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Lembranças e reflexões sobre Pierre Clastres:

entrevista com Bento Prado Júnior 1

Piero de Camargo Leirner


Professor do Departamento de Ciências Sociais – UFSCar

Luiz Henrique de Toledo


Professor do Departamento de Ciências Sociais – UFSCar

A idéia de entrevistar Bento Prado Júnior, certamente um dos grandes


nomes da filosofia atual, veio de uma conversa informal que tivemos
com o editor da Revista de Antropologia, José Guilherme Magnani. Ao
comentarmos sobre os relançamentos de obras clássicas na antropolo-
gia, em especial A sociedade contra o Estado de Pierre Clastres, mencio-
namos, de passagem, alguns encontros que tivemos com Bento Prado,
tanto em uma das reuniões da Anpocs, oportunidade em que o filósofo
debateu um paper do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro2, quanto
em outras ocasiões, na própria Universidade Federal de São Carlos. Nes-
sas conversas informais ele pôde falar a respeito da possível, e julgamos
necessária, relação entre filosofia e antropologia. Marcou-nos, como sal-
do dessas conversas, a relevância de Clastres não só para pensar tal rela-
ção, mas também o sentido da universalidade de seu pensamento no
que diz respeito à política, à natureza do poder, aos cânones da moder-
na etnografia e à relação que os antropólogos travam com os nativos,
enfim, aos sentidos mais gerais que norteiam a própria antropologia.
Formulamos, então, uma primeira idéia de entrevistá-lo, pensando
que tal ocasião, para além de seu testemunho sobre Clastres, também
serviria de pretexto para mostrar de maneira mais sistemática algumas
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opiniões sobre seu entendimento da relação entre filosofia e antropolo-


gia. Como o leitor verá nas páginas seguintes, suas reflexões ultrapassa-
ram o propósito inicial. Além de sua marca conceitual – própria do filó-
sofo –, o sentido trazido pela experiência pessoal, cultivada na amizade
com Clastres, remete-nos fortemente à proximidade entre etnografia,
modelos teóricos e contexto de pesquisa na produção de conceitos que
convergem com a base filosófica ocidental.
Assim, entre casos e reflexões (um tanto) originais, o leitor terá a
oportunidade de conhecer um pouco mais de Clastres e, por causa dele
mesmo, olhar mais atentamente a antropologia pelo enfoque filosófico.
Interessante notar, contudo, que salta aos olhos um caráter francamente
antropológico nas posições de Bento Prado Jr., que, longe de falar do
interior de uma redoma disciplinar, mais parece transitar com uma gran-
de simpatia entre a filosofia e a antropologia, podendo em algo assumir
os dois pontos de vista ao mesmo tempo. Desse modo, volta-se a nós
discutindo, entre outras coisas, a etnografia, o estruturalismo, a cosmo-
logia e uma possível metafísica indígena.
Esse percurso intelectual, rememorado e registrado por nós, ocorreu
numa sessão de entrevista em sua casa, em São Carlos, em julho de 2003.
A partir da transcrição, acrescentamos as notas com as referências cita-
das e, finalmente, Bento Prado Jr. reviu o texto de suas respostas e nelas
introduziu várias precisões, tendo, inclusive, redigido uma pequena in-
trodução que aqui segue. Aproveitamos, então, para agradecer mais uma
vez a extrema gentileza com que nos recebeu e concedeu estas reflexões.

***

Agradeço a iniciativa da Revista de Antropologia e de meus colegas da


UFSCar, que me dão agora a oportunidade de lembrar meu saudoso
amigo Pierre Clastres. É certo que sua obra é cada vez mais lida e valori-

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zada no Brasil como na França. Mas talvez escape ao leitor de hoje algo
de essencial em seus escritos – visível apenas entre as névoas das entreli-
nhas –, mais facilmente accessível para quem com ele conviveu como
amigo próximo: aquilo que há de propriamente pessoal e irrepetível no
perfil intelectual de Pierre Clastres e que seu estilo ascético e rigoroso
tende a esconder.
O curioso é que há poucos meses, conversando com Hélène Clas-
tres, convidei-a para uma visita a nossa universidade em São Carlos.
Ela poderia falar, para nós, de sua própria obra – penso aqui, entre ou-
tros escritos, no belo livro A Terra sem mal – e da de seu marido, tão
essencialmente ligadas uma à outra e reciprocamente iluminadoras.
A resposta não foi imediatamente positiva, mas me permito guardar a
esperança de poder recebê-la em futuro próximo para ouvi-la a respeito
desse capítulo tão peculiar do “estruturalismo” francês, especialmente
nas décadas de 60 e 70 do século passado, cuja força só aparece plena-
mente nos dias de hoje.

Achamos interessante, professor, reconstituir um pouco seu primeiro en-


contro com Pierre e Hélène Clastres.
Na verdade, conheci Pierre antes de Hélène. Foi logo depois da volta
de minha primeira viagem à França, em 1963. No segundo semestre
desse ano, Fernando Henrique me convidou para conhecer, em sua casa,
dois antropólogos franceses que passavam pelo Brasil em direção ao
Paraguai: Pierre Clastres e Lucien Sebag. Hélène ficara em Paris – ela
esperava, se a data acima está certa, o nascimento de seu filho Jean-
Michel. Algum tempo depois (dois anos?) foi, com seu filho, encon-
trar-se com Pierre entre os índios do Paraguai, que deram ao menino o
belo nome de Baimamá (pequena coisa redonda).
Aliás, não é só a mim que falta a memória. Para estabelecer alguns
dados biográficos do autor de A sociedade contra o Estado3, uma das secre-

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tárias da editora telefonou-me perguntando a respeito de datas: estadias


no Brasil, cursos na USP etc. Telefonei para a Hélène em busca de aju-
da, mas o seu auxílio foi muito pequeno. Os tempos passam...
De qualquer maneira, a partir da segunda estadia de Pierre, no Bra-
sil, ficamos muito próximos. Muitas manias, teóricas e outras nos eram
comuns. Freqüentemente, na rua Maria Antonia, Pierre me pergunta-
va: “que horas são?”. Depois de minha resposta, acrescentava: “il faut
commémorer cela! ”. Aprendi então algumas versões do ato da libação em
argot, como “se jetter quelque chose derrière la cravate” ou “se picrâter la
cervelle”. Em 1969, quando fui cassado pelo AI-5 e tive de retornar à
França, acabei alugando um apartamento no limite de Paris, entre
Vanves e Issy-les-Moulineaux, bem perto do dos Clastres, com quem
mantivemos contínua e perfeitamente fraternal convivência até agosto
de 1974. Chegamos a passar (eu, Lúcia e nossos filhos) três férias jun-
tos: no Laric, num pequeno castelo do século XVI nos Alpes, de proprie-
dade dos pais de Hélène; nas Cévennes, numa casa secundária de Pierre
e Hélène; e na Gasconha, em Boussens, na casa do pai de Clastres. É
curioso notar que Pierre, fino escritor, era gascão (como D’Artagnan) e
só veio a aprender o francês na escola. Para mim foi um profundo abalo
saber, três anos depois, do acidente que o levou à morte.

Ele lecionou na Universidade de São Paulo quando veio para cá?


Se não me engano, lecionou formalmente em sua segunda estadia em
1967, pelo menos, já que em maio de 68 já estava empenhado em cons-
truir sólidas barricadas nos bulevares de Paris. Mas antes de suas ativida-
des docentes pude ouvir uma exposição sua, informal, no apartamento
de Gérard Lebrun, de seu texto “Philosophie de la Chefferie Indienne”4.
Grosso modo, a chefia é um lugar particular e diferencial no sistema de
trocas e de comunicações (de bens, mulheres e palavras). Ela recebe mu-
lheres sem compromisso (embora seja obrigado à generosidade em doar

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bens materiais). Recebe bens e mulheres sem compromisso de reciproci-


dade; mas é obrigada a emitir um discurso interminável (por assim di-
zer), sem inter-locução ou qualquer dimensão performativa. Chefia =
discurso sem poder. Como se o socius enclausurasse a chefia no mínimo
espaço imaginável – uma espécie de “prisão”. No avesso do paradoxo
“obediência voluntária”, o paradoxo inverso: “chefia sem poder”. É claro
que a exposição me impressionou forte e imediatamente. E acrescento
que a expressão “Philosophie de la...” foi sugerida ou imposta por Lévi-
Strauss. Talvez porque o texto lhe parecesse ultrapassar a pura etnografia,
caminhando já na direção de uma teoria geral da política e do Estado.
Na direção da estranhíssima idéia de que uma sociedade sem Estado não
desconhece a essência do Estado; que, pelo contrário, é capaz de prevenir-
se contra sua emergência! No limite, como não há pensamento pré-ló-
gico, não há paraíso pré-político. Desde a origem, o verme está no fruto.

Curioso, porque justamente nesse texto, usando os termos do estruturalis-


mo tão em voga naquela época, talvez ele dê um passo também para afas-
tar-se dele, não é?
De fato, é importante sublinhar essa deriva ou esse desvio em face da
ortodoxia. Aliás, em meu prefácio5 insisto nesse aspecto e o ligo à rela-
ção permanente de Clastres com a filosofia, mesmo se a distância. Isso
me é visível porque tínhamos mais ou menos a mesma idade e havía-
mos lido a mesma bibliografia filosófica.
Não há duvida de que, no fim da década de 1950 e no início da de
1960, a palavra estruturalismo remetia essencialmente à obra de Lévi-
Strauss. Não se conhecia ainda essa espécie de ideologia, que explodiu
na mídia, do fim da década de 1960, identificando Lévi-Strauss, Lacan,
Foucault, Barthes etc..., obras tão distantes, em tantos aspectos, umas
das outras. Tanto que em 1968, convidado a fazer uma conferência em
Curitiba, comecei minha exposição afirmando dramaticamente: “não

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existe isso que se chama de pensamento estruturalista!”. Insisti nas dife-


renças radicais que separavam essas diversas obras e na riqueza que se
perdia na mesmice do amálgama ideológico.
Mas desde sempre a obra de Clastres percorria um itinerário muito
particular, mesmo em relação à ortodoxia levistrausssiana, porque jamais
foi tentado a abandonar o horizonte da filosofia pelo horizonte do for-
malismo algébrico (o império dos “grupos de transformação”), que ha-
via aspirado para dentro de si a maioria dos discípulos do autor das
Estruturas elementares do parentesco. Itinerário marcado pela remanên-
cia dos interesses filosóficos (como Hélène, Pierre foi aluno de Gilles
Deleuze, que ambos pareciam admirar muito) e pelo evidente gauchisme
de que Clastres jamais se demarcou. Lembro-me de uma curiosa frase
dele – de sabor kantiano –, em que dizia “a revolução é impossível, mas
devemos agir como se não o fosse”. Aliás eu sublinhava, no prefácio já
referido, o outro aspecto dessa heterodoxia: o fato de que Clastres nun-
ca deixou de ser um leitor da Carta sobre o humanismo de Heidegger. E
não é impossível pensar a idéia das relações entre a estrutura da lingua-
gem e a estrutura da natureza sobre o fundo da idéia da “linguagem
como Mansão do Ser”...

Mas voltando um pouco para essa exposição no apartamento de Lebrun,


o que mais marcou o senhor naquela época?
O fato de a idéia central colocar em xeque uma espécie de “evolucio-
nismo” implícito na antropologia política, exemplarmente ilustrada, no
século XIX, pela filosofia da história de Engels, que passou a fazer parte
do ABC do marxismo ou, pelo menos, do marxismo vulgar.

Uma reconciliação com a filosofia?


Seguramente uma relação com a filosofia diferente da que encontra-
mos em Lévi-Strauss. Para este, passar para a antropologia era livrar-se

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de uma carga inútil. Para ele, a filosofia sempre estará ligada à filosofia
praticada na universidade, ao vazio das “dissertações”, em que era possí-
vel demonstrar tudo ou nada por meio de uma dialética puramente abs-
trata – no fundo, mera retórica. Para Lévi-Strauss tudo se passa como se
a filosofia fosse essencialmente uma ilusão, ou uma forma pobre do pen-
samento selvagem. É o que se pode, talvez, vislumbrar num parágrafo
muito curioso de Totemismo hoje. Em certo momento desse livro, ele
sublinha como alguns textos de Bergson são esclarecedores para a com-
preensão da mitologia de uma tribo indígena da América do Norte.
Esclarecedores, porque mostrariam uma afinidade profunda com essa
mitologia. Bergson, penseur sauvage… Sendo capaz de explicar a mitolo-
gia, o antropólogo explica também a metafísica bergsoniana6...
No caso de Clastres, não encontramos nada de semelhante a essa ar-
rogante diminuição da filosofia. Não tinha a pretensão de escrever como
filósofo – ou, pelo menos, como filósofo “profissional”, se tal coisa exis-
te. Mas sua prática da etnografia acaba por desaguar na reflexão filosó-
fica. É talvez por essa razão que, como vocês dizem, a obra de Pierre
como a de Hélène estão voltando a ser pontos de referência essenciais.
Como se fosse necessário transcender, de algum modo, o estilo do “es-
truturalismo”, para manter seu espírito mais vivo e sua permanência,
para além das ondulações superficiais dos maneirismos, da moda inte-
lectual ou da ideologia.

Talvez também o fato de que haja um movimento dentro da antropolo-


gia brasileira que pretende, a partir da dita “filosofia indígena”, fornecer
visões alternativas à própria filosofia ocidental...
Aí vocês se referem a Viveiros de Castro... Com quem, aliás, pude
discutir o assunto numa Anpocs recente. Mas, voltando a Clastres, pos-
so acrescentar algo nessa direção. Certa ocasião em Pierres (sic, esse é o
nome de uma pequena cidade, perto de Chartres, onde morei), Clastres

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contou-me a história de um discurso de certo “xamã” guarani que dizia


mais ou menos o seguinte: “tudo é Um, mas isso não é bom, nós não
queríamos que assim fosse”. Se me lembro bem, segundo Pierre, em
guarani o pronome nós tem várias formas, segundo incluam apenas os
homens, ou os homens e os deuses. Diante desse enunciado, minha
imaginação metafísica despertou e pensei de imediato num contrapon-
to com Heráclito. O filósofo grego diz, ao contrário, mais ou menos,
“tudo é um e nós devemos homologá-lo” ou ainda “é bom que tudo seja
um”7. Trata-se de uma tese que é metafísica (o devir, a multiplicidade é
reduzida à unidade) e ético-política (as múltiplas vontades devem sub-
meter-se à vontade de um só). Obviamente, trata-se de textos de vocação
essencialmente antidemocrática, que ligam a hierarquia social à ordem
racional do Cosmo. Nada mais contrário ao “anarquismo” espontâneo
de nossos antepassados guaranis, que aspiravam à Terra sem Mal, isto é,
sem lei e sem trabalho.
Ocorreu-nos de fazer um texto a quatro mãos sobre essa oposição.
Mas o fato é que eu não era nem antropólogo nem helenista e acabei, sa-
biamente, pulando fora da empresa. Mas Clastres acabou escrevendo um
texto curto sobre o assunto8. Mais tarde, uma das melhores historiadoras
da filosofia grega, Nicole Loraux9, haveria de retomar a questão, confir-
mando, com sua autoridade de helenista, minha intuição de amador.
De qualquer maneira temos aí uma antecipação da contemporânea
oposição entre “filosofia indígena” e filosofia ocidental.

Porque, parece que nesse texto que o senhor mencionou, haveria uma
perspectiva, digamos assim, transversal entre o pensamento grego e o pensa-
mento indígena.
Que eu me lembre, ele não o diz jamais explicitamente. Mas, se não
me engano, é a conseqüência que Nicole Loraux tira de seus textos.

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A respeito desse texto, ela realiza uma reflexão sobre o “Um” e o “Dois”,
porque na Terra sem Mal haveria uma idealização do “Dois”, os homens
poderiam ser homens e deuses ao mesmo tempo, e seria o contrário da pólis
grega, onde eles almejariam o “Um”, ali entendido como indivisão, seguindo
o princípio da Arkhé. Então haveria uma equação inversa com relação ao
“Um” entre os guaranis – positivo no primeiro caso, negativo no segundo...
É exatamente a idéia que me ocorreu, quando propus o trabalho con-
junto com Clastres. Mas é sobretudo prova de uma certa simpatia por
um pensamento anarcôntico que não conjuminava muito com o estilo
então dominante nas hostes do “estruturalismo”.

E houve uma influência dele sobre a filosofia aqui no Brasil daquela


época? Chegou a orientar alguém?
Que eu saiba, não orientou ninguém. Mas sua influência foi notável.
Influência que tinha muito a ver com sua personalidade, seu estilo in-
quieto, uma espécie de anarquismo não somente pensado mas vivido.
Sempre foi muito avesso aos cerimoniais da universidade, mais chegado
a um “boteco” do que a um seminário formal. Estilo que convergia, aliás,
com minhas preferências (lembro-me dele dizer-me em 1967 ou no iní-
cio de 1968: “o Fernando Henrique e o Giannotti não gostam muito de
boteco, não?”; ao que respondi: “infelizmente não”).

É curioso. Aproveitando que o senhor mencionou o Giannotti, ele tem


uma crítica forte ao Clastres, se não me engano em uma passagem de Traba-
lho e reflexão, na qual diz que Clastres faz metafísica como se estivesse co-
mendo chocolate10, alguma coisa assim...
Uma crítica muito fraca, confessemos. A despeito da complexidade
da obra de Giannotti (desde a “ontologia do social” de inspiração feno-
menológica até a incorporação das idéias de Wittgenstein, passando por
Hegel e Marx), é impossível – a despeito da graça de citar implicitamente

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os versos de A tabacaria de Fernando Pessoa sobre a “metafísica do co-


mer chocolate”, como me lembrou meu filho, Bento Prado Neto – não
ver aí a resistência do pensamento especulativo (a “lógica” especulativa
da posição/reposição) ao trabalho etnográfico no que tem de mais con-
creto e iluminador. Em Clastres não encontramos nenhuma ontologia
a priori da produção. Mas, como diria Wittgenstein, nos limites de seu
trabalho etnográfico, algo de metafísico deixa-se ver ou mostrar.

Porque, no prefácio que o senhor escreve, a metafísica de Clastres já assu-


me um valor positivo.
Mais que uma metafísica positiva, uma metafísica interrogativa. In-
terrogações essenciais que não poderiam emergir senão da experiência
etnográfica, que seriam inacessíveis para um armchair philosopher, para
usar a expressão de sir Bertrand Russell, contra os filósofos da “virada
lingüística”. Giannotti, que não é etnólogo, só percebe as conseqüên-
cias filosóficas do trabalho, sem se reportar à base sólida de que deri-
vam. Sinceramente prefiro o movimento regressivo, que nos leva do fato
às suas condições formais ou transcendentais. Parece-me perigoso o ca-
minho inverso, da dedução do empírico, ou seu enquadramento autori-
tário num esquema prévio desenhado pela imaginação especulativa: por
exemplo, algo como a “forma lógica” da práxis em sua mais abstrata ge-
neralidade. Quando se trata de pensar sociedades ou a História, então...

O senhor consegue perceber alguma influência que o grupo de filósofos


daqui, quando ele estava aqui, teve no pensamento de Clastres, ou ele pas-
sou imune a isso?
Acho que passou imune. Mas a recíproca não é verdadeira. Como já
disse, fui muito sensível às suas idéias e fiz delas o uso de que fui capaz.
Mas sobretudo me é possível, hoje, perceber retrospectivamente como
sua influência se alastrou mais largamente. É claro para mim, agora, a

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forte influência exercida sobre colegas de meu departamento, em especial


Marilena Chauí e Sérgio Cardoso (curiosamente, parece que os antro-
pólogos da USP mantiveram uma discreta distância em relação ao tra-
balho de Clastres). Mas, sem dúvida, sua influência parece atualmente
ser muito maior, e não só entre os antropólogos, como provam as belas
reedições de seus livros pela editora Cosac & Naify11.

Sérgio Cardoso tem um trabalho sobre Clastres, Ruy Fausto tem um pe-
queno capítulo dele comentando alguma coisa sobre Clastres12...
Não é o “De Lévi-Strauss a Mauss”, não?

Não, não é essa obra.


A memória me engana. Estou a pensar no prefácio que fiz a um livro
de Ruy Fausto13 e no capítulo sobre a antropologia, no qual percorre
um itinerário diferente do de Merleau-Ponty, que escreveu seu belo en-
saio sob o título de “De Mauss a Lévi-Strauss”. Fazendo um percurso
inverso, insistindo na amplidão do caminho aberto por Mauss e suge-
rindo, nas entrelinhas, pelo menos, que algumas dessas vias teriam sido
fechadas por Lévi-Strauss.

E o círculo intelectual de Clastres? Os outros etnólogos..., por exemplo, o


Lizot?
Jacques Lizot era amigo dele, certamente. Mas jamais tive a oportu-
nidade de encontrá-lo.

E Marcel Gauchet?
Ao que me parece, Gauchet era mais propriamente filósofo. Pelo
menos é a impressão que tive assistindo a um curso dele em meados da
década de 1990. Estava ligado ao grupo de Lefort. Tenho impressão de
que se alimentava, como filósofo da política, da antropologia de Clastres.

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No curso a que assisti, junto com Hélène, aliás, tratava do nascimento


do individualismo no pensamento moderno e nas instituições sociais.
Viajava entre a história da filosofia e a história social. De qualquer ma-
neira, Clastres estava ligado institucionalmente ao Laboratório de
Etnologia do Collège de France.

Que era o Laboratório de Lévi-Strauss...


Sim, mas não sei até que ponto essa ligação institucional era propria-
mente orgânica...

É curioso, pois a escola sociológica francesa também é caracterizada pelo


caráter coletivo da produção intelectual e ele destoa um pouco...
O que não impede que ele tenha mais tarde colaborado intensamen-
te com o grupo da revista Libre, liderada por Lefort, e que reunia tam-
bém pessoas como Gauchet, de quem acabamos de falar, e Miguel
Abensour, Cornelius Castoriadis, Krzysztof Pomian e Maurice Luciani.

E ele tinha relações próximas com Lévi-Strauss?


Certamente. Mas não posso detalhar. De minha parte assisti a seus
cursos em 1962-63 no Collège de France, mas só vim a encontrá-lo pes-
soalmente uma vez em 1969. Por acaso, em 1968, Clastres pediu-me
que escrevesse um artigo para uma homenagem a Lévi-Strauss, que to-
mou a forma de um vasto livro, publicado em dois grossos volumes14.
Recebi uma cartinha de agradecimento de Lévi-Strauss, que guardo ob-
viamente até hoje. Mais que isso, a pedido de Clastres, Lévi-Strauss es-
creveu uma carta de recomendação ao Centre National de la Recherche
Scientifque, quando me candidatei, no exílio, ao posto de pesquisador
dessa instituição. Mas minha timidez e o claro formalismo do mestre
me inibiram e jamais procurei renovar contato com ele. Jamais poderia
falar da proximidade dessas relações.

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O senhor afirma que Clastres era uma pessoa solitária. Compartilhava a


experiência de campo dele com o senhor?
Solitário talvez seja uma palavra forte demais. Mas certamente era
avesso a grupúsculos, grupelhos ou máfias. Em nossas conversas relata-
va constantemente suas experiências. Comecemos pelas mais engraça-
das. Certa vez, uma índia, tentando seduzi-lo, chegou a pedir auxílio a
seu principal marido (trata-se de sociedade poliândrica), que disse a Clas-
tres que não haveria problema, que a boa ordem seria restabelecida por
uma punição puramente simbólica. Ele fingiria atingi-lo na cabeça com
seu tacape, mas interromperia o gesto antes do choque. Clastres guardou
a idéia da punição simbólica, mas recusou os avanços da mulher e a argu-
mentação do zeloso marido. Duas outras histórias, relativas aos infor-
mantes indígenas: a do informante incompetente e a do informante
malévolo. O primeiro, interrogado a respeito da palavra guarani corres-
pondente a jamais, foi incapaz de responder imediatamente; no dia se-
guinte, todo alegre, trouxe a resposta, a palavra seria: “ni noticia”, acres-
centando “guarani legítimo!”. O segundo, a quem Clastres perguntou o
nome de uma ave que sobrevoava a paisagem, respondeu prontamente:
“tatu”. Prelibava, certamente, os mal-entendidos nos quais seu interlo-
cutor seria enredado com esse uso extravagante da língua indígena!

Ele não passou por esse desconforto simbólico...


Jamais... Outra situação pouco confortável era a da luta, com os yano-
mami, gente muito forte. Clastres também era forte e praticava caratê
constantemente (pude vê-lo, nas férias que passamos juntos, exercitan-
do-se, quebrando tijolos e madeiras com a “lâmina” da mão, que era
sempre necessário enrijecer). Mas ele temia, entre os yanomami, que o
bom esporte se tornasse luta real e, por que não?, mortal. Recorria en-
tão a um golpe infalível: fazia cócegas no adversário. Prática inédita que
desmontava os índios que, morrendo de rir, interrompiam a peleja.

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Uma preocupação cuidadosa com a dimensão não agonística do jogo,


transformar o jogo num esporte, numa competição.
Justamente.

E que não deixa de suscitar uma espécie de nostalgia da sociedade primitiva.


Pode-se falar, creio, de nostalgia. Mas não se pode dizer, em seu caso
como no de Rousseau, de um convite a um retorno impossível. Não se
pode ler Rousseau como fazia Voltaire que, depois de ler o segundo Dis-
curso, escreveu a Jean-Jacques dizendo que já estava velho demais para
voltar a andar de quatro...

Ironia, talvez?
Ironia, certamente, e formidável piada, de um grande especialista
nesse gênero literário. Mas, também, um enorme equívoco. Voltaire não
podia entender Rousseau, que explicitamente afirmava que não se pode
retrogredir na História.

Mas, de qualquer forma, em Clastres não há uma nostalgia ingênua.


Não, ao contrário. Trata-se antes de lançar luz sobre o presente de
uma maneira que não é linearmente catastrofista. No caso de Rousseau
talvez se possa falar de catastrofismo, já que pensa que, a partir de um
certo momento, a História caminha necessariamente na direção de uma
multiplicação da violência: a linguagem perde sua força e cede lugar à
violência física. Desse ponto de vista, Rousseau opõe-se frontalmente
ao otimismo da Filosofia das Luzes. A antropologia política de Clastres
não dá lugar a uma teleologia da História, quer otimista, quer catastro-
fista. No que não deixa de aproximar-se, pelo menos nesse ponto, de
Michel Foucault, que veio a conhecer pessoalmente no Brasil em 1965.
Mas jamais festejou, como o outro, o “Retorno do espiritual em políti-
ca”, por ocasião do acesso de Khomeini ao poder no Irã.

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Porque essa é uma outra crítica, feita por Giannotti e, se não me engano
implicitamente dirigida a Clastres, que quis ver na sociabilidade primitiva
um excesso de igualdade, existindo um idealismo muito acentuado, no qual,
efetivamente, segundo Giannotti, não havia. Giannotti aponta, por exem-
plo, para uma desigualdade de gênero, na qual os homens ficariam com a
melhor parcela do sistema produtivo, trabalho dito criativo, e as mulheres
ficariam com o trabalho “menor”, vamos dizer assim, porque não seria cole-
tivo, seria individualizado. Então ele diz: “bom, o Clastres é que pecou por
projetar um ideal de comunismo primitivo onde efetivamente não havia”.
Repito que acredito mais na etnografia de Pierre do que na Sociolo-
gia Rationalis de Giannotti. Aqui quem peca é José Arthur que projeta o
“comunismo primitivo” de Engels na obra de Clastres, que tem mil tex-
tos onde tais diferenças são descritas e explicadas. Aliás, é preciso dizer
que o Sahlins, que fazia críticas parecidas – mas muito mais precisas,
pois era, ele próprio, antropólogo –, insistindo também na economia
das sociedades primitivas, acabou por confessar a Pierre: “no fundo, acho
que é você quem tem razão”.

O senhor colocaria Clastres como um etnólogo de campo?


Quanto isso não há a menor dúvida. Seu primeiro livro15 é a primei-
ra evidência, trata-se de etnografia pura. Mesmo quando se encaminha
na direção de uma antropologia política, que toca os limites da filosofia
política, ele sempre o faz a partir de sua extensa (vários anos) experiên-
cia de campo.

E o senhor acha que a experiência de campo para Clastres foi muito


transformadora em relação à sua pessoa?
Creio que sim. Basta pensar em seu itinerário: começou fazer seu
curso de filosofia em 1954 e deve tê-lo terminado em 1958, quando
começa assistir às aulas de Lévi-Strauss e interessar-se mais pela antro-

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pologia. Vejamos as datas [o professor Bento apanha um exemplar de A


sociedade contra o Estado e passa em revista as datas e os dados biográfi-
cos]: “Durante as aulas de licenciatura começa a interessar-se por estu-
dos etnológicos seguindo o curso de Lévi-Strauss no Collège de France
a partir de 1960”16. Provavelmente assistimos juntos as aulas de Lévi-
Strauss no ano letivo de 1962-63.

E o senhor não o conhecia ainda?


Não. Como disse de início, só vim a conhecê-lo no segundo semes-
tre de 1963, no Brasil.

Mas não se lembra dele nas aulas?


Não me lembro, nem seria possível fazê-lo. Lembro-me de que fre-
qüentei o curso ao lado de Fernando Henrique e de Giannotti. Mas es-
sas aulas eram assistidas por umas cem pessoas, mais ou menos. [E segue
lendo:] “Em 65 defende sua tese de doutorado Vida social de uma tribo
nômade – os índios Guayaki do Paraguai”17. Essa tese seria transformada
em seu primeiro livro. Note-se que entre o começo do interesse pela
antropologia e a redação do excelente livro medeiam apenas cinco anos.
É a história de uma conversão, de uma mudança de hábitos que não são
apenas intelectuais, que atingem a carne da vida quotidiana em sua to-
talidade. Provavelmente essa conversão não foi tão difícil, porque apa-
rentemente ele sempre foi algo rebelde em face das regras que governam
nosso quotidiano. Estava de algum modo preparado para uma conver-
são, que não é apenas do olhar ou da teoria, mas uma transformação de
seu próprio modo de viver, em sua mais trivial materialidade. Contou-
me, por exemplo, a dificuldade que tinha no Paraguai, logo de início,
em simplesmente dormir. Os índios dormiam, em noites de frio mais
intenso, em volta da fogueira sem a menor dificuldade, já que esponta-
neamente giravam o corpo de maneira a aquecê-lo de todos os lados,

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como um frango no espeto de um grill elétrico. Ele, Pierre, acordava


constantemente semi-assado de um lado e gelado do outro. Só aos pou-
cos aprendeu a técnica do que poderíamos chamar de “sono giratório”.
Como se vê, tornar-se etnógrafo significa, entre outras coisas, drásticas
transformações de nossas inconscientes “técnicas corporais”. Sem esque-
cer que efetivamente aprendeu a “andar na floresta”. Depois desse apren-
dizado (que nos faz lembrar do aprendizado dos “adventícios”, que se
tornavam “bandeirantes” ao indianizar-se, mudando o modo de pisar,
conforme a descrição de Sérgio Buarque de Holanda18), acometido de
forte malária, foi capaz de caminhar mais de 300 km através da floresta,
para buscar o necessário atendimento médico no mundo urbano.

Por isso podemos até evocar essa inspiração maussiana em seu trabalho
de campo. Ele se aproxima muito mais do refinamento etnográfico maussiano
do que do formalismo derivado da obra de Lévi-Strauss.
Certamente.

Isso é uma coisa muito interessante.


Ele teve uma experiência de campo, de pura etnografia, muito mais
extensa do que a do próprio Lévi-Strauss, não?

Ah, sim. Talvez, então, observando isso como reflexo na própria teoria,
seria possível pensar como o sujeito aparece naquela estrutura. Enfim, o su-
jeito dotado de vontade, esse ser social primitivo que tem uma vontade, um
desejo e um temor; talvez um sujeito que ficou impresso na experiência
etnográfica dele.
Eu não havia pensado nesse aspecto, mas me parece que vocês têm
razão. Seguramente Pierre jamais participou do monótono coro dos
profetas da “morte do sujeito”. De qualquer modo, isso confirma a
complementaridade entre conversão teórica e prática, entre o sujeito

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reflexivo e o sujeito inconsciente: nada menos refletido do que as técni-


cas corporais...

Mudando um pouco de foco, é interessante como torna a guerra um fator


positivo, tal como fica marcado nos últimos escritos dele. A guerra é tomada
a partir, vamos dizer assim, de sua contrapartida mais positiva para a
sociedade.
Eu precisaria reler esses últimos textos. Mas posso dizer como ele me
apresentou a coisa. Falando dos yanomami, dizia: “aí temos uma socie-
dade composta de várias tribos, dividida no meio pela linha que separa
amigos de inimigos, uma sociedade estruturada, enfim, em torno da
guerra”. O que me lembro é que, segundo Clastres, o coeficiente de vio-
lência, envolvido na guerra, era quase igual a zero. As aldeias eram cer-
cadas por paliçadas altas e as incursões guerreiras consistiam em raras
iniciativas de poucos heróis que, durante a noite, jogavam algumas fle-
chas por sobre a paliçada, atingindo eventual ou acidentalmente algu-
ma criança ou algum animal, ferindo o ombro de algum guerreiro que
vagueasse pela noite. E logo em seguida os atacantes fugiam o mais rá-
pido possível para suas aldeias.
A violência eclodia, por assim dizer, fora da guerra. E ela ocorria nas
festas em que uma tribo recebia outra, sua aliada, para uma festa de con-
fraternização. Sobretudo quando os convidados eram aliados distantes.
Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o verdadeiro
objeto da violência social. Algumas vezes (necessariamente raras) os con-
vidados eram atacados em meio a festa, massacrados os homens e se-
qüestradas crianças e mulheres. A violência era enorme, mas muito pou-
co freqüente, pois de outro modo o sistema não funcionaria, proibindo
qualquer forma de aliança. Ela eclodia, repito, entre aliados distantes,
mas sempre aliados, como sempre ocorreu em nossa Esquerda: o princi-
pal inimigo não é exatamente a Direita, mas aquele que está a sua es-

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querda ou a sua direita dentro da própria Esquerda, embora hoje utilize-


mos pouco as flechas e os tacapes [risos]. A violência é assim controlada
e reduzida, mas jamais eliminada, como seria o caso numa visão idílica e
nostálgica (“idealista”) da sociedade primitiva.

Mas ao mesmo tempo isso pode ser identificado como uma contribuição
paralela à reflexão dele sobre a política e o papel da chefia. Teríamos aqui
uma espécie de segunda metade da moeda da teoria, que seria a guerra.
Aqui pouco posso dizer. Como já observei, não trabalhei suficiente-
mente seus últimos textos. E tenho a impressão de que ele se aproxima-
va de uma espécie de arqueologia da guerra quando a morte interrom-
peu seu itinerário. Sinceramente baseio-me mais em nossas conversas.
Mas se você me perguntar como e onde termina sua reflexão sobre a
violência e a política, responderei simplesmente: não sei.

O senhor afirma no prefácio da Arqueologia da violência que ele estava


pensando em seguir algumas investigações sobre a origem do Estado.
Isto parece estar presente em seu pensamento desde o início [toma
nas mãos o prefácio à Arqueologia da violência]. Revendo meu prefácio,
vejo que pensava tê-lo encerrado de maneira diferente. Mas na verdade
os cuidados com as origens da guerra e do Estado se entrecruzam neces-
sariamente: trata-se de uma mesma “arqueologia”. De resto, o título es-
colhido na tradução brasileira é o do penúltimo capítulo do livro. Não
me lembro do título do original.

É Ensaios de antropologia política, alguma coisa assim 19... E na con-


vivência que o senhor teve com ele na França, primeiro ressaltou como o
lado rebelde francês casou com a etnologia. Mas como, posteriormente, o
“lado etnólogo” dele adentrou, vamos dizer assim, na vida do cidadão fran-
cês ocidental?

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Digamos que ele retornou mais instrumentado para manter-se sub-


versivo [risos].

Ele tinha efetivamente uma vida de militância política na França?


Já me referi à sua participação em maio de 1968. Mas certamente
esteve envolvido politicamente (se não me engano ao lado de gente
como Félix Guattari) na oposição à guerra da Argélia. Mas ignoro liga-
ções político-partidárias. Mas não posso esquecer que chegou, nos anos
1970, a colaborar com uma enciclopédia anarquista italiana, se não me
falha a memória.

Mas ele era de família burguesa?


Certamente não de família proletária ou nobre. Seu pai era funcio-
nário público.

Lendo o texto sobre os guayaki, a toda hora ele sugere essa idéia do medo,
nas caminhadas, não sabendo o que iria acontecer... os homens brancos...
Não me lembro muito a esse respeito. Mas contou algumas histórias
engraçadas. Como a de sua visita a um bar, no Paraguai, onde os fregue-
ses eram obrigados, como no saloon do western do cinema americano, a
entregar suas armas ao proprietário. Nessa visita, um paraguaio falou-
lhe de um assalto em que alguém teria sido assassinado pela ridícula
importância de dois guaranis. “Que absurdo” – exclamou o narrador –,
“por dois guaranis! Se fosse por vinte... ainda vá lá...”.

Fiquei pensando nessa predileção de Clastres pelo caratê...


A única vez em que o ouvi falar de medo, foi quando contou como
havia parado de praticar o caratê.

Era o único esporte que praticava?

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Era. Voltando à observação anterior, ele contou-me que, certo dia,


quando se encaminhava para a academia, ouviu os gritos de ataque dos
praticantes e estancou, de repente. Nunca mais! Algo como uma súbita
sensação de vulnerabilidade. Súbita e tardia, já que por volta de 1973
ou 1974. Para quem nasceu em 1934... Eu parei de jogar futebol antes
dos 15 anos...

Notas
1 Professor titular do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências
(DFMC), da Universidade Federal de São Carlos. Bento Prado Júnior reviu o tex-
to de suas respostas e nelas introduziu várias precisões.
2 Trata-se do texto “A propriedade do conceito: sobre o plano de imanência ame-
ríndio”, exposto no XXV Encontro anual da Anpocs, em outubro de 2001, duran-
te a mesa “Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena)”.
3 Essa versão de A sociedade contra o Estado, publicada em 2003 pela Cosac & Naify,
apresenta algumas diferenças em relação à edição de 1978 (pela Brasiliense). Entre
elas, o prefácio de Tânia Stolze Lima (UFF) e Márcio Goldman (MN-UFRJ), uma
entrevista com Pierre Clastres realizada em 1974 para a revista francesa L’Anti
Mythes, uma rápida biografia e uma bibliografia do autor e sobre o autor, e uma
“orelha” escrita por Sérgio Cardoso (Departamento de Filosofia-USP).
4 “Échange et Pouvoir: Philosophie de la Chefferie Indienne”, L’Homme, II, n. 1,
1962, p. 51-65.
5 Bento Prado Jr., “Prefácio”, A arqueologia da violência: ensaios de antropologia polí-
tica, São Paulo, Brasiliense, 1980.
6 Os argumentos de Bergson que Lévi-Strauss polemiza em Totemismo hoje estão na
obra Les deux sources de la morale et de la religion.
7 Os fragmentos de Heráclito importantes nesse caso são os seguintes: “À escuta do
Logos, e não de mim mesmo, é sábio reconhecer que tudo é um” e “A lei é ainda
obedecer à vontade de um só”.
8 Trata-se do capítulo final de A sociedade contra o Estado. A discussão acima, na
nova edição, situa-se entre as páginas 232 e 234.

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9 Nicole Loraux, “Note sur l’Un, le Deux et le Multiple”, in M. Abensour, L’Esprit


des Lois Sauvages: Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie politique, Paris, Seuil,
1987, p. 155-72.
10 “Muitas vezes Clastres faz mais metafísica do que teoria, toma a ótica do Ser abs-
trato, com a simplicidade de quem come chocolate. Se existe metafísica em comer
chocolate, para pensá-la convém lembrar que o chocolate precisa ser produzido
antes de ser comido, e o Ser, um conteúdo para ser efetivamente pensado” (J. A.
Giannotti, Trabalho e reflexão, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 160.
11 Depois de A sociedade contra o Estado, essa editora prepara a reedição de Arqueolo-
gia da violência. Já em 1995 a Editora 34 publicara seu primeiro livro, a Crônica
dos índios guayaki.
12 Os trabalhos são os seguintes: Sérgio Cardoso, A crítica da antropologia política na
obra de Pierre Clastres, tese de doutorado, São Paulo, Depto. de Filosofia, USP,
1989; Ruy Fausto, “Sobre a modalidade em Pierre Clastres”, in Marx: lógica e
política, vol. II, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 188-98.
13 Sob o título de “Para além da Terra prometida”, prefaciei o livro de Ruy Fausto
Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação sim-
ples, São Paulo, Paz e Terra, 1997.
14 Meu artigo tinha o título de “Philosophie, musique et botanique: de Rousseau à
Lévi-Strauss”. O livro é Échanges et communications (Hommage à Lévi-Strauss), La
Haye, Mouton et Cie., 1970.
15 Chronique des Indiens Guayaki, Paris, Plon, 1972 (publicado no Brasil como Crô-
nica dos índios guayaki, em 1995, pela Editora 34)
16 A sociedade contra o Estado, op. cit., p. 273.
17 Id., ibid.
18 Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras, 2 ed., Livraria José
Olympio, 1975; em particular o primeiro capítulo “Veredas de pé posto”. Aí po-
demos, por exemplo, encontrar a citação da saborosa referência de Tomé de Souza
a João Ramalho, nosso universal antepassado: “Tem tantos filhos e netos bisnetos
e descendentes delle ho nom ouso dizer a V. A., não tem cãa na cabeça nem no
rosto e anda nove leguoas a pe antes de jantar” (p. 37).
19 Recherches d’Anthropologie Politique, Paris, Seuil, 1980.

Entrevista concedida em julho de 2003.

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