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Antigo Regime

Expressão popularizada pelo célebre livro de Alexis de Tocqueville O Antigo Regime e a Revolução , editado
pela primeira vez em 1856. Terá sido retirada, talvez, do vocabulário familiar ou de certas locuções
jurídicas do século XVIII. Os revolucionários deram-lhe um carácter negativo, tal como os iluministas, que
lhe opunham o conceito de progresso. Tocqueville e outros deram-lhe uma conotação mais "suave",
aparentando o Antigo Regime a um "estado de facto". Para além do seu significado, importa saber que
este "estado de facto" apareceu em França, principalmente, e noutros países europeus, em menor escala.
Talvez nos séculos XIV e XV, nomeadamente depois da Guerra dos Cem Anos, conflito que opôs a França à
Inglaterra entre 1337 e 1453, e do qual a realeza francesa sai forte. O fim é conhecido: a Revolução
Francesa de 1789.
Todo esse período da história da França caracteriza-se por um conjunto de instituições e um sistema de
administração centrados na imagem do rei, figura tutelar da nação. A autoridade real era plena e não
admitia, por princípio, contestação ou controlo (a partir de 1614 deixará de convocar os Estados Gerais,
forma de Cortes em França), governando não uma nação mas antes três ordens (a sociedade de ordens),
separadas umas das outras por costumes, necessidades, interesses diferentes e antagónicos: o Clero, a
Nobreza e o Terceiro Estado (o povo, donde é oriunda a burguesia).
A desigualdade é, pois, a característica principal desta sociedade do Antigo Regime. Duas ordens têm
privilégios, particularmente fiscais (Clero e Nobreza), a outra (o povo), nada. O Clero era considerado a
primeira ordem do reino, proeminente sobre as demais, compreendendo uma média de 130 000 efectivos,
divididos entre alto clero (rico, poderoso, de origem nobre, onde se incluem os bispos, cardeais, abades e
altos dignitários eclesiásticos) e baixo clero (com algumas dificuldades, de origem popular, ao qual
pertencem os párocos, os frades e os monges). Existiam por vezes conflitos entre estes dois ramos do
clero.
A nobreza, ou segunda ordem, teria cerca de 400 000 membros, representando 1,5 % da população
francesa mas detendo 20% das terras do país (a agricultura, ainda em moldes senhoriais, era um dos
suportes económicos do país), com todos os privilégios, isenções e direitos feudais e senhoriais que
mantinha desde a Idade Média, beneficiando, ainda, de apoios régios. Dividia-se em duas facções: a antiga,
ou "de espada", castelã e proprietária, vivendo boa parte nas áreas rurais, com algum empobrecimento em
certas famílias; e a moderna ou "de toga", cortesã, parlamentar, os "Grandes" do reino, controlando a
administração pública e as instituições que suportavam o Antigo Regime. Para este ramo passarão muitos
membros da alta burguesia, rica e poderosa, sedenta de poder político e de títulos nobiliárquicos, que
muitas vezes adquiria a nobres arruinados. No século XVIII, a nobreza recuperará toda a vitalidade e peso
político e social que perdera no século anterior a favor da burguesia, apoiada pela monarquia. Recuperou,
entre outras prerrogativas, o domínio do aparelho militar e os altos cargos do Estado absoluto.
O povo, esse mantinha-se só, entregue ao seu destino ou à sua capacidade de progressão. Exceptua-se
aqui a burguesia, empreendedora e rica, elemento motor do Terceiro Estado. Esta terceira ordem
representava 25 000 000 almas no século XVIII, sem poder, privilégios ou garantias de futuro, englobando
desde os indigentes e mendigos, passando pela massa miserável, dependente e analfabeta, de assalariados
rurais e urbanos, até aos mercadores e financeiros (o comércio colonial, actividade primordial na França de
então, era por eles dominado), incluindo também as profissões liberais e o artesanato. Impostos pesados,
mal repartidos e incidindo quase totalmente sobre o povo, eram outra das facetas sociais do Antigo
Regime.
Acima de tudo, a pedra de toque que definiu e moldou sucessivamente o Antigo Regime em França foi a
figura do rei, símbolo de uma monarquia de tripla natureza: cristã, feudal e absoluta. Na verdade, o rei
assumia-se como uma personagem sagrada, representando Deus na Terra e d'Ele recebendo o poder
directamente, só a Ele dando contas. Como tal, deveria ser por todos obedecido. Afirmava-se senhor de
todos os senhores, detendo a totalidade dos poderes, governando, legislando e nomeando funcionários.
Na França, estas prerrogativas não passavam muitas vezes da teoria, resumindo-se a meros fundamentos
de carácter jurídico, com uma prática diferente, embora se respeitasse e usasse outras leis fundamentais
como a lei sálica (do tempo dos Francos, que considerava inalienável o domínio real e impossibilitava a
sucessão feminina no trono). Há, contudo, uma concentração de poder político na figura do rei.
No século XVIII, a monarquia absoluta afastar-se-á cada vez mais da realidade e até do controlo de certas
situações, ainda que alguns monarcas tenham tentado fazer reformas no aparelho administrativo e
governamental, no sentido de manter a autoridade real e a unidade do reino. O problema das
comunicações, a falta de agentes reais nas províncias, as línguas regionais e os particularismos provinciais
refrearam também, principalmente depois do século XVII, a autoridade do rei, que chocava com uma certa
resistência das municipalidades e dos organismos regionais, para além da nobreza latifundiária e da
burguesia, esta cada vez mais activa politicamente. As tentativas reformistas dos reis eram todas
contrariadas pelo Parlamento, dominado pelas classes privilegiadas que constantemente punham em
causa o poder real. Esta contrariedade foi ainda mais visível quando se tentou uma reforma régia tendente
à gradual instauração da igualdade de direitos e à abolição de privilégios (sobretudo fiscais) do Clero e da
Nobreza. O Parlamento interditará mesmo Luís XV e Luís XVI de tomarem medidas para resolver a crise
financeira do Estado e de proceder a indispensáveis alterações de fundo nas estruturas políticas e sociais
do Antigo Regime, que a Revolução de 1789 inverterá, acabando com os abusos, desmandos e privilégios
da Nobreza e do Clero, responsáveis - como os reis absolutos com todo o seu fausto, luxo e sumptuosidade
- pela delapidação do erário público. Tudo isto desconsiderou e desprestigiou o Antigo Regime e as suas
figuras marcantes, o que acelerará o advento de uma revolução popular.
Também outros países conheceram o Antigo Regime, embora de forma diferente e com tonalidades muito
distintas em relação à França. Em Portugal, para além de a estrutura social ter a base comum das três
ordens, com idênticas características em termos políticos, sociais e económicos, também o poder real,
apesar de apelar ao "direito divino" e outras prerrogativas absolutistas, era cada vez mais atacado pelas
classes privilegiadas que gravitavam em torno do rei. A monumentalidade, o gosto pelo luxo e pela
ostentação, caracterizaram também o Antigo Regime português, cuja figura cimeira foi o rei D. João V (que
reina de 1703 a 1750), apoiado no ouro e diamantes do Brasil, motor da economia do País, empobrecido e
sem reformas de fundo.

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