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Como nascem os mitos

Por Douglas Naegele

Desde tempos imemoriais a humanidade tem observado o céu e


percebido que o dia e a noite dividem o tempo. O sol nasce pela manhã e se põe
à noite, quando a escuridão toma conta e a incerteza do desconhecido aparece,
juntamente com os predadores noturnos. Assim, o dia era, obviamente, muito
mais seguro do que a noite, já que o astro-rei além emanar luz e claridade, trazia
o calor para aquecer os dias frios e afastava os predadores. Não demorou para
que nossos ancestrais percebessem que existia, também, um ciclo de Estações
do ano. Quando o sol dominava mais amplamente o período de tempo que
chamamos de dia, as noites se tornavam mais curtas, logo estabelecemos o
Verão. Em seguida, os períodos noturnos e diurnos se equivaliam, mas o calor
do sol parecia diminuir, juntamente com a queda das folhas da arvores e a
secagem da gramagem, concebemos o Outono. Quando as noites se tornavam
mais longas e, obviamente, os dias mais curtos, com o sol aquecendo muito
pouco, nossos antepassados compreenderam o Inverno. Por fim, os dias
voltavam a se alongar, as noites encurtavam, o sol brilhava com mais
intensidade e os frutos voltavam a nascer, bem como a relva tornava ao verde,
percebemos a Primavera. Nesse sentido, com as quatro Estações do ano e seus
ciclos estabelecidos e compreendidos, a humanidade percebeu outro fenômeno
natural que sempre se repetia, talvez até tenha percebido este fenômeno
anteriormente ao ciclo das Estações. Refiro-me às fases da Lua...

O satélite que domina as noites terrestres, vagarosamente vai sendo


engolido pelas trevas, até que durante cerca de três dias desaparece do céu
noturno para depois retornar do mesmo modo lento e preguiçoso à sua
opulência entre o 11º e o 12º dias. Os nativos brasileiros estabelecidos em
Roraima, Tuarepang, Tualipong e Pemon, narram as fases da Lua com uma
candura impressionante. Reza o mito que “Kapei, a Lua, tem duas mulheres,
ambas chamadas Kaiuanog, uma no leste, a outra no oeste. Sempre está com
uma delas. Primeiro ele vai com uma, que lhe dá muita comida, de forma que
se torna cada vez mais gordo. Então a deixa e vai com a outra, que lhe dá
pouca comida e ele emagrece cada vez mais. Depois se encontra novamente
com a outra, que o faz engordar, e assim por diante. A mulher do leste briga
com a lua, por ciúme. Ela lhe diz: Vá para junto da outra. Então ficas outra
vez gordo. Comigo não podes engordar. E ele vai para junto da outra. Por isso
as duas mulheres são inimigas e ficam sempre separadas uma da outra” (De
Roraima ao Orinoco, de Theodor Koch-Grünberg, 1977).

O Carl Sagan, no seu livro “Cosmos” (1981), observa que o homem


primitivo, quando se apercebeu da imensidão do seu entorno, deve ter ficado
impressionado com a visão que tinha da Lua e da Via Láctea. Podemos imaginar
ainda hoje o impacto que a imagem do céu noturno deve ter causado no homem
primitivo, se nos posicionarmos em algum lugar, onde a interferência da
iluminação artificial não obstrua nossa visão. O que vemos, mesmo a olho nu, é
de uma beleza inenarrável. Milhões de estrelas espalhadas por toda abóboda
celeste, com certa concentração que pode ser visto aqui no Brasil num arco de
nordeste a sudoeste. Por isso, os indígenas brasileiros a chamavam de “Tapi’ir
Rapé”, ou tapirapé, ou seja, “Caminho das Antas” em tupi-guarani. Sagan
propõe uma situação possível, em que homens primitivos reunidos em volta de
uma fogueira à noite elevaram seus olhares para o céu e se perguntaram acerca
do que seria aquela quantidade inusitada de luzes no céu. Diversas especulações
surgiriam, até mesmo seria possível que alguém dissesse que se tratava de
mundos distantes, mas o mais provável é que o inexplicável fosse atribuído,
como é normal em todas as culturas humanas, a ação de seres poderosos e
divinos... Os nativos do deserto do de Kalahari em Botswana da etinia Kung
viam a Via Láctea como a “espinha dorsal da noite”, como se o Universo fosse
um grande animal dentro do qual vivemos. Uma antiga lenda africana da região
de Moçambique conta que a Via Láctea foi criada por uma menina da “raça
antiga” que, há muitos e muitos anos, jogou as cinzas de sua fogueira para cima,
fazendo uma estrada na escuridão do céu, para guiar de volta para casa um
caçador que estava perdido. Depois, a menina criou as estrelas brilhantes
lançando raízes no céu, sendo que as estrelas brancas estão prontas para serem
comidas, mas as vermelhas são raízes velhas, não comestíveis.

Durante a Segunda Grande Guerra, algumas ilhas do Pacífico eram


ocupadas por aborígenes que até aqueles dias não havia tido contato tão intenso
com a civilização industrial. De um dia para outro esses povos suas ilhas
invadidas por centenas de tropas estadunidenses e australianas. Num primeiro
momento, o medo fez com que esses povos de cultura tecnicamente mais
primitiva se escondessem nas matas. Eles, ainda escondidos, viram homens
uniformizados, com machados e facas potentes, abrirem picadas naquelas
paragens e aldeias instantâneas surgirem. Aqueles novos moradores de suas
ilhas, falavam diferente, usavam vestimentas que nem de longe lembravam suas
indumentárias simples, faziam fogo instantaneamente, tiravam alimentos de
dentro de potes como num passe de mágica e recebiam a visita de um enorme e
barulhento “pássaro” que de dentro de sua barriga outros homens saíam e
alguns entravam para não mais serem vistos. Pouco a pouco houve a
aproximação entre as duas culturas. Os aborígenes, obviamente, viam os
militares como deuses... E mesmo sem adorá-los abertamente, mantinham
respeito e obediência aos estranhos seres que lhes traziam alimentos doces e
apetitosos, os quais não precisavam sequer de esforços para ser conseguidos.
Tempos depois, a guerra acabou. As tropas deixaram as ilhas. O grande
“pássaro” nunca mais voltou. Nem seus “filhos”. A vida voltou ao normal, à
rotina, os aborígenes voltaram a caçar, a pescar e colher para se alimentar.

Anos mais tarde, muito provavelmente, os remanescentes do contato com


os militares narraram aos seus descendentes, acrescida de todos os detalhes
milagrosos, a visita do grande “pássaro”. Podemos imaginar o efeito que essas
narrativas tiveram sobre os mais novos e como as novas gerações de aborígenes
foram influenciadas por elas. No início da década de 1970, expedições científicas
compostas por antropólogos, sociólogos, historiadores e estudantes voltaram a
essas ilhas, quase trinta anos haviam se passado desde que os grandes
“pássaros” haviam visitado as ilhas pela última vez. O último aborígene que
participara do contato inicial com os “filhos do pássaro” já havia morrido.
Mesmo esse, que na época do encontro com os militares era apenas uma
criança, deixara uma narrativa fantasiosa e hiper-dimensionada do contato...
Devido a dificuldade de acesso por meio de barcos, já que a grande
maioria dessas ilhas têm costas íngremes e praias rochosas, fato esse que
dificultava a abordagem pelo meio marítimo, um primeiro reconhecimento se
deu através de pequenos aviões monomotores. Para a surpresa dos
expedicionários que visitavam as ilhas, em alguns planaltos era possível
vislumbrar o que pareciam ser “pistas de pouso” muito bem cuidadas. Faixas
retas de solo liso e desmatado. Em alguns casos, as laterais dessas “pistas”
estavam cercadas, ornadas por pedras e no fim dessas áreas desmatadas
encontravam-se estruturas assemelhadas a aviões (!). Deliberadamente, os
visitantes usaram as tais “pistas” para aterrissarem. Diferente do que possam
ter pensado os visitantes, os aborígenes agiram como se já esperassem a volta
daqueles seres que ali chegaram. Os cientistas e estudantes foram recebidos
com grande alegria e entusiasmo. Líderes das comunidades visitadas, as quais
não mantinham necessariamente contato umas com as outras, usaram de
palavras “mágicas” para se comunicarem com os “soldiers”, como os
estrangeiros eram chamados. Essas palavras “mágicas”, nada mais eram que
fragmentos de vocábulos e frases em inglês, língua usada pelos “soldiers” que
ocuparam as ilhas durante a Grande Guerra, que foram repetidas e decoradas
pelos descendentes daqueles que viveram o contato inicial e se tornaram
“sagradas” somente devendo ser usadas pelas lideranças tribais. Algumas
palavras do inglês como “knife” (faca) e “pot” (panela ou pote) estavam
incorporadas no vocabulário dos aborígenes.

Ao longo do tempo em que permaneceram com os aborígenes, os


cientistas e estudantes australianos descobriram que o contato anterior
estabeleceu entre os povos das ilhas um culto. Que não chegava a ser
propriamente uma religião, mas um culto fundamentado na certeza de que os
“soldiers” voltariam e restabeleceriam a era da fartura, sem que se precisasse
pescar, caçar ou colher. Isso porque eles haviam prometido voltar...

A suposição de Carl Sagan e o “reencontro” dos “soldiers” com os


aborígenes do Pacífico trazem em comum o surgimento do mito. No primeiro
caso baseado na possibilidade do desconhecido, na suposição do que seria, na
certeza da confiabilidade dos que relataram e por fim no estabelecimento do
padrão de comportamento da fé. No segundo caso, a certeza do cumprimento da
promessa de retorno fez com que os povos das ilhas do Pacífico estipulassem
que quando os “soldiers” ou “filhos do pássaro” voltassem à abundância
retornaria. E novamente a certeza da confiabilidade dos relatos e o
estabelecimento da fé.

Fé... Essa é a chave para a compreensão e aceitação dos mitos. Quando se


quer compreender como o estabelecimento dos mitos e dos cultos primordiais
se deram, a chave é a fé. Na lenda dos indígenas de Roraima a Lua emagrece e
engorda como resposta ao que se vê. É mais do que óbvio que os indígenas
brasileiros sabem e sabiam quando Theodor Koch-Grünberg os visitou no início
do século XX que a Lua não é um ser vivo como nós compreendemos os seres
vivos. Mas, a explicação ancestral, a lenda, expõe a observação do fenômeno
astronômico de modo simples e a rotina de “vida” da Lua. Nas lendas africanas
a mesma sutileza é vista. Tanto na narrativa do Kalahari quanto na de
Moçambique, nos dois casos, a simbologia é evidente, pois certamente, os povos
que as têm como herança sabem que esses relatos não passam de lendas. A
explicação não é questionada, apenas aceita. Aceita como fato lendário, como
mito pela fé.

A resposta que se espera somente é aceita se preenche os requisitos de


quem formula a pergunta, ou seja, a explicação do intangível somente é válida se
aplaca a sede de quem quer saber. Assim, pela fé, acredita-se na resposta, na
explicação, mesmo que isso seja por demais óbvio na impossibilidade.

A ciência, como ciência, não aceita mitos de qualquer espécie, mas não
refuta explicações possíveis, mesmo sem comprovação científica. Tomemos o
exemplo dos chamados “buracos negros”, desde que Albert Einstein
desenvolveu a Teoria da Relatividade, em 1905, os físicos teóricos passaram a
conjecturar a existência de um objeto astronômico com a massa tão grande e
com o campo gravitacional tão intenso que nem mesmo a luz conseguiria
escapar de sua atração. Segundo o que Karl Schwarzschild, físico alemão,
propôs ainda no ano de 1916, tal objeto teria a forma arredondada e não poderia
ser visto, já que não emitiria luz. Einstein e outros físicos importantes não
acreditavam na existência real desse fenômeno em nosso Universo, pois apesar
de ser matematicamente possível, não era passível de comprovação científica.

Mesmo assim, muitos outros cientistas, astrofísicos em sua maioria,


passaram a aceitar a existência do fenômeno e citá-lo em seus artigos. Já era
corrente a crença na existência no fenômeno no meio acadêmico quando John
Archibald Wheeler, astrofísico estadunidense, num artigo científico histórico,
publicado no “American Scientist” em 1968, sob o título “The Known and the
Unknown” (O Conhecido e o Desconhecido) usou pela primeira vez o termo
“buraco negro” para se referir ao fenômeno possível, mas até então não
observado. A alcunha pegou e desde então diversos outros catedráticos
passaram a usá-la em seus artigos e livros.

A explicação do desconhecido estava posta. Existia algo impensável e


intangível, até hoje inobservado, mas que era possível. Logo, crível. Nesse
sentido, afortunadamente ajudado pelas publicações de ficção-científica, bem
como por séries televisivas e filmes dentro da mesma linha, o mito do “buraco
negro” se estabeleceu e se tornou popular. Nem tanto pela possibilidade de sua
existência, muito menos pelas intricadas fórmulas matemáticas que sugeriam
essa possibilidade, mas, muito certamente, pela credibilidade daqueles que
propunham sua existência. Pessoas respeitáveis, mas sem qualquer
conhecimento de causa, algumas até com graduação em outras áreas
acadêmicas, passaram a comentar, discutir, defender e reverberar a existência
de um fenômeno possível, mas não comprovado, simplesmente pelo fato de
quererem acreditar que existia... Quero lembrar que, até a data desta
publicação, ainda não foi comprovada a existência de um “buraco negro”
sequer, o que se têm são centenas de possibilidades, imagens digitalizadas
obtidas de telescópios espaciais de objetos astronômicos que “muito
possivelmente” possam ser os imaginados “buracos negros”, ou ainda incríveis
simulações computadorizadas, cheias de efeitos especiais, que demonstram a
possibilidade da existência desses fenômenos astronômicos.

Eu mesmo, não posso negar, sou favorável às mais variadas explicações


para a existência dos “buracos negros”. Todavia, durante uma conversa
amigável, dessas em que diversos assuntos são abordados, desde política até a
religião, os “buracos negros” surgiram como mais um acalorado ponto a ser
discutido. Cheio de presunção, no bom sentido da palavra, defendi
veementemente a existência dos “buracos negros”. Como o professor Helio
Jaques Rocha-Pinto, Doutor em Astronomia pela USP, coordenador do curso de
pós-graduação de Astronomia da UFRJ e diretor do Observatório do Valongo,
estava presente, coube-lhe a palavra final... Para meu espanto e surpresa,
Rocha-Pinto foi categórico, a existência dos “buracos negros”, apesar de
possíveis, ainda não foi comprovada, nem mesmo através de observações!

Foi nesse instante que eu percebi que meu desejo de acreditar e as


aceitáveis explicações dadas pelos físicos e astrofísicos no que tange os “buracos
negros”, me colocaram na mesma posição dos povos das florestas de Roraima,
do deserto de Kalahari, de Moçambique e dos aborígenes das ilhas do Pacífico. A
posição de crédulo. Daquele que crê segundo o seu desejo de acreditar, e
acredita segundo a confiabilidade de quem explica. No fundo, no fundo, não só
eu, mas uma imensa quantidade de cérebros respeitáveis crê em mitos. Pois, os
mitos são assim formados... Pela fé, apenas pela fé.

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