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ARTIGO ARTICLE 109

Tornar-se cientista: o ponto de vista


de Bruno Latour

Becoming a scientist: the perspective


of Bruno Latour

André de Faria Pereira Neto 1

1 Escola Nacional de Saúde Abstract The purpose of this article is to raise some points for an understanding of contempo-
Pública, Fundação
rary French philosopher Bruno Latour’s perspective on the professionalization process for scien-
Oswaldo Cruz.
Av. Brasil 4036, sala 401, tists. We review part of the sociological literature that has attempted to conceptually differenti-
Rio de Janeiro, RJ ate occupations from professions. We thus intend to establish a number of comparative parame-
21040-361, Brasil.
ters for such concepts. The field of knowledge and its role in the stages of the professionalization
process assume an important place in this reflection.
Key words Profession in Science; Sociology of Science; History of Science; Philosophy

Resumo O objetivo deste artigo é introduzir alguns elementos para a compreensão da visão que
o filósofo contemporâneo francês Bruno Latour tem a respeito do processo de profissionalização
do cientista. Para tanto, percorreremos parte da literatura sociológica que procurou diferenciar
conceitualmente uma ocupação de uma profissão. Assim, pretendemos estabelecer alguns
parâmetros comparativos entre essas duas concepções. O domínio do conhecimento e seu papel
na etapa do processo de profissionalização assume, nesta reflexão, posição de destaque.
Palavras-chave Profissão em Ciência; Sociologia da Ciência; História da Ciência; Filosofia

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):109-118, jan-mar, 1997


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Introdução Seu grande mérito foi o de ter introduzido uma


perspectiva de análise teórica e metodológica
Como alguém se torna cientista? Ao longo do extremamente inovadora e crítica.
artigo “As profissões”, publicado no livro “A Na verdade, este artigo pretende tratar si-
Ciência em Ação” (1989), Bruno Latour preten- multaneamente dois aspectos: ressalta a rele-
de desmistificar a resposta que se tem comu- vância e a pertinência da abordagem sociológi-
mente para esta pergunta. Para a boa parte da ca e histórica sobre o objeto profissão e analisa
opinião pública, uma pessoa torna-se cientista como um autor contemporâneo francês – Bru-
quando usa jaleco branco e demonstra estar no Latour – fez este tipo de empreendimento,
pouco interessada na política institucional de comparando-o com outro, da mesma natureza,
seu local de trabalho. Preocupar-se com isto promovido pelo norte-americano Wilensky,
não é coisa de cientista... afirmam alguns. Se o vinte anos antes.
cientista procurar conseguir verbas para seu
laboratório, não terá tempo para desenvolver a
denominada pesquisa pura … alertam outros. O lugar do conhecimento:
Estas ponderações, por vezes, são feitas, inclu- a primeira diferença
sive, nos corredores e nas reuniões de algumas
instituições voltadas para produção de pesqui- Para ser cientista, basta dominar um determi-
sa básica no Brasil de hoje. No nosso entender, nado conhecimento?
Latour, neste artigo, concentra seus esforços Segundo o senso comum, qualquer ativida-
em tentar desfazer esta visão de ser cientista, de humana no mundo do trabalho é considera-
tão enraizada no imaginário coletivo tanto no da uma atividade profissional. Nas sociedades
meio científico quanto na sociedade em geral. complexas e pós-industriais, entretanto, as ati-
Para tornar-se um cientista, a atividade no vidades do setor terciário – particularmente as
laboratório é suficiente? Quem passa todo o que requerem uma formação de nível superior
tempo procurando captar finaciamento ou re- – aumentaram de número e de importância
conhecimento para um projeto não pode ser neste século. Assim, a crescente racionalização
considerado um cientista? Para responder es- e intelectualização deste segmento da atividade
tas questões, Latour (1989) faz outras interro- produtiva promoveu sua hierarquização. O tra-
gações de caráter mais abrangente, tais como: balho com a ciência é hoje organizado em “dis-
O que é uma profissão? Como diferenciá-la de ciplinas especiais a serviço do auto-esclareci-
uma ocupação? Como se caracteriza o proces- mento e conhecimento de fatos inter-relacio-
so de profissionalização? nados. Não é um dom da graça de videntes,
O objetivo deste trabalho é apresentar, de nem participa das contemplações dos sábios”
forma sumária, como Bruno Latour respondeu (Weber,1982:130). Nas sociedades complexas e
a estas perguntas. Para melhor compreender pós-industriais como aquelas em que vivemos,
suas inquietações, sua visão será contraposta as atividades do setor terciário, particularmen-
àquela enunciada por Wilensky (1970), quando te as que requerem uma formação de nível su-
define “profissão” e “processo de profissionali- perior, aumentaram de número e importância.
zação”, e a alguns postulados das vertentes in- Wilensky foi um dos sociólogos das profis-
ternalista e da externalista de compreensão da sões que buscou, exatamente, analisar as espe-
natureza do trabalho do cientista. cificidades das atividades de nível superior,
Com isso, procuraremos desenvolver uma procurando identificar entre elas uma hierar-
análise ao mesmo tempo crítica e epistemoló- quia. Ele partiu desta premissa e seguiu, ainda,
gica sobre o ser cientista. Consideramos esta alguns dos postulados fundadores da sociolo-
reflexão de inegável relevância para o campo gia de Durkheim (1984). “Na visão durkeimiana
da Saúde Pública, onde atuam muitos cientis- a sociedade moderna está caracterizada, basi-
tas, assim denominados formalmente e reco- camente, pela divisão do trabalho através das
nhecidos socialmente. diferentes profissões e especializações” (Ma-
Além disso, pretendemos, mais uma vez, chado, 1995b:13). Por esta razão, Wilensky pro-
comprovar que o trabalho crítico com o con- curou definir alguns elementos constitutivos
ceito profissão, analisado do ponto de vista so- de uma profissão. Seu intuito era, ainda, deter-
ciológico e histórico, é legítimo e imprescindí- minar algumas diferenças entre as ocupações e
vel para todos aqueles que se interessem pela as profissões. Fixados estes atributos, buscou
organização do trabalho na área da saúde. identificar também, por exemplo, algumas
O estudo de Latour, que analisaremos a se- ocupações em vias de se profissionalizar e al-
guir, é apenas um dos que tomou concreta- gumas profissões que tendiam à desprofissio-
mente a profissão como objeto de pesquisa. nalização.

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A preocupação central de Wilensky (1970) Este mesmo elemento tido como essencial
era estabelecer critérios suficientes que fossem para Wilensky, e reiterado recentemente por
capazes de distinguir a natureza do trabalho do Marinho (1986), recebe de Latour, no mesmo
carpinteiro daquele exercido, por exemplo, por esforço conceitual, peso distinto. No seu en-
um médico. Neste sentido, o domínio do co- tender, o monopólio do conhecimento, nas ca-
nhecimento era, para ele, um fator que adqui- racterísticas apontadas anteriormente, não re-
riu especial importância. presenta elemento nem suficiente nem deter-
Para Wilensky, “qualquer profissão que dese- minante para a definição de uma profissão. Ele
je exercer sua autoridade profissional deve en- afirma: “Sem o recrutamento de numerosos
contrar uma base técnica para isto, sustentada aliados, sem a tática sutil que permite ajustar
em exclusiva jurisdição, habilidade e leis ligadas simetricamente os recursos humanos e não
ao treinamento padronizado, convencendo o humanos, a retórica da ciência torna-se impo-
público de que seus serviços são dignos de con- tente” (Latour,1989:236). A questão do domí-
fiança. O conhecimento profissional, como to- nio do conhecimento, em si, para Latour, é me-
do o conhecimento, deve ser relativamente táci- nos importante que as estratégias que o corpo
to, e é isto que dá às profissões estabelecidas sua profissional desencadeia para convencer seus
aura de mistério. (…) O conhecimento pode ser pares, a sociedade e o Estado de sua existência
deliberadamente usado como um meio tático, e utilidade.
como um recurso para construir prestígio e po- Analisando especificamente a evolução das
der. (…) A base do conhecimento ou doutrina profissões da saúde nos dias de hoje, Machado
para a profissão é uma combinação do conheci- (1991) considera que “as modificações históri-
mento prático e intelectual, parte do qual é ex- co-sociais ocorridas na sociedade afetaram de
plícito (livros, leituras, demonstrações), parte maneira decisiva o campo de ação e a defini-
implícito. Os aspectos teóricos do conhecimen- ção deste profissional”. Ela complementa seu
to profissional e os elementos tácitos do conhe- ponto de vista afirmando: “O conceito socioló-
cimento intelectual e prático tornam necessário gico clássico que define a profissão médica –
o treinamento longo que persuade o público do monopólio de uma área específica de ativida-
mistério da tarefa” (Wilensky, 1970:483-484). de, a partir de uma larga formação intelectual,
Como acabamos de observar, Wilensky con- adesão de todos os membros da profissão a um
sidera o domínio do conhecimento um ele- sistema de valores, autonomia de trabalho en-
mento imprescindível para a reivindicação de tre outros – como uma profissão típica e nobre
exclusividade para a realização de determina- entre as profissões, está cada vez mais distante
da tarefa. Este conhecimento deve ser, no seu da situação atual” (Machado,1991:32).
entender, extremamente complexo, organiza- Concordando com Machado (1991) e suge-
do e sistematizado em Universidades e socie- rindo outros elementos que precisem ainda
dades de saber. O profissional deve ter um vo- mais este debate, consideramos importante
cabulário compreensível apenas por seus pa- ressaltar duas questões:
res. Com estas características, nem todos te- Por um lado, a atividade profissional, obje-
riam acesso a este tipo de conhecimento. O do- to de investigação de Wilensky no final dos
mínio do conhecimento é esotérico, ou seja, anos 60, difere muito da referência prática que
ministrado a círculo restrito e fechado de ou- serviu de base para as reflexões de Latour, em
vintes e compreensível apenas por poucos. Es- meados dos anos 80. As condições históricas
te é um ponto central na definição do que ve- atuais impõem ao exercício das profissões ele-
nha a ser uma profissão para Wilensky. mentos que não eram observados, de forma
Marinho (1986) corrobora com esta con- sistemática, há vinte anos atrás. Hoje em dia o
cepção. Para ele é fundamental o papel que o trabalho social de cunho profissional carrega
domínio de um conhecimento especializado extensa e intensa tecnologia e confere, por
exerce na obtenção e na manutenção do status exemplo, significativo papel ao domínio dos
e sucesso profissional (definido em termos de meios de comunicação e informação como
conquista de um monopólio de competência). meios de obter prestígio, reconhecimento e po-
Segundo o autor, “as ocupações que possuem, der.
em sua base cognitiva, um conhecimento pa- Por outro, cabe ressaltar que Wilensky vin-
radigmaticamente orientado (isto é, formal e cula-se à escola durkheimiana norte-america-
definido), tido como esotérico e suscetível de na, que “apostava numa sociedade harmônica,
aplicação prática, encontram menores dificul- capaz de gerir seus conflitos e conferia às cor-
dades na conquista de seu monopólio de com- porações papel crucial no processo democráti-
petência e conseqüentemente do território co” (Machado, 1995b:14). Latour inscreve-se na
profissional exclusivo” (Marinho, 1986:11). contemporânea corrente de sociologia das

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ciências que busca dirimir as oposições, ainda nhecimento é transmitido de forma hereditá-
muito cristalizadas no meio acadêmico, entre a ria, informal ou com base na simples observa-
versão externalista e a internalista de lidar com ção. A sistematização e universalização do co-
a história da produção do conhecimento cien- nhecimento em instituições é a garantia do
tífico. Sua postura metodológica porta um tom monopólio exercido pelo profissional. No seu
intensamente interdisciplinar, utilizando-se, entender “o treinamento padronizado é requi-
por vezes, por exemplo, da etnologia e da an- sito para integrar uma profissão” ( Wilensky,
tropologia. Podemos, então, concluir que estes 1970:489).
dois analistas militam em distintas escolas de 3) A seguir, devem ser constituídas as associa-
pensamento. Além disso, os trabalhos, que fo- ções profissionais, voltadas para defender seus
ram objeto de nossa investigação neste texto, interesses econômicos e construir uma padro-
foram produzidos em momentos históricos nização de conduta que deverá ser cumprida
distantes e diferentes entre si, influenciados, por todos os seus integrantes. Com isso, eles
portanto, por referências teóricas e problemá- se sentirão parte de um corpo profissional
ticas metodológicas que chegam a ser, em cer- portador de certa identidade. A associação
to sentido, antagônicas. profissional visa, assim, separar os competen-
No nosso entender, uma análise que procu- tes dos incompetentes; definir responsabilida-
re identificar as diferenças existentes entre des essenciais à profissão; regular o conflito
duas abordagens distintas sobre um mesmo interno não só entre os praticantes como entre
conceito deve levar em consideração o mo- estes e os atores externos. Em alguns casos a
mento histórico em que elas foram respectiva- competição aguda com ocupações vizinhas e
mente elaboradas. Caso contrário, o analista concorrentes pode ser observada. Se este for o
corre o sério risco de não conseguir perceber caso, a associação profissional representará os
seu significado mais profundo. Uma das práti- interesses da corporação no sentido de garan-
cas mais constantes entre cientistas sociais que tir o monopólio do exercício daquela ativida-
analisam o pensamento de certo autor é fazê- de. Elas caracterizam-se por não pleitearem
lo sem levar em consideração as condições só- exclusivamente melhorias nas condições de
cio-econômicas, as escolas de pensamento e as trabalho. A garantia da auto-regulação é ele-
inquietações filosóficas que informaram as mento imprescindível para a conquista de
idéias expostas por ele. prestígio, reconhecimento e poder da profis-
são junto a seus pares, a seus clientes e à so-
ciedade em geral, pré-requisito para garantia
O processo de profissionalização: do monopólio do território para o exercício
segunda diferença profissional.
4) Para que esta região de competência fique
Partindo dos pressupostos introduzidos ante- claramente definida, é necessário, sobretudo,
riormente, passemos agora a acompanhar co- intensa atividade política no interior das diver-
mo os dois autores concebem o processo pelo sas instâncias de poder público. Assim, a pro-
qual as atividades do mundo do trabalho, so- fissão organizada e atuante pode ser regula-
bretudo aquelas que requerem uma formação mentada, assegurando para si, oficialmente, o
especializada em escolas criadas para este fim, monopólio de competência. Portadora desta
podem se transformar, até atingirem o status prerrogativa legal, a profissão terá os meios pa-
profissional. ra inibir, coibir ou penalizar todo aquele que
Wilensky parte de uma pesquisa desenvol- concorra com ela sem ter se submetido ao
vida junto a 18 atividades profissionais desem- mesmo ritual ou cumprido as etapas que a pro-
penhadas nos Estados Unidos e estabelece os fissão proclama como imprescindíveis para
“cinco passos do processo de profissionaliza- que alguém possa exercê-la plenamente.
ção”, a saber: 5) A última etapa ocorre com o estabeleci-
1) A ocupação deve ser exercida em regime de mento de um código de ética que garanta le-
tempo integral. Para que isso ocorra, é neces- galmente o direito de expurgar os profissionais
sário que haja, por um lado, a demanda pelo que não se submetam às normas de conduta
serviço e que este seja aplicável a situações estabelecidas previamente entre os pares ou
concretas. Com isso, ficam excluídas desta ca- com clientes. Mais uma vez, é significativo o
tegoria as atividades feitas esporadicamente. papel desempenhado pelos instrumentos de
2) O domínio do conhecimento esotérico fica auto-regulação. Desta feita não se trata de con-
assegurado se forem criadas escolas de treina- vencer os pares e sim de fiscalizá-los e até pu-
mento onde ele é exclusivamente veiculado. ni-los por transgressões a um código de ética,
Assim, ficam excluídas as atividades cujo co- coletivamente criado. Um profissional, desta

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forma, terá condições de julgar e punir o cole- Analisando atentamente o quadro que se
ga. Este julgamento tem valor legal e pode le- configurou, dificilmente alguém seria capaz de
var até ao impedimento do exercício da ativi- identificar divergências ou disparidades entre
dade. as abordagens de Wilensky e Latour. As conver-
Latour propõe, igualmente, cinco etapas no gências, aparentemente, predominariam, na
processo de profissionalização, a saber: medida em que quatro das cinco atividades
1) Em primeiro lugar, o profissional deve ser previstas são comuns aos dois autores. A ques-
alguém capaz de eliminar os amadores e viver tão, entretanto, não é quantitativa, apesar des-
do trabalho. No seu entender, o exercício pro- ta dimensão não poder ser menosprezada.
fissional impõe uma dedicação exclusiva e in- No nosso entender, a questão central que
tegral à atividade. Caso contrário, ela pode ser diferencia o ponto de vista de Wilensky (1970)
abandonada a qualquer momento. O profissio- daquele introduzido por Latour (1989) é de na-
nal difere do amador, pois sobrevive com o que tureza duplamente metodológica.
ganha desempenhando sua atividade. Os ama- Por um lado, cabe ressaltar que, para o so-
dores, entretanto, devem ser preservados co- ciólogo norte-americano, as cinco etapas pro-
mo força de trabalho indispensável, submissa postas comporiam uma progressão universal
e disciplinada pelo profissional, que não deve de acontecimentos: um caminho que todas as
perder tempo com suas opiniões. atividades deveriam cursar para conquistar o
2) A veiculação do conhecimento em revistas estatuto de profissão. Assim, para Wilensky, to-
e museus e demais órgãos de divulgação cien- das as ocupações que estivessem em vias de se
tífica levaria a profissão a atingir um público profissionalizar deveriam atingir as etapas por
mais amplo. Com isso, aumentaria o número ele enunciadas na ordem que foram descritas.
de pessoas interessadas em absorver seus prin- Sua visão independe da natureza da atividade,
cípios e utilizar seus serviços, sem que ele seja do momento histórico ou da realidade social
vulgarizado de forma panfletária. Para profis- em que ela buscava se profissionalizar. Para
sionalizar-se, uma atividade deve estabelecer Latour, estes cinco fatores integrantes do pro-
estratégias para atrair o público e satisfazer a cesso de profissionalização, seriam, sobretudo,
sociedade. Com isso, constituir-se-ia um mer- “pontos de passagem obrigatórios”, “frentes si-
cado de consumo para seus serviços. multâneas” e não obedeceriam a uma ordem
3) A profissão deve ser hábil e capaz de con- preestabelecida.
vencer e provar ao Estado que sua atividade é Por outro lado, enquanto Wilensky acom-
imprescindível para a sociedade. Ao mesmo panha o desempenho de 18 profissões ao lon-
tempo, sua autonomia deve ser garantida: to- go do tempo, amparado em dados estatísticos,
das as ingerências devem ser evitadas. e constrói um modelo abstrato e adaptável a
4) O profissional constitui-se quando se sub- toda e qualquer condição, Latour nos apresen-
mete a um ritual rigidamente estabelecido pe- ta as suas “regras do método”, penetrando de
lo ensino universitário, que padroniza e impõe forma quase que antropológica no laboratório,
normas rígidas para a formação de jovens cole- desvendando sua rotina.
gas. Neste aspecto, reside, no nosso entender, a
5) Finalmente, a profissão deve ser capaz de singularidade mais instigante da perspectiva
definir normas de conduta entre os pares, que analítica proposta por Latour, uma vez que tri-
visem promover meios de resolver controvér- lha um caminho distinto, inovador e interes-
sias internas, deixando os amadores do lado. A sante. Em vez de partir de 18 profissões dife-
punição de um colega está prevista, pois obje- rentes e criar um modelo que tenha a intenção
tiva, sobretudo, preservar a imagem e o prestí- de dar conta de todas as diferenças constituti-
gio do corpo profissional junto aos clientes, ao vas do processo de profissionalização, Latour
Estado e à sociedade em geral. acompanha alguns pesquisadores ao longo de
Comparando as duas abordagens configu- seu dia-a-dia de trabalho no interior de um la-
rar-se-á a seguinte tabela: boratório. Da parte, ele não pretende criar uma

Etapas – Autor Wilensky Latour

Primeira Eliminar amadores Eliminar amadores


Segunda Formação padronizada Satisfazer a sociedade
Terceira Associações profissionais Provar ao Estado
Quarta Provar ao Estado Formação padronizada
Quinta Normas éticas Normas éticas

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regra aplicável ao todo. Da parte, ele constrói benefício social. Assim, o Estado passará a fi-
uma maneira de olhar outras singularidades nanciá-la e ela terá condições de competir com
semelhantes (mas diferentes) àquela por ele outras disciplinas, chegando a conquistar o
observada. monopólio tão desejado.
À primeira vista, a obtenção de um diploma Seguindo a perspectiva proposta por La-
de nível superior seria um elemento suficiente tour, na Geologia, assim como em outras áreas
para que a profissão de cientista recebesse do conhecimento, há que se analisar de que
atenção, dinheiro e confiança da sociedade. O maneira uma atividade conseguiu convencer
que ele procura nos mostrar é que estes fatores as autoridades acadêmicas, o Estado e os clien-
são determinantes, mas não suficientes. Dois tes de sua utilidade, erguendo-se e sobrepujan-
casos descritos por ele serão apresentados a do-se contra as convicções até então aceitas,
seguir: o caso do geólogo e o de um chefe de la- contrárias à sua existência. Da mesma forma
boratório. Ao reproduzir parte de sua narrati- há que se buscar compreender como certa pro-
va, temos o intuito de desvendar e analisar o fissão estabelecida e reconhecida pelo Estado,
olhar inovador que Latour nos apresenta. pela sociedade e pela comunidade científica
perdeu seu prestígio, poder econômico e polí-
O caso do geólogo tico, tornando-se uma ocupação.

Um dos investimentos de pesquisa implemen- O diretor de um laboratório


tados por Latour nesta obra relaciona-se com a
análise que faz de um geólogo, na época em A área da Saúde Pública não é muito diferente
que não existiam nem a disciplina (Geologia), das demais. Enquanto alguns cientistas pas-
nem a profissão. Como um historiador, sofren- sam os dias investigando, lendo ou escrevendo,
do forte influência da antropologia, Latour outros atuam, procurando levantar verbas su-
acompanhou o dia-a-dia do trabalho de um plementares para o mesmo projeto. Qual dos
certo senhor chamado Lyell, que, em 1820, de- dois faz pesquisa?
sejava estudar a “História da Terra”. Em meados Para descrever o processo de profissionali-
do século XIX, este tipo de investigação relacio- zação do cientista, Latour acompanha o dia-a-
nava-se tanto com a Teologia, quanto com a dia de um diretor de laboratório de pesquisas,
Paleontologia, ou seja, não havia um campo de reproduzindo, ao mesmo tempo, as atividades
conhecimento definido voltado especifica- que um grupo de pesquisadores desempenhou
mente para os estudos da origem, formação e durante uma semana. Ele constata, assim, que
das sucessivas transformações do globo terres- este diretor ocupou todo o seu tempo imple-
tre, como existe atualmente. As instituições, os mentando estratégias para recrutar investido-
parceiros e os aliados não estavam ainda cons- res, interessar e convencer pessoas da relevân-
tituídos. cia, originalidade e pertinência da pesquisa de-
Para Latour, não basta definir e dominar senvolvida em seu laboratório. Enquanto isto,
certa área do saber. Há que implementar si- os pesquisadores dirigidos por ele passaram a
multaneamente movimentos persuasivos em mesma semana, 12 horas por dia, trancados
duas direções: por um lado cabe conquistar a em um laboratório.
aceitação e o reconhecimento junto à comuni- Afinal de contas, ele se pergunta, quem são
dade científica e ao Estado. Por outro lado, de- os que fazem realmente pesquisa? Onde se faz
ve-se convencer a sociedade sobre a necessi- pesquisa de verdade?
dade da existência desta atividade. Para que Uma resposta possível seria acompanhar a
obtenham êxito, estes dois movimentos devem lógica dos que acreditam numa real diferença
promover alianças políticas e institucionais, entre o interior e o exterior da atividade em
fora do laboratório, que garantam sua própria ciência e tecnologia. Há os que defendem que a
sobrevivência. pesquisa se faz exclusivamente dentro do labo-
No primeiro caso, por exemplo, Lyell deve ratório. Estes seriam os “internalistas” ou “difu-
“despertar o interesse não apenas da nobreza, sionistas”. Por outro lado, há os que entendem
como também das altas autoridades do Estado, que a atividade do laboratório só sobrevive
convencendo certos organismos de que a Geo- graças à mobilização política e financeira que
logia traduz seus interesses, produzindo um se faz do lado de fora do laboratório. Estes se-
grande número de fatos novos e inesperados, riam denominados “externalistas”. Para eles, a
que poderiam ser considerados soluções para atividade de “pesquisa pura” é sobredetermina-
certos problemas” (Latour, 1989:242). No se- da pela questão social e política. O divórcio en-
gundo caso, a profissão deve provar que o co- tre essas duas perspectivas de investigação tra-
nhecimento que detém carrega altos índices de duz-se no debate acadêmico entre internalistas

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e externalistas, muito presente ainda em alguns O autor retoma o exemplo do diretor que
fóruns onde se discute a história das ciências e sai à busca de financiamento e reconhecimen-
das técnicas. Para Latour, se você seguir um dos to, e o dos pesquisadores que permanecem no
caminhos, contará uma história. Se escolher o interior do laboratório. Para ele, um pesquisa-
outro, a história será completamente diferente. dor só é capaz de permanecer exclusivamente
Latour condena tanto os “internalistas” dentro do laboratório porque outro está cons-
quanto os “externalistas”. A crítica que faz aos tantemente fora procurando novas fontes de
internalistas relaciona-se ao fato de pretende- recursos. No seu entender, há uma relação di-
rem analisar o processo de produção científica reta entre a intensidade do trabalho exterior de
como sendo exclusivamente fruto do trabalho recrutamento e a tensão sofrida no interior do
de pesquisadores, construindo uma imagem laboratório. Muitas vezes, uma pesquisa só tem
idílica, pura e desinteressada da atividade condições de se desenvolver se o ambiente on-
científica. Quando se fala de ciência, os leito- de a investigação está instalada for equipado
res, convencidos por esta perspectiva, pensam adequadamente. Outras vezes uma pesquisa só
logo em sábios célebres, em disciplinas e uni- consegue instalações adequadas se estiver de-
versidades com prestígio que produzem novas senvolvida o suficiente e apresentar argumen-
idéias e conhecimentos completamente disso- tos convincentes às agências financiadoras.
ciados do que se passa na sociedade. Acompa- Compõe-se, assim, um quadro de dupla
nhando a maneira como o autor estrutura sua pressão. Uma vem dos que permanecem no la-
crítica aos internalistas, mais uma vez nos sur- boratório e volta-se sobre os que articulam com
preendemos. Latour recorre às estatísticas ofi- as fontes financiadoras e que estão no exterior.
ciais e constata o reduzido número de profis- Se o financiamento não for obtido, o ambiente
sionais inscritos no recenseamento federal, no laboratório torna-se tenso, pois o trabalho
nos Estados Unidos, como “cientistas”,assim terá poucas condições de ter continuidade. A
como a quantidade, menor ainda, possuidora outra pressão origina-se dos que estão no exte-
de um doutorado. Ele usa esses dados para rior. As inovações científicas produzidas no in-
desmontar a lógica internalista, que acredita terior de um laboratório devem estar cercadas
que aqueles que trabalham no laboratório são de provas. Os que articulam colegas, revistas
os únicos que fazem realmente ciência: “Não é científicas de divulgação, autoridades e insti-
possível que esta minoria consiga, sozinha, re- tuições não podem ter seus produtos passíveis
crutar os fundos necessários para produzir co- de críticas ou contestações. Assim, os que per-
nhecimento e convencer toda a população de manecem do lado de fora exercem pressão so-
sua eficácia” (Latour, 1989:246). Os internalis- bre os que ficam no laboratório para que pro-
tas defendem, por outro lado, que os cientistas, duzam dados confiáveis e comprováveis. Para
apesar de serem tão poucos, fazem tanto e in- Latour, as ciências têm um interior porque têm
fluenciam tanta gente porque são os melhores um exterior. Quanto mais importante, sólida e
e os mais brilhantes, e que, por essa razão, as pura for a ciência produzida no interior, tanto
pessoas acreditam neles. Assim, Latour procu- mais os outros pesquisadores, agenciadores de
ra apresentar não apenas os próprios argu- prestígio e verbas, devem ir longe em direção ao
mentos, mas também introduz aqueles susten- exterior. Assim, o autor não vê condições de
tados pelos internalistas. uma face existir se não estiver apoiada na ou-
A crítica que faz aos externalistas vincula- tra. São dois trabalhos distintos. Um, entretan-
se ao fato de conceberem o trabalho científico to, não sobrevive sem o outro.
como sendo fruto exclusivo das determinações Utilizando o método que denominou “lógi-
sociais, políticas e econômicas que sofre du- ca da tradução”, Latour se propõe a contar uma
rante sua elaboração. Os externalistas, no seu única história, qualquer que seja o ponto de
entender, erram quando cuidadosamente ne- entrada. Se você seguir o pesquisador na ban-
gligenciam a análise dos conteúdos das disci- cada, chegará ao diretor do laboratório que ne-
plinas e a realidade dos laboratórios. gocia financiamento. Se você acompanhar o
Para Latour, a qualidade da pesquisa que se dia-a-dia do diretor, chegará ao laboratório,
desenvolve no interior do laboratório não é de- sua bancada, microscópios, lentes e todos os
terminada apenas pela capacidade de articula- utensílios necessários. Para ele, a capacidade
ção política do diretor, em seu exterior. A deci- de trabalhar num laboratório depende do su-
são do Ministro, por sua vez, não é influencia- cesso obtido por outros pesquisadores na cole-
da exclusivamente pelo que se faz no laborató- ta de recursos e vice e versa.
rio. No seu entender, não existem duas histó- Aprofundando sua argumentação, Latour
rias: uma das coisas e outra das pessoas. Só considera que os pesquisadores que permane-
existe uma. cem no laboratório representam a ponta de um

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iceberg. No seu entender, é necessário muito Para Latour, o domínio e a delimitação do


mais gente no exterior para tornar possível o conhecimento é fundamental ao processo de
trabalho daqueles que acham que fazem “ciên- profissionalização, sem ser, entretanto, deter-
cia pura”. Seguindo a “lógica da tradução”, pro- minante ou imprescindível.
posta pelo autor, podemos concluir que os que Para apresentar sua visão, Latour percorre
contribuem para a definição, a difusão, a divul- um caminho ao mesmo tempo sinuoso e insti-
gação, o convencimento da utilidade, a nego- gante. Tanto no caso do geólogo Lyell, quanto
ciação, a gestão, a regulamentação, a inspeção, no do diretor de um laboratório, o autor imple-
o ensino, a venda e a manutenção dos produ- mentou uma descrição etnográfica, que confir-
tos gerados no laboratório, apesar de não per- mou sua hipótese principal. Latour acredita
manecerem no interior deste, são parte inte- que, para que sejam analisadas as razões do
grante da pesquisa. sucesso de uma atividade que se profissionali-
Assumindo esta perspectiva, surge um pro- za, deve-se trabalhar simultaneamente com
blema metodológico. Como fazer este tipo de duas dimensões: o lado de dentro e o de fora
análise, já que, por definição, as estatísticas so- do processo de produção do conhecimento
bre força de trabalho só denominam cientistas propriamente dito. Ele admite que poderia
as pessoas oficialmente engajadas na ciência e adotar e reproduzir a lógica dos que acreditam
que desenvolvem sua atividade em laborató- numa real diferença entre estes dois lados, ou
rios ou centros de pesquisa? Para Latour, a aná- mesmo dos que entendem que exista uma de-
lise dos orçamentos, mesmo se estiverem de- terminação de um lado sobre o outro. Para ele,
formados pelas estatísticas, é um dos cami- “embora esta lógica seja aceita pela maioria
nhos possíveis para resolver esta questão. Eles dos analistas, ela nos é absolutamente proibi-
representam, de maneira geral, um bom ter- da” (Latour, 1989:258). Segundo Latour, ne-
mômetro para que se avalie até que ponto os nhum fator deve ser privilegiado quando um
pesquisadores foram capazes de suscitar inte- processo de profissionalização for analisado.
resse das autoridades e das agências financia- Uma investigação sobre o trabalho científico
doras com seu trabalho. Para conseguir o mon- deve recompor todos os seus meandros, duvi-
tante de verba firmado nos orçamentos, o pes- dando tanto das ciências sociais quanto das
quisador não pode ficar fechado em seu labo- ciências ditas sólidas. Não se trata de decidir
ratório. Em sua equipe, uma parte fará o traba- que fatos pertencem ao social e quais ao cien-
lho de persuasão e negociação com o Estado, tífico. Ao contrário, Latour postula que os dois
as agências financiadoras e a sociedade em ge- caminhos sejam seguidos simultaneamente. O
ral, enquanto outra se manterá próximo ou próprio autor, entretanto, chega a duvidar do
dentro do laboratório. sucesso de seu empreendimento. “Teríamos
nós percorrido todo esse caminho e consegui-
do escapar à frigideira da ciência somente para
Considerações finais cair no fogo da sociedade? Sairemos algum dia
dos descaminhos do internalismo para recair a
Como alguém se torna cientista? cada vez nas aberrações do externalismo? Se-
Esta foi a pergunta que abriu este artigo. remos obrigados a escolher um meio termo en-
Entendemos que nosso intuito foi cumprido, tre internalismo e externalismo, meio termo
ou seja, na análise que fizemos, a visão de La- este que cumularia os absurdos?” (Latour,
tour foi suficiente para desmistificar a resposta 1989:285).
que se tem comumente para esta pergunta. Pa- Apesar destes argumentos, expostos pelo
ra boa parte da opinião pública, um cientista é próprio Latour, acreditamos que tenha conse-
alguém que se dedica integral e exclusivamen- guido sair tanto das frigideiras e descaminhos
te a seu trabalho de pesquisa e, além disso, do- do internalismo quanto do fogo e das aberra-
mina um conhecimento sofisticado e incom- ções do externalismo. Concordamos, assim,
preensível por leigos. A concepção de Wilensky com Hochmam (1994), quando afirma que a
sobre o processo de profissionalização coinci- proposta metodológica de Latour é uma reação
de, a nosso ver, com aquela presente no senso “tanto às análises que atribuem um lugar espe-
comum. Para Wilensky, uma ocupação pode se cial ao conhecimento científico (...) quanto aos
tornar uma profissão se dominar um conheci- críticos desta postura que (...) acabam por não
mento esotérico, complexo, institucionalizado atentar para a prática da pesquisa como ela é
e aplicável. Para ele, como para a opinião pú- produzida atualmente” (Hochman, 1994:214).
blica em geral, esta condição é determinante e Um dos grandes méritos da abordagem de La-
imprescindível para a caracterização de uma tour foi o de ter conseguido apresentar uma vi-
profissão, sobretudo a de cientista. são do processo de profissionalização que, ao

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TORNAR-SE CIENTISTA 117

mesmo tempo, não dá ênfase nem ao domínio dica em cada realidade específica. Lendo e
do conhecimento, como fazem os internalistas, analisando estas duas obras, tivemos condi-
nem privilegia a soberania do social, como ções de perceber que “o lugar da ciência na
querem os externalistas. Cabe mencionar que, configuração da profissão foi, para ambos os
apesar de aparentemente resolvida, esta oposi- autores, tido como secundário ou pouco signi-
ção – visão internalista X visão externalista – ficante. (...) Os autores combinaram, em suas
permanece extremamente viva. Superar esta análises, uma face sócio-histórica com outra
oposição artificial representa um dos grandes e voltada para o próprio desenvolvimento cien-
instigantes desafios para aqueles que preten- tífico do conhecimento médico e suas reper-
dam fazer história das ciências e de sua profis- cussões sociais”(Pereira, 1995a:24).
sionalização, nos vários ramos do conheci- Starr (1982) e Hezlich (1995) concluíram
mento. que a análise histórica e sociológica da profis-
Como alguém se torna cientista? são não pode ser vista dissociada da sociedade
Recorremos à mesma pergunta para fazer- e do movimento científico que nela se inscreve
mos outra. Qual foi o método utilizado pelos (Pereira, 1994). A necessidade da associação
autores que foram objeto de nossa análise? destas dimensões tem sido uma de nossas
Ao longo deste texto, acreditamos ter sido preocupações em produções recentes. No nos-
possível compreender suas divergências e con- so entender, a dimensão histórica deve ser in-
vergências no plano teórico e conceitual com troduzida na análise das profissões em função,
base nas respectivas construções e operações pelo menos, de duas coordenadas que consi-
concretas adotadas. Metodologicamente, La- deramos fundamentais: “Por um lado cabe fa-
tour penetra no laboratório procurando resga- zer uma referência à história social em que es-
tar seu dia-a-dia, seus conflitos e interesses ta profissão está inserida e da qual faz parte.
distintos. Wilensky, por seu lado, parte da cons- Por outro lado cabe reconhecer a historicidade
tatação das etapas comuns 18 profissões nos do processo profissional” (Pereira, 1995b:612).
Estados Unidos e, com isso, cria um esquema Este esforço de definição conceitual e de
teórico abrangente, aplicável, no seu entender, associação destas várias dimensões, na área
a todas as atividades do mundo do trabalho. das ciências sociais, acabou de ser revitalizado
Tivemos o cuidado de ressaltar que cada com o lançamento da coletânea organizada
um destes autores produziram trabalhos em por Machado (1995a). Nela, os diversos auto-
momentos históricos distintos, tendo sido, res, inseridos na área da sociologia das profis-
portanto, informados por preocupações e es- sões, buscam estabelecer uma “conexão entre
colas de pensamento bastante diferenciadas. a base cognitiva, o mercado de trabalho, os as-
Este ponto de partida não desqualificou, a nos- pectos do ambiente (Estado, sociedade, asso-
so ver, o empreendimento que nos dispomos a ciações civis, instituições etc.), os avanços tec-
enfrentar. Muito pelo contrário, a contraposi- nológicos – seus efeitos no mundo profissional,
ção apresentada teve o mérito de aguçar a a dimensão das arenas conflitivas e de compe-
perspectiva crítica, imprescindível para traba- tição entre elas e no interior delas” (Machado,
lhos desta natureza. 1995b:11).
A historicidade do processo de profissiona- Esta postura instigante e criativa de tratar o
lização não foi, para nós, objeto de interesse de fenômeno profissional tem integrado a agenda
nenhum dos dois autores. Nem poderia ter si- de alguns estudos de cunho sociológico e his-
do diferente. Esta não era a preocupação de tórico que fizeram da profissão seu objeto pre-
nenhum deles. Latour procurou diluir a oposi- ferencial de análise (Schraiber, 1993). Ao reali-
ção existente entre internalistas e externalistas, zarmos o empreendimento que este artigo
enquanto Wilensky buscou estabelecer um ti- busca traduzir, não tivemos a intenção de es-
po ideal de “ser profissional”. Duas iniciativas gotar as possibilidades interpretativas que La-
louváveis e que contribuíram enormemente tour e Wilensky portam. Nosso objetivo foi o de
para a caracterização do que venha a ser uma contribuir para o debate acadêmico sobre a le-
profissão em termos sociológicos. Ambas abor- gitimidade da utilização do conceito profissão
dagens integram atualmente a história da enquanto objeto de estudo sociológico e histó-
construção deste conceito. rico (Barbosa, 1993), bem como discutir algu-
Mas, o que seria introduzir a dimensão his- mas novas perspectivas metodológicas que o
tórica às análises sobre processos de profissio- objeto tem suscitado.
nalização?
Recentemente, autores como Starr (1982) e
Herzlich (1995) buscaram associar as histórias
de seus países com a história da profissão mé-

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Agradecimentos

Agradeço à professora Dra. Vera Portocarrero (Casa


de Oswaldo Cruz/Fiocruz e Uerj), pelos comentários
e sugestões durante a elaboração deste texto. Os er-
ros e omissões que ele contém são, entretanto, de mi-
nha inteira responsabilidade.

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