados amargos. Entre dúzias de arqueólogos levados a São
Raimundo Nonato para um seminário sobre Pedra Furada estavam os norte-
americanos David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay, alguns dos mais
destacados questionadores do paradigma de Clóvis, por seu envolvimento nas
escavações de sítios aceitos como mais antigos, Monte Verde, no Chile, e
Meadowcroft, nos Estados Unidos (veja mapa na pág. 8). Mesmo
considerando o encontro um marco da arqueologia americana -’estimulante,
intenso, iluminador e por vezes inteiramente desconfortável’, escreveu
Meltzer em 24 de junho de 1995 na revista de divulgação ‘New Scientist’-, de
volta ao Norte os três redigiram um ‘paper’ desalentador para a publicação
técnica ‘Antiquity’ (edição de dezembro de 1994). Eles não aceitavam a
análise morfológica e estatística de 595 artefatos líticos (de pedra) efetuada
por Fabio Parenti, um italiano que dedicara a Pedra Furada seu doutorado pela
Universidade de Paris-1, sob orientação de Guidon.

Motivos pessoais e utilitários

Na direção da picape Nissan, a arqueóloga passa pela entrada da gruta


calcárea da Toca do Garrincho, onde afirma ter encontrado dentes humanos de
15 mil anos (4.000 a mais que a Luzia de Prous e Neves), e comenta com
desdém o juízo dos colegas estrangeiros. ‘Não temos nada a aprender com os
americanos’, diz. ‘Eu tenho uma formação de primeira classe e não são os
meus colegas americanos que vão poder me dar lição.’ Afirma que só no
Brasil se endeusa toda e qualquer universidade dos Estados Unidos e insinua
que seus críticos têm motivação utilitarista: ‘Eu vi o próprio Dillehay
apresentando num congresso a data de 33 mil anos (para o sítio de Monte
Verde), mas ele mesmo disse depois que preferia não falar mais, porque levou
muita porrada na cabeça e ficou com medo de ficar sem dinheiro’.
Quanto a André Prous, Guidon diz acreditar que a motivação é de ordem
pessoal, pois ela, uma brasileira, o teria superado em seu próprio país
(França), ao obter o posto oficial de pesquisadora que ele nunca ocupou. Daí o
questionamento na Justiça, e não pela via normal das revistas e dos
congressos. O efeito colateral, no entanto, parece ser o de desestimular o
debate científico, como deixou claro Walter Neves em arguição pública de
concurso para livre docência na USP, em 7 de janeiro, quando o examinador
João Stenghel Morgante o questionou sobre datações mais antigas que a de
Luzia, vale dizer, sobre as discutíveis datas obtidas por Guidon em Pedra
Furada: ‘Não sou um homem rico, por isso tenho sido extremamente
cauteloso’.

A cautela de Walter Neves é mais retórica que prática. Ele repete para quem
quiser ouvir que as datas de São Raimundo Nonato e a hipótese de migrações
marítimas não passam de ‘pirotecnias’ arqueológicas. Com sua reputação de
gosto pela polêmica, dias antes do concurso de livre docência na USP
comentava-se nos corredores do Instituto de Biociências que ‘correria sangue’
na arguição, desta vez entre ele e geneticistas de populações humanas. Dois
renomados professores de universidades federais compunham a banca,
Francisco Salzano (RS) e Sérgio Danilo Pena (MG), cujos estudos de
comparação estrutural de DNA (a molécula-código dos genes) de populações
atuais indicam que o ‘Adão americano’ migrou da Ásia (Sibéria Central) para
a América, numa única leva. O trabalho mais famoso de Neves, uma análise
morfológica do crânio de Luzia, aponta conclusões divergentes: pelo menos
uma entrada mais antiga no continente, anterior ao limite de Clóvis (12 mil
anos), realizada por grupos aparentados com africanos e australianos, não com
asiáticos. O debate entre ele e Pena teve momentos de genuína picuinha, como
a grafia do nome deste numa referência daquele e a pronúncia do nome do
filósofo da ciência Karl Popper (tanto Pena quanto Neves estavam errados),
mas se manteve dentro dos limites do aceitável, em matéria de malícia e
maledicência acadêmicas. ‘No ano 2000, ainda se fala de fósseis versus
moléculas’, lamentava o arguidor. ‘É típico de geneticistas fazer afirmações
sem base etnográfica’, retrucava o candidato, de gravata e rabo-de-cavalo.

‘New archaeology’

Neves não economizou críticas aos arqueólogos, tampouco. Esse campo de


pesquisa, diagnostica, tem quatro décadas de atraso no Brasil. A maior parte
do trabalho desenvolvido ainda segue a escola descritiva européia, que
começou a ser questionada nos anos 60 pela ‘new archaeology’ norte-
americana, depois conhecida como arqueologia processual -aquela que se
preocupa em reconstituir dedutivamente, a partir dos sítios, processos sociais
globais dos grupos que o ocuparam, e não apenas colecionar e classificar
fragmentos. Segundo o bioarqueólogo, o pior ano da reação contra essa nova
arqueologia se deu em 1985, quando foram escorraçados de suas instituições
quatro pesquisadores que ensaiavam os métodos modernizados: o próprio
Neves e Solange Caldarelli, do Instituto de Pré-História da USP, Tania
Andrade Lima, do Museu Nacional, e Irmhild Wüst, da PUC de Goiás.

O pesquisador da USP rende homenagens em um de seus artigos sobre Luzia


ao francês Paul Rivet, que reinou sobre o Museu do Homem de Paris e foi um
dos primeiros a especular sobre semelhanças físicas entre o ‘homem de Lagoa
Santa’ e aborígenes australianos. Rivet era o modelo de Paulo Duarte, tido
como um dos pais da arqueologia brasileira (ao menos na USP) e ponto de
divergência de uma rede que até hoje marca essa área.

Depois de trabalhar com o antropólogo francês em Paris, Duarte recebeu de


Rivet subvenção de 1 milhão de francos para criar no Brasil um laboratório de
pesquisa sobre o homem americano. Em 1952 surgia a Comissão de Pré-
História de São Paulo, presidida por Duarte, que daria origem a um importante
trabalho de identificação e preservação de sambaquis (sítios com conchas e
ossos) que culminaria na primeira legislação federal específica para proteção
do patrimônio arqueológico, a lei 3.924, de 1961. Antes disso, em 1959,
fundara e dirigira o Instituto de Pré-História (IPH).

Por obra de Rivet e Duarte vieram pesquisar no Brasil dois jovens franceses,
Joseph Emperaire e Annette Laming-Emperaire. Paulo Duarte também foi
responsável pela iniciação em arqueologia de duas professoras secundárias do
interior paulista, Niède Guidon e Luciana Pallestrini (diretora do IPH quando
saíram Neves e Caldarelli). Mais à frente, Guidon e André Prous trabalhariam
sob a orientação de ‘madame’ Emperaire, autora da escavação que descobriu
em 1975 os ossos de Luzia em Lagoa Santa (MG).

A arqueóloga francesa morreu em 1977, envenenada por gás num hotel de


Curitiba, quando se dirigia do Uruguai para novos trabalhos de campo em
Minas. Duarte terminou cassado por motivos políticos, em 1969, fato que
levaria Sérgio Buarque de Holanda a pedir sua aposentadoria, em
solidariedade.

O historiador e arqueólogo Pedro Paulo Abreu Funari, 40, correlaciona a


decadência da ‘arqueologia humanista’ de Paulo Duarte com a ascensão de
um outro casal estrangeiro na arqueologia brasileira, desta vez de norte-
americanos: Betty Meggers e Clifford Evans, que já haviam escavado na foz
do Amazonas na década de 40. Coincidência ou não, eles aportaram de volta
ao país em abril de 1964 e, em seis meses, tinham travado contato com muitas
autoridades de Brasília, o suficiente para render-lhes a fama de trabalhar para
a CIA, famigerada agência de informações dos Estados Unidos. O fato é que
foram incumbidos de montar um plano para cinco anos (1965-1970), logo
batizado de Pronapa (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas). Nascia
a confraria dos pronapistas, cujos membros se tratavam por ‘irmãos’ e viriam
a dominar a arqueologia brasileira por décadas, por meio do CNPq, mãe de
todas as verbas.

‘Arqueologia é ocupação de espaço, reconhecimento de território,


geoestratégia, conhecer o território onde pode haver guerrilha’, interpreta
Pedro Paulo Funari. Mas o historiador não exclui a hipótese de que Meggers e
Evans tenham apenas se aproveitado da imagem confiável, aos olhos de um
governo militar, de neutros pesquisadores americanos para tomar posse de um
gigantesco feudo ao sul do Equador. Como lembra o próprio Funari, Meggers
se dava muito bem com intelectuais de esquerda, como o antropólogo Darcy
Ribeiro. O reinado de Betty Meggers abrangeu sobretudo a Amazônia.
Terminado o Pronapa, veio o Pronapaba (Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas da Bacia Amazônica), que teve no ex-militar Mário Ferreira
Simões um fiel continuador do determinismo ambiental de Meggers, no
Museu Paraense Emílio Goeldi.

A americana, até hoje ativa e influente no Instituto Smithsonian, de


Washington, marcou toda uma geração de especialistas em floresta amazônica
-não só arqueólogos- com um livro clássico de 1971, ‘Amazonia: Man and
Culture in a Counterfeit Paradise’ (Amazônia: homem e cultura em um falso
paraíso). Os escritos de Meggers fazem muitas referências às péssimas
condições para trabalho de campo na floresta -calor, umidade, insetos. Há
quem acredite que essa experiência negativa conformou sua visão da
Amazônia como um ambiente inóspito para o homem. Por essa concepção
pessimista, a floresta acomodada sobre solos pobres não teria como dar
sustentação a populações maiores, com agricultura desenvolvida.

O padrão atual dos povoamentos teria sido a norma desde sempre: pequenos
grupos, alguns seminômades, dependentes de agricultura rudimentar baseada
na mandioca, assim como da caça e da pesca escassas. A exceção seriam as
várzeas, em que os sedimentos provenientes dos Andes fertilizam a faixa
alagável de rios barrentos. Nessas regiões teriam vicejado umas poucas
culturas mais complexas, como as produtoras das cerâmicas Marajoara e
Santarém, mas ainda assim de forma instável e por incursões de povos de fora
da Amazônia, provenientes do Caribe ou dos Andes.

O rio da dúvida

Segundo Eduardo Goes Neves, 33, do Museu de Arqueologia e Etnografia


(MAE-USP), o controle do acesso aos sítios era exercido por Mário Simões,
até sua morte em 1985, por intermédio do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan), de cuja autorização depende legalmente cada
arqueólogo, para poder iniciar suas escavações. Um dos primeiros a sofrer
restrições, por não rezar pelo credo pronapista, foi José Proenza Brochado
(aliás desligado da PUC do Rio Grande do Sul, em 1999, medida que outros
arqueólogos interpretaram como politicamente motivada).

Mas quem furou o cerco foi outra americana, com um sobrenome ilustre:
Anna Curtenius Roosevelt, bisneta de Theodore Roosevelt, que, em 1914,
depois de ter sido presidente dos Estados Unidos, se aventurara pelas selvas
de Mato Grosso com o coronel Cândido Rondon, para mapear o rio da
Dúvida. Eram muitas as pistas de que a ocupação da Amazônia pré-
colonização não ocorrera exatamente segundo o figurino empobrecido de
Betty Meggers. Havia relatos de cronistas do século 16, como Gaspar de
Carvajal, que acompanhara o espanhol Francisco de Orellana numa expedição
em busca do Eldorado e falava de cidades nas margens amazônicas e de
hordas de guerreiras (as ‘amazonas’ que emprestariam mais tarde o nome ao
rio). A elaboração das cerâmicas sugeriam sociedades capazes de comportar
tal especialização, muito mais complexas e hierarquizadas do que grupos
esparsos no Falso Paraíso.

A própria Anna Roosevelt, em escavações anteriores na região venezuelana


do Orinoco, havia topado em Parmana com indícios de agricultura de milho,
cujo teor nutritivo é mais compatível com o sustento de grandes agrupamentos
humanos. Havia, ainda, os grandes aterramentos (‘tesos’) da ilha de Marajó,
encontrados às dúzias. E as famosas terras-pretas, manchas de solo fértil em
plena terra firme (ou seja, longe de várzeas), resultantes da acumulação de
dejetos durante longas fases de ocupação humana, um alvo preferencial de
escavações arqueológicas. As densidades dos agrupamentos indígenas pós-
colonização não foram mais capazes de dar origem a jazidas de terras-pretas,
o que faz supor populações muito mais densas nos séculos precedentes.

Segundo Goes Neves, do MAE-USP, o geógrafo norte-americano William


Denevan, da Universidade da Califórnia em Berkeley, chegou a calcular em
até 5,6 milhões de pessoas a população teoricamente possível da Amazônia.
Aos poucos, o paradigma sobre a ocupação da Amazônia parece pender para o
lado de Anna Roosevelt. Seu maior trunfo até o presente são datações de
fragmentos cerâmicos dos sítios de Taperinha e Pedra Pintada, no Pará, que
estavam dormindo nas gavetas de instituições norte-americanas como o
Smithsonian, pois não combinavam com os dogmas do determinismo
ambiental. Alguns haviam sido escavados pelo geólogo Charles Frederic Hartt
-em 1885.

Por meio do método de termoluminescência, Roosevelt estabeleceu que


alguns daqueles cacos tinham mais de 7.000 anos, a mais antiga cerâmica já
encontrada nas Américas, constatação irreconciliável com a noção de que as
sociedades que as produziram eram incursões provisórias e instáveis de outras
partes, mais ‘desenvolvidas’. ‘As teses de Meggers são mais adequadas para o
discurso de preservação da Amazônia do que as de Anna Roosevelt e as
nossas’, afirma Goes Neves, aduzindo mais um argumento contra o
alinhamento de Betty Meggers aos governos militares, período em que foram
plantadas as bases da devastação da floresta nos anos 80. ‘Amazonino
(Mendes) e (Gilberto) Mestrinho podem ler e dizer que já foi (intensamente)
ocupada no passado.’ O pesquisador narra já ter atraído a ira de antropólogos
por ter apurado, com métodos arqueológicos, que um grupo indígena ocupara
tradicionalmente área menor do que a que lhe estava sendo atribuída para
efeitos de demarcação de terras.

Sem milho em Marajó

Roosevelt sofreu seus reveses, porém. Segundo Goes Neves, ela baseou suas
escavações na ilha de Marajó sobre a premissa de que os vários tesos eram
contemporâneos e construídos por uma sociedade de milhares de pessoas,
organizada como um cacicado e provavelmente sustentada pela agricultura do
milho. Em uma apreciação da arqueologia amazônica escrita para uma
coletânea recente (‘Archaeology in Latin America’, de Gustavo Politis e
Benjamin Alberti, 1999), Goes Neves afirma que ‘o relatório preliminar do
trabalho no Teso dos Bichos não traz prova conclusiva do cultivo intenso de
milho, ou mesmo de que o milho fosse um gênero alimentício importante em
Marajó durante o período da Fase Marajoara’.

Assim como a arqueóloga Roosevelt já se deu mal em uma de suas batalhas,


apesar de no atacado estar vencendo o conflito de paradigmas com Betty
Meggers, seria também equivocado concluir que ela está do lado do Bem e
que usa somente recursos e métodos civilizados.

Nessa espécie de guerra santa, Roosevelt já demonstrou disposição de


defender com garras e dentes seu território acadêmico, como sentiu na pele
este repórter quando estagiava na revista alemã de divulgação científica ‘Bild
der Wissenschaft’. Após sucessivas entrevistas com Meggers e sua adversária,
em que uma era solicitada a responder às objeções da outra, Roosevelt deu por
interrompida a colaboração com a investigação e enviou carta ao diretor da
revista denunciando o que considerava incompetência, viés e desinformação
do jornalista. A reportagem foi publicada em novembro de 1989, sem novas
contestações da arqueóloga.

Nada se conhece de comparável, entre os métodos de Roosevelt, a outra


denúncia feita por ela em 1995 e citada por Goes Neves no volume de 1999.
Ela revelou que Mário Simões, o colaborador de Meggers, havia obtido datas
de até 5.500 anos para cerâmicas encontradas em sambaquis próximos da foz
do Amazonas, da chamada Fase Mina. Publicadas apenas em português, essas
datações realizadas nos laboratórios da Smithsonian teriam sido descartadas
por Simões e Meggers porque não combinavam com sua perspectiva
conceitual.
A crônica de arbitrariedades, golpes baixos e fofocas da arqueologia brasileira
é rica, com várias camadas de compadrio, paroquialismo e truculência.
Denunciar e pedir a punição de peixes menores em busca de águas próprias
parece ser procedimento comum. O próprio Eduardo Goes Neves, que em
janeiro de 1995 assinou com Walter Neves (nenhum parentesco) carta à Folha
elogiando reportagem de Ricardo Bonalume Neto sobre críticas aos achados
do sítio Boqueirão da Pedra Furada, viu o diretor de sua instituição -o Museu
de Arqueologia e Etnografia da USP- receber fax ‘agressivo’ de Niède
Guidon, que também havia enviado fax diretamente para Walter Neves, do
Instituto de Biociências da USP, notificando-o de sua intenção de ‘entrar na
Justiça com uma ação por difamação’. Por mais que essas disputas
-evidentemente menores- mereçam ficar de fora das exposições sobre os 500
anos do Brasil, o fato é que elas emperram o avanço da investigação sobre
duas questões científicas importantes, ambas relevantes para a identidade
nacional. Curioso é que a maioria dos envolvidos parece concordar no
diagnóstico de que as questões só serão solucionadas com mais e melhor
trabalho de campo.

Melhorar as amostras

Guidon, por exemplo, acusa seus adversários de falar muito e fazer pouco: ‘O
que eu acho é que não temos ainda informações suficientes para dizer que foi
assim ou não foi assim. Nós temos de ter a cabeça aberta para pesar tudo que
tem. O que está faltando é mais trabalho de campo. A arqueologia americana
perde muito tempo com discussões e trabalha pouco no campo’. Seu desafeto
André Prous conclui seu artigo na ‘Revista da USP’ com outra exortação:
‘Quem quiser trabalhar o problema das origens do homem nas Américas
deverá procurar novos locais que ofereçam condições melhores para a
interpretação, ou descobrir novos métodos para resolver as dúvidas surgidas
nos ‘velhos’ sítios. São frustrantes o tempo e os esforços despendidos para
tentar obter, nas mesmas condições, resultados sempre duvidosos. A ênfase
deve ser na melhoria qualitativa e não na multiplicação quantitativa das
pesquisas’.

Sobre a questão amazônica, Eduardo Goes Neves fecha seu texto no volume
de 1999 dizendo que ‘o valor heurístico da dicotomia várzea/terra firme
precisa ser testada com trabalho arqueológico adicional em áreas de terra
firme, considerando os dados etnográficos que indicam que algumas
sociedades de várzea subexploram consistentemente os recursos de seus
hábitats’. Walter Neves, em seu concurso de livre docência na USP, afirmou
que as hipóteses sobre povoamento das Américas estão baseadas em um
número muito pequeno de esqueletos. ‘Precisamos melhorar nossa amostra.
Vou voltar a ser arqueólogo’, avisou.
Mãos à obra, então. O Brasil não pode esperar outros 500 anos para saber o
que acontecia por aqui antes de encontrar-se com o colonizador europeu."

***
"Arqueóloga é a alma do parque", copyright Folha de S.Paulo, 19/3/00

"Sem Niède Guidon e sua disposição para a guerra, apesar dos 67 anos e dos
dois pinos nos joelhos roídos pelo sobe-e-desce de barrancos, não haveria o
Parque Nacional da Serra da Capivara, a 30 km de São Raimundo Nonato
(sudeste do Piauí). Também não existiria a Fundação Museu do Homem
Americano (Fumdham), maior empregador e contribuinte da cidade. Nem o
Hotel Serra da Capivara, o melhor da região, escolas rurais, estradas
transitáveis, oficinas de cerâmica, projetos de apicultura...

Apesar de arqueóloga, Guidon não está escavando no presente nenhum dos


420 sítios identificados na área do parque e ao seu redor. Quem visita a região
só encontrará vestígios de trabalho arqueológico no abrigo de rocha conhecido
como Toca do Coqueiro, cujo assoalho escavado em 1998-99 está coberto por
plástico preto e madeiras. Dali saiu o esqueleto feminino batizado de ‘Zuzu’,
que aos 11 mil anos estimados rivaliza com a Luzia de Lagoa Santa (MG).

Toda a energia de Guidon e seu séquito de pesquisadoras e auxiliares, após


três décadas de Piauí, parece estar voltada para a preservação do parque, sob
constante ameaça de caçadores e exploradores de calcáreo. O que mais
preocupa é a escassez de tamanduás, predador natural dos cupins que
constroem galerias sobre as paredes de pedra, muitas vezes sobre as pinturas
rupestres que Guidon acredita serem mais antigas que as das famosas grutas
européias de Lascaux e Altamira.

Para repovoar o parque com a fauna local, a Fumdham comprou a fazenda


‘dos Oitenta’ (nome que ninguém sabe explicar), contígua ao parque, para
criar animais silvestres (tamanduás, tatus, emas e caititus), projeto de R$ 1,5
milhão obtidos por meio de empréstimo. Um lote de 50-60 emas deveria
chegar à propriedade em fevereiro.
Guidon passa a maior parte dos dias fiscalizando obras. Diz que odeia bode
assado e cerveja, as grandes diversões locais. Seu orgulho maior está na
contenção da erosão que come as encostas do parque, nos poucos períodos de
chuva."

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