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POLÍTICAS DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA: BALANÇO E PERSPECTIVAS 1

Ediná Alves Costa 2

Importantes discussões sobre a reformulação do sistema de saúde vêm sendo


travadas ao longo das duas últimas décadas, acompanhando um movimento que se
estabelece no plano internacional, desencadeado não apenas pela busca de contenção de
custos decorrentes da incorporação tecnológica cada vez maior na assistência médica,
mas também pela busca da qualidade dos serviços de saúde. Um exame dessa discussão,
no País, e das políticas de saúde formuladas, revela a manutenção de uma prioridade na
questão da assistência médica, com poucas referências ao conjunto de ações do âmbito
da proteção da saúde, denominadas, entre nós, de ações de vigilância sanitária.

Essa prioridade expressa o pensamento sanitário dominante que se mantém apegado


no atendimento à doença, tendo a assistência médica como remédio, e revela também a
negação de assistência a grande parte da população que ainda tem de lutar para
conquistar esse direito. Poderíamos pensar que a ausência da temática da vigilância
sanitária estaria revelando esse modo de pensar e agir em saúde, que não incorpora os
fatores de risco e os determinantes dos modos de adoecer e morrer, tendo-se uma
percepção quase sempre positiva das tecnologias e intervenções médicas. Desses
entrelaçamentos emana uma descaracterização da importância da vigilância sanitária,
um campo de saberes multidisciplinares e práticas que integram a Saúde Pública, fazem
parte do processo civilizatório e adquirem significância cada vez maior com a
complexidade da ordem econômica e social contemporânea (Costa, 1999).

Com o acelerado crescimento da produção, do mercado e do consumo na Revolução


Industrial, emergiu uma nova configuração social, a sociedade complexa. Houve a
afirmação do individualismo, da liberdade e dos direitos, quando um conjunto de
valores ideológicos e simbólicos transformavam o indivíduo no centro dessa sociedade,
em que os indivíduos, como "trabalhadores livres", deveriam assumir novas posições e
novos deveres no universo do trabalho. A par dos processos de individuação e de
fortalecimento do mercado, iam também se desenvolvendo, como contrapartida, fortes
processos de coletivização e ampliação do espaço público, dando lugar ao surgimento
de intervenções e controles de natureza pública, pela necessidade de ações
coletivamente coordenadas para evitar riscos e perdas socialmente relevantes, e para a
obtenção de "bens públicos". É imperioso notar que à medida que as funções sociais
vão se tornando cada vez mais diferenciadas e especializadas, elas se tornam
interdependentes, exigindo comportamentos mais estáveis, previsíveis, regulados, para
que as ameaças, os efeitos externos ou riscos não se difundam à toda coletividade. Na
sociedade contemporânea têm início a ampliação das funções do Estado e a
complexificação do seu aparato interventor, quanto à multiplicidade de atores sociais
que se mobilizam à medida da sensibilização e consciência do movimento social
(Bodstein, 2000).

1
Texto elaborado como subsídio aos debates da I Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, Brasília,
26 a 30 de novembro de 2001.
2
Professora Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva – Universidade Federal da Bahia.
Na atualidade as sociedades experimentam, em todo o mundo, profundas e
aceleradas mudanças que apresentam novos desafios para o setor saúde: as necessidades
em saúde se ampliam, em decorrência de um conjunto de interações de processos de
natureza econômica, social, cultural, política e científico-tecnológica, que não têm sido
capazes de atingir repercussões positivas na saúde e na qualidade de vida de amplos
contingentes populacionais. Num contexto de políticas sociais restritivas, devido ao
projeto neoliberal que assola o mundo, desvanece o ideal "Saúde para todos no ano
2000", proclamado pela Organização Mundial de Saúde no final da década de 70, e
emerge uma consciência acerca da crise atual da Saúde Pública, entendida como a
"incapacidade da maioria das sociedades para promover e proteger sua saúde à medida
que as circunstâncias históricas requerem" (OPS, 1992).3

O mundo em que vivemos e trabalhamos parece cada vez mais cheio de riscos e
perigos que representam ameaças à saúde do homem, do meio ambiente e das futuras
gerações (Freitas & Gomez, 1997), dando-se um alargamento cada vez maior do escopo
da proteção da saúde, em face da reconfiguração da ordem econômica mundial: os
novos padrões na produção e circulação de mercadorias não estendem a distribuição dos
benefícios da acumulação das riquezas e do progresso da ciência a todos os países e
grupos sociais, mas ampliam as possibilidades de distribuição internacional de
numerosos riscos difusos à saúde humana e ambiental, envolvendo agentes radiológicos,
químicos e biológicos. Isso ameaça a segurança sanitária de países pobres e ricos, como
vem demonstrando a experiência internacional recente, com o surgimento da "doença da
vaca louca" em Países europeus, a disseminação da AIDS, e os acidentes radioativos de
Goiânia e Chernobil nos anos 80, entre outros.

A "mercantilização" da saúde, com a produção e comercialização de uma variedade


fabulosa de produtos, serviços e informações dirigidas aos consumidores, em nome da
prevenção de doenças, promoção, preservação e recuperação da saúde – com estratégias
de marketing pelos meios tradicionais e novos meios de comunicação, a exemplo da
Internet, para promover o consumo – vem acrescentando mais elementos ao mosaico de
questões que requerem intervenção em defesa da saúde e apontam a natureza complexa
das ações de vigilância. Esse campo vem passando por sérias reformulações conceituais
e metodológicas em todo o mundo desenvolvido: ao lidar com o poderio econômico das
empresas, e os limites e incertezas do conhecimento científico que estaria
fundamentando o desenvolvimento de numerosas tecnologias, o campo de ação da
Vigilância Sanitária passa a abrigar numerosos conflitos de interesse.

Por isso mesmo, para que o progresso científico e tecnológico não reduza o cidadão
a súdito, em vez de emancipá-lo, as bases éticas que devem guiar o processo decisório
na vigilância sanitária não podem prescindir da eqüidade, que associada aos temas da
responsabilidade (individual e pública) e da justiça, concorrerá para fazer valer o valor
do direito à saúde. A eqüidade, como disposição para reconhecer igualmente as
diferenças, os direitos e as necessidades diversas dos sujeitos sociais, é o ponto de
partida para alcançar a igualdade, ponto de chegada da justiça social, referencial dos
direitos humanos que constituem as bases para o reconhecimento da cidadania (Garrafa,
2000).

3
OPS. La crisis de la salud pública: Reflexiones para el debate. Washington (DC): Organización
Panamericana de la Salud; 1992 (Publicación Científica n.º 540). p. 3.

2
No Brasil, ações de vigilância sanitária sempre existiram, mas com pouca
visibilidade para a população, e até mesmo para os profissionais e gestores de saúde que
se acostumaram a perceber essa área identificando-a com atuação policial ou
burocrático-cartorial. A falta de formulação e explicitação de políticas de vigilância
sanitária nas políticas públicas, a pouca atenção governamental à área, entre outros
determinantes relacionados ao baixo estágio de desenvolvimento científico e
tecnológico do País, foram concorrendo para o aprofundamento do fosso que se
estabeleceu entre a estrutura dos serviços de vigilância sanitária e as demandas por suas
ações, seja em nível das necessidades em saúde ou do segmento produtivo (Costa,
1999).

Com efeito, as contradições decorrentes desse estado de coisas não conseguiam


sensibilizar governantes nem os intelectuais orgânicos da saúde, confinando-se as
discussões acerca de problemas e necessidades de mudanças nos serviços de vigilância
sanitária ao seu próprio "gueto". Nesse campo fértil de negação de direitos de cidadãos
e consumidores, foi-se desenvolvendo no Brasil um "mercado de consumo" de interesse
da saúde quase totalmente cativo aos interesses empresariais, não raramente movido por
produtores e prestadores de serviços inescrupulosos e sem ética. Ao longo do tempo
foram-se desqualificando os requisitos de qualidade, eficácia e segurança de um
conjunto cada vez mais ampliado de tecnologias, produtos e serviços direta ou
indiretamente relacionados com a saúde, permitindo o crescimento do mercado sem as
devidas análises de risco/custo benefício e obediência ao princípio da precaução que
deve nortear o tratamento das questões de interesse sanitário.

Para alegria dos comerciantes e produtores de medicamentos, o Estado brasileiro,


governo após governo, manteve-se insistente em negar à população o direito às
condições básicas de vida, fomentando a permanência de uma situação sanitária
geradora de doenças que se agrava pela falta de assistência médica. A negação da
assistência à saúde da população brasileira também estimulou a proliferação
indiscriminada de farmácias como se fossem estabelecimentos comerciais comuns, onde
qualquer pessoa pode comprar medicamentos de tarja vermelha, sem a necessária
prescrição médica, uma exigência da lei exatamente porque esses medicamentos podem
causar sérios danos à saúde.

Quando há atenção aos problemas de saúde, ela se dá com predominância de ações


do modelo "médico-assistencial privatista", centrado no atendimento de doentes e na
assistência curativista prestada em ambulatórios e hospitais contratados e conveniados
com o SUS, quase sempre mediante consumo indiscriminado de medicamentos e
tecnologias médicas, sem obediência ao princípio do uso racional. Esse modelo se
complementa com as ações de caráter coletivo do "modelo sanitarista", que se volta para
o atendimento de problemas de saúde de grupos selecionados da população. Não se
pode deixar de assinalar (Barreto & Carmo, 2000) que grande parte das ações de saúde,
que visam a atender problemas de saúde relevantes, na verdade têm baixo impacto na
modificação dos padrões de ocorrência das doenças ou de redução de riscos: parte
dessas ações são mesmo ineficazes, e até associadas a efeitos nocivos. Nessas bases, o
sistema de saúde no Brasil sempre esteve em crise.

Por seu turno, os serviços de vigilância sanitária, em um ou outro momento, deram


sinais de crise e incompetência administrativa e sanitária, para mediar os interesses dos
distintos segmentos da sociedade e até para atender aos pleitos das empresas. Mas foi na

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segunda metade da década de 90 que a crise chegou ao seu limite, impulsionando um
processo de mudanças de longa gestação. A crise se expressou em diversas
demonstrações da incapacidade do mercado garantir, por si mesmo, os interesses
sanitários da coletividade: uma epidemia de falsificação de medicamentos e sua
colocação no mercado, com essas e outras irregularidades (pílula de farinha), tomou
conta da mídia, que deu grande destaque a numerosos eventos. Mortes de pacientes em
hospitais, em clínicas e serviços de hemodiálise somavam-se a outros de grande
importância sanitária da década de 80 (a morte do Presidente Tancredo Neves, por
infecção hospitalar, e a tragédia radioativa de Goiânia), para tornar a mudança
impostergável, pois além da função protetora da saúde, as ações de vigilância são de
grande importância para a organização econômica da sociedade, e sua falta pode criar
problemas que levam a um descrédito na qualidade de produtos, tecnologias e serviços,
afetando a própria credibilidade das instituições públicas que devem zelar por esses
interesses que, na verdade, são de todos, cidadãos, consumidores, profissionais de
saúde, produtores e comerciantes.

A mudança inevitável tem múltiplas determinações, devendo-se assinalar, nos limites


deste texto, pelo menos três grandes processos relevantes do contexto: o processo de
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), sob a diretriz da descentralização; a
reconfiguração dos mercados no processo de globalização econômica e a reforma do
Estado.

Após certa inércia nos primeiros anos do governo neoliberal, pós-Constituição de


1988, o movimento social revigorou-se na tarefa de implementação do SUS segundo os
ideais da Reforma Sanitária, reconhecidos na Constituição, o mais importante
documento político do País e que expressa a vontade das forças sociais presentes no
momento do pacto no processo constituinte.

A Constituição Federal abriu uma nova página na luta do povo brasileiro pela
afirmação de sua cidadania – ao proclamar a saúde um direito de todos –, e destacou a
importância das ações de proteção da saúde do âmbito da vigilância sanitária e a
necessidade de proteção do consumidor. Reconhecendo a condição de vulnerabilidade
do consumidor no mercado de consumo, o País proclamou seus direitos e adotou um
Código de Defesa do Consumidor. As ações de vigilância sanitária ocuparam quase
todas as atribuições do SUS definidas no art. 200 da Constituição: o controle e a
fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde, e a
participação na produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos; a execução de ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, e as de saúde do trabalhador; a ordenação da formação de recursos
humanos na área de saúde; a participação na formulação da política e na execução das
ações de saneamento básico; o incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento
científico e tecnológico; a fiscalização e inspeção de alimentos, compreendido o
controle de seu teor nutricional, e também das bebidas e águas para consumo humano; a
participação no controle e na fiscalização da produção, do transporte, da guarda e
utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; a colaboração na
proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

O Sistema Único de Saúde desenhado na lei deve ser organizado com serviços e
ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, para compor a integralidade da
atenção. Desde os anos 70 do século passado, as ações de proteção do âmbito da

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Vigilância Sanitária vêm sendo pensadas na concepção de sistema (Costa, 1999). O
Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, que deve ser construído e está em discussão
nesta Conferência, é uma decorrência de a saúde ser competência comum das três
instâncias político-administrativas do Estado 4 , cabendo, assim, à União, aos Estados e
aos Municípios executar ações e prestar serviços destinados a eliminar, diminuir ou
prevenir riscos à saúde – esfera privilegiada de atuação da Vigilância Sanitária – e
também de intervir em problemas sanitários diversificados e abrangentes, decorrentes
do meio ambiente, da produção, circulação, do consumo de bens e da prestação de
serviços relacionados à saúde.

A noção de sistema de vigilância sanitária pressupõe a articulação e integração de


componentes de um todo; coaduna-se com a natureza das questões de vigilância que
envolvem problemas relacionados à produção, circulação e ao consumo de bens e
serviços, meio ambiente e ambiente do trabalho, e também com o mandamento
constitucional de criação de um Sistema Único de Saúde organizado numa rede pública,
regionalizada e hierarquizada, de serviços e ações destinados à promoção, proteção e
recuperação da saúde, tendo por diretrizes a descentralização, a integralidade e a
participação social.

Assim, mais cedo ou mais tardiamente, e em particular a partir da Norma


Operacional (NOB SUS 1/96), que incluiu o repasse de recursos financeiros para a área,
os Estados e parte dos Municípios brasileiros passaram a experimentar um processo de
dinamização, ampliando as ações de vigilância sanitária. A área também foi
influenciada pela organização das estratégias que tornam real o Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor, incluindo organizações não-governamentais, e que dão início à
formação de uma nova cultura nas relações produção-consumo para o respeito aos
direitos dos consumidores. Alguns órgãos estaduais de Vigilância Sanitária passaram a
desenvolver interessantes experiências de ações conjuntas, numa política de articulação
com os Procons (proteção do consumidor) e com o Ministério Público, instituição
incumbida de defender a ordem jurídica e zelar pelo respeito aos direitos assegurados na
Constituição.

Os anos 90 foram marcados por macroprocessos econômicos enfeixados no termo


"globalização". Neste contexto, os desdobramentos da orientação da política econômica
do governo brasileiro, que se voltava à abertura de fronteiras ao comércio internacional,
tiveram grande importância para as políticas de vigilância sanitária. Nesse período, o
governo deu impulso à implementação de políticas para melhoria da qualidade no
parque industrial, quando se formulou o Programa Brasileiro de Qualidade e
Produtividade (PBQP), promovendo incentivo à competitividade pela melhoria da
produtividade e da qualidade. O governo Collor chegou a criar o suposto
correspondente do PBQP na Vigilância Sanitária, denominado Projeto Inovar, que iria
representar um grande retrocesso na Vigilância Sanitária federal, pois esse projeto,
embalado no discurso da qualidade, estava muito mais afinado com o projeto neoliberal
desregulamentador e facilitador dos interesses empresariais (Costa, 1999). Este período
teve sérias conseqüências para o órgão federal: serviços em organização foram
desmantelados, arquivos perdidos e técnicos de carreira afastados, com grande número
de registro de produtos concedidos sem as devidas análises técnicas (Lucchesi, 1992).

4
Constituição Federal, art. 23.

5
Na comunidade econômica latino-americana, no começo dos anos 90, eram
assinados acordos para implantar o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), de cujos
desdobramentos advém um rico processo de discussão, negociação e renovação de
normas e padrões, passando-se a adotar amplamente as "boas práticas de fabricação",
devido à necessidade de harmonização normativa para superação das barreiras sanitárias
entre os países-membros do mercado regional. A renovação da regulamentação nessa
área faz parte de um movimento do comércio internacional, cujo cenário passa a contar,
cada vez mais, com novos atores que agem como verdadeiros entes regulamentadores, a
exemplo da Organização Mundial do Comércio, que vai ditando regras e padrões que
muitas vezes comprometem os interesses sanitários nacionais, especialmente dos países
consumidores de tecnologias, como é o Brasil. Esse poder se manifesta nas questões
que emergem da atual Lei de Patentes, imposta aos países, e se expressa nos embates
travados pelo Ministério da Saúde com a questão das patentes de medicamentos
essenciais para o tratamento da AIDS.

O processo de reforma do Estado se dá num ambiente econômico de crise fiscal do


Estado brasileiro, mas é parte de um movimento no plano internacional, quando em
países centrais, onde se constituiu o chamado estado de bem-estar social, propunha-se a
redefinição do Estado que deveria abster-se da responsabilidade direta pelo
desenvolvimento econômico e social, para tornar-se seu promotor e regulador. A receita
não é tão simples para países como o Brasil, em que a maioria da população ainda não
desfruta de seus direitos fundamentais e onde jamais se experimentou o chamado estado
de bem-estar social, tendo-se, em vez disso, um Estado de tradição autoritária e
assistencialista, em meio a profundas desigualdades sociais.

Neste contexto surgiram, naqueles países, as chamadas agências regulatórias, que


deveriam assumir as novas tarefas de uma Administração Pública orientada por novos
paradigmas criados na busca de eficiência gerencial. No Brasil foram privatizados
serviços de várias áreas, como energia elétrica e comunicações, dando lugar ao
surgimento das correspondentes agências reguladoras.

É de se notar que, paradoxalmente, a criação das chamadas agências reguladoras


ocorre no contexto da "desregulação" que acompanha a receita neoliberal, cuja proposta
é a restrição das atividades do Estado àquilo que não pode ser delegado à iniciativa
privada, por ser de sua competência exclusiva. No caso da saúde, a história insiste em
demonstrar que o mercado é incapaz de auto-regular-se para garantir a proteção da
saúde da população, sequer dos seus extratos mais privilegiados. Com efeito, são
exatamente os países mais civilizados (onde o acesso ao mercado de bens e serviços é
mais abrangente) que dispõem de vigorosas instituições do âmbito da Vigilância
Sanitária, criando e cumprindo normas socialmente aceitas. A título de exemplo,
naqueles países as farmácias não vendem os medicamentos de tarja vermelha, sem que o
comprador apresente a receita médica, exatamente porque tais medicamentos têm maior
risco de produzir efeitos indesejáveis.

No setor saúde foram criadas duas agências reguladoras, a Agência Nacional de


Saúde (ANS), para mediar conflitos de interesse relacionados com os planos de saúde, e
a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Anvisa foi criada no modelo de
autarquia especial, condição que lhe assegura autonomia em relação à Administração
direta, caracterizando-se pela independência administrativa, estabilidade de seus
dirigentes e autonomia financeira. Estas três condições são relevantes para dar maior

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poder de ação ao órgão de vigilância que, ao longo do tempo, experimentou, no plano
federal, permanente instabilidade de seus dirigentes, por interferências político-
partidárias e forte atrelamento às decisões do poder central, sem que isso signifique a
necessidade de reprodução do modelo nos outros níveis de gestão. Como autarquia, a
Anvisa deve pautar sua atuação pelos princípios da Administração Pública (legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), submetendo-se ao chamado
poder de tutela, devendo produzir resultados: fica, portanto, vinculada ao Ministério da
Saúde, com o qual foi firmado um contrato de gestão.

O contrato de gestão serve como instrumento de avaliação do desempenho


operacional e administrativo da autarquia, nessa nova modalidade organizacional. O
contrato de gestão é uma inovação na Administração Pública brasileira, que emerge
com a reforma do Estado, visando a uma administração por resultados. As bases legais
foram criadas por uma Emenda Constitucional em 1998, seguida de decretos que tratam
da qualificação de autarquias e fundações na condição de agências executivas, firmando
os critérios e procedimentos para a elaboração, o acompanhamento e a avaliação dos
contratos de gestão e dos planos estratégicos de reestruturação e de desenvolvimento
institucional das entidades assim qualificadas.

A finalidade institucional da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, afirmada na


Lei n.º 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que a criou, é "promover a proteção da saúde
da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de
produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos
processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de
portos, aeroportos e fronteiras". É relevante notar que nenhum documento jurídico
precedente (Costa, 1999) deixou tão claro que a proteção da saúde é a finalidade última
da tarefa institucional, abrindo espaço para a compreensão da noção de vigilância
sanitária para além da concepção controlista, repressiva, penalizadora. Essa nova
abordagem se complementa com a incorporação da promoção da saúde, quando se
formulou a missão institucional da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de
"proteger e promover a saúde garantindo a segurança sanitária de produtos e
serviços", tendo por valores a nortear as ações a transparência, o conhecimento e a
cooperação, e por visão de futuro "ser agente da transformação do sistema
descentralizado de vigilância sanitária em uma rede, ocupando um espaço diferenciado
e legitimado pela população, como reguladora e promotora do bem-estar social". A
nova roupagem, tecida no plano do discurso que acompanha o nascedouro da nova
Instituição, remete a anseios, necessidades sociais e desafios que não se limitam ao
espaço dos saberes e práticas da vigilância sanitária, e sim ao âmbito da Saúde Coletiva
(Paim & Almeida Filho, 2000) na sua busca de construção solidária de uma sociedade
justa, democrática e saudável, a mais bela utopia que alimenta a luta pela Reforma
Sanitária.

Nos termos da Lei n.º 9.782/99, cabe à União, por intermédio do Ministério da
Saúde, formular, acompanhar e avaliar a Política Nacional de Vigilância Sanitária e as
diretrizes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, postulado que se reafirma no
Contrato de Gestão. Fazer um balanço da política de vigilância sanitária que vem sendo
implementada no País, em especial a partir da criação da Anvisa, e apontar perspectivas,
é o objetivo do texto proposto.

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É possível apreciar aspectos da política mais recente que vem sendo implementada
através de materiais diversos, entre os quais alguns trabalhos acadêmicos, textos de
entidades de defesa dos interesses coletivos ou públicos, como a Sociedade Brasileira de
Vigilância de Medicamentos (Sobravime) e o Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (IDEC), textos jurídicos e normativos da área da saúde e da Vigilância que
incluem a lei que criou a Instituição, os textos da pactuação com os Estados (os
chamados Termos de Ajuste e Metas), documentos técnicos, relatórios de atividades
atinentes ao Contrato de Gestão, atas de reuniões do Conselho Consultivo, boletins
informativos e outros, atualmente de domínio público na própria página eletrônica da
Agência. Os textos e relatórios das Conferências Nacionais de Saúde revelam
preocupações com questões da área, sobretudo no tocante a certos aspectos de
medicamentos, sangue e hemoderivados, e reclamos pelo cumprimento da legislação
sanitária, sendo que as três últimas conferências recomendaram a realização de uma
específica para a área.

Pelo que se pode perceber, ao longo da trajetória da vigilância sanitária no País


ainda não foi devidamente formulada uma política nacional de vigilância sanitária
(Souto, 1996; Costa, 1999) e dada a conhecer em documento emanado do Ministério da
Saúde ou do órgão específico federal, o que denota que essas políticas vêm sendo
implementadas sob forte peso das circunstâncias relevantes de cada conjuntura, sem
uma articulação mais orgânica com as demais políticas de saúde. Ainda hoje o País se
ressente de explicitação mais clara da política nacional e das diretrizes do Sistema
Nacional de Vigilância Sanitária, mas vem crescendo um rico processo de
movimentação na área, tendo um importante espaço de discussão, troca de experiências
e sensibilização dos gestores estaduais na Câmara Técnica de Vigilância Sanitária do
Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS). Esse movimento
culmina com a convocação da Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, que propõe
trazer ao debate a situação dessa área no País, idéias e anseios de distintos segmentos
envolvidos nas questões, e quem sabe, a partir desse evento, possam ser dadas as bases
para a formulação e explicitação da política que a sociedade brasileira almeja.

A reforma institucional é o grande destaque da política atual de vigilância sanitária.


A criação da Agência Nacional resultou de uma decisão política de governo, não tendo
sido objeto de uma discussão mais ampliada na sociedade brasileira, mas a idéia não
surgiu de repente, já havia se estabelecido certo consenso a respeito da necessidade de
mudança institucional. Na definição de competências da Anvisa houve uma restrição da
abrangência das ações, eliminando-se as atividades atinentes ao meio ambiente e à
saúde do trabalhador. Nesse sentido, as Vigilâncias estaduais e dos municípios não
contarão com apoio técnico e político do nível federal para lidar com essas temáticas, e
almeja-se que não pautem suas atribuições pelo modelo federal.

Houve uma ampliação das atribuições institucionais, com novas incumbências, cuja
realização irá concorrer para o cumprimento da finalidade institucional: entre outras,
vigilância farmacológica e toxicológica; vigilância sanitária em serviços de saúde;
controle de qualidade de bens e produtos, por meio de programas especiais de
monitoramento da qualidade; monitoramento de preços de medicamentos e produtos
para a saúde, e, ainda, o controle de produtos e substâncias que comportam riscos à
saúde e que ainda não haviam sido trabalhados no espaço da vigilância, a exemplo de
resíduos de medicamentos veterinários, regulamentação, controle e fiscalização da
produção e da propaganda de produtos fumígenos. É de sua competência a coordenação

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do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a montagem, organização e coordenação
de um sistema de informação, e a coordenação da rede de laboratórios de controle de
qualidade em saúde, sem a qual a vigilância não poderá atuar efetivamente.

A Vigilância Sanitária vem sendo requisitada para desempenhar funções cruciais na


Política Nacional de Medicamentos 5 , na Política Nacional de Sangue, 6 no controle da
epidemia de tabagismo, no controle de agrotóxicos etc., e na área de portos e fronteiras
e relações internacionais, cada vez mais complexas devido ao rearranjo da economia. A
mudança do modelo institucional no plano federal vem produzindo um conjunto de
processos de relevância para a dinamização da área, alguns dos quais foram destacados
neste texto: aspectos do financiamento e da relação com os demais órgãos de vigilância,
a construção do sistema de informação informatizado, a incorporação de serviços nas
atividades do espaço federal e a aproximação com a Universidade brasileira.

Na moldura de autarquia especial, a Anvisa passou a contar com recursos do


orçamento da União e receitas próprias bastante revigoradas, quando comparadas às da
estrutura anterior, advindas das chamadas taxas de fiscalização, que foram sobejamente
elevadas. Desse modo, foram criadas novas bases para atuação institucional mais efetiva
numa área em que se estima cobrindo cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB). A
partir da pactuação com os Estados, estes passaram a contar com financiamento da
esfera federal. Mediante um instrumento denominado Termo de Ajuste e Metas, os
órgãos estaduais passaram a partilhar, com o órgão federal, dos valores arrecadados com
as taxas.

Compromissos assumidos no contrato de gestão passaram a exigir, como requisito


para seu cumprimento, a atuação partilhada com os órgãos estaduais, uma articulação
perfeita com a diretriz político-administrativa da descentralização e da autonomia do
Sistema Único de Saúde em cada esfera de governo, um ditame que poderia criar
restrições à atuação da Agência Nacional nos territórios dos Estados. Os processos
decorrentes desses arranjos têm resultado em fortalecimento dos serviços estaduais, em
certos casos chegando aos Municípios, pois a pactuação com os Estados tem significado
o repasse de recursos financeiros e apoio técnico não experimentados antes. Os critérios
de aplicação são flexíveis, permitindo o emprego dos recursos para atender a um amplo
leque de opções e necessidades dos serviços: infra-estrutura, equipamentos, materiais,
veículos, formação e capacitação de recursos humanos são alguns. Contudo, devido à
pouca experiência de planejamento e programação e gestão orçamentária, entre outros
aspectos, observa-se que a maioria dos órgãos Estaduais tem tido dificuldade em
empregar tais recursos com agilidade. Essa situação indica a necessidade de apoio, na
questão orçamentária, aos órgãos que o necessitem, para que os recursos públicos,
sempre escassos, produzam imediatos resultados.

O processo de organização institucional desencadeou a montagem de um sistema de


informação operado por meios eletrônicos, que está em fase de implementação. A
discussão a respeito da concepção do sistema ainda não foi equacionada no plano

5
De conhecimento público, pela Portaria MS n.º 3.916/98 (Diário Oficial da União, de 10.11.98).
6
Após 12 anos desde a promulgação da Constituição que proibiu a comercialização do sangue e seus
derivados, finalmente, depois de 9 anos de espera no Congresso, foi sancionada a Lei n.º 10.205, de 21 de
março de 2001. A lei regulamenta o dispositivo constitucional fixado no § 4.º do art. 199, e estabelece a
Política Nacional de Sangue que deverá obedecer aos princípios e às diretrizes do Sistema Único de
Saúde.

9
nacional, tendo em vista as distintas necessidades de cada nível de gestão do Sistema
Nacional de Vigilância Sanitária. A Agência Nacional não pode se omitir nessa tarefa,
nem minimizar a importância desse componente estratégico da efetividade de um
Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Ademais, é preciso levar em conta que o
acesso ao sistema em construção na Anvisa carece de um esforço redobrado, para
capacitar os serviços municipais. Um inquérito recente verificou ser ainda muito grande
o percentual de municípios que não dispõem de cadastros informatizados, chegando tão
somente a 29,6% dos municípios pesquisados. Naqueles com mais de 500.000
habitantes, esse percentual chega apenas a 50%. 7 Isso indica que a informatização ainda
não é uma realidade na operacionalização da Vigilância em grande parte dos grandes
municípios brasileiros. O País já dispõe de diversos sistemas de informação em saúde
que ainda não se "falam", e são de pouco ou nenhum uso nos serviços de vigilância
sanitária. O acesso e uso dessas informações deverá ser estimulado para contribuir na
integração estratégica do planejamento das ações de vigilância sanitária no conjunto das
ações de saúde, tendo em referência os problemas e as necessidades de cada território, e
as condições de saúde e vida das populações.

A montagem de uma página eletrônica conferiu nova feição à área. Espera-se que
estes e outros meios sejam postos a serviço dos cidadãos, profissionais de saúde e
consumidores, para informá-los sobre elementos e práticas de risco, contribuindo para
diminuir a assimetria de informação entre os vários atores sociais, num agir
comunicativo a serviço da proteção e promoção da saúde, pois a informação é um dos
direitos dos cidadãos. O processo de transformação das práticas requer que distintas
tecnologias de comunicação social sejam incorporadas como instrumento de trabalho,
em todos os níveis de gestão do Sistema de Vigilância, para difundir informações
relevantes e acessíveis aos distintos grupos sociais, contribuindo para elevar a
consciência sanitária das populações.

Neste momento, o órgão federal passou a incorporar os serviços de saúde,


selecionando, para atuação, mediante programas, a questão de infecções hospitalares, de
serviços de hemodiálise e de atividades hemoterápicas, e os que utilizam radiações
ionizantes, impulsionado pelos eventos trágicos acima referidos e pela epidemia de
AIDS. As ações de vigilância em serviços de saúde ficaram, historicamente, por conta
dos órgãos estaduais, que não recebiam apoio institucional, pouco contribuindo para a
melhoria da qualidade dos serviços de saúde, privados e públicos. Em articulação com
hospitais públicos, no conceito de "hospitais-sentinela", foi dado início à organização da
farmacovigilância e da tecnovigilância (vigilância de efeitos adversos de medicamentos
e de tecnologias), experiências ainda inéditas na Instituição federal.

O País carrega algumas décadas de atraso na realização dessas práticas: a


farmacovigilância vem recebendo estímulo e apoio da OMS, desde a década de 60,
existindo em dezenas de países como importante prática de saúde pública. Será uma
oportunidade estratégica para demonstrar a importância dessas práticas e para romper
com a idéia equivocada no País de que existem "duas vigilâncias", a sanitária e a

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Inquérito realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Saúde Coletiva da UFMG, em parceria com a Anvisa,
em uma amostra de 349 municípios estratificados por faixa de população e região geográfica, com
entrevistas por telefone. Teve, por objetivo, conhecer aspectos da estrutura de funcionamento dos serviços
municipais de Vigilância Sanitária e a opinião dos responsáveis acerca da disponibilização de recursos,
das dificuldades, dos problemas e de outros aspectos relacionados ao papel da Anvisa. Está disponível no
site www.anvisa.gov.br .

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epidemiológica, e também para aproximar as ações de vigilância sanitária das demais
ações de saúde, ressaltando as evidências da contribuição daquelas ações para a
melhoria da qualidade dos serviços de saúde. Esses programas devem ser
sistematicamente monitorados, tendo a participação das Vigilâncias estaduais. É preciso
ampliar práticas consistentes, cientificamente fundamentadas, a todos os serviços de
interesse da saúde, incluindo os estéticos, os desinsetizadores, entre outros. Clama
urgência a questão dos serviços e laboratórios diagnósticos, pois os resultados dos
exames vão definir as terapêuticas adotadas, usualmente carregadas de riscos à saúde.
Recentemente ganharam espaço na mídia casos dramáticos de exames diagnósticos de
AIDS, sem padrão de qualidade.

A aproximação com a Universidade vem tendo lugar sobretudo a partir do esforço


para qualificação de recursos humanos. Devido à pequena reflexão acerca da temática
ou sistematização de conhecimentos para apoiá-la, no espaço acadêmico, verificável
pela existência de poucos estudos, pesquisas, teses e dissertações que enfocam a área,
pode-se constatar que a Universidade Brasileira, especialmente nos campos da Saúde e
do Direito, tem contribuído pouco com a vigilância sanitária. Podem ser identificadas,
na área da Saúde, as influências do pensamento dominante de cunho biologicista, e, na
área do Direito, as influências de sua origem individualista. Nesta área, só recentemente
teve início a tematização dos direitos difusos e coletivos, como o direito do consumidor,
o ambiental e o próprio direito sanitário. A aproximação com a Universidade é
importante para ativar sua função social de produzir e sistematizar conhecimentos, e de
formar os sujeitos que atuam nas mais distintas esferas da sociedade.

Objetivando incorporar a Universidade ao esforço para dinamizar a área de


vigilância, para produzir ou sistematizar conhecimento atualizado, e para elevar o
padrão de qualidade dos processos de formação dos profissionais, caberia formular uma
agenda de questões relevantes, identificadas na área como objeto de investigação, e
desenvolver estratégias para fomentar estudos de curto e médio prazos. Tais produtos
poderiam gerar importantes contribuições para o desenvolvimento da área e para
reconfigurar o objeto "saúde" na direção de uma concepção positiva, que é, mais
precisamente, o marco conceitual da vigilância sanitária.

COMENTÁRIOS FINAIS

A reflexão aponta que o Sistema Único de Saúde (SUS), no componente Vigilância


Sanitária, enfrenta desafios que não se limitam aos conflitos de interesse pelas forças do
mercado, à formação profissional, à produção e disponibilidade de conhecimentos e
informação atualizados, à demarcação conceitual e doutrinária, ou ainda às tecnologias
de gestão. É preciso romper, sobretudo, a estrutura tradicional do modelo sanitário
fragmentado e anacrônico, centrado no cuidado à doença e agravado pela pulverização
de ações similares descoordenadas em distintos espaços institucionais. No caso da
Vigilância Sanitária em particular, não se pode deixar de chamar a atenção para a
urgente tarefa que lhe cabe de sanear o mercado, isto é, de operar um depuramento,
retirando dele inúmeros produtos de risco, desnecessários e nocivos, muitos dos quais
de uso restrito ou mesmo banidos em outros países. Para cumprir sua finalidade e obter
legitimidade social, é estratégico radicalizar a ação comunicativa para mobilizar a
sociedade, os profissionais e trabalhadores da saúde, para a implementação de Políticas

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Públicas intra e intersetoriais que integrem as ações de vigilância no conjunto das ações
de saúde e de outros setores afins à boa qualidade de vida, cujas bases extrapolam as
fronteiras do País. Mas é preciso também um grande esforço, do qual não pode omitir-se
o próprio órgão federal, para radicalizar o processo de municipalização de ações
consistentes de vigilância sanitária, o que ainda não é realidade em grande parte dos
pequenos municípios brasileiros, onde as pessoas vivem, trabalham, lutam, sonham,
adoecem e morrem. Na enquete acima referida, cerca de 32 % dos municípios de até
10.000 habitantes não possuem uma pessoa responsável pelas ações de vigilância
sanitária, indicando a fragilidade desses serviços; em cerca de 15% desses municípios
não se realiza qualquer inspeção sanitária no comércio de alimentos, sendo esta a mais
tradicional e rudimentar atividade de competência municipal. Nos dois maiores
municípios brasileiros em tamanho populacional – São Paulo e Rio de Janeiro –, a
situação da Vigilância ainda é muito incipiente e seus serviços nem estão vinculados ao
setor saúde.

A par de um repensar sobre as formas de organização dos processos de trabalho para


incluir o planejamento estratégico, deverão ser incorporadas novas tecnologias de
gestão para romper, sempre que possível, o tradicional gerenciamento por classe de
produto e serviços. Devido à interface com outras áreas e competências concorrentes
com distintos espaços institucionais, notadamente os da Agricultura, do Meio Ambiente
e o do Trabalho, as discussões conjuntas dos problemas, possivelmente mais fáceis nos
níveis municipais, são estratégias importantes para se acordar o desenvolvimento de
ações intersetoriais, galgando acumulações para orientar a formulação de Políticas
Públicas de promoção da saúde.

Além da consideração desses pontos para fortalecer as perspetivas de uma nova


atuação da Vigilância Sanitária no País, cabe sempre interrogar sobre quem vai
fiscalizar os fiscais, regular os reguladores. O órgão federal foi dotado de um Conselho
Consultivo em que diversos segmentos da sociedade se fazem representar, inclusive o
Conselho Nacional de Saúde. O fato de a primeira reunião ordinária desse importante
organismo só ocorrer 14 meses após a instalação da Agência 8 não deixa de suscitar
muitas interrogações a respeito da participação e do controle social da área. É necessário
ampliar, em todos os níveis político-administrativos do Sistema Nacional de Vigilância
Sanitária, a institucionalização de mecanismos permanentes que assegurem a gestão
coletiva dos interesses públicos envolvidos nas questões da Vigilância, desenhando-se
estratégias para incorporar, nos Conselhos de Saúde, a percepção da importância dessas
ações para a consecução da integralidade, promovendo-se meios para a discussão a
respeito da participação e do controle social na área.

Neste projeto de construção coletiva de uma nova vigilância, deve-se atentar para os
processos de desenvolvimento e valorização de seus profissionais que se submetem à
dedicação exclusiva, cuidando para não fomentar o corporativismo profissional, e sim a
consciência do sentido do trabalho em equipe multiprofissional e, não raro,
interinstitucional. Há que se pensar em profissionais de distintos graus de escolarização,
por complexidade das ações. A maioria requer formação altamente qualificada, para que
realize um conjunto de ações complexas, especificadas nas competências da Vigilância
Sanitária, e para acompanhar a dinâmica do setor produtivo, a incorporação dos avanços
da ciência e da técnica, sem desconsiderar a responsabilidade e a ética da função
pública, e a virtude da prudência. Não se pode minimizar a força dos distintos projetos
8
Em 8 de junho de 2000.

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ético-políticos que permeiam a área, e o fato de que as instituições públicas, como
formas concretas de organização do Estado, não são neutras. Esses profissionais
necessitam de uma sólida formação ética, visando a uma consciência do agente público
comprometido com o processo de mudanças e à execução de práticas orientadas por
princípios que agreguem valor ao processo de construção da vigilância sanitária como
ação de saúde e expressão de cidadania, no processo da Reforma Sanitária.

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