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Texto elaborado como subsídio aos debates da I Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, Brasília,
26 a 30 de novembro de 2001.
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Professora Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva – Universidade Federal da Bahia.
Na atualidade as sociedades experimentam, em todo o mundo, profundas e
aceleradas mudanças que apresentam novos desafios para o setor saúde: as necessidades
em saúde se ampliam, em decorrência de um conjunto de interações de processos de
natureza econômica, social, cultural, política e científico-tecnológica, que não têm sido
capazes de atingir repercussões positivas na saúde e na qualidade de vida de amplos
contingentes populacionais. Num contexto de políticas sociais restritivas, devido ao
projeto neoliberal que assola o mundo, desvanece o ideal "Saúde para todos no ano
2000", proclamado pela Organização Mundial de Saúde no final da década de 70, e
emerge uma consciência acerca da crise atual da Saúde Pública, entendida como a
"incapacidade da maioria das sociedades para promover e proteger sua saúde à medida
que as circunstâncias históricas requerem" (OPS, 1992).3
O mundo em que vivemos e trabalhamos parece cada vez mais cheio de riscos e
perigos que representam ameaças à saúde do homem, do meio ambiente e das futuras
gerações (Freitas & Gomez, 1997), dando-se um alargamento cada vez maior do escopo
da proteção da saúde, em face da reconfiguração da ordem econômica mundial: os
novos padrões na produção e circulação de mercadorias não estendem a distribuição dos
benefícios da acumulação das riquezas e do progresso da ciência a todos os países e
grupos sociais, mas ampliam as possibilidades de distribuição internacional de
numerosos riscos difusos à saúde humana e ambiental, envolvendo agentes radiológicos,
químicos e biológicos. Isso ameaça a segurança sanitária de países pobres e ricos, como
vem demonstrando a experiência internacional recente, com o surgimento da "doença da
vaca louca" em Países europeus, a disseminação da AIDS, e os acidentes radioativos de
Goiânia e Chernobil nos anos 80, entre outros.
Por isso mesmo, para que o progresso científico e tecnológico não reduza o cidadão
a súdito, em vez de emancipá-lo, as bases éticas que devem guiar o processo decisório
na vigilância sanitária não podem prescindir da eqüidade, que associada aos temas da
responsabilidade (individual e pública) e da justiça, concorrerá para fazer valer o valor
do direito à saúde. A eqüidade, como disposição para reconhecer igualmente as
diferenças, os direitos e as necessidades diversas dos sujeitos sociais, é o ponto de
partida para alcançar a igualdade, ponto de chegada da justiça social, referencial dos
direitos humanos que constituem as bases para o reconhecimento da cidadania (Garrafa,
2000).
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OPS. La crisis de la salud pública: Reflexiones para el debate. Washington (DC): Organización
Panamericana de la Salud; 1992 (Publicación Científica n.º 540). p. 3.
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No Brasil, ações de vigilância sanitária sempre existiram, mas com pouca
visibilidade para a população, e até mesmo para os profissionais e gestores de saúde que
se acostumaram a perceber essa área identificando-a com atuação policial ou
burocrático-cartorial. A falta de formulação e explicitação de políticas de vigilância
sanitária nas políticas públicas, a pouca atenção governamental à área, entre outros
determinantes relacionados ao baixo estágio de desenvolvimento científico e
tecnológico do País, foram concorrendo para o aprofundamento do fosso que se
estabeleceu entre a estrutura dos serviços de vigilância sanitária e as demandas por suas
ações, seja em nível das necessidades em saúde ou do segmento produtivo (Costa,
1999).
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segunda metade da década de 90 que a crise chegou ao seu limite, impulsionando um
processo de mudanças de longa gestação. A crise se expressou em diversas
demonstrações da incapacidade do mercado garantir, por si mesmo, os interesses
sanitários da coletividade: uma epidemia de falsificação de medicamentos e sua
colocação no mercado, com essas e outras irregularidades (pílula de farinha), tomou
conta da mídia, que deu grande destaque a numerosos eventos. Mortes de pacientes em
hospitais, em clínicas e serviços de hemodiálise somavam-se a outros de grande
importância sanitária da década de 80 (a morte do Presidente Tancredo Neves, por
infecção hospitalar, e a tragédia radioativa de Goiânia), para tornar a mudança
impostergável, pois além da função protetora da saúde, as ações de vigilância são de
grande importância para a organização econômica da sociedade, e sua falta pode criar
problemas que levam a um descrédito na qualidade de produtos, tecnologias e serviços,
afetando a própria credibilidade das instituições públicas que devem zelar por esses
interesses que, na verdade, são de todos, cidadãos, consumidores, profissionais de
saúde, produtores e comerciantes.
A Constituição Federal abriu uma nova página na luta do povo brasileiro pela
afirmação de sua cidadania – ao proclamar a saúde um direito de todos –, e destacou a
importância das ações de proteção da saúde do âmbito da vigilância sanitária e a
necessidade de proteção do consumidor. Reconhecendo a condição de vulnerabilidade
do consumidor no mercado de consumo, o País proclamou seus direitos e adotou um
Código de Defesa do Consumidor. As ações de vigilância sanitária ocuparam quase
todas as atribuições do SUS definidas no art. 200 da Constituição: o controle e a
fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde, e a
participação na produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos; a execução de ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, e as de saúde do trabalhador; a ordenação da formação de recursos
humanos na área de saúde; a participação na formulação da política e na execução das
ações de saneamento básico; o incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento
científico e tecnológico; a fiscalização e inspeção de alimentos, compreendido o
controle de seu teor nutricional, e também das bebidas e águas para consumo humano; a
participação no controle e na fiscalização da produção, do transporte, da guarda e
utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; a colaboração na
proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
O Sistema Único de Saúde desenhado na lei deve ser organizado com serviços e
ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, para compor a integralidade da
atenção. Desde os anos 70 do século passado, as ações de proteção do âmbito da
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Vigilância Sanitária vêm sendo pensadas na concepção de sistema (Costa, 1999). O
Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, que deve ser construído e está em discussão
nesta Conferência, é uma decorrência de a saúde ser competência comum das três
instâncias político-administrativas do Estado 4 , cabendo, assim, à União, aos Estados e
aos Municípios executar ações e prestar serviços destinados a eliminar, diminuir ou
prevenir riscos à saúde – esfera privilegiada de atuação da Vigilância Sanitária – e
também de intervir em problemas sanitários diversificados e abrangentes, decorrentes
do meio ambiente, da produção, circulação, do consumo de bens e da prestação de
serviços relacionados à saúde.
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Constituição Federal, art. 23.
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Na comunidade econômica latino-americana, no começo dos anos 90, eram
assinados acordos para implantar o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), de cujos
desdobramentos advém um rico processo de discussão, negociação e renovação de
normas e padrões, passando-se a adotar amplamente as "boas práticas de fabricação",
devido à necessidade de harmonização normativa para superação das barreiras sanitárias
entre os países-membros do mercado regional. A renovação da regulamentação nessa
área faz parte de um movimento do comércio internacional, cujo cenário passa a contar,
cada vez mais, com novos atores que agem como verdadeiros entes regulamentadores, a
exemplo da Organização Mundial do Comércio, que vai ditando regras e padrões que
muitas vezes comprometem os interesses sanitários nacionais, especialmente dos países
consumidores de tecnologias, como é o Brasil. Esse poder se manifesta nas questões
que emergem da atual Lei de Patentes, imposta aos países, e se expressa nos embates
travados pelo Ministério da Saúde com a questão das patentes de medicamentos
essenciais para o tratamento da AIDS.
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poder de ação ao órgão de vigilância que, ao longo do tempo, experimentou, no plano
federal, permanente instabilidade de seus dirigentes, por interferências político-
partidárias e forte atrelamento às decisões do poder central, sem que isso signifique a
necessidade de reprodução do modelo nos outros níveis de gestão. Como autarquia, a
Anvisa deve pautar sua atuação pelos princípios da Administração Pública (legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), submetendo-se ao chamado
poder de tutela, devendo produzir resultados: fica, portanto, vinculada ao Ministério da
Saúde, com o qual foi firmado um contrato de gestão.
Nos termos da Lei n.º 9.782/99, cabe à União, por intermédio do Ministério da
Saúde, formular, acompanhar e avaliar a Política Nacional de Vigilância Sanitária e as
diretrizes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, postulado que se reafirma no
Contrato de Gestão. Fazer um balanço da política de vigilância sanitária que vem sendo
implementada no País, em especial a partir da criação da Anvisa, e apontar perspectivas,
é o objetivo do texto proposto.
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É possível apreciar aspectos da política mais recente que vem sendo implementada
através de materiais diversos, entre os quais alguns trabalhos acadêmicos, textos de
entidades de defesa dos interesses coletivos ou públicos, como a Sociedade Brasileira de
Vigilância de Medicamentos (Sobravime) e o Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (IDEC), textos jurídicos e normativos da área da saúde e da Vigilância que
incluem a lei que criou a Instituição, os textos da pactuação com os Estados (os
chamados Termos de Ajuste e Metas), documentos técnicos, relatórios de atividades
atinentes ao Contrato de Gestão, atas de reuniões do Conselho Consultivo, boletins
informativos e outros, atualmente de domínio público na própria página eletrônica da
Agência. Os textos e relatórios das Conferências Nacionais de Saúde revelam
preocupações com questões da área, sobretudo no tocante a certos aspectos de
medicamentos, sangue e hemoderivados, e reclamos pelo cumprimento da legislação
sanitária, sendo que as três últimas conferências recomendaram a realização de uma
específica para a área.
Houve uma ampliação das atribuições institucionais, com novas incumbências, cuja
realização irá concorrer para o cumprimento da finalidade institucional: entre outras,
vigilância farmacológica e toxicológica; vigilância sanitária em serviços de saúde;
controle de qualidade de bens e produtos, por meio de programas especiais de
monitoramento da qualidade; monitoramento de preços de medicamentos e produtos
para a saúde, e, ainda, o controle de produtos e substâncias que comportam riscos à
saúde e que ainda não haviam sido trabalhados no espaço da vigilância, a exemplo de
resíduos de medicamentos veterinários, regulamentação, controle e fiscalização da
produção e da propaganda de produtos fumígenos. É de sua competência a coordenação
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do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a montagem, organização e coordenação
de um sistema de informação, e a coordenação da rede de laboratórios de controle de
qualidade em saúde, sem a qual a vigilância não poderá atuar efetivamente.
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De conhecimento público, pela Portaria MS n.º 3.916/98 (Diário Oficial da União, de 10.11.98).
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Após 12 anos desde a promulgação da Constituição que proibiu a comercialização do sangue e seus
derivados, finalmente, depois de 9 anos de espera no Congresso, foi sancionada a Lei n.º 10.205, de 21 de
março de 2001. A lei regulamenta o dispositivo constitucional fixado no § 4.º do art. 199, e estabelece a
Política Nacional de Sangue que deverá obedecer aos princípios e às diretrizes do Sistema Único de
Saúde.
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nacional, tendo em vista as distintas necessidades de cada nível de gestão do Sistema
Nacional de Vigilância Sanitária. A Agência Nacional não pode se omitir nessa tarefa,
nem minimizar a importância desse componente estratégico da efetividade de um
Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Ademais, é preciso levar em conta que o
acesso ao sistema em construção na Anvisa carece de um esforço redobrado, para
capacitar os serviços municipais. Um inquérito recente verificou ser ainda muito grande
o percentual de municípios que não dispõem de cadastros informatizados, chegando tão
somente a 29,6% dos municípios pesquisados. Naqueles com mais de 500.000
habitantes, esse percentual chega apenas a 50%. 7 Isso indica que a informatização ainda
não é uma realidade na operacionalização da Vigilância em grande parte dos grandes
municípios brasileiros. O País já dispõe de diversos sistemas de informação em saúde
que ainda não se "falam", e são de pouco ou nenhum uso nos serviços de vigilância
sanitária. O acesso e uso dessas informações deverá ser estimulado para contribuir na
integração estratégica do planejamento das ações de vigilância sanitária no conjunto das
ações de saúde, tendo em referência os problemas e as necessidades de cada território, e
as condições de saúde e vida das populações.
A montagem de uma página eletrônica conferiu nova feição à área. Espera-se que
estes e outros meios sejam postos a serviço dos cidadãos, profissionais de saúde e
consumidores, para informá-los sobre elementos e práticas de risco, contribuindo para
diminuir a assimetria de informação entre os vários atores sociais, num agir
comunicativo a serviço da proteção e promoção da saúde, pois a informação é um dos
direitos dos cidadãos. O processo de transformação das práticas requer que distintas
tecnologias de comunicação social sejam incorporadas como instrumento de trabalho,
em todos os níveis de gestão do Sistema de Vigilância, para difundir informações
relevantes e acessíveis aos distintos grupos sociais, contribuindo para elevar a
consciência sanitária das populações.
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Inquérito realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Saúde Coletiva da UFMG, em parceria com a Anvisa,
em uma amostra de 349 municípios estratificados por faixa de população e região geográfica, com
entrevistas por telefone. Teve, por objetivo, conhecer aspectos da estrutura de funcionamento dos serviços
municipais de Vigilância Sanitária e a opinião dos responsáveis acerca da disponibilização de recursos,
das dificuldades, dos problemas e de outros aspectos relacionados ao papel da Anvisa. Está disponível no
site www.anvisa.gov.br .
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epidemiológica, e também para aproximar as ações de vigilância sanitária das demais
ações de saúde, ressaltando as evidências da contribuição daquelas ações para a
melhoria da qualidade dos serviços de saúde. Esses programas devem ser
sistematicamente monitorados, tendo a participação das Vigilâncias estaduais. É preciso
ampliar práticas consistentes, cientificamente fundamentadas, a todos os serviços de
interesse da saúde, incluindo os estéticos, os desinsetizadores, entre outros. Clama
urgência a questão dos serviços e laboratórios diagnósticos, pois os resultados dos
exames vão definir as terapêuticas adotadas, usualmente carregadas de riscos à saúde.
Recentemente ganharam espaço na mídia casos dramáticos de exames diagnósticos de
AIDS, sem padrão de qualidade.
COMENTÁRIOS FINAIS
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Públicas intra e intersetoriais que integrem as ações de vigilância no conjunto das ações
de saúde e de outros setores afins à boa qualidade de vida, cujas bases extrapolam as
fronteiras do País. Mas é preciso também um grande esforço, do qual não pode omitir-se
o próprio órgão federal, para radicalizar o processo de municipalização de ações
consistentes de vigilância sanitária, o que ainda não é realidade em grande parte dos
pequenos municípios brasileiros, onde as pessoas vivem, trabalham, lutam, sonham,
adoecem e morrem. Na enquete acima referida, cerca de 32 % dos municípios de até
10.000 habitantes não possuem uma pessoa responsável pelas ações de vigilância
sanitária, indicando a fragilidade desses serviços; em cerca de 15% desses municípios
não se realiza qualquer inspeção sanitária no comércio de alimentos, sendo esta a mais
tradicional e rudimentar atividade de competência municipal. Nos dois maiores
municípios brasileiros em tamanho populacional – São Paulo e Rio de Janeiro –, a
situação da Vigilância ainda é muito incipiente e seus serviços nem estão vinculados ao
setor saúde.
Neste projeto de construção coletiva de uma nova vigilância, deve-se atentar para os
processos de desenvolvimento e valorização de seus profissionais que se submetem à
dedicação exclusiva, cuidando para não fomentar o corporativismo profissional, e sim a
consciência do sentido do trabalho em equipe multiprofissional e, não raro,
interinstitucional. Há que se pensar em profissionais de distintos graus de escolarização,
por complexidade das ações. A maioria requer formação altamente qualificada, para que
realize um conjunto de ações complexas, especificadas nas competências da Vigilância
Sanitária, e para acompanhar a dinâmica do setor produtivo, a incorporação dos avanços
da ciência e da técnica, sem desconsiderar a responsabilidade e a ética da função
pública, e a virtude da prudência. Não se pode minimizar a força dos distintos projetos
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Em 8 de junho de 2000.
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ético-políticos que permeiam a área, e o fato de que as instituições públicas, como
formas concretas de organização do Estado, não são neutras. Esses profissionais
necessitam de uma sólida formação ética, visando a uma consciência do agente público
comprometido com o processo de mudanças e à execução de práticas orientadas por
princípios que agreguem valor ao processo de construção da vigilância sanitária como
ação de saúde e expressão de cidadania, no processo da Reforma Sanitária.
Referências Bibliográficas
Barreto ML. & Carmo, JH. In: Cadernos da 11ª Conferência Nacional de Saúde.
Brasília, Ministério da Saúde, 2000. p. 235-259.
Paim, J.S. & Almeida Filho, N. A crise da Saúde Pública e a utopia da saúde coletiva.
Salvador, Casa da Qualidade Editora, 2000.
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