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Ana Nunes de Almeida

Maria Manuel Vieira


“ A Escola em Portugal”

Tomando como referência a sociedade portuguesa, este é um livro sobre educação e


modernidade. Neste sentido, ele inscreve-se numa longa tradição de investigação
científica trilhada por vários investigadores no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa ao longo das últimas décadas.
Em boa verdade, a educação constitui uma agenda de conhecimento com tradições
firmadas no ICS e a temática mobiliza, logo nos anos 60 e no tempo fundador do então
Gabinete de Investigações Sociais, os seus mais proeminentes investigadores,
nomeadamente o seu próprio director - A. Sedas Nunes.
Um rápido sobrevoo pelos produtos de investigação divulgados na primeira revista
portuguesa de referência no domínio das Ciências Sociais e publicada por este Instituto,
a Análise Social, permite-nos justamente constatar a relevância conferida
à temática da educação. Em Outubro de 1965, A. Sedas Nunes procede nas páginas
dessa revista à recensão crítica de les héritiers - lês étudiants et Ia culture, de Pierre
Bourdieu e Jean-Claude Passeron, divulgando ao público nacional uma obra marcante
na análise do sistema escolar, e indubitavelmente inspiradora para os extensos estudos
então realizados sobre a universidade portuguesa, publicados entre 1968 e 1970 Análise
Social.
Ao longo dos anos 70, e em particular após 1974, amplifica-se o interesse pelo tema
“educação”, alargando-se o escopo da investigação aos níveis de ensino não superior. O
ensino secundário assume, nesta altura, uma visibilidade científica impar. Já nos finais
da década de 80, princípios de 90, ressurge no ICS um conjunto de estudos incidindo
sobre a situação social do professor em Portugal, inaugurando a série “Sociologia
Educação” da colecção “Estudos e Documentos”. Segue-se a produção de um grande
estudo nacional sobre Literacia, em meados dos anos 90, o qual prolonga e destaca a
importância da “educação” como um dos domínios estruturantes da agenda científica do
ICS.
Após um certo período de letargia, essa tradição temática retoma agora o seu caminho.
O trabalho que aqui se apresenta pretende reatar e actualizar a linha de estudos sobre
“educação” produzidos no Instituto. Vários factores contribuíram para que tal
acontecesse, dos quais o mais importante foi, sem dúvida a experiência continuada de
trabalho de produção e divulgação científicas, encetada conjuntamente pelas autoras há
três anos, com a criação do Observatório Permanente de no ICS.
Este livro sobre educação resulta assim de um repto e de uma inquietação.
O repto consiste em apresentar ao grande público, de forma arrumada e a uma escala
mais ampla do que a de um simples texto ou artigo, o exercício de reflexão partilhada
temos vindo a desenvolver no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa a
propósito de um objecto específico a escola - tomando como pano de fundo o
paradigma científico.
Privilegiando o olhar sociológico, esta obra resulta do diálogo estabelecido entre dois
percursos de investigação originados em perspectivas diferentes - o que parte da família
e da infância (Ana Nunes de Almeida), por um lado, o que parte da educação (Maria
Manuel Vieira), por outro - mas profundamente imbricados nos processos e nas
dinâmicas escolares, o que potência a sua capacidade interpretativa na análise da
modernidade escolar em Portugal.
A obra agora apresentada é, por isso mesmo, plural. Ela junta textos de várias
procedências - alguns inéditos, alguns remodelados a partir de outros escritos. Não
conta uma história, não segue um trajecto sequencial composto por princípio-meio-fim,
nem sequer retrata um percurso monográfico entre a teoria e o real. Apresenta flashes,
cortes descontínuos tomados segundo certos ângulos - aqueles que nos têm interessado
a nós, autoras, como investigadoras e cidadãs. A partir daí, desenrola-se um discurso
científico sobre cada temática eleita.
Descobre-se, porém, um fio condutor na colagem de olhares
cruzados. É ele o seu pretexto: a escola... A escola, lugar de socialização e de
construção da norma da infância moderna.
A escola, lugar da pedagogia e da aprendizagem de saberes técnicos, mas também lugar
da incorporação da ordem e da cidadania modernas. A escola, e a forma escolar que lhe
dá corpo na modernidade, cujo domínio tende a transbordar as próprias fronteiras locais
e a abranger um universo cada vez mais denso de relações sociais. A escola vista do
lado de dentro, intramuros. E a escola, também, na perspectiva do que se passa do seu
lado de fora, em recantos sociais vizinhos e que tão discreta quanto decisivamente a vão
moldando...
Mas este livro decorre igualmente, já o confessámos, de uma inquietação. A inquietação
de quem assiste ao avolumar de um debate público, corrosivo, sem tréguas, sobre a
escola, alimentado por autoproclamados arautos da educação, comentadores com causa,
não raro oponentes no discurso e no diagnóstico traçado sobre o suposto estado actual
da escola portuguesa, mas quantas vezes irmanados na superficialidade dos argumentos,
no impressionismo da análise, na fragilidade da prova, no desconhecimento do objecto.
A inquietação perante a insustentável leveza da ignorância acidental ou militante de
alguns destes peritos de ocasião - e as suas consequências, em termos de rigor e
seriedade dos julgamentos produzidos sobre a escola.
Na verdade, perante o conjunto de informação substantiva hoje disponível sobre o tema,
não existe desculpa para que as análises produzidas não se fundamentem em
conhecimento sustentado... Disponibilizar alguma dessa informação constitui, assim,
uma das ambições desta obra.
2. Os objectivos, então.
Os objectivos deste livro vão ao encontro dos desígnios de uma “colecção breve”,
concisa em ambição e limitada em extensão. Através de uma linguagem clara e
acessível trata-se, aqui, de fornecer ao leitor não especializado um roteiro, forçosamente
sintético, não exaustivo e sem pretensões ao estatuto de “estado da arte”, de algumas
questões centrais presentes no actual debate sobre a escola portuguesa. Com ele, e de
forma mais ampla, pretende-se familiarizar o leitor com algumas questões-chave da
actual literatura científica nacional e internacional sobre tal objecto.
Não obstante, o carácter conciso deste roteiro não dispensa a pluralidade de
aproximações ao tema. A espessura temporal e a densidade de relações sociais que
perpassam a escola assim o exige. Por isso, neste livro a mobilização de autores e de
especializações disciplinares não se esgota nas fronteiras da sociologia portuguesa, nem
se confina às dimensões estritas da família e da educação. Sempre que se revela
oportuno, socorremo-nos também dos contributos de outros saberes disciplinares
(nomeadamente, da história) e de pistas lançadas por investigadores estrangeiros a
propósito de outros contextos educativos para pensar as questões aqui abordadas.
A preocupação de apresentar resultados recentes de investigação sobre o campo
educativo, numa perspectiva abrangente, está também presente. Pensar a escola actual
requer instrumentos permanentemente actualizados de análise, que permitam questionar
velhas tendências, descobrir novos temas, refrescar caminhos de investigação. Não o
fazer significa reproduzir até à exaustão diagnósticos já gastos, perpetuar fórmulas
interpretativas e cristalizar saberes adquiridos, impedindo assim de captar as dinâmicas
que se recriam ou emergem no espaço educativo.
Finalmente, com este livro deseja-se evidenciar a utilidade social do conhecimento
científico assente no paradigma racionalista, como saber consistente, crítico e
fundamentado da realidade que nos envolve. E isto remete-nos, de novo, para a
inquietação já confessada... Num domínio particularmente fustigado pelo vigor das
evidências, fortemente amplificadas pelos media, como o é actualmente o campo
educativo, a interpelação do olhar científico assume aqui uma redobrada pertinência.
Ao desconstruir o saber imediato e as certezas feitas, ao interrogar e problematizar o
que aparece como um dado, ao proceder ao escrutínio metódico e sistemático da
empiria, a ciência permite desvendar novas respostas e abrir renovadas possibilidades
para a acção. Alertar o leitor para esse outro olhar sobre a educação constitui, também,
objectivo deste livro.
3. A estrutura, por último.
Os capítulos estão organizados segundo um guião que se inicia na escola portuguesa:
um retrato estatístico e actualizado dos seus contornos ao longo das últimas décadas,
primeiro; os projectos que para ek foram pensados pelo Estado, seguidamente; os
debates que tomam a “crise” da escola como objecto, depois.
Enceta-se então uma viagem aos bastidores da escola, reconhecendo-se na família e na
norma da infância moderna os ingredientes indispensáveis - embora não únicos - para
compreender a modernidade educativa. Regressa-se à escola, no presente, para
apresentar novas temáticas e renovados desafios. De entre eles se destaca, justamente, o
requisito do saber sobre a escola e o da divulgação científica na escola.
A preocupação pedagógica, um dos apanágios da forma escolar, não está ausente. Todos
os capítulos contêm sugestões de aprofundamento bibliográfico, pistas de leitura para
desenvolvimento posterior dos temas trabalhados. Dito isto...
Os capítulos l e 2 visam apresentar informação sobre âmbito e ritmos de construção da
paisagem escolar no tempo tomando como pano de fundo a discussão teórica em torno
da afirmação, no Ocidente europeu e entre nós, do projecto imaginado da
“modernidade”. Números, indicadores estatísticos sobre alfabetização, escolarização,
docentes, alunos matriculados - no tempo (as últimas décadas), no País e suas regiões
(não descurando a referência europeia) - constituem o núcleo duro do capítulo 1. Mas
informação, também, através das políticas projectos legislativos em torno da educação e
do sistema escolar, no capítulo 2. Aí se ensaia um sobrevoo histórico acerca da acção
do Estado sobre a escola, do Liberalismo ao presente passando pelos ímpetos
reformadores da I República e pelas reformas do Estado Novo.
O capítulo 3 entra no debate público actual sobre a escola portuguesa, fortemente
amplificado pelos media, e questiona (com dados e resultados da investigação
científica) saberes feitos sobre essa escola do passado, não raro recordada hoje com um
sentimento nostálgico de perda, sinónimo de um lugar onde verdadeiramente se
ensinava e aprendia... A fragilidade e a inconsistência deste discurso é posta à prova
com a convocação de indicadores que a ciência tem produzido - os quais não se podem
continuar a ignorar.
Com o capítulo 4 sai-se do terreno restrito da escola ou dos fenómenos educativos para
se ensaiarem aproximações às suas margens confinantes. Ele traz para a escola os temas
da infância e da família; propõe uma incursão ao universo dos valores construídos em
torno da criança e reflecte sobre a sua nova condição de sujeito na relação educativa -
mobilizando os pais (do lado da família), e os professores (do lado da escola). Lança o
desafio teórico de introduzir, nos saberes estabelecidos sobre a escola (e a família), os
contributos de um paradigma emergente sobre a infância.
No capítulo 5, escrito em tom de repto a um texto clássico da sociologia da educação,
defende-se a tese da poderosa capacidade que possui a família, através de obras e
manobras estratégicas, de construção, reconstrução e erosão do campo escolar.
Recorrendo a exemplos sugestivos do caso português, sublinha-se o facto de a escola
ser tributária da marcação familiar que se faz antes, e fora e apesar dela.
O capítulo 6 regressa à escola e foca desafios e dilemas que hoje se lhe colocam... num
cenário onde tende a diminuir a população infantil e escolar, se vislumbram sinais de
concorrência entre instituições de ensino para captação e fidelização de públicos, onde
parece adquirir contornos acentuados o imperativo de uma educação ao longo da vida, e
onde, finalmente, se nota a presença crescente de um público discente multicultural...
Por último, o capítulo 7 possui um âmbito e objectivos claramente distintos dos
anteriores. Apresenta e retrata uma experiência concreta e recente de abertura das
ciências sociais à sociedade civil, um programa inserido na missão de um Laboratório
Associado de levar “a ciência para fora de portas”, junto de escolas públicas e alunos do
ensino secundário, em curso no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
desde 2003. Detém-se no seu enquadramento, finalidades, instrumentos de divulgação,
e mostra como aqui se abre também um promissor campo de aproximação da ciência à
escola, visto agora sob o prisma da divulgação.
Com a leitura deste livro, esperamos transmitir ao leitor informação pertinente e
criteriosa para pensar a escola actual; contribuir para levantar pistas estimulantes para
outras leituras e descobertas; promover o estímulo para o ensaio de renovadas
abordagens plurais, cruzadas e cientificamente fecundas se a escola. Ao cumprirem-se
estes desígnios ficaremos certamente, todos, a ganhar.
1. Os portugueses, a escola e a escolarização em números: tempos, factos e
tendências
O processo de escolarização da população portuguesa constitui elucidativo exemplo dos
sinuosos e, por vezes, contraditórios caminhos através dos quais se tem afirmado entre
nós o “projecto imaginado de modernidade” (Wagner, 1996).
Dela fazendo parte integrante e decisiva, a implantação de um sistema escolar público,
nacional e obrigatório sofreu inúmeros avanços e recuos que comprometeram
duradouramente no País o acesso de todos ao usufruto pleno da cidadania moderna.
Na verdade, se a escolarização - mesmo que mínima, da população constitui há muito
um desígnio reiteradamente apresado pelos sucessivos dirigentes políticos e
reivindicado pela generalidade dos intelectuais, fazendo eco dos impulsos reformistas e
modernizadores que desde o século XIX vingam por quase toda a Europa, o facto é que
a sua concretização prática entre nós acabou por revelar-se lenta, penosamente arrastada
no tempo, e sem resultados evidentes durante quase um século.
Por sua vez, esse ritmo inverte-se subitamente nas últimas décadas, reconhecendo-se
uma notável expansão da escolaridade junto da população mais jovem e evidenciando
uma acelerada procura educativa muito para lá do estritamente imposto como
obrigatório. Mas, também aqui, o processo de escolarização não se apresenta uniforme,
surge antes pautado por polarizações mais ou menos acentuadas - abandono precoce e
repetência, para uns, avanço acelerado no ensino superior, para outros; clivagem
geracional entre adultos com fracos níveis de escolaridade, de um lado, e jovens
duradouramente escolarizados, do outro; distância entre mulheres e homens no acesso
aos níveis mais elevados do sistema escolar. A entrada tardia e rápida na modernidade
escolar não se traduz portanto numa conversão unânime e linear do País aos seus
desígnios: pelo contrário, nela coexistem assimetrias e diversidade, tensões e contrastes,
práticas e representações em jogo.
Neste capítulo tentaremos retratar, a partir de um conjunto de indicadores estatísticos,
os ritmos, modalidades e tendências através dos quais se tem traduzido, no tempo, o
processo escolarização da população portuguesa.

2. O Estado e a escola: projectos e políticas para a educação


De entre os vários domínios da acção do Estado em Portugal, a educação é seguramente
um daqueles em que mais intenções de reforma se sucedem no tempo de forma
vertiginosa, sem muitas vezes uma correspondente concretização na prática. Tal facto
torna este campo particularmente opaco: é difícil para o cidadão incauto descortinar
tendências e sentidos da acção política sobre a escola.
Neste capítulo, propõem um roteiro das reformas educativas mais marcantes,
implementadas no País durante o longo processo de consolidação do sistema escolar,
associando-o ao também lento processo de construção mais amplo da modernidade.
Por essa razão, não se faz aqui uma reconstituição histórica e exaustiva das sucessivas
mudanças induzidas pelo Estado na escola. Identificam-se, isso sim, marcas e
temporalidades decisivas na afirmação da modernidade escolar em Portugal.

A Escola e a Promessa do “homem novo”


A construção dos actuais sistemas escolares, públicos nacionais, centralizados e
unificados (Barreto, 1995) – representa um lento empreendimento realizado ao longo de
todo o XIX no mundo ocidental, inspirado nos princípios fundadores do “projecto
imaginado de modernidade” (Wagner, 1996). De facto, a nova ordem social que emerge
nos finais do século XVIII no mundo ocidental vem instituir novos princípios de
legitimação da sociedade “moderna” que se pretende então construir.
Por um lado, o indivíduo, fundamento da liberdade, ao qual passam a ser reconhecidos
direitos inalienáveis. Por outro, a razão base para uma nova moral racional, contraposta
à moral religiosa tradicional - inspiradora da acção humana. Finalmente o bem comum,
princípio que extravasa o interesse individual ou local, situado doravante à escala
nacional, a justificar a acção política do Estado (Estado-Nação).
Para trás foram ficando outras modalidades menos formais de alfabetização então em
uso, mais minimalistas nos conteúdos mas mais flexíveis e adaptadas às necessidades
práticas dos divíduos que delas beneficiam, e responsáveis, em alguns países europeus,
pela alfabetização integral da população muito antes de a escola pública estar
implementada (Gameiro, 1998).
Na verdade, a criação de um sistema de ensino público moderno, laico e assente na
Razão; centralizado no Estado, como representante legítimo do Bem Comum; dirigido
ao Indivíduo liberto dos constrangimentos comunitários, alargado a todo o espaço
nacional e estruturado de um Estado liberal burguês que, através da Escola, pretende
reforçar a sua acção de homogeneização cultural e linguística.
De facto, a disseminação da cultura escrita a todo o espaço nacional vem retirar
protagonismo a outros poderes alicerçados em modos de fazer e de agir assentes na
oralidade (Valentim, 1997; Vincent, 1994); através da cultura escrita, a escola vem
também suscitar a emergência de uma identidade comum integradora, a identidade
nacional (Pintassilgo e Costa, 2000), suportando-se numa única versão legítima da
língua e da história nacionais.
Tal “projecto imaginado de modernidade” (Wagner, 1996) constitui, porém, um lento
empreendimento, cujos ritmo e impulsos concretizadores não são lineares.
Num primeiro momento, restringe-se às elites burguesas e liberais, justamente as
protagonistas das iniciativas modernizadoras da primeira metade do século XIX. Longe
de apresentarem uma ambição universalizante, tais iniciativas envolvem, na realidade,
medidas limitadoras dos seus efeitos através de regras restritivas, impondo
constrangimentos ao acesso generalizado de todos os grupos sociais à experiência da
modernidade. Na prática, apenas um restrito número de indivíduos usufrui dessa nova
condição.
No que concerne especificamente ao ensino, mesmo nos países europeus mais precoces
em matéria de escolarização da sua população, o acesso universal à escolaridade básica
apenas se concretiza nos finais de Novecentos. Só tardiamente se consuma a entrada das
mulheres e de grupos sociais mais desfavorecidos na escola pública. Como se
depreende, o princípio da igualdade (de oportunidades de acesso à cultura escrita por
parte de todos os cidadãos), que idealmente sustenta o conceito de escola pública, tem
uma aplicação efectiva muito lenta.
A frequência do sistema de ensino é feita a “duas velocidades”(Dubet, 2000), com larga
vantagem para os filhos da burguesia, que nele beneficiam de uma escolaridade longa,
em contraste com os filhos das classes populares, confinados à escolaridade elementar
obrigatória.
Assim, é legítimo distinguir a condição moderna, imaginada e/ou retoricamente
construída, da sua experiência efectiva. Wagner (1996) refere-se, a este propósito, à
“modernidade liberal restrita”, no sentido em que as sociedades europeias demonstram
ao longo de todo o século XIX, enormes contradições entre, por um lado, “uma retórica
universalista” e, por outro, “a existência fortes barreiras entre os grupos sociais no
acesso às liberdades”. Portugal não é, aqui, uma excepção.

O Liberalismo e a obrigatoriedade escolar


A instauração do Liberalismo no País, em 1820, inspira a criação de um novo sistema
de ensino público, compatível os ideais transformadores do projecto burguês então
ambicionado. Se já antes a reforma pombalina do ensino tinha representado um esforço
deveras do ensino e se, posteriormente, a Carta Constitucional de 1826 aponta
programaticamente para o princípio da gratuitidade do ensino a todos os cidadãos
(Serrão, 1981), é somente em 1835 com a Reforma de Passos Manuel, que a
obrigatoriedade escolar do ensino primário é claramente instituída (Nóvoa, 1987).
Portugal é aliás, a este respeito, um dos primeiros país ocidentais a decretá-la. A
maioria dos restantes só o faz em finais do século XIX ou mesmo nos começos do
século XX, nos casos de França, Irlanda, Holanda, Luxemburgo ou Bélgica (Candeias
2001).
Extravasando em muito a mera transformação dos estudos primários, envolvendo
também decisivas mudanças quer a nível do ensino secundário, com a criação dos liceus
(Valente 1973), quer do ensino superior, a reforma educativa de Passos Manuel
representa, porventura, a primeira e mais sustentada tentativa de imposição da
ambicionada universalidade escolar em Portugal.
Heranças Sociais, Estilos Familiares e Trajectórias Escolares
O segundo exemplo respeita ao peso das heranças sociais e culturais, transmitidas e
actualizadas pela família. Constitui um tema tradicional da sociologia das classes e
justamente um daqueles em que se apela ao contexto familiar de pertença (da criança,
do jovem) como factor explicativo de desigualdades perante a escola. Encarada como
“caixa negra” (Singly, 2000) e olhada de fora como um sistema previsível, a família
induziria a reprodução dos privilégios ou handicaps herdados, contrariando o projecto
da escola libertadora e promotora de igualdade de oportunidades.
Referimo-nos, em todo o caso, à importância da posição social de partida no desenho
das trajectórias escolares de crianças e jovens. Esse efeito vislumbra-se não só no acesso
e no cumprimento da escolaridade obrigatória, mas sobretudo em questões que se
prendem com as modalidades do sucesso escolar.
As velhas ou novas formas de pobreza, as precariedades das condições de existência das
famílias geram, quando acontecem na vizinhança de certo tipo de dinâmicas do mercado
de trabalho, mecanismos de exclusão e de abandono escolar precoces, trajectórias
crónicas de insucesso no sistema de ensino (Benavente et al., 1994; Ferrão, 2001). Os
dados relativos
O impacto do capital escolar da mãe revela-se também decisivo. Para todos os grupos
etários considerados, a frequência do pré-escolar sobe com o nível de escolaridade da
mãe: 38% para as crianças filhas de mães sem nenhum nível de instrução; 75% para
aquelas cuja mãe detém um grau de ensino superior.
A família molda e condiciona muito fortemente também o sucesso escolar, medido pela
duração e a qualidade das aprendizagens, pela escolha de certas vias profissionais e
vocacionais, em detrimento de outras (Silva, 2003). Há uma repartição desigual das
probabilidades de sucesso escolar segundo os diferentes meios sociais, isto é, segundo
as posições sociais que as famílias de origem dos alunos ocupam num espaço onde
capitais económicos, culturais e simbólicos estão desigualmente distribuídos.
Os gráficos n.ºs 5.5 e 5.6 oferecem um excelente exemplo dos processos de reprodução
de desigualdade entre gerações, nomeadamente no que toca a relação, de maior ou
menor sucesso e durabilidade, com a escola. Tomando como população de referência o
conjunto de crianças com 14 anos, verifica-se que as taxas de insucesso e abandono
precoce do sistema evidência.
O contexto familiar, a herança social transmitida pelos pais em casa, revela-se um
poderoso factor estruturador da qualidade da carreira escolar dos filhos. O número de
irmãos, por exemplo, tem um peso assinalável: os filhos únicos têm globalmente
maiores níveis de sucesso (75%) do que as crianças que vivem em fratria, e em especial
os que têm dois ou mais irmãos (50%). Fica também comprovada a associação entre o
nível de escolaridade da mãe e o desempenho escolar do filho; com efeito, os
indicadores de sucesso sobem de 32% (para os filhos de mães sem escolaridade) para
95% (mães com diplomas do ensino superior). A trajectória da condição perante o
trabalho da mãe é também decisiva. Os filhos de mulheres com trajectórias contínuas de
actividade profissional têm maior sucesso do que aqueles cujas mães tiveram uma vida
profissional pautada por entradas e saídas frequentes no mercado de trabalho ou que
nunca trabalharam fora de casa - sucesso esse ilustrado nas percentagens respectivas de
71%, 60% e 51%. Finalmente, a classe social de pertença dos pais destaca o contraste
entre níveis de sucesso da ordem dos 90-95% entre filhos de “empresários e dirigentes”
ou “profissionais intelectuais e científicos” e outros, mínimos, entre «camponeses»
(48%), “operários industriais” (53%) ou “assalariados agrícolas mais operários”
(56%).
Outros investigadores assinalam ainda uma outra vertente deste impacto da posição
social sobre a carreira escolar. A vantagem das classes favorecidas não estará tanto ou
pelo menos tão-só na sua proximidade e familiaridade com a lógica, a linguagem ou a
cultura escolares mas, sobretudo, na sua superior capacidade de entender, em contextos
de mudança acelerada, as novas dinâmicas do sistema educativo (Berthelot, 1983).
Os determinantes de classe, sedimentados na família, não têm obviamente um carácter
linear e unívoco, mas os seus impacto e persistência continuam a ser relevantes não só
dentro do campo escolar mas também, e na medida em que o diploma que a escola
confere constitui um poderoso instrumento de acesso ao mercado de emprego e de
qualificação profissional, fora dele. O alcance explicativo destes factores não é,
entretanto, ilimitado: o peso maioritário e estatisticamente demonstrado das trajectórias
escolares típicas de classe não nos pode fazer esquecer, por exemplo, a existência
teoricamente relevante não só de «trajectos improváveis» dentro de cada classe, como
da diversidade de trajectos (mais ou menos bem sucedidos) entre membros da mesma
fratria.
O impacto da desigualdade sócio-familiar na consistência e na qualidade da carreira
escolar do indivíduo é também captado se adoptarmos agora, não a perspectiva do
resultado produzido e a do sistema de lugares sociais, mas a perspectiva do processo em
construção e dos actores. Estudos realizados sobre práticas, estilos e valores educativos
parentais ou “paradigmas familiares” revelam, por um lado, a sua diversidade e, por
outro, não 50 a sua relação preferencial com certos meios sociais como também os seus
efeitos diferenciadores na produção de certos estilos de aluno e de relação com a escola
(Kellerhals e Montandon, 1991; Montandon, 2001; Seabra, 2003). Senão, vejamos.
O estilo educativo prevalecente numa família, ou pelo menos dominante em certa fase
do seu tempo familiar, articula finalidades e objectivos (que pressupõem certas
expectativas dos pais sobre a personalidade e o futuro lugar social da criança), métodos
pedagógicos ou técnicas de influência através dos quais são postos em prática, uma
estruturação mais ou menos diferenciada dos papéis parentais e modos de coordenação
que medeiam as influências educativas de outros actores (Kellerhals e Montandon,
1991). Fortemente associado ao contexto relacional e familiar (o «nós-famflia») em que
toma forma, o qual por sua vez não é estranho à situação de classe dos pais, o estilo
educativo é assim responsável pela produção de uma galeria diversificada de filhos
alunos - mais ou menos competentes em capacidade de comunicação e abstracção, no
uso de linguagem e códigos elaborados, na interpretação e aproximação relacional e
empática da instituição escolar... filhos-alunos mais ou menos ambiciosos ou
acomodados, criadores ou cumpridores, motivados ou derrotados, obedientes ou
imaginativos (Queiroz, 2004). Eis outra ilustração do ascendente da família sobre a
escola: a personalidade social do aluno, também ela estruturante do universo educativo
e peça decisiva do sucesso escolar, traz afinal a marca da casa...

Do breve périplo por alguns dos temas e problemas que se colocam hoje à escola,
sobressaem duas ideias fortes que importam reter
A primeira remete para a extensão que a forma escolar, inicialmente ligada à infância,
tem vindo a assumir nas sociedades contemporâneas. Presente em domínios que estão
muito para lá da estrita formação escolar inicial, abarcando diferentes gerações
populacionais, traduzindo-se em distintas modalidades e contextos formativos, a
expansão da forma escolar parece provar que as teses recorrentes da “crise da escola” se
saldam, afinal, em “mais” escola. No entanto, essa crescente abrangência coloca novos
problemas quando a ela é cometida a ambição invadir duradouramente a vida adulta, em
nome do requisito cidadania, ou seja, das condições de uma literacia permanentemente
actualizada, por um lado, e do requisito de “empregabilidade”, por outro, que só ela
parece outorgar.
A segunda refere-se ao contributo absolutamente fulcral que a investigação científica,
fundamentada nos princípios da racionalidade herdados da modernidade (Pinto, 1994),
continua a oferecer para o questionamento de aparentes “evidências” ou de supostas
“verdades”. Em contextos marcados pela mediatização crescente da vida social, como
acontece nas sociedades contemporâneas, a disponibilização de produtos-conhecimento
Que permitam desvendar a opacidade que envolve os processos sociais constitui um
importante contributo contra as sedutoras ilusões de transparência com que o real nos
surge apresentado.
A este respeito, como vimos, as grandes questões com que se tem debatido a escola
(portuguesa) actual estão longe de ser evidentes ou sequer inocentes. A defesa das teses
do “mercado escolar” e o elogio das suas vantagens, bem como a atenção selectiva
concedida a certas “minorias étnicas” e o propugnar de urna “educação multicultural” a
elas especificamente destinada, demonstram critérios de pertinência mais próximos da
acção política ou da intervenção social do que os resultantes da lógica científica. Ao
mobilizarem-se procedimentos científicos de interpretação do real, como aqui
ensaiámos, descobrem-se novas dimensões desses mesmos temas. Interrogar “verdades”
naturalizadas constitui, pois, o melhor antídoto contra generalizações apressadas
decorrentes da lógica da exposição “ruidosa” de determinadas informações sobre o real
e da concomitante ocultação «silenciosa» de outras que, frequentemente, moldam a
agenda política, justificam a intervenção pública em favor de determinados projectos e
geram prioridades de acção. Contribuindo, assim, para reforçar a ordem estabelecida e
(ré) construir desigualdades e injustiças sociais...

Bibliografia:

Imprensa de Ciências Sociais Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação


Almeida, Ana Nunes de, 1957-, Vieira, Maria Manuel, 1957-
A escola em Portugal: novos olhares, outros cenários / Ana Nunes de
Almeida, Maria Manuel Vieira. - Lisboa : ICS.
Imprensa de Ciências Sociais, 2006
Edição: Outubro de 2006

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