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VIEIRA, Alberto,
Albuquerque, Luís de
(1998)
O Arquipélago da Madeira
no Século XV,
COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:
VIEIRA, Alberto e Albuquerque, Luís de (1987), O Arquipélago da Madeira no Século XV, Funchal,
CEHA-Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/1987-
avieira-madeiraxv.pdf, data da visita: / /
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· o ARQUIPÉLAGO DA MADEIRA
NO SÉCULO XV
CAPA; Extrato da Vereação de 5 de Julho de ] 470 da Câmara do Funchal
(Arquivo Regional. da Madeira, Câmara do Funcha1. n. o J296 fi. 3)
~
,
o ARQUIPELAGO DA MADEIRA
NO SECULO XV
1987
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bem pouco provável, para não dizer inadmissível que a notícia da
necessidade de tais acrescentos se fazer a luz de descobrimentos
recentes tivesse chegado em tempo útil a todos os diversos possui-
dores de tão valiosos exemplares da cartografia.
Aliás, se de acréscimos se tratasse, seria desde logo de esperar
que a caligrafia dos topónimos que acompanham as manchas insula-
res, porventura introduzidas numa carta já antiga, fosse diferente do
calígrafo que nesta obra interviera; ora um estudo atento das cartas
nestas circunstâncias mostrou que tal se não verifica e que, pelo con-
trário, a letra se apresenta com o mesmo talhe em toda a extensão das
áreas costeiras representadas. É certo que este argumento não con-
venceu todos os historiadores nem todos os críticos; sem negarem a
uniformidade apontada, eles obtemperaram que a letra manuscrita
anterior ao século XVI, e sobretudo anterior ao século XV, se indis-
cutivelmente varia, a sua transformação é muito lenta com o correr dos
anos, mantendo'se por largos períodos de tempo com características
mais ou menos constantes e impessoais; quer isto dizer que dificilmente
se poderiam reconhecer pelo formato da letra das palavras que os
acompanham, os acrescentamentos desenhados numa carta, se acaso
eles tivessem sido feitos não muito depois de elaborado o documento
em que foram supostamente introduzidos.
Esta observação pode parecer oportuna ou pertinente, mas quem
alguma vez teve de se dar à leitura de textos manuscritos de um qual-
quer período do século XIV, sabe bem que o facto da letra ser então
mais desenhada do que o foi posteriormente não apaga em absoluto
um cunho pessoal de quem escreveu. Todavia, mesmo que admi-
tíssemos que dois calígrafos tinham a mesma letra, a tinta que usaram,
essa foi decerto diferente, e não há em tais cartas o mínimo indício de
tal diferença.
Além dísso tem de se reconhecer que as ilhas do arquipélago
madeirense não estão representadas de um modo estereotipado em
todas as cartas trecentistas em que aparecem, verificando-se que os
seus contornos e as suas posições relativas estão mais próximos dos
verdadeiros nas cartas mais recentes; só a toponímia é a mesma, apenas
com as inevitáveis variantes de carácter linguístico. E tal facto pode
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ser interpretado como consequência de um melhor conhecimento da
posição das ilhas com o curso dos anos, ou seja, depois de sucessivas
visitas, aperfeiçoando-se os desenhos a partir dos dados em cada uma
recolhidos.
Postas estas considerações gerais, se procedermos ao estudo com-
parado na cartografia trecentista que representa o Atlântico ao largo
da costa da Península Ibérica e do norte africano até o Cabo Bojador
(nessas cartas quase sempre já assinalado pelo seu nome actual), temos
de aceitar definitivamente que o arquipélago madeirense foi conhe-
cido de europeus, ou pelo menos de alguns navegadores e cartógrafos
italianos e ibéricos, desde meados do século XIV; efectivamente, se a
carta de Dulcert de 1339, apesar de anotar algumas das Canárias, ainda
não representa as ilhas mi'deirenses (pese embora a opinião oposta de
alguns autores), estas aparecem desenhadas pouco depois (em 1351)
numa carta do chamado atlas Mediceo; e logo a seguir: numa carta
atribuída aos irmãos Pizzigani, de 1367; numa folha do planisfério
catalão de Abraão Cresques, de 1375 (muitas vezes designado impro-
priamente por «carta catalã" de Paris, por se conservar na Biblioteca
Nacional desta cidade); na carta de Pinelli, de 1390; na carta de
Solleri, de 1385; além de várias outras.
Como se disse, verificam-se algumas insignificantes modificações
dos contornos e do posicionamento relativo das ilhas de carta para
carta, e ligeiríssimas alterações na grafia das designações da Madeira
(concorrem as fonnas de «Lenyame~>, «Lecname», «Legname», etc.) e
das Selvagens ("Salvatges» e "Salvages» por exemplo) - estas pela
primeira vez apontadas, até onde podemos saber, na carta dos Pizzi-
gani; quanto às «Desertas» e a «Porto Santo» são anotadas sempre com
estes nomes, apenas com ínfimas variantes -gráficas.
Adiantaremos desde já uma informação quanto à última das ilhas
citadas. É quanto a nós Inuito possível que o nome de Porto Santo
derive da circunstância de se pensar que por ali teria passado um santo
irlandês de nome Brandão, quando quase um milénio antes, e segundo
uma história fabulosa que correu por toda a Idade Média, ele empreen-
deu, com alguns seus companheiros de convento, uma longa e errante
viagem pelo Atlântico, à procura do Paraíso Perdido. Esta explica-
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ção é-nos sugerida pelo facto de em algumas das cartas, que incluem o
grupo das ilhas madeirenses, se terem desenhado um pouco mais para
norte algumas ilhas dispersas e sem qualquer dúvida fantásticas
(embora alguns autores tenham pretendido identificá-Ias com os Aço-
res), entre as quais aparece uma ilha ,ou aparecem várias ilhas relacio-
nadas, pelo nome, com as aventuras do frade e santo irlandês.
Esse facto parece-nos um claro indicio de que os autores dessas
cartas aceitaVam como verídica qualquer lenda que indicava ter São
Brandão andado a navegar por aquela área marítima; é muito possí-
vel que numa desconhecida versão da história se admitisse que ele
tivesse escalado por ali uma ilha, e esta fosse identificada com a de
Porto Santo, que recebeu o nome em consequência da hipotética
visita. É uma simples conjectura, que apenas como tal aqui se deixa.
As informações sobre a existência do arquipélago madeirense
parece terem partido de um passo do anónimo Libro dei Conosci-
miento. pretensamente escrito por um frade mendicante castelhano,
por volta do ano de 1350. Como em tantos outros textos do período
medieval e do mesmo género de <<lloveln geográfica», o autor ou compi-
lador desta obra inculca-se nela como um infatigável viajante que tinha
percorrido praticanete todo o mundo então conhecido - ou seja,
desde os países nórdicos até a terras do norte africano, e desde as ilhas
atlânticas até o Extremo Oriente. A indicação das escalas dessas suas
imaginárias viagens é, aqui e além, entrecortaOa por referências a casos
maravilhosos e incríveis que no decurso delas teria observado; isto
significa que o livrinho deve ser inserido no conjunto dos tão vul-
gares «livros de maravilhas» medievais, que tinham então, seguramente,
leitores interessados ou ávidos.
No entanto, se um qualquer dos livros deste género se alimentou
principalmente de lendas, de fantasias, de milagres e de acontecimentos
insólitos, isso não significa que o esquema de que o autor ou com-
pilador partiu não tenha qualquer ligação com a realidade geográ-
fica; pelo contrário, e quer-nos até parecer que para a grande acei-
tação de tais escritos concorresse a circunstância deles conterem alu-
sões a dados verídicos, que podiam ter chegado por outras vias ao
conhecimento dos leitores; isso podia 'Ievar estes a conceder ao texto,
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arbitrariamente composto, uma credencial de completa veracidade,
que ele na verdade não merecia,
É lícito admitir que os «livros de maravilhas» se baseariam, geral-
mente, em relatos parciais, orais ou escritos, e que alguns destes repro-
duzissem aventuras efectivamente vividas por aqueles que os transmi-
tiam; é claro que essas descrições podiam ser logo exageradas ou
acrescentadas por quem vivera a experiência, e vinham depois a ser
progressivamente aumentadas quando passavam de cópia para cópia,
pois era uma tentação para os sucessivos escribas introduzir no texto
transcrito novos dados que o tomassem mais aliciante; as referências a
países ricos em ouro, em prata e em pedras preciosas, para citar só um
exemplo, eram um dos meios seguros para excitar a imaginação de
muitos leitores com sonhos de fabulosas riquezas.
Casos destes entraram pelo século XV e pelo século XVI, e mesmo
em textos portugueses há disso provas: Álvaro Velho, presumível
redactor do chamado Diário da Primeira Viagem de Vasco da
Gama, registou nesse texto, credulamente, que as pedras preciosas
podiam ser apanhadas aos cestos numa indeterminada área da costa .
oriental africana; e também o anónimo autor do planisfério portu-
guês dito de Cantino (datável com todo o rigor de 1502) anota em
algumas legendas referentes a lugares ou áreas orientais (como, por
exemplo, a correspondente à ilha de Samatra) a existência abundante
de esmeraldas, de rubis, de pérolas, etc ..
Voltemos, porêm, ao Libro dei Conosdmiento; se temos por certo
que o seu desconhecido autor não fez mais do que uma ínfima parte das
viagens que descreve e a si mesmo se atribue (se é que alguma fez!),
parece-nos do mesmo modo inegável que teve à vista narrativas por
outros escritos sobre pelo menos algumas de tais deambulações, ou que
terá ouvido atentamente relatos verbais de peregrinos que tivessem
andado por lugares no texto referidos.
O hábito de ouvir exposições orais de viajantes que chegavam de
terras longínquas era então muito corrente, e está atestado (citaremos só
um caso) na documentação que se conhece referente ao reino de
Aragão, e precisamente para o século XIV.
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Dito isto, supomos ser de aceitar, em conclusão, que o escrito
atribuído ao frade mendicante castelhano transmite informações de
raiz fidedigna, embora porventura deturpados no percurso dos vários
elos de uma muito possível extensa cadeia que, desde a sua forma
original, as levou até o conhecimento do autor do Libra.
Com esta prevenção, vejamos o que se escreveu no texto que
interesse para o nosso caso. Usando a primeira pessoa do singular, o
peregrino castelhano afirma: "Subi a um navio com uns mouros, e
chegámos à primeira ilha que chamam Gresa (diga-se que não é fácil
identificá-la satisfatoriamente) e depois dela está a ilha de Lançarote, e
chamam-lhe assim porque as gentes desta ilha mataram um genovês
chamado Lançarote; e daí fui a outra ilha que chamavam Bezimarin
(nas condições de Gresa) e a outra que chamam Rachau (idem) e daí a
outra que chamam Alegrança e outra que chamam Forteventura»; a
narrativa continua neste estilo, e inclui citações às ilhas de Tenerife,
Inferno, Gomeira e Ferro (todas do grupo canáreo), e bem assim a
«Salvage», a «Lecname» e a «Puerto Santo», do grupo madeirense, mas
com falta de urna alusão à «Deserta» ou às «Desertas>}.
Se, como nos parece correcto, aceitarmos a ideia de que o Libra
reproduz narrativas compiladas pelo "frade mendicante», somos obri-
gados a concluir que o arquipélago da Madeira foi decoberto, reconhe-
cido e quase todas as suas ilhas baptizadas antes de meados do
século XIV, pois esta é a época apontada pelos especialistas como a da
redacção dess!! importante narrativa.
Será tal conclusão tão extraordinária como já algumas vezes se
pretendeu, e até em vários casos com acalorada veemência? Não nos
parece porque somos de opinião (aliás partilhada por vários histo-
riadores) que já por esse. tempo seria navegada com alguma fre-
quência por navios peninsulares numa vasta área marítima que se
alarga para poente do Estreito de Gibraltar três a quatro centenas de
quilómetros, estendendo-se desde a latitude do Cabo de São Vicente
até a das Canárias - área a que no século XVI se chamou frequente-
mente o Golfo ou Vale das Éguas.
Aliás o texto do Libra, como acima se indicou, junta num só o
reconhecimento dos arquipélagos madeirense e canáreo, e dispomos
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de uma indicação segura de que o último foi efectivamente visitado
antes de 1339, pois é deste ano a acima referenciada carta portulano de
Dulcert , que inclui algumas das suas ilhas; o arquipélago da Madeira
teria, deste modo, sido entrevisto pela primeira vez entre este ano e
cerca de 1350.
O conjunto insular canário está certamente relacionado com
expedições italianas; na carta-portulano de Dulccrt a sua ilha de Lan-
çarote encontra-se assinalada com as armas de Génova, sendo de admi-
tir que, tal como se lê no Libra dei Conoscimiento , um genovês de
nome Lançarote (e de apelido Malocelus) :)ara lá se tenha dirigido na
primeira metade de trezentos (alguns autores precisam até o
ano: 1312), com o intuito de fixar aí uma «colónia»; o que conseguiu e
que se manteve vários anos, até a morte do seu patrocinador às mãos
dos guanches, nunca conformados com a ocupação.
No 'entanto, as Canárias não despertaram o 'interesse só de nave-
gadores genoveses. Em 1341, por exemplo, teria sido preparada em
Lisboa uma expedição que se destinava a essas ilhas, e que efectiva-
mente as visitou, tendo regressado depois ao ponto de partida. Foi
organizada também por italianos, mas participaram nela marinheiros
da península ibérica, sendo muito provável, para não dizer certo, que
entre eles se encontravam alguns portugueses. Corre sobre esta
viagem um relato abreviado, muito provavelmente redigido pelo punho
do grande escritor Giovanni Bocaccio, e repleto de notícias interes-
santíssimas, cuja exactidão parece de aceitar.
Aesta experiência pouco animadora, porque.os resultados comer-
ciais da expedição foram mediocres, outras se seguiram; temos tam-
bém notícias certas de que os catalães entraram na corrida pelas
Canárias , organizando várias expegições que chegaram até o arquipé-
lago: Domenec Gual e Desvalers, erii"1342; Jaime Ferrer, em 1346 (esta,
de resto , muito expressivamente assinalada pelo desenho de um navio,
em alguns espécimes da cartografia); Amau Roger, em 1352; etc.
Verifica-se, pois, que por meados do século XIV, o arquipélago
das Canárias fora sucessivamente visitado por navios de italianos , de
aragoneses e de maiorquinos, sendo já bem conhecido de todos' eles;
II
tanto assim era que, no último dos anos referidos, o Papa nomearia pela
primeira vez um bispo para exercer o seu munus nas ilhas.
É claro que além das viagens às Canárias testemunhadas por
documentação autêntica do nosso conhecimento, decerto muitas outras
se terão realizado, sem sobre elas terem chegado aos dias de hoje dados
comprovativos. Estão exactamente nestas circunstâncias viagens
organizadas por portugueses, que quase com certeza tiveram lugar,
apesar de sobre elas não existir qualquer narrativa que sequer suma-
riamente nos dê a conhecer as mais importantes peripécias vividas
pelos aventureiros que as terão levado a bom termo.
Refira-se em primeiro lugar que, depois da episódica ocupação de
uma das ilhas por parte de Lançarote, em 1344 surgiu o plano de tomar
o arquipélago pela força das armas, pois se sabia muito bem que uma
parte das ilhas era habitada, e que os habitantes ofereciam tenaz resis-
tência aos intrusos, apesar de apenas disporem do recurso à pedrada ou
a armas rudimentares.
D. Luís de la Cerda, descendente do rei Afonso X de Castela (de
cognome «O Sábio» l, foi quem arquitectou o projecto de tomar posse
de um grande grupo de ilhas, (em que entravam as Canárias a par de
outras imagináriasl, a fim de aí fundar um pequeno domínio, de que
viria a ser rei ou príncipe.
O Papa chegou até a investi-lo no cetro do fictício principado,
comprometendo-se D. Luís de La Cerda, em troca, a descarregar-se de
certas obrigações, que voluntariamente contraiu perante a Cúria, logo
que estivesse na posse efectiva dos «seus» territórios insulares; e o
pontífice levou o caso tanto a sério que chegou a pedir a reis e a prín-
cipes da Cristandade para apoiarem o pretendente nessa tarefa de
«cruzada», que colocaria as ilhas sob o poder espiritual da Igreja.
O projecto estaria de toda a maneira condenado ao fracasso; mas
este foi imediato porque os príncipes e reis a quem a mensagem papal
chegou, nada fizeram para dar uma ajuda ao pretendente ao trono
canário, e de la Cerda, sem armas, sem navios e sem homens, viu-se
compelido a renunciar ao seu sonho.
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No entanto, um rei houve - o de Portugal, D. Afonso IV - que
não só se recusou a auxiliar D. Luís, como reclamou do Papa o direito a
ser ele o reconhecido como príncipe ou senhor das Canárias, estribado
no argumento de que vassalos seus já tinham estado por sua ordem
no arquipélago (e por isso o considerava sob juris~ição), e no facto
de ser Portugal o reino europeu mais próximo das ilhas.
Esta respeitosa impugnação do rei português a uma decisão papal,
é conhecida através de um documento existente nos arquivos do Vati-
cano, que tem feito correr rios de tinta, por terem levantado
dúvidas quanto à sua autenticidade. Não nos interessa de momento
fazer a história dessa polémica; bastará dizer-se que as mais modernas
críticas a que o texto foi submetido, sob várias perspectivas (desde o
tipo da letra em que está escrito até à colecção arquivística em que se
encontra inserido), apontam para a sua veracidade; e como autêntico o
aceitamos.
Dessa carta de protesto, D. Afonso N é muito claro em afIrmar o
direito que lhe assistia em fazer ocupar o arquipélago por homens seus,
aduzindo as duas razões acima referidas; e opõe-se logo a qualquer
objecção que podia ser levantada afIrmando que já lá mandara navios
ao reconhecimento, embora não precise a data em que o fez; por outro
lado, e para atalhar qualquer dúvida que o PontífIce levantasse pelo
facto de não ter manifestado continuidade nesse seu propósito, o Rei
explica-se: não prosseguira na acção empreendida por ter sido obrigado
a envolver-se em guerras, em primeiro lugar com os castelhanos (luta
que se iniciou em 1336) e logo depois com muçulmanos (principiada
em 1341); a expedição por si organizada seria, por consequência,
anterior ao primeiro dos anos indicados.
Não faltou quem precipitadamente tivesse identifIcado esta viagem
cúm a Lançarote Malocelus, para tal efeito con'siderado como um'
dos homens «sabedores do mar», que de Génova vieram para o serviço
da Coroa portuguesa em resultado do célebre contrato que o Rei
D. Diniz assinou com Manuel Pessanha, em 1317; e não faltou igual-
mente quem adiantasse que D. Afonso N não desistiu dos seus
intentos, sendo ele o promotor da viagem de 1341. Mas isto é incerto;
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ilhas , quando muito gente devia saber da sua existência, pois que uma
abundante cartografia as registava?
Se D. Henrique jamais se declarou como tendo, através dos
seus marinheiros, o seu descobridor, foi porque cenamente-rambém ele
não ignorava, ao desencadear os descobrimentos, que elas existiam,
conhecendo até a sua localização aproximada.
Realmente o Infante fala , em diplomas por si subscritos, e por mais
de uma vez, das ilhas da Madeira, mas apenas se apresenta como
homem que tomou a iniciativa de as mandar povoar. Assim, numa
carta de doação passada em 8 de Maio de 1440 a favor de Tristão Vaz
Teixeira, o [nfante, concedendo-lhe amplas regalias para se poder fixar
na Madeira como povoador, não refere que a ilha tivesse sido des-
coberta pelo beneficiário (facto que justificaria a mercê), nem por
qualquer outro dos capitães que andaram em seu serviço; num outro
diploma, datado de I de Novembro de 1446, em que Porto Santo é
cedida a Bartolomeu Perestrelo, a fim de que este procedesse à sua
ocupação, D. Henrique refere-se à ilha como sua, mas também não
mandou escrever, ou não consentiu que se escrevesse no documento
qualquer frase em que , mesmo de modo indirecto , se inculcasse como
seu descobridor.
Azurara não vai mais longe. No capítulo 83 da sua Crónica dos
Feitos da Guiné, que sintomaticamente trás por título «de como foi
povoada a Madeira, e assim as outras ilhas que estão naquela parte», o
cronista conta-nos que, depois «da vinda que o infante fez do des-
cerco de Ceuta." «dois escudeiros pobres» da sua casa, pediram-lhe que
lhes pennitisse ir «de armada contra os mouros». encaminhando-os
como se fossem em busca da terra de Guiné. a qual ele já tinha vontade
de mandar buscar». Aparelhada uma barca para o efeito, e iniciada a
viagem , -com tempo contrário» foram ter a Porto Santo; aí se detiveram
alguns dias para proceder ao reconhecimento da t.-m, dele concluindo
que ela oferecia excelentes condições para ser povoada.
Tal ideia seria aceite por D. Henrique. mas disso nos ocuparemos
mais adiante; por agora apenas desejamos salientar que não há no texto
de Azurara a mais leve alusão a um descobrimento; na opinião do
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inexactidões, por inadvertência ou por intromissões deliberadas.
O estudo critico desta importantíssima peça para a história dos des-
cobrimentos portugueses nunca foi feito na globalidil,de ou sob estas
três perspectivas analíticas; presumimos, no entanto, que os erros
porventura cometidos sejam de secundária importância e envolvam só
aspectos de porruenor; e é por isso que ao texto recorremos e o
tomamos à letra, sem quaisquer hesitações.
Que nos diz Diogo Gomes acerca do descobrimento da Madeira?
Rigoros.amente nada - e, no entanto, fala do arquipélago mais de uma
vez. Num dos passos em que tal acontece o velho caravelista henrí-
quino terá dito que «no tempo do senhor infante D. Henrique, uma
caravela com torruenta, viu uma pequena ilha, que está perto da
Madeira, e que se chama hoje Porto Santo, despovoada".
Parece claro que Diogo Gomes ignorava ter a ilha de há muito o
nome que ainda hoje mantém; todavia, se trocarmos a palavra «cara-
vela» por «barca», verifica-se que esta inforruação quaSe se identifica
com aquela que Azurara transmite. Diogo Gomes deixa implícito o
reconhecimento da ilha, que então terá sido feito, pois conclui a breve
referência com os seguintes dados de alguma importância (mas não
registados por Azurara), que só através de uma acção daquele tipo
podiam ter sido recolhidos: «Nesta ilha de Porto Santo há muitas
árvores que se chamam dragoeiros, as quais dão uma resina muito
linda, de cor verruelha, a que se chama sangue de dragão. E aquela
caravela regressou, anunciando ao Infante a terra encontrada, da qual
levaram sangue de dragão e ramos de outras árvores ... ».
Quando na continuação desta narrativa se lê que D. Henrique
tomQu a decisão de mandar o piloto Afonso Fernandes à «ilha des-
coberta de Porto Santo» (<<insulam inventam de Porto Santo,,), não nos
parece correcto considerar a expressão como insignificante de que
D. Henríque fora o seu descobridor; o texto apenas aponta para o facto
da ilha ter sido visitada, deixando indeterrninados o nome do nave-
gador que a visitou e a data da visita.
A esta mesma conclusão nos conduz uma outra fonte manuscrita
um pouco mais tardia, pois data do início do século XVI. Trata-se de
17
2
um texto «sobre as ilhas do Mar Oceano», que o mesmo Valentim
Fernandes redigiu e juntou à compilação remetida a Konrad
Peutinger,
Nesse escrito Ftírnandes começa por nos dizer que os castelhanos,
ao tempo em que andavam empenhados na conquista das Canárias,
para onde mandaram frequentemente annadas, tinham por hábito ir a
Porto Santo fazer carnagem, pois havia cabras na ilha; os primeiros que
aí aportaram, fizeram-no «com o tempo» - o que quer dizer: em con-
sequência de tempestade ou de ventos contrários.
É de notar que o recurso a uma tonnenta para explicar a primeira
abordagem à ilha, é igualmente usado por Diogo Gomes, como se viu,
embora este autor não endosse o acontecimento a um anónimo cas-
telhano; e é também de assinalar que se esse supostamente primeiro
visitante da ilha lá foi encontrar cabras, alguém para lá teria levado os
animais em viagem anterior.
Como é que, nesta versão, se explica ter vindo a ilha ao conhe-
cimento dos portugueses? Teremos a resposte. se continuannos a ler
Valentim Fernandes: na verdade, este diligente impressor da corte de
D. Manuel conta que certa vez, andando João Gonçalves Zarco «de
armada em uma barca contra os castelhanos», e sem qualquer resul-
tado positivo, um outro castelhano, seu companheiro de aventura, lhe
disse: "Senhor, se quiserdes tomar boa preza, vamos onde eu vos
disser, que é a ilha de Porto Santo, onde os conquistadores de Canária
[topónimo que designava genericamente o arquipélago, em que a ilha
com aquele nome se integral vão fazer sua carnagem e tomar sua água;
porquanto, quando eles ali estão, saem todos em terra, e tomaremos os
navios e depois cativá-los-emos em terra».
Apesar desta proposta ter sido encarada de diversos modos pelos
companheiros de Zarco, acabou por se concluir que era de pôr em
prática a sugestão do castelhano; mas chegaram tarde à ilha, o que os
impediu de pilhar os navios e de cativar os seus tripulantes - embora
o golpe planeado tivesse falhado por pouco, pois encontraram em terra
vestígios de uma carnagem recente; algum gado morto e fogueiras que
ainda crepitavam.
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Parece-nos oportuno aqui um parentese para darmos uma expli-
cação. Efectivamente, à luz do código de honra da cavalaria da época
um acto como este planeado por Zarco não era condenável, como o
seria hoje; um cavaleiro desse tempo podia entregar-se à actividade do
corso, e se ela terminasse a seu favor, isso só o honraria; abordar um
navio no mar, pilhá-lo e aprisionar-lhe a tripulação era um acto per-
feitamente lícito, mesmo quando as vítimas fossem irmãos de crença; a
diligência de Gonçalves Zarco, aliás frustrada, nada tinha, por conse-
quência, de condenável, à luz do «código 3e honra» vigente nessa
época.
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escreveu logo a el-Rei seu pai, que estava em Santarém, pedindo-lhe
de mercê as ditas ilhas para as povoar, e el-Rei lhas outorgou».
No final deste passo há um plural aparentemente abusivo; na
verdade, das palavras antecedentes fica-se com a ideia de que apenas
estava em causa a ilha de Porto Santo, e não as ilhas do arquipélago
madeirense; mas na sequência do texto colhe-se, de facto, a ideia de
que Zarco, embora apenas tivesse visitado l'orto Santo, tinha em vista a
ocupação de «ilhas». É assim muito possível que no escrito de Valentim
Fernandes se queira dizer que Zarco associara à que lhe fora apontadá
pelo indiscreto castelhano outras do mesmo grupo insular, por acaso
entrevistas no decorrer dessa viagem excêntrica, se não conqecidas
somente através de qualquer carta náutica em que estivessem repre-
sentadas.
Valentim Fernandes conta-nos depois, à sua maneira, como as
ilhas do arquipélago da Madeira foram ocupadas e povoadas, não sem
sérios desentendimentos entre Zarco e os dois homens que, para levar a
bom termo a tarefa, teria agregado a si: Tristão Vaz Teixeira e Bar-
tolomeu Perestrelo. São informações que de momento nos não inte-
ressam; importa antes sublinhar que o narrador concorda com Azurara
e com Diogo Gomes em não atribuir à época henriquina o des-
cobrimento do arquipélago, o que também está implícito, como se
viu, nos textos em que o infante se refere às ilhas que o compõem.
E no entanto, a notícia do descobrimento porruguês do arquipé-
lago da Madeira tem sido sustentada por vários historiadores, e com tal
persistência que a notícia passou a ser inserida nos manuais escolares,
como dado indiscutivelmente adquirido.
Qual a origem dessa nova.versão dos acontecimentos, em absoluto
contrária às que acabamos de referir? Parece-nos fora de dúvida que
podemos encontrá-Ia em João de Barros, que nas suas Décadas assume
uma visão epopeica dos descobrimentos portugueses; não obstante
procure sempre imprimir objectividade à descrição que dos grandes
factos delas nos faz, Barros não hesitou em silenciar situações que tinha
por menos exemplares, como aliás nessa monumental obra adverte,
expressa e escrupulosamente.
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- - - -________ ~J?""~
I
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Tudo isto é inconsistente à luz do que sabemos através das fontes
por nós citadas; e basta referir as cartográficas, pois elas desmentem
que Porto Santo e Madeira tinham sido baptizadas com estes nomes
apenas no século xv. Por outro lado, não é crível que a Madeira
tivesse sido avistada de Porto Santo apenas como uma equívoca sombra;
qualquer das ilhas pode ser sem dificuldade avistada da outra, e a
Madeira, pela sua maior área e pelo seu relevo, é ainda mais facilmente
notada da ilha vizinha.
Se O texto de Barros pode ser considerado uma fonte secundária
para o esclarecimento do problema que nos ocupa, o mesmo se não
poderá dizer do relato de Alvise Cadamosto, que esteve em Portugal
por meados do século XV e empreendeu viagens de negócios a terras
africanas, com a indispensável autorização de D. Henrique; na narra-
tiva, em que se ocupa sobretudo da experiência adquirida nas suas
expedições, Çadamosto também se refere ao arquipélago madeirense.
22
explicar; e a justificação dada para o nome posto à última ilha não
passa, como é evidente, de uma fantasia de Cadamosto,
Assim, e sem perdermos tempo a referir informações de outras
fontes do século XVI, já que nenhuma delas veicula novos dados sobre
o problema que nos ocupa, podemos concluir que todas elas deslocam
abusivamente para o primeiro quartel do século XV o descobrimento
do arquipélago; que este teve lugar cerca de um século antes, e que os
nomes dados às ilhas foram atribuídos desde o primeiro reconheci-
mento. E é sobretudo através da Cartografia, aliás não contrariada
pela pouca documentação que até nós chegou, que podemos avançar
as duas últimas conclusões com bastante segurança.
23
cobrimento da Madeira, irradiou para muitos escritos, e na maioria dos
casos sem o mínimo espírito crítico.
Passemos à historieta, tal como no-la conta Valentim Femandes.
Era uma vez um fidalgo de Inglaterra, de nome Machin, que, por qual-
quer delito grave não especificado, foi condenado a degredo; forçado
ou decidido a abandonar a sua terra, e pensando refugiar-se na Penín-
sula Ibérica, comprou para isso um pequeno navio de quarenta toneis,
carregou-o com os seus bens, a sua «manceba" (quer dizer: sua amante)
e os seus criados, além de gado caprino que assegurasse a alimentação
de todos, e meteu-se ao mar.
É de supor que o destino fosse Portugal, pois chegou à vista das
Berlengas. Mas o navio foi então apanhado por um furioso temporal
(mais uma vez se regista o súbito aparecimento de uma intempérie para
explicar o curso da narração!), que os fez correr desgovernados mui-
tas léguas, até darem com a ilha de Porto Santo. Espantaram-se muito
de encontrarem abrigo tão engolfados no mar, mas logo decidiram
retemperar-se lia ilha dos trabalhos passados, desembarcando também
os animais qttelevavam, «por serem magros e cheios de fome~>.
Aclarando o tempo, «viram mais terra ao mar,e fizeram vela e
foram ver que terra era, e arribaram a um porto onde agora chamam
Machico». Ést<lvam, portanto, na Madeira, e o lugar, a que aparta-
ram, pareceu <\lJ nobre inglês apropriado para se instalarem, o que sem
demora se fez.
Depois dé êstabelecido com as poucas comodidades possíveis em
tais circunstâncias, Machin tomou a decisão de proceder ao reconhe-
cimento da i1hà, embrenhando-se nela durante três dias. Ao regressar
à sua precária base, esperava-o uma surpresa: o pequeno navio em que
viajara tinha desaparecido, porque os tripulantes se decidiram pela
fuga, levando consigo todos os haveres do desventurado fidalgo pros-
crito; ficara-lhe a «manceba», que dignamente se recusou a acompa-
nhar os fugitivos, apesar de aliciada a fazê-lo (<<e ela disse que nunca
Deus quisesse que houvesse de deixar seu senhor,,), e um jovem pagem.
Um severo castigo esperava, como seria conveniente para a his-
tória, os desumanos marinheiros do navio de Machin; efectivamente,
24
I
25
Santo abastecer-se de carne, porque as cabras ali deixadas por Machin
proliferaram, espalhando-se por toda a ilha repartidas por muitos
rebanhos numerosos.
Vamos passar agora ao texto de D. Francisco Manuel de Melo
para se ver como, em cerca de século e meio, esta aventurosa his-
tória se enriqueceu. E começaremos por dizer que na Epanáfora a
principal personagem da novela se chama Robert (embora fosse conhe-
cido por «o Machino»), é um homem de inferior nobreza, terá vivido no
tempo de Eduardo III e não praticara qualquer crime a que se seguisse
uma condenação; era, no entanto, um pouco excêntrico, pois, «des-
prezando jogos e banquetes» a que se entregavam os homens da sua
igualha, «se singularizava em pensamentos mais altos».
Se Robert não é, nesta versão de D. Francisco Manuel, um homem
desde o início forçado a abandonar a sua pátria, tão pouco a sua com-
panheira de aventura se pode dizer que fosse, com carga pejorativa,
uma «manceba»; chamava-se Ana de Erfet, era uma «donzela fonno-
síssíma» (repare-se na diferença!), «estimada como uma maravilha
entre maravilhas», pela qual suspiravam muitos fidalgos daquela corte
eduardina. Ana passava de largo, sobranceira, até que o destino pôs
no seu caminho Robert, por quem ela se enamorou perdidamente,
sendo correspondida com não menor ardor.
No entanto, os dois jovens enamorados encontravam-se inseridos
em dois extractos muito diferenciados da nobreza, sendo o de Ana de
nível muito superior; estava, aliás, prometida pelos pais um lorde de
«alto estado»; quando souberam que Ana se encontrava louca de
amores por Machin, não lhes foi muito difícil fazer ·encarcerar o
namorado de menor estirpe, e acelerar o casamento da filha com o
homem que lhe tinham destinado.
No episódio imediato a história passa a desenrolar-se em lances
verdadeiramente rocambolescos. Machin foi solto, e, com auxílio de
familiares e amigos decidiu pôr em prática um audacioso plano: ir a
BrÍstol, raptar Ana (depois de obtido o seu consentimento - e, por
consequência, também a sua colaboração!) e fugir por mar com ela
para França. E o plano foi executado tal como estava previsto: Ana
26
de Erfert e Robert Machin conseguiram desferrar no seu navio de
Bristol, na esperança de encontrarem em qualquer lugar da costa
francesa uma terra de promissão em que pudessem viver em paz e
amar-se sem as interferências dos rigorosos bons costumes do meio
em que tinha nascido.
O futuro que os esperava era, porém, muito diferente. Por defi-
ciência de aparelho para uma boa navegação ou por imperícia dos
marinheiros que o tripulavam (D. Francisco Manuel não deixa isso bem
claro, mas fala de «falta de governo» e de «sobejo vento»), o navio
singrou desgovernado; ao cabo de treze dias de navegação incerta, não
estavam à vista da Costa de França, a que se destinavam, mas de uma
terra altíssima e cheia de frondoso arvoredo.
Tendo reconhecido tratar-se de uma ilha acolhedora, em que
podiam instalar-se a contento, ali decidiram desembarcar os dois amo-
rosos; com a ajuda dos seus amigos e dependentes construiram rudi-
mentares pousadas, decididos a viver ali com árvores, com flores, com
sossego e com paz. Uma paz que durou apenas três dias, acres-
cente-se; porque ao terceiro dia uma súbita tempestade (e é mais uma!)
arrebatou o navio com os seus tripulantes, deixando Ana e Robert, com
alguns poucos serviçais e amigos isolados em terra.
Estavam uns e outros lançados na estrada de um trágico fim. Com
efeito, e tal como na versão de Fernandes, o navio veio a perder-se na
costa de Marrocos, donde os seus ocupantes foram transferidos para
masmorras mouriscas - ou, como diz o escritor, «passaram da tumba
[o navio desgovernado em que iam] à sepultura» [os cárceres em
que os encerraraml.
Ana, que pressentia um fim «lamentávej", «desde o primeiro passo
do seu caminho, ou do seu descaminho» (não se esqueça que ela
abandonara o marido!) caiu em estado de tão grande prostração que
«desde aquela hora até a sua morte, nunca mais as palavras lhe
souberam o trânsito do coração à boca». Nesse estado emocional
viveu apenas três dias!
Machin sepultou-a com sentidas lágrimas e ornamentou-lhe o
túmulo com grinaldas de flores (na versão mais tardia do cónego
27
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Jerónimo Dias Leite, até redigiu um epitáfio em versos latinos, que o
sacerdote reproduz); e para ali se deixaria ficar, caído em desespero, se
os companheiros lhe não tivessem exigido um último esforço para ten-
tarem sair da situação difícil em que se encontravam; lá conseguiram
inprovisar uma embarcação primitiva, e nela se fizera ao mar, para
terem a mesma sorte dos outros marinheiros: as masmorras muçul-
manas!
Contudo, o Rei de Fez não chega a intervir nesta versão, e por isso
Machin não veio a ser rapidamente recambiado para a Europa, como
afirmara Valentim Fernandes; pelo contrário, permaneceu muitos anos
cativo, junto dos seus companheiros. E foi durante essa demorada
prisão que comunicaria a suas aventuras a um castelhano, Juan de
Morales, que com ele partilhava o cárcere. Seria através deste homem,
que ninguém sabe quem fosse, que a notícia da existência da Madeira
correu pela península - quando ele, depois de pago o resgate recla-
mado, pôde voltar à sua terra.
*
Não há dúvida que esta história romântica do descobrimento da
Madeira é muitíssimo mais atraente do que a descolorida narrativa,
cheia de dúvidas, de omissões e de informações desencontradas, com
que iniciámos este capítulo. No entanto, a história menos atraente é a
verdadeira; a outra não passa de romance tecido em torno da ilha da
Madeira, ou do arquipélago a que ela pertence, com linhas de que de
todo se ignora a origem, mas que tocaram muito de perto várias gera-
ções de escritores e os seus leitores.
28
2. OS PRIMEIROS DONATÁRIOS DA MADEIRA
29
A primeira obrigação do donatário, e certamente a mais impor-
tante, era a de fazer transferir para o domínio referido no documento
de outorga, uma população portuguesa, europeia e africana, que aí se
estabelecesse e se ocupasse de exploração da terra; cada um dos
primeiros imigrantes devia desencadear actividades agrícolas de base
que garantissem a subsistência do agregado familiar de si dependente,
com excedente para a comunidade que em tomo desse núcleo de
povoadores se reunia; e ainda para a exportação, em que o donatário se
mostrava sempre interessado; ou, se preferirmos, essa primeira fase da
intervenção do donatário visava «colonizar» a área terrestre constituinte
da donataria.
Sem o povoamento ou sem a ocupação, é evidente que o dona-
tário não podia tirar qualquer benefício da doação real; era neces-
sário povoar, ocupar e colocar os homens transferidos para as áreas da
donataria a produzir à custa do seu trabalho, para que o senhor pudesse
exercer o direito, que o rei lhe reconhecia, de cobrar vários impostos,
que não era a única mas uma significativa fonte de rendimento.
Depois da operação de transferência de gente bastante para a área
a ocupar, cumpria ao donatário, ou aos seus capitães em seu nome ,
distribuí-la por povoados, em cuja definição intervinha de modo deci-
sivo; em seguida tinha de criar uma estrutura administrativa que
regulasse as relações entre os vizinhos dos diversos agregados popu-
lacionais, e os de cada um destes entre si, prover à administração da
justiça (repete-se: com alguns limites defmidos pelo rei), aproveitar as
condições para a criação de uma assistência religiosa efectiva -
numa palavra, tomar todas as medidas com vista a impulsionar o pro-
gresso nascente na comunidade recém-criada, dentro dos modelos em
prática no reino.
A entrega de terras aos colonos era então feit!, em regime de
sesmarias, muito embora, anos e séculos mais tarde, quando a coroa ou
o estado se substituiu ao donatário, esse modo de distribuição viesse a
ser objecto de variadas e, às vezes, bastante frequentes alterações.
Por um diploma régio de 30 de Outubro de 1422 (cujo original se
perdeu, mas que foi incorporado num texto de confirmação assinado
por D. Afonso V), sabe-se que o Infante D. Henrique passou a estar
30
autorizado a doar as suas terras e as pertencentes à Ordem de Cristo, de
que era governador. Quer isto dizer que, em princípio e teoricamente,
já o podia fazer a respeito dos solos madeirenses, quando começou a
povoar o arquipélago da Madeira no ano de 1425; este ano é indicado
como do início do povoamento pelo mesmO infante, nas suas dispo-
sições testamentárias de 1460.
Acontece, porém, que à data da primeira ocupação do arquipé-
lago, o infante ainda não era, efectivamente, o seu donatário; sabe-se
isso porque a autorização passada a João Gonçalves Zarco, no sentido
de proceder à partilha de terras madeirenses, aparece assinada por
D. João I, num documento em que declara «rei e senhor» das ilhas, por
"poder regulado e absoluto»; quer dizer: a administração do arqui-
pélago dependia do Rei, e ele não estava disposto a largá-la de mão em
favor do fIlho.
D. Henrique só viria a alcançar a donataria no reinado do seu
irmão D. Duarte, pela carta régia de 26 de Setembro de 1433; o rei
afIrma nela expressamente ceder ao irmão as «suas ilhas» de Madeira,
do Porto Santo e da Deserta, com todos os direitos e rendas que ele,
doador, até então para si retivera; declara também expressamente que
endossava ao infante D. Henrique a «jurisdição civil e crime, salvo em
sentença de morte ou talhamento de membro», casos em que reser-
vava para si a resolução final; o donatário fIcava igualmente autori-
zado, por esse documento, a fazer naquelas ilhas todos os "proveitos e
benfeitorias» que lhe parecessem para bem delas, bem como a aforar,
«em perpétuo ou a tempo», todas [ ... ] terras» a quem lhe aprouvesse,
com O direito de fazer dádivas de terrenos com a remissão de qualquer
foro, prerrogativa que o infante teria em sua vida, e que certamente lhe
foi concedida para ele a usar como meio de incentivar o povoamento. Há
no texto urna restrição de assinalar: o donatário não podia mandar
cunhar moeda própria naqueles territórios, pois o rei queria, e afirma-o,
que a «sua» ali «corresse>}.
Que isto dizer que desde 1425 (se na verdade foi este o ano do
arranque do povoamento, o que para alguns historiadores não é abso-
lutamente certo) a interferência de D. Henrique no arquipélago da
Madeira tinha sido feita a título precário; faltava-lhe o apoio de um
31
diploma legal que legitimasse as iniciativas nesse sentido tomadas, e lhe
alargasse os poderes até os de um autêntico donatário, que apenas
logrou alcançar nesse ano de 1433, pouco depois da morte de seu pai.
É ainda de referir que naquele justamente célebre documento,
D. Duarte reservava para si não só o foro como também alguns direitos
reais (como a dízima do pescado); nos primeiros anos da sua regência,
o infante D. Pedro declaria os ocupantes das ilhas dispensados do
pagamento de alguns desses impostos , por um determinado periodo.
D. Henrique nunca terá alimentado o plano de administrar direc-
tamente as ilhas contempladas naquela disposição eduardina. Pensou
antes em subestabelecer essa obrigação em pessoas da sua confiança,
passando para isso cartas de doação: da chamada capitania de Machico
a favor de Tristão Vaz ,Teixeira, em 8 de Maio de 1440; a de Porto
Santo, enlregue a Bartolõmeu Perestrelo, em I de Novembro de 1444; e
a do Funchal , que ficou a cargo de João Gonçalves Zarco , em I de
Novembro de 1450.
Seguindo o mais antigo dos documentos agora citados (e os outros
são de igual teor) verifica-se que, em primeiro lugar, o infante se
preocupa nele em delimitar com o máximo rigor possível a área sobre a
qual o cavaleiro da sua casa Tristão Teixeira podia exercer a sua acti-
vidade; em seguida vai mais longe e faz dele um verdadeiro capitão-
-donatário, pois lhes trespassa «a jurisdição [ ... ) do civil e [do)
crime, ressalvando a morte ou talhamento de membro, que [no caso) a
apelação venha a mim» (substituindo-se abusivamente ao rei). Mas
D. Henrique ,não alienava todos os poderes, pois adverte , de forma
expressa, que os «seus mandados e correição sejam cumpridos como em
coisa minha própria».
Tristão Vaz Teixeira tinha, no entanto, direitOs sobre moinhos de
açúcar da área da sua capitania; sObre os fomos do pão, sobre o sal,
podia criar um imposto sobre rendas já taxadas para o' infante (direito
chamado de redízima) e era-lhe permitido distribuir as terras situadas,
na área que lhe estava distribuída, por quem entendesse; estas doações
de terras podiam considerar-se prescritas ao fun de cinco anos, caso os
beneficiários as não tivessem devidamente aproveitadas dentro desse
lapso de tempo.
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o que se cita parece-nos suficiente para se ter uma ideia de como,
sob a égide protectora do infante D. Henrique, o capitão passava a
gozar no arquipélago, embora em áreas restritas, de um estatuto de
quase donatário, com larguíssimos poderes, que mais tarde lhe seriam
retirados pela coroa, que para si os tomou de novo.
Como se explica que tendo sido iniciado o povoamento em 1425
(se, na verdade, foi) só quinze anos volvidos se iniciasse a regulamenta-
ção dos meios para pôr em prática tal medida? E não há dúvida que
em 1440 o processo de ocupação se encontrava bastante avançado,
pois no documento por nós referido há alusões ao cultivo da cana do
açúcar, e esta só podia ser feita com o concurso de vasta mão-de-obra
agrícola.
Já em 1914 Damião Peres, ao ocupar-se de A Madeira sob os
Donatários, acabou por se defrontar com tal pergunta. Este histo-
riador notou, em primeiro lugar, que as atribuições judiciais conferidas
aos capitães pelos referidos diplomas de donatário, deviam ser por eles
anteriormente exercidas, baseado na circunstância de se saber com
toda a certeza que assim aconteceu para o caso de Bartolomeu Peres-
trela em relação a Porto Santo; em segundo lugar, não parecia a
Damião Peres de aceitar que os diplomas citados fossem antecedidos
de outros com objectivos semelhantes ou alternativos, mas visando fms
análogos; deste modo, acabaria por sugerir, como provável ou mais
compreensível que <<uos primeiros tempos os futuros capitães-dona-
tários actuavam apenas como delegados do Infante, embora com a
mais lata autoridade". E para melhor fundamento desta sua opinião
refere que o mesmo infante, na carta de mercê da capitania do Funchal
a Zarco, explicitamente diz que o fazia «por ele ser o primeiro que, por
meu mandado, a âita ilha povoou".
Com esta interpretação ficaria amplamente explicada a presença
dos três capitães no arquipélago madeirense muito antes de 1440, ano
em que, como se disse, foi assinado o mais antigo diploma de doação.
A propósito do teor desses textos fez notar o mesmo historiador, e
a razão quanto a nós assiste-lhe, que D. Henrique se «excedera»: na
verdade, e mencionámos oportunamente esse facto, ele não tinha
direito a reservar para si a resolução sobre as pesadas sentenças
33
3
referidas, pois o diploma de 1433 a deixava ao arbítrio exclusivo do rei;
por outro lado, D, Duarte concedera-lhe a donataria do arquipélago da
Madeira apenas em uma vida, e parece evidente que, nessas condi-
ções, o infante nunca deveria incluir essas terras no seu testamento,
como fez,
Criadas as capitanias, e confirmadas por D. Afonso V pouco
depois da batalha de Alfarrobeira, os povoamentos de Porto Santo e da
Madeira receberam um forte impulso; e por isso as sedes das duas
capitanias foram a curto prazo elevadas a vilas: o Funchal em data
incerta mas anterior a 1461 (possivelmente em 1452), e Machico um
pouco mais tarde, mas com toda a segurança ainda em vida de Tristão
Vaz Teixeira.
Por morte do Infante D. Henrique a donataria das ilhas da Madeira
passou ao seu filho adoptivo, o infante D. Fernando, e depois a sua
viúva, D. Beatriz, que exerceu o poder sobre o arquipélago como tutora
do seu filho menor, o duque D. Diogo. Alguns anos mais tarde, sendo
este considerado como uma das figuras de nobreza que encabeçava a
conspiração contra D. João II, o rei apunhalou-o (23 de Agosto
de 1484), passando adonataria para a posse de D. Manuel, então duque
de Beja. Quando o Príncipe Perfeito condescendeu em entregar os
poderes de donatário ao jóvem e, com razão, amedrontado duque, o
texto da concessão estipulava que ela era feita para valer apenas em
vida do beneficiário, sendo a donataria integrada na coroa após o seu
falecimento. Como é bem sabido, cerca de uma década mais tarde, e
por morte de D. João II, o duque foi considerado como seu natural
sucessor, e aclamado rei de Portugal; deste modo a reintegração das
ilhas madeirenses no património real acabou por ser feita de um modo
automático.
Entretanto as ilhas tinham-se desenvolvido económica e social-
mente, o que veio a dar mais poder aos seus capitães e força à fidal-
guia de que se rodeavam, esta aliás revigorada com o poder econó-
mico da burguesia com que se cruzava. Consciente do seu peso, esse
grupo chegou a fazer frente, com independência e altivez, às deter-
minações do rei e dos donatários.
34
I
35
pectiva de obter «o compromisso de não ser no futuro lançada
nenhuma outra» contribuição.
De nada valiam as insistências. Os madeirenses mostraram-se
firmes, recusando-se ao pagamento voluntário do que devia ser por eles
considerado uma extorsão; em todos os tempos a fuga ao fisco é uma
forma de protesto contra impostos iníquos - mas neste caso a resis-
tência era massiva! E o problema arr&.tou-se durante anos!
Podiam-se apontar outros atritos como reveladores do confronto
entre o poder r~ol, os poderes senhoriais e os habitantes do arquipé-
lago, e Damião Peres estudou-os com argúcia. Os donatários (D. Bea-
triz, D. Diogo e, por último, D. Manuel), esses estavam sempre, como
não podia deixar de ser, pelo lado do rei, e acabariam mesmo por ser os
porta-vozes dos seus desejos, dos seus caprichos e das suas
exigências.
Esse conflito latente, que podia agudizar-se com o tempo, veio a
terminar através de uma solução «natural»: a ascensão de D. Manuel
ao trono, integrou automaticamente o arquipélago da Madeira nos
domínios da coroa; o rei passou a exercer directamente os seus pode-
res, dispensando um donatário, e tendo sob sua vigilância, e de algum
modo a seu arbítrio, os capitães.
É interessante notar, de qualquer modo, que quase na mesma data
em que o estatuto da donataria desaparecia na Madeira, ele renascia no
Brasil; e com apectos na aparência só ligeiramente diferentes, mas em
substância bem distintos, veio a mostrar-se aí de inegável eficiência,
tendo por isso uma vida menos perturbada e mais longa.
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3. EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA ECONÓMICA
MADE~NSE 1425-1500
a. - A propriedade
38
A partir da década de sessenta agrava-se a política de concessão de
terrenos, mercê do aparecimento de várias demandas sobre a sua
posse e sobre as águas, que obrigam a uma pronta intervenção do
donatário por meio do seu ouvidor. Ao mesmo tempo restringem-se
as frentes de arroteamento, pondo-se termo à concessão de terras em
regime de sesmarias, bem como a prática generalizada do fogo na
abertura de novas arroteias, que se reconheceu ser uma ameaça ecoló-
gica, e também da economia açucareira.
As reclamações e as medidas consequentes do senhorio atestam a
pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Das
facilidades da década de vinte entra-se na década de sessenta com
medidas limitativas dessas concessões, como forma de preservar áreas
de pasto de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de
canaviais. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordena-
ções régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição de áreas de
pasto ou comunitárias, e também às incessantes reclamações dos
madeirenses. Saliente-se que o próprio D. Manuel, em 1492, contra-
ria o regime de concessão de terras, ao permitir ao capitão do
Funchal que fizesse a distribuição de terrenos na serra para currais e
para cultura de cereais, bem como o das bermas das ribeiras para a
plantação de árvores de fruto; por outro lado, no sentido de evitar a
exorbitância do capitão em suspender a doação de terras, revoga-se tal
direito.
No período de 1433 a 1495 a atribuição de terras de sesmaria era
feita pelo capitão, em nome do donatário. A carta respectiva deveria
ser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão e
almoxarife; no seu enunciado deveriam constar as condições gerais que
regulavam esse tipo de concessão, as confrontações, extensão e quali-
dade do terreno, capacidade de produção e o tipo de cultura mais
própria para a sua exploração, bem como o prazo do seu aproveita-
mento. O colono ou sesmeiro deveria actuar de acordo com o clau-
sulado e, findo o prazo estabelecido, adquiria a posse plena do terreno,
podendo então vender, doar, «escambar ou fazer dele e em ela como
sua própria cousa:».
39
São poucas as concessões de terras que resistiram ao correr dos
tempos e que ficaram a testemunhar e a legitimar a posse do solo arável
da ilha. Temos notícia de uma, em 1457, feita a Henrique Alemão:
especifica-se nela que o beneficiário fará casa nas terras concedidas ,
sendo o terreno de lavra ocupado em vinhas, canaviais e horta.
A evolução do movimento demográfico madeirense, acompa-
nhado da valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação,
conduziram a profundas alterações na distribuição e na posse das
terras, aliás já evidente no regimento henriquino. Os mercados interno
e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteá-
vel, tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura
fundiária à nova situação. O aparecimento de capitais estrangeiros e
nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e pro-
vocou alterações na sua posse por meio das transacções para compra e
aforamento enfatiota. Em consonãncia com estas mutações surge a
afirmação do sistema de vinculação da terra, no reinado de D. Manuel ,
que veio dar origem ao contrato de colónia. Note-se que em 1494 se
generaliza o aforamento dos canaviais na capitania do Funchal , com
especial incidência nas partes do fundo e em Câmara de Lobos.
Com a lei de 9 de Outubro de 1501 põe-se termo à concessão de
terras de sesmarias, como forma de impedir a diminuição do parque
florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste
momento, toda a aquisição de terras só poderá fazer-se por compra ou
aforamento enfatiota e ainda por transmissão por via familiar, atra-
vés de herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e a venda
surgem como mecanismos de concentração da propriedade nas mãos
da aristocracia e da burguesia enriquecidas com os proventos da pri-
meira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a
herança e dote actuam no sentido inverso , conduzindo à desintegra-
ção da grande propriedade. A primeira transacção conhecida data
de 1454 e resulta da venda feita por Diogo de Teive a Pedro Gonçal-
ves Barbinhas de uma terra no Funchal por dois mil reais brancos.
Em 1498 Rui Gonçalves da Câmara vende a sua sesmaria da Lombada
da Ponta de Sol a João Esmeraldo. Quanto ao regime de aforamento,
que se generaliza nas últimas décadas do século XV, a primeira acta
40
surge em 1484, quando Constança Rodrigues entrega uma terra em
Santa Catarina a João da Cunha por cinco mil reais de foro. Em 1494
esse regime generaliza-se na cultura dos canaviais da capitania do
Funchal, com especial incidência nas partes do fundo e em Câmara de
Lobos.
A presença estrangeira ao nível da estrutura fundiária evidencia-se
a partir da década de oitenta, com fixação de vários contingentes de
italianos, flamengos, franceses e castelhanos. Entre eles salienta-se
João Esmeraldo, que em 1498 aforou a já referida Lombada da Ponta
de Sol.
A este importante mercador flamengo vieram juntar-se muitos
estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI,
fixaram a sua residência nas principais áreas de canaviais da vertente
meridional. Atraídos inicialmente pelo comércio do açúcar, acabam
investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas; para
além de João Esmeraldo, podemos referir os nomes de Simão Acciaoli,
João de Bettencourt, Pedro Lominhana Berenguer (o Doutor), João
Drumond, António Espíndola, António Leme, Urbano e Sixto Lome-
lino, João Mondragão, João Salviati, Adriano Espranger, João Val-
devesso, Micer Batista, Maciote de Bettencourt, André França,
Pedro Giralte, Martim Leme, Rui Vaz Uzel e Benoco Amador.
Bem relacionados com a alta finança europeia e com os principais
centros do comércio europeu, cativaram rapidamente a atenção da
aristocracia e da burguesia insulares, com que se relacionavam por
meio de laços de parentesco. O casamento com o apetecido dote era
muitas vezes a forma mais simples de alargarem os seus domínios e de
afirmarem a sua posição na sociedade local. Assim sucedeu com
Benoco Amador, que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva
de Esteves Eanes Quintal, detentor de uma grande quinta em Santo
António e de terras na Ponte de Sol; em poucos anos transformou-se
num grande proprietário e empresário, cuja fazenda adquirira com a
compra e arrendamento, por um lado, e com o comércio, a arrema-
tação e o empréstimo, por outro. Idênticas situações surgem com
João Esmeraldo, Simão Acciaoli, Pedro Berenguer, João Drummond,
Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista, Este último era
41
casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário de capitania de
Machico.
Não obstante a forte presença do capital estrangeiro na ilha, a sua
actuação ao nível da estrutura fundiária fica muito aquém das expec-
tativas; assim, no estimo de 1494 registam-se quinze estrangeiros com
menos de um quinto da produção total; embora no século XVI tal
situação tendesse a melhorar um pouco, o certo é que o estrangeiro
mantém uma posição secundária no sector produtivo.
Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense,
lógico será supôr a fixação do estrangeiro no burgo e arredores, alar-
gando-se depois a algumas comarcas periféricas com forte incidência
na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta.
Nesses lugares os estrangeiros têm, no século XVI, uma posição impor-
tante na produção de açúcar, aparecendo como os principais proprie-
tários, dispondo de extensos canaviais, engenho e grande número de
escravos. De entre eles salientam-se João de Bettencourt na Ribeira
Brava, com duas mil quatrocentas e cinquenta arrobas de açúcar, João
de França, na Calheta, com mais de três mil e seiscentas arrobas e João
Esmeraldo, na Ponta do Sol, com cerca de três mil e trezentas arrobas.
É certo que no Funchal temos grandes proprietários, como Simão
Acciaoli, Benoco Amador e João Bettencourt mas, em contraste, a sua
posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é
na Ribeira Brava e Ponta de Sol que encontramos a percentagem mais
elevada da produção dos estrangeiros.
Em síntese podemos àfirmar que o estrangeiro avizinhado não se
preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e o trans-
porte dos produtos, que o atraíra, se mantiveram sempre como a acti-
vidade principal; o estrangeiro raramente surge na condição de pro-
prietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-
-prestamista.
b. Produção
42
internacional. A selecção e transplante dos produtos para as novas
arroteias far-se-á, portanto, em consonância com os vectores do diri-
gismo económico europeu e, bem assim, com as diferenças e assime-
trias derivadas da estrutura do solo e do clima. Estes condiciona-
lismos actuam em conjunto como mecanismos virtuais de distribuição
das culturas europeio-mediterrânicas, componentes da dieta alimentar
(cereais, vinba) ou resultantes das solicitações das principais praças
europeias (açúcar, pastel).
Tal situação materializar-se-á numa tendência evidente para uma
exploração económica baseada na monocultura ou dominância de um
produto. Contra isso surgirá a heterogeneidade do espaço insular,
que condicionará a distribuição das terras, dando azo a uma política
distributiva ou a uma arrumação dos principais produtos agricolas;
surgem, deste modo, áreas de produção para subsistência e troca,
procurando definir-se as condições necessárias à estabilidade das acti-
vidades económicas. Assim, o avanço da mancha do açúcar na
Madeira implicou a criação de novas áreas de produção cerealífera,
capazes de suprirem as exigências da ilha e de outras praças em
carência.
O povoamento e exploração do espaço madeirense filia-se numa
dupla actividade; com efeito, o carácter agrário desta sociedade nas-
cente tem de compatibilizar com as necessidades derivadas da subsis-
tência e das solicitações externas. Ambos os sectores alicerçaram o
rumo desta economia, definida, por um lado, pela aposta numa agri-
cultura de subsistência, assente nos componentes da dieta alimentar
europeia, e, por outro, pela imposição de produtos estranhos, capazes
de activarem o sistema de trocas.
A estrutura do sector produtivo adaptar-se-á a estas circunstân-
cias. Em consonância com a actividade agrícola, teremos a valori-
zação dos recursos do meio insular, que irão integrar os produtos para
alimentação - pesca, silvicultura - e as trocas comerciais - urzela,
sumagre, madeiras e derivados, como o pez.
Oriundos de uma área em que a principal componente alimentícia
se definia pelos cereais (trigo, cevada, centeio), os colonos europeus
43
povoaram as ilhas não menosprezaram o quantitativo do grão neces-
sário para a sementeira nestas novas frentes de arroteamento.
O fenómeno de ocupação e povoamento das ilhas atlânticas é, assim,
caracterizado pela transplantação de homens, técnicas, produtos e
formas de domínio e de poder; a ocupação será moldada à imagem e
semelhança das terras de origem destes colonos, e por isso surgem as
searas, os vinhedos, as hortas e os pomares, tudo dominado pela casa
de palha e, mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais.
Na Madeira, até à década de setenta, a paisagem agrícola será
definida pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura
cerealífera dominava, então, a economia madeirense, referindo Fernando
Jasmins Pereira, a este propósito, que no período henriquino os cereais
constituíram a base da colonização da ilha.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com que esta
cultura atingisse níveis de produção espectaculares, que a historio-
grafia quatrocentista e quinhentista anuncia com assiduidade, notando
que se exportava cereal para o reino e as praças africanas.
Segundo Francisco Alcoforado e Diogo Gomes uma medida de
sementeira equivalia, em média, a sessenta e cinquenta de colheita,
situação deveras espectacular se tivermos em conta que na Europa
raras vezes ultrapassava trinta e só em condições excepcionais se ficava
por quarenta.
Em meados do século, segundo Cadamosto, a ilha produzia três
mil moios de trigo, o que excedia, em mais de dois terços, as necessi-
dades da parca população. Esse excedente era exportado para o reino
e, segundo os cronsitas, vendia-se ao preço de quatro reais o alqueire;
desde 1461, mil destinava-se ao saco da Guiné.
Não obstante, a partir da década de sessenta, com a valorização da
produção açucareira, as searas diminuiram em superfície e a produção
cerealífera passou a ser deficitária; a partir de 1466, a ilha precisava
mesmo de importar trigo para o sustento dos seus vizinhos, sendo,
portanto, impossível manter as escápulas estabelecidas. Aliás,
em 1478 referia-se que essa produção dava apenas para quatro meses.
Esta situação derivou da acção dominadora dos canaviais, aliada ao
rápido esgotamento do solo e à inadequação da cultura, resultante de
44
I
45
ribeirinha do Funchal, onde deparamos com doze vinhas e treze
latadas; fora do Funchal, na área entre a ribeira brava e Ponta do Sol,
situavam-se apenas oito latadas.
Da certeza e da aposta inicial, testemunhada em 1511 na expressão
de Simão Gonçalves da Câmara, segundo a qual a ilha produzia ape-
nas pão e vinho, surge a afirmação, a partir de meados do século, de
novas culturas, como a cana de açúcar que galvanizava o empenho dos
pioneiros madeirenses. Por outro lado, é atribuída maior atenção aos
recursos que a ilha pode oferecer e que apresentam valor econó-
mico, e daí a importância dos domínios silvícolas e piscícolas. Por isso
Zurara (1463-68) refere que os proventos da ilha incidiam sobre o pão,
açúcar, mel, madeiras e outros. Incompreensivelmente o cronista
ignora o vinho, que já em 1455 era referenciado por Cadamosto como
um produto importante da lavra madeirense.
A cana de açúcar, na sua primeira experiência além Europa,
mostrou as possibilidades do seu rápido desenvolvimento fora do
habitat mediterrânico. Esta verificação catalizou as atenções do capital
estrangeiro e nacional, que apostou no crescimento e promoção desta
cultura na ilha; só assim se poderá compreender o seu rápido avanço.
Se nos primórdios da ocupação do solo insular se apresentava como
uma cultura subsidiária, passa a partir das últimas décadas do
século XV a produto dominante, situação que se manterá até o final da
primeira metade. do século XVI.
A cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e da
coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo
arável da ilha. Aí poderemos distinguir duas áreas: a vertente meri-
dional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos
alíseos, onde os canaviais atingem os quatrocentos metros de altitude; e
O noroeste, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto
da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não
permitem a sua cultura além dos duzentos metros, nem uma produção
idêntica à primeira área.
A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores
terras para a cultura da cana de açúcar, ocupando a quase totalidade
de espaço da vertente meridional. À capitania de Machico restava
46
uma mínima parcela dessa área e todo um vasto espaço acidentado
impróprio para tal cultivo . Assim, em 1494, do açúcar produzido na
ilha apenas um quinto foi proveniente da capitania de Machico. '
Na capitania do Funchal os canaviais distribuem-se de modo irre-
guIar , de acordo com as condições mesológicas da área; deste modo ,
em 1494, a maior safra situava-se nas partes de fundo , englobando as
comarcas da Ribeira Brava , Ponta de Sol e Calheta, com cerca de dois
terços da produção , enquanto ao Funchal e a Câmara de Lobos cabia
menos de um sexto. Em 1520 a diferença mantém-se , pois são Iigeirís-
simas as alterações. Uma análise em separado das diversas comarcas
da capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância da
comarca do Funchal, seguindo-se a da Calheta; as comarcas da Ribeira
Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária.
Descrita a situação da geografia açucareira madeirense, vejamos a
sua evolução até meados do século XVl.
Críadas as condiçõees a nível interno , por meio do incentivo ao
investimento de capitais na cultura da cana de açúcar e no comércio de
seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração
local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tomar,
por algum tempo , no produto dominante da economia madeirense.
O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico acelerou este
processo expansionista; e a sua detenção só se veio a verificar pela
convergência de vários factores endógenos e exógenos. Tudo isto
explica o rápido movimento ascendente bem como o percurso inverso,
pois ao atingir-se o zénite não houve um lapso de tempo de esta-
bilidade.
A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não
obstante a situação depressionária de 1497-1499, é marcada por um
crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situa em uma média
anIlaI de 13 %, no primeiro caso, e de 68 %, no segundo. No período
seguinte, após o colapso de 1497-1499 a recuperação é de tal modo
rápida que em 1500-1501 o crescimento é de 110 % e entre 1502-1503
de 205 %. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos pri-
meiros anos do século XVI irá atingir o máximo em 1506, para se veri-
ficar um rápido declínio. nos anos imediatos; basta dizer que apenas em
47
CE A
quatro anos se atingiu um valor inferior ao do início do século.
A situação agravou-se nas duas décadas seguintes, baixando na capi-
tania do Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machico
a quebra é lenta, sendo consequência de depauperamento do solo e da
sua crescente desafeição à cultura. Mas a partir de 1521 a tendên-
cia descendente é global e muito marcada, de modo que à produção do
fim do primeiro quartel do século se situava a um nível pouco superior
ao registado em 1470. Na década de 30 consumava-se em pleno a
crise da economia açucareira e o ilhéu viu-se na necessidade de aban-
donar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos.
c. Comércio
48
Essa preocupação é constante e abrange todos os sectores de
actividade: as autoridades municipais e régias intervêm na produção,
no processo transformador das matérias primas, na distribuição e
comércio dos produtos locais e estrangeiros; o município legisla sobre a
forma de postura e acórdão, regulamentando de modo pormenorizado
todas as actividades sectoriais; a coroa, por sua vez, através das ins-
tituições próprias, intervem por meio de regimentos e alvarás. Deste
modo os produtos e as actividades que definem a economia de subsis-
tência e de mercado estavam sujeitos aos intervencionalismos municipal
e régio.
Essa intervenção incide preferencialmente sobre o açúcar, produto
que mereceu especial atenção do senhorio, nomeadamente no tempo
de D. Manuel; a sua acção, quando donatário e monarca, foi decisiva
para a afirmação plena desta cultura e definição do mercado nórdico
como o seu destino preferencial.
A par da política de regulamentação dos ofícios empenhados na
safra açucareira, estabeleceram-se normas rigorosas de fiscalização da
qualidade do açúcar produzido, por meio dos alealdamentos.
A manutenção e a permanência deste movimento comercial implicava
a criação de estruturas de apoio adequadas a uma reserva de capital
disponível. Isso foi delineado pelos primeiros peninsulares e estran-
geiros que iniciaram a sua exploração económica, pois em poucos anos
as ilhas inseriram-se com a maior facilidade nos circuitos comerciais do
Atlântico, activando uma rede complicada de rotas, que o seu apro-
veitamento, aliás, desencadeou.
Na Madeira manteve-se desde meados do século XV um trato
assíduo com o reino, activado de início com as madeiras, a urzela, o
trigo e, depois, com o açúcar e o vinbo. Esse movimento alargou-se às
cidades nórdicas e mediterránicas com o aparecimento de estrangeiros
interessados no comércio do açúcar. A sua evolução é de tal modo
rápida e lucrativa que em 1493 a fazenda real lançava uma imposição
sobre o movimento do porto da cidade para a despesa de construção da
cerca e dos muros. De ac-erdo com a dedução feita, a imposição de
um vintém sobre a tonelagem dos navios renderia cem mil reais, e a de
um por cento sobre as mercadorias, duzentos e cinquenta mil reais.
49
4
o açúcar deveria ser o principal responsável por tão elevada
quantia. Aliás o mesmo produto contribuiu para o arranque decisivo
e consequente inserção da Madeira na economia europeia. O acele-
rado ritmo de crescimento da ilha condicionou a atracção de diversas
correntes imigratórias europeias. Tal situação é definida em 1508
pelo monarca D. Manuel ao justificar a elevação do Funchal a cidade:
«tem crescido em mui grande povoaçã<. e como nela vivem muitos
fidalgos cavaleiros e pessoas honradas e de grandes fazendas, pelas
quais e pelo grande trato da dita ilha .. . ».
A afmnação da tendência de monocultura condicionou a economia
madeirense , marcando a sua forte dependência relativamente ao mercado
externo, uma vez que a ilha necessitava desse mercado para a coloca-
ção do açúcar e para se abastecer de produtos alimentares (carne ,
pescado, legumes , cereais, azeite, sal) e de artefactos (ferro, telha,
barro, panos, linho, etc .).
Até à afumação da economia açucareira, a partir de meados do
século XV, a Madeira evidenciou-se como o principal celeiro atlân-
tico, fornecedor das praças e das áreas do litoral português carecidos
do cereal. Para isso a coroa traçou uma política cerealífera, definida
pela abertura das duas rotas de escoamento: a primeira, orientada no
sentido os portos do reino (Lisboa, Porto, Lagos), foi delineada
em 1439 por meio de isenções fiscais; a segunda foi imposta pela
coroa em tempos de D. Afonso V, e tinha como finalidade o abaste-
cimento das praças do litoral saariano e guineense. Esta última
situação definia-se pelo monopólio ou direito preferencial, por meio de
contrato firmado com os mercadores . Assim, em \466 todo o trigo
dos direitos do infante estava entregue a um mercador catalão, enquanto
em 1473 se estabeleceu um COnlrato com Baptista Lomelim para que
«todo o trigo que ai houver o possa tirar para fora dela ilha •.
As dificuldades sentidas , a partir de 1461 , agravadas na década
seguinte, introduziram profundas alterações na economia madeirense,
que conduziriam a 'uma inversão do comércio do cereal. As tentativas
do infante D. Fernando, em \461 e em 1466, para manter a domi-
nante cerealífera na economia madeirense e as consequentes rotas do
50
I
51
legislação anterior, activando-se o regime de liberdade comercial;
assim estipulava o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao anunciar
que: «Os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e
para todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem
aprouver, sem lhe isso ser posto embargo algum».
O estabelecimento das escápulas em ·1498 definia de modo preciso
o mercado consumidor do açúcar madeitense, que se circunscrevia a
três áreas distintas: o reino, a Europa nórdica e a mediterrânica. As
praças do mar do Norte dominavam, recebendo mais de metade das
referidas escápulas; entre elas evidenciavam-se as praças circunscritas
à Flandres. No Mediterrânico a posição cimeira é atribuída a Veneza,
conjuntamente com as praças levantinas de Chios e Constantinopla.
Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversas
praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro
não estava muito aquém da realidade; as únicas diferenças relevantes
na equivalência surgem nas praças da Turquia, França e Itália, sendo
de salientar nesta última um reforço acentuado da sua posição; todavia,
essa diferença poderá resultar apenas da actuação das cidades italianas
como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.
Note-se que os italianos detinham mais de dois terços do açúcar tran-
sacionado nesse período.
Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira,
referentes a esse lapso de tempo, mostram que ele se manteve cons-
tante para os mercados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos
portos de Lisboa, Vila do Conde e Viana do Castelo, surge em ter-
ceiro lugar apenas com cerca de um décimo do total. Viana do
Castelo teria, de resto, uma função redistribuidora do açúcar madei-
rense no mercado nórdico.
Para as transacções com o mundo mediterrânico existiam igual-
mente alguns entrepostos, nomeadamente em Cádiz e em Barcelona.
Estas cidades apresentam-se, no período de 1493 a 1537, como portos
de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e Águas
Mortas.
A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente das
diversas escápulas, mas também a forma da sua comercialização.
52
I
53
Os cronistas do século XV e XVI referem com frequência a abun'
dância de madeira na ilha que, em face da abertura de· diversas frentes
de arroteamento, condicionou um rendoso comércio com o reino e
com outras partes . De acordo com a mesma informaçãq, a explora-
ção de madeiras fazia-se em regime industrial com o objectivo de
fabrico de embarcações, mobiliário para a exportação e de caixas para
embalagem de açúcar. O volume de exportação de madeiras foi de tal
ordem que conduziu a alteração na técnica de constnição naval e civil
do reino .
O comércio das madeiras foi certamente a primeira actividade que
constituíu uma fonte de riqueza para os colonos e senhores da ilha,
conforme se depreende do indeferimento dado , em 1461 , pelo infante
D. Fernando, ao pedido de isenção da dízima, da sua exportação.
Os contactos entre a Madeira e o reino, ao longo dos séculos XV
e XVI, eram constantes e faziam-se com maior frequência com os
portos de Lisboa , Viana e Caminha. Os marinheiros e mercadores dos
portos do norte , nomeadamente da região costeira de entre-Douro-e-
-Minho , frequentavam com assiduidade o porto do Funchal, para
comerciar o açúcar a troco de panos e carne .
A Madeira ofereceu ao mercador continental, num primeiro
momento, as suas madeiras e o excedente de cereais. Todavia o prin-
cipalcomércio com o reino foi o açúcar, solicitado desde o início pelos
mercadores .nacionais, que procuravam firmar o monopólio da rota
lisboeta. A ilha recebia em troca um grupo variado de produtos
necessários. para o uso e o consumo quotidianos, COmo ferramentas,
panos, tecidos, telha, louça, barro, ferro, caroç , peixe, sal e azeite.
Tudo isto a troco de açúcar e da reexportação de alguns produtos,
como peles, escraVOS, breu e algodão .
. A importação de louça fazia-se com assiduidade dos principais
portos continentais como Setúbal , Lisboa e Porto; e, de igual modo, as
formas para o fabrico do açúcar deveriam ser provenientes do conti-
nente europeu, nomeadamente da região do Barreiro, tendo em conta
a escassez de barro na ilha e, por isso, O fraquíssimo desenvolvimento
da .olaria locaL
54
4. A ESTRUTURA SOCIAL DA POPULAÇÃO
MADEIRENSE; SUA EVOLUÇÃO
55
A partir de finais do século XV a elevada condição social dos
primeiros povoadores e de seus descendentes (resultante da sua inter-
venção na estrutura administrativa madeirense, na safra açucareira, e
da (obilitação régia), é o índice da formação de uma aristocracia
insular; ela marca uma posição de evidência no panorama aristocrá-
tico nacional, competindo com a velha aristocracia do reino nas
aventuras bélicas no norte de África e no Oriente, ou nas viagens de
exploração do litoral africano e para o ocidente.
É comum atribuir-se a proveniência algarvia aos primeiros e
principais povoadores que desencadearam a ocupação da ilha. Essa
ideia filia-se na tradição, que corre no Algarve, da participação das suas
gentes na gesta expansionista, e na expressão de Jerónimo Dias Leite,
«muitos do Algarve»; no entanto parece-nos apressada, uma vez que
faltam provas que a corroborem. Numa listagem dos primeiros
povoadores referidos nos documentos e crónicas a presença nortenha é
muito superior à algarvia (64 % para 25 %); por outro lado os registos
paroquiais da freguesia da Sé, no período de 1539 a 1600, corrobo-
ram esta conclusão, uma vez que os nubentes oriundos de Braga, Viana
e Porto representam metade do total, enquanto os provenientes de
Faro não ultrapassam os 3 %. É de referir que alguns dos mais
eminentes investigadores madeirenses hesitam entre a procedência
minhota e algarvia dos primeiros colonos; EmestoGonçalves, no
entanto, é peremptório em apontar a origem minhota desses primeiros
obreiros do povoamento da Madeira.
O povoamento da Madeira é um processo em que participam
gentes oriundas das mais diversas origens; praticamente todo o reino se
empenhou nesta experiência tentadora, em especial as gentes das áreas
ribeirinhas - Lisboa, Lagos, Aveiro, Porto e Viana - e os estran-
geiros, adestrados no arroteamento de terras incultas. Se é certo que
do Algarve partiram muitos dos homens da casa do Infante, que vieram
a ter uma função de relevo no lançamento das bases institucionais do
senhorio, não é menos certo que do norte de Portugal, nomeadamente
da região de entre-Douro-e-Minho, provieram OS cabouqueiros neces-
sários para desbravar a densa floresta e preparar o solo para o lan-
çamento de culturas mediterrânicas; entretanto, do Mediterrâneo
56
I
57
~
CE A
~:.:,:.",J::'=':
De acordo com o arrolamento dos homens-bons para servir no
concelho do Funchal, em 1495 , as famílias mais importntes encon-
travam-se instaladas na área da sede concelhia; 66 % delas pertencem
ao Funchal enquanto que as restantes se distribuem por Câmara de
Lobos (16 %), Ponta de Sol (II %) e Calheta (6 %).
O segundo munícipio surge apenas em 1515 nas partes de Machico,
e ficou sediado em Santa Cruz. Toaa a costa norte, incluída na
capitania de Machico, manteve-se nos séculos XV e XVIII vinculada às
estruturas de poder sediadas no novo município; só em 1743 surigiria·
em S. Vicente a primeira estrutura de poder municipal em toda essa
extensa faixa nortenha; tal situação reflecte não só o abandono a que
foi votada toda a extensa área arborizada, mercê das dificuldades de
acesso , mas também um indicador da macrocefalia da estrutura
administrativa da capitania,
Em 1508, ao elevar a vila do Funchal a cidade, o monarca referira
que o aglomerado populacional tinha crescido «em mui grande povoa-
ção e como vivem nela muitos fidalgos cavaleiros e pessoas honradas e
de grandes fazendas, pelas quais e pelo grande trato da dita ilha
esperamos com ajuda de Nosso Senhor que a dita ilha muito mais se
enobreça e acrescente ... ».
A par dessa evolução da orgãnica municipal e religiosa, a dinâ-
mica institucional madeirense sofre noutros campos profundas mutações,
como forma de adaptação aos novos condicionalismos do processo
sócio-económico; e nesse sentido foram importantes as iniciativas do
senhorio depois da década de sessenta: enquanto em 1477 D. Beatriz
procurou orientar a economia madeirense para o mercado externo,
com a criação de duas alfãndegas, no Funchal e em Machico,
D. Manuel deu em 1486 o impulso decisivo para a implantação de uma
estrutura administrativa adequada às. exigências do finàJ do século; foi
D. Manuel quem ordenou a construção de uma igreja. de uma casa
para a câmara, do paço para os tabeliães , da alfândega e do paço
público. cedendo para o efeito terrenos que lhe pertenciam e conhe-
cidos como o Campo do Duque. Desta forma o burgo funchalense
ampliou-se e a malha urbana ganhou uma estrutura renascentista.
58
I
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«principais». Note-se que em 1508 essa' oposição derivava do facto de
estes últimos serem pessoas «honradas e de grandes fazendas»; assim o
seu estatuto social define-se não só pela origem mas também pela
riqueza e pelo exercício do poder, que deram origem à, nova aristo-
cracia insular.
O exercício do poder, nomeadamente municipal, era uma das
principais prerrogativas diferenciadoras d,.ssa aristocracia; os que dele
participam aparecem arrolados como homens-bons do concelho,
detendo uma activa intervenção no município. que era o seu órgão de
governo; note-se que somente em 1484 foi nele permitido o assento dos
procuradores dos mesteres. Todavia aquela intervenção não se resumia
ao poder municipal, pois ia-se alargando às diversas estruturas insti-
tucionais que o desenvolvimento demográfico e económico implicava;
assim , no período de 1454 a 1517, os três grupos da aristocracia surgem
com uma posição relevante na estrutura institucional madeirense.
A mesma documentação da Câmara dá conta de que, no período em
causa, entre homens-bons se contam praticamente as mesmas percen-
tagens de fidalgos, cavaleiros e escudeiros; note,se que. 00. primeiro e
segundo casos surgem os capitães do donatário, enquanto no último
aparecem amos e criados do capitão, mercadores, sapateiros e vedar
das obras da Sé. Em 1471 no mesmo grupo de homens-bens, no total
de vinte e oito, contavam-se cinco relacionados com o capitão e sete
com o Senhor; o que marca bem a importância destas duas figuras na
dinâmica social madeirense.
A par deste grupo de mando, de ócio e de façanhas bélicas no
norte de África, existia uma numerosa pléiade de subordinados (ren-
deiros, assalariados, mesteres e escravos) , que contribuía para o progresso
agrícola e mercantil da ilha . Aliás. a sua importância na sociedade
madeirense reforçava-se com o progresso económico !Ia ilha. Como
se disse, os mesteres somente em 1484 fazem ouvir a sua voz na
vereação por meio de criação da «Casa dos Vinte e Quatro»; dois anos
mais tarde foi-lhes atribuída uma participação activa na procissão do
Corpo de Deus . O lugar que os mesteresnela ocupavam, poderá signi-
ficar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de acordo com o esta-
belecido em 1453 para Lisboa. A relação dos mordomas dos ofícios,
60
feita no ano de 1486 pela vereação, indica a estrutura sócio-profissional;
pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões, besteiros,
hortelães, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives,
tabeliães e tanoeiros, Para os anos imediatos dispomos de dados
referentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros,
barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela
estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradas
as necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto
com a Europa impossibilitava o abastecimento dos artefactos de uso
corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos mesteres em
determinadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dos
diversos ofícios aí sediados - como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, a
dos caixeiros, etc.
A par dos ofícios apareciam os trabalhadores braçais ou assolda-
dados, que se dedicavam a diversas tarefas no campo e no burgo.
O seu serviço era onerado com a redízima; este tributo, prejudicial ao
exercício dessas actividades, punha em causa a segurança da terra,
pois, segundo se dizia em 1466, tal situação conduzia ao aumento dos
escravos; a mesma preocupação evidencia-se em 1489, apontando-se a
saída de homens para as campanhas africanas como um perigo para a
segurança da ilha, devido o elevado número de escravos que nela
havia.
Verifica-se, portanto, que o grupo servil surgiu com uma importância
relevante na sociedade madeirense na segunda metade do século XV; o
seu peso gerou preocupação e tornou necessária a regulamentação dos
seus movimentos e do seu espaço de convívio; daí a exigência dos nele
incluídos usarem um sinal, de se recolherem à casa do senhor, ao
mesmo tempo que se ordenou a explosão dos forros, com excepção dos
canários. Os escravos negros surgem como assalariados, vendedores
de fruta dos seus senhores, enquanto os guanches eram pastores e
mestres de engenho.
A Madeira atraíu a partir de meados do século XV uma vaga de
forasteiros, mercê da prioridade na ocupação e na exploração do
açúCar. Só o impediam as ordenanças limitativas da residência na
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ilha, resultante da sua rápida fixação da sua intervenção nos circuitos
comerciais madeirenses.
Em meados do século XV a coroa facultava a entrada e a fixação
de italianos , flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios
especiais , como forma de assegurar um mercado europeu para o
açúcar; mas a grande influência que esses estrangeiros rapidamente
alcançaram, tomou-se lesiva para os mercadores nacionais e para a
coroa, pelo que se mostrou necessário impedir que eles pudessem
«assim soltamente tratar todos»; deste modo o senhor ordenou a proi-
bição da sua permanência na ilha como vizinhos. O problema foi
levado às cortes de Coimbra, em 1472-1473, e às de Évora, em 1481,
reclamando a burguesia do reino contra o monopólio, de facto , dos
mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar; para isso
propunha a exploração de tal comércio a partir de Lisboa e nas mesmas
condições.
O monarca, comprometido com' a posição vantajosa dos estran-
geiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, actuou de modo
ambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempo
atender às solicitações que eram dirigidas; nesse sentido estabeleceu
limitações à residência dos estrangeiros no reino, fazendo-a depender
de licenças especiais; quanto à Madeira definiu a impossibilidade da
sua vizinhança sem licença sua, 'ao mesmo tempo que lhes interditava a
revenda no n'rercado local; a câmara, por seu turno, baseada nestas
ordenações e no desejo dos seus moradores, ordenou a sua saída até
Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhor; somente em 1489
se reconhece a utilidade da presença de estrangeiros na ilha, ordenando
D. João n a D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros
fossem considerados como «naturais e vizinhos de nossos reinos».
Os problemas do .mercado açucareiro na década de 90 conduziram
ao ressurgimento dessa política xenófona. Os estrangeiros passaram a
dispõr de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para
comerciar os seus produtos , não podendo dispór de loja e feitor;
D. Manuel apenas em 1493 reconheceu o prejuízo que as referidas
medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores,
pelo que revogou as interdições lInteriormente impostas ; as facilidades
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pÁml'olA r~ BIlAI'oICO
5. A IGREJA NA MADEIRA NO SÉCULO XV
65
segundo o testamento de 1460, a construção das igrejas de Santa
Maria, de Porto Santo e da Deserta. Tal determinação derivava do
usufruto que o infante detinha, desde 1433, da jurisdição espiritual e
religiosa do arquipélago. A partir dessa data todo o serviço religioso
da ilha dependia do vigário de Tomar, sitUação que se manteve até
à criação da diocese do Funchal, em 1514; durante esse período os
assuntos religiosos do arquipélago não tiveram qualquer filiação a uma
diocese; e nem a criação do bispado de Tânger (1468) , com pretensão
jurisdicional sobre todo o espaço atlântico. conseguiu impedir a hege-
monia do vicariato de Tomar na Madeira.
O primeiro vigário da ilha foi o Padre João Gonçalves, sendo
desconhecida a data da sua nomeação. que apenas é citada para o
segundo, Francisco Nuno Gonçalves apresentado em 1476; este
manteve-se ao serviço até 1485 , ano em que foi solicitado a sair
pelos moradores do Funchal; depois, só em 1490 surge novo vigário
de Santa Maria do Funchal , Frei Nuno Cão, que encontrou um
excelente acolhimento dos funchalenses; em Machico aparece,
desde 1450, um Frei João Garcia como vigário da capitania local.
A ambos os vigários eram atribuídos poderes de administração e a
prática religiosa nas respectivas capitanias; eles dependiam directa-
mente, como se disse, do vigário de Tomar, não podendo ser moles-
tados na sua acção pelos capitães do donatário.
A pressão do movimento demográfico e o progresso económico
da ilha implicaram novas exigências em relação à assistência reli-
giosa. Assim, em 1461 os moradores do Funchal exigiam mais padres
para assegurarem o serviço religioso em Câmara de Lobos , Ribeira
Brava, Ponta de Sol e Arco da Calheta. O serviço religioso era feito
aos domingos e dias santificados na Capela do Infante no Funchal,
não lhes sendo exigido tal serviço nos dias ordinários; quem o soli-
citasse nestes dias teria de o pagar.
Em 1485 alargou-se o número de templos, pois teve de se proceder
à construção de novas capelas no Funchal, Machico, Santa Cruz e
Câmara de Lobos; e dois anos após o senhorio mandou dispender até
cinco mil réis nos reparos e provimento de vestimenta a alfaias das
igrejas da ilha.
66
o Funchal surge assim, em finais do século XV, com três capelas
de devoção: Santa Maria do Calhau, S. Sebastião e Santa Maria de
Cima, com esta última construída pelo capitão do donatário. Todavia,
já em 1485 se dava conta da necessidade de construção de um novo
templo; mas a relutância dos homens-bons do concelho levou a pro-
telar até 1493 o início das necessárias obras, que ficaram concluídas
em 1517, ano em que o novo templo foi sagrado por D. Diogo Pinheiro,
bispo de Dume. Com a construção do Convento de Santa Clara, a
partir de 1488 todo o serviço religioso ficou concentrado nas capelas de
S. Sebastião e Santa Maria do Calhau.
A falta de documentação para os primeiros oitenta anos de
ocupação da ilha impossibilitaram um conhecimento cabal da evolução
da estrutura religiosa e da criação das diversas paróquias. Em todo o
caso sabe-se que em 1430 estava criada a primeira paróquia de
Nas a da Conceição de Baixo seguindo-se depois as da Calheta,
Caniço, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Câmara de Lobos, S. Vicente,
Machico e Arco da Calheta. Tal situação atesta o rápido povoamento
da vertente sul da ilha na segunda metade do século XV.
Acompanhando essa disseminação da população no pouco espaço
de terra arável, apareceram as capelas e ermidas, construídas pelos
moradores, coroa, senhorio e particulares. No período de 1420
a 1484 são referenciadas trinta construções, sendo quinze no Funchal e
arredores, três em Câmara de Lobos, duas em Machico e oito nas
partes do fundo (Calheta, Arco, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Canhas).
O serviço religioso na ilha diversifica-se a partir de meados do
século XV, para ir ao encontro dos principais núcleos de povoadores.
Terá sido importante o empenho de famílias madeirenses nessa expansão,
criando capelas anexas ou integradas nas suas casas, e provendo-as de
capelães. Essa evolução da estrutura religiosa madeirense e as novas
solicitações da expansão oceânica tornaram necessárias a diocese do
Funchal: em 12 de Junho de 1514 o Papa Leão X extinguiu a depen-
dência ao vicariato de Tomar, criando aquela diocese com jurisdição
sobre todos os descobrimentos; foi provido como bispo o vigário
tomarense. Acrescente-se que nessa data a Madeira dispunha de
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~
quinze beneficiados para cinco mil habitantes, disseminados por oito
paróquias.
A Ordem Seráfica surge no século XV intimamente ligada ao
processo de descobrimento e ocupação do novo espaço Atlântico; os
franciscanos foram companheiros inseparáveis dos primeiros navegadores
portugueses, associando-se à empresa de reconhecimento e povoamento
da Madeira; coube-lhes a honra da celebração do primeiro acto
litúrgico em solo madeirense, a 2 de Julho de 1419, dia da invocação da
visita da Santíssima Virgem a Santa Isabel; além disso, até à criação do
senhorio, em 1433, detiveram sob o seu controle o serviço religioso da
ilha, construindo para o efeito alguns cenóbios ou eremitérios nos
principais núcleos de povoamento: Funchal (1426), Cãmara de
Lobos (1425) e Machico (1462); todavia, a doação, em 1433, da espiri·
tualidade da ilha à Ordem de Cristo, e a sua compulsiva subordinação
às orientações da Ordem, geraram uma situação de conflito que
obrigou à saída dos franciscanos para Xabregas, só regressando
em 1459, sob a direcção de Frei Diogo Arruda.
A testemunhar a forte presença da Ordem Seráfica na Madeira no
século XV temos o Convento de S. Francisco, conhecido como o novo,
e o de Santa Clara. O primeiro resultou da necessidade de ampliar o
acanhado espaço do cenóbio de S. João da Ribeira, enquanto o
segundo materializa o desejo do senhorio e capitão de um Convento
feminino para as donzelas da ilha.
Em 1476 dá-se início à construção do Convento de S. Francisco e
só em 1492 o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Cãmara,
ordena à construção do Convento Feminino nos terrenos anexos à sua
casa de morada.
O convento de Santa Clara só começou a funcionar em 1497, com
a entrada das duas filhas do capitão do Funchal para o referido recolhi-
mento com mais quatro freiras do convento de Encarnação de Beja.
Para o efeito Cãmara dotou as filhas com o sítio do Curral, que veio
depois a ser conhecido como Curral das Freiras.
A par dessas realizações, institucionalizadas e orientada pelo clero,
surgirarn outras formas de intervenção dos madeirenses, procurando
atender ao princípio cristão da caridade e devoção; aparecem assim as
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Misericórdias e as Confrarias. A primeira instituição desse tipo criada
no Funchal foi a Misericórdia, instituída em 1454 por João Gonçalves
Zarco. Vinte e três anos mais tarde, em 1477, o carpinteiro Pedro
Afonso e a sua esposa Constança Vaz fizeram doação para o novo
hospital de Santa Maria do Calhau. A este seguiram-se iniciativas
semelhantes como a de Álvaro Afonso em 1483, de Constança Rodrigues
em 1484, e de Gonçalo Enes de Velosa, com a construção em 1497 da
albergaria de S. Bartolomeu. De todos o Hospital da Misericórdia do
Funchal salienta-se pela sua acção de caridade e amparo aos pobres,
doentes e viajantes.
As confrarias, que associam os vizinhos do burgo com intuitos de
devoção ou caridade, organizam-se também desde o início do povoamento
da ilha. E o seu desenvolvimento sócio-económico, desde meados do
século XV, permitirá o reforço e expansão dessa instituição na Madeira,
ao mesmo tempo que condicionará a afirmação das corporações dos
ofícios existentes' na ilha.
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I
CRONOLOGIA
~
ERRATA
8 20 praticanete praticamente
10 3 deturpados deturpadas
10 21 decoberto descoberto
13 9 terem se terem
13 16 Dessa Nessa
13 29 com a com a de
15 3 tendo sendo
17 29 ins ignificante significante
18 33
19 12
28 5 inprovisar improvisar
40 33 acta carta
44 26 cronsitas cronistas
46 2 ribeira brava Ríbeira Brava
49 9 intervencionalismo intervenc ionismo
53 12 Affaiti Affaitati
59 32 1944 1494
60 21 homens-bens homens-bons
68 32 orientada orientadas
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Composto e impre!:!so nas oficinas da
IMPRENSA DE COIMBRA, LIMITADA