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CÓDIGO POSTAL | SERRA DO NAVIO, AP 68948-000

Viagem no tempo
Nos anos 1950, uma cidade-modelo surgia na Floresta
Amazônica. Restaram hidrantes, plantas exóticas, casas A ferrovia aberta em meio
à mata ainda é uma ligação
decadentes e uma jornada de trem no meio da selva. importante entre Serra do
Navio e o porto de Santana,
vizinho à capital Macapá.
POR JOSÉ EDUARDO CAMARGO FOTOS DE MAURÍCIO DE PAIVA
O trajeto dura sete horas.

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SERRA DO NAVIO, AP

Na área antes ocupada pela empresa Icomi, equipamentos


GUIANA
SURINAME
FRANCESA enferrujam (à direita), castigados pelo sol e pelas chuvas. Ali o
manganês era beneficiado antes de seguir para o porto. Na vila
AP Primária, onde moravam os funcionários menos graduados, as
Serra do
E
Navio V casas geminadas ainda guardam detalhes arquitetônicos do projeto
Macap´a
de Oswaldo Bratke, como as venezianas de madeira (acima).

E
mpoleirado na bicicleta, um menino a mando do empresário americano Henry Ford, Mesmo após o fim da exploração do manga� tes em muitos municípios brasileiros na época.
pedala pela calçada, embora a rua esteja nos anos 1930, durante o ciclo da borracha. As nês nos anos 1990, a cidade continuou ocupada. O trem trazia passageiros, alimentos, material de
vazia. Desvia de um hidrante, contorna o duas foram cidades-modelo no meio da selva. Empobreceu, é verdade. Os atuais 4 mil habi� construção e equipamentos. As linhas do trilho
jardim sem cerca de uma casa e desce por E ambas se enfraqueceram quando a atividade tantes vivem da agricultura de subsistência e do ainda constituem a principal ligação com a capi�
uma rampa de concreto. Lá embaixo, outros me� econômica deixou de ser viável. Mas as coinci� dinheiro que a prefeitura injeta na economia, re� tal, Macapá, a cerca de 200 quilômetros.
ninos e meninas o esperam para uma partida de dências não vão longe. Serra do Navio é mais cebido do governo federal por meio do Fundo “O regulamento era rigoroso. Até mesmo
futebol. Ele encosta a bicicleta em um pinheiro, nova (foi fundada na década de 1950) e, embo� de Participação dos Municípios. Há um pequeno na vida pessoal era preciso cuidado. Se o em�
descalça o chinelo e entra animado na quadra. ra tenha abrigado engenheiros e trabalhadores comércio, um hospital sucateado (que, acredi� pregado batia no filho, por exemplo, era logo
O piso de cimento ainda está molhado. Acaba de americanos, é um projeto brasileiro, da empresa te, já foi modelo) e um cibercafé, com internet advertido”, conta Antônio Barbosa, ex-funcio�
cair uma chuva torrencial. Icomi, de Minas Gerais. Enquanto a exploração via satélite. Em 2010, o Instituto do Patrimônio nário da Icomi. Operador da escavadeira Ma�
Seria uma cena comum em qualquer localida� de manganês era lucrativa, a Icomi e sua parceira Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou rion – que agora descansa como sucata em uma
de da Amazônia não fosse por alguns detalhes: o americana, a Bethlehem Steel, administravam o Serra do Navio, declarando-a Patrimônio Cultu� das minas de manganês –, ele trabalhou por 31
que um hidrante, uma casa com jardim aberto e município, que era dividido em dois setores. Na ral. A iniciativa, no entanto, pode ter sido tardia. anos na companhia e hoje mora em uma das
um pinheiro fazem nessa região? Esses elemen� parte alta, o chamado Staff era uma vila onde Projeto do arquiteto modernista Oswaldo casas do Staff. Se algumas delas ainda mantêm
tos “estrangeiros” são de outra época, e datam de ficavam as casas dos engenheiros e administra� Bratke, a vila foi planejada com conceitos que, as características originais, outras estão sendo
um período no qual uma cidade inteira foi cons� dores, além de um hotel que funcionava como atualmente, são considerados sustentáveis. Para modificadas – as moradias foram ocupadas por
truída para abrigar os trabalhadores das minas ponto de encontro e clube social. Em outra área, amenizar o forte calor, as casas aproveitam a servidores públicos. Algumas construções já se
de manganês no interior do Amapá. mais baixa, estavam a administração da empre� ventilação natural com uso de venezianas fixas encontram em ruínas. A piscina do hotel, com
Serra do Navio pode ser comparada à �����Ford� sa, o hospital, uma igreja ecumênica e as resi� de madeira. Havia tratamento de esgoto, coleta trampolim e raias para competições, acumula
lândia, a famosa vila erguida em solo paraense dências geminadas dos demais trabalhadores. de lixo e iluminação pública, serviços inexisten� água de chuva em seus azulejos quebrados.

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Nostalgia em preto e branco: a sala da diretoria do hospital da cidade guarda fotos dos tempos
em que era um modelo de eficiência e higiene em todo o estado do Amapá (à esquerda).
Uma antiga cava da mina de manganês foi tomada pela água do lençol freático (acima),
convertendo-se em uma inusitada atração da cidade que, agora, pretende investir no turismo.

O clube dos funcionários, o Manganês Espor� As barracas vendem legumes, hortaliças, porcos do, ela faria a sombra necessária para proteger o son Scarpelli, que trabalhou em Serra do Navio.
te Clube, não está em melhores condições, mas e galinhas, tudo vindo de produtores nos arredo� solo das chuvas, criando condições para a rein� “Desde a década de 1960, visito a região com
ainda é frequentado pelos moradores. “Na época res. “Nem o imposto territorial consigo cobrar, trodução das espécies nativas“, conta o médico frequência. Nunca houve risco de contamina�
da mineração, havia enorme rivalidade entre os porque as casas não pertencem aos ocupantes. e ambientalista Paulo Amorim, dono de uma ção por arsênio”, afirma. “O problema ambiental
times de futebol da companhia”, explica Lucival A arrecadação do município é muito baixa.” empresa contratada na época pela Icomi para mais sério é mesmo o esgoto, que passou a ser
Aranha Duarte, conhecido como “Pato Rouco”. As apostas de Francimar concentram-se na volta recuperação das áreas degradadas. jogado direto no rio Amapari.”
Por 18 anos, ele atuou na Icomi como lubrifica� à mineração e no implemento do turismo. O projeto da prefeita de ver turistas em pas� Os estoques de manganês no subsolo parecem
dor de máquinas pesadas, mas ganhou destaque A saída da Icomi, nos anos 1990, foi prece� sagem pela cidade inclui as minas desativadas. ter sido exauridos. Mas o município pode ter ou�
mesmo foi defendendo o gol do Mecânica Es� dida de uma queda na produção do minério. Ao menos uma delas já se tornou local de lazer: tras jazidas ainda não exploradas, de ouro e fer�
porte Clube. “Cada setor da empresa tinha um As várias cavas foram abandonadas, assim a Lagoa Azul, a poucos quilômetros da vila. An� ro, por exemplo. Esses minérios já são extraídos
time próprio”. Atualmente, Lucival trabalha na como a unidade de beneficiamento. Nas cerca� tiga cava, foi tomada pela água do lençol freáti� em Pedra Branca do Amapari, cidade vizinha.
prefeitura. Assim como ocorreu com vários ou� nias de Serra do Navio, as marcas da mineração co. A incrível cor azul da lagoa, com um tom ar� “Já ouvi dizer que os veios de ouro se encami�
tros funcionários da Icomi, migrar para o poder são visíveis nas minas abandonadas, nas máqui� tificial, deu margem a certas especulações de que nham para Serra do Navio. Torço para que seja
público foi a única opção de emprego. nas deixadas para trás, nos rejeitos de minério ela estaria contaminada, talvez por arsênio, uma verdade”, diz a prefeita Francimar, atenta aos
“Temos pouco pessoal e recursos escassos estocados junto à estação de trem. A selva ainda substância tóxica. “Nunca foram feitos estudos royalties que pode arrecadar se a mineração se
para cuidar do patrimônio. A luta aqui é para não reclamou para si essas áreas. Além do pi� específicos, mas acredito que o tom da água se der em terras de seu município. Ainda que isso
manter todos os serviços em funcionamen� nheiro e de outras árvores exóticas introduzidas deva à interação com a rocha, rica em sulfeto de ocorra, no entanto, a sensação é a de que Serra
to”, diz Francimar Santos, ex-professora que na região, como a mangueira, é comum ver uma ferro. Talvez ela não seja adequada para beber, do Navio perdeu essa oportunidade de progres�
foi eleita prefeita de Serra do Navio, enquanto espécie australiana, a acácia, nas regiões de mi� por causa da acidez, mas é quase certo que não so. “O natural seria as novas mineradoras se ins�
circula por uma feira improvisada no centro. neração. “Pouco exigente e de crescimento rápi� apresente maiores riscos”, analisa o geólogo Wil� talarem aqui, não em Pedra Branca, pois já havia

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infraestrutura. Mas as disputas judiciais e o fato


de as casas já terem sido invadidas foram fatores
inviabilizadores”, diz Wilson Scarpelli.
Outra variável pode atrapalhar os sonhos
da prefeita. Mas, ao mesmo tempo, talvez re�
presente a chance de um futuro melhor e mais
sustentável: cerca de 70% da área do município
está protegida e não pode ser explorada, pois faz
parte do Parque Nacional Montanhas do Tumu�
cumaque, o maior do país, com 38 670 quilôme�
tros quadrados (quase do tamanho da Suíça).
A cidade é uma espécie de porta de entrada
ao parque, na fronteira com o Suriname. No en�
tanto, chegar ao Tumucumaque é uma aventura.
Não há estradas, e o caminho natural está no rio
Amapari, cheio de corredeiras traiçoeiras. A difi�
culdade de acesso, a complexidade de seus ecos�
sistemas e as características do relevo tornam a
área de alto interesse para a ciência. Na década
de 1950, o editor de national geographic
Paul Zahl esteve em Serra do Navio, à procura
de insetos, que foram tema da reportagem “In�
setos gigantes da Amazônia”, em 1959. “Nessa
região estão as mais soberbas torres de florestas
tropicais da América do Sul”, escreveu. Sobre a
capa de uma edição antiga, Zahl fotografou um
Titanus giganteus, o maior besouro do mundo,
coletado nos arredores. “Procurando insetos
com ajudantes prestimosos recrutados em Serra
do Navio, explorei trilhas, escalei barrancos, re�
virei troncos caídos, arranquei cascas de árvores,
matei uma ou outra serpente, escavei montes de
húmus e rondei horas e horas à noite sob a luz de
holofotes”, narra Zahl na reportagem.
Muito além dos insetos, a reserva de Tumu�
cumaque guarda grande quantidade de espécies
de animais e plantas à espera de catalogação
científica – um patrimônio natural que parece
conter a fonte de recursos esperada por Serra
O rio Amapari é o caminho natural que leva ao Parque Nacional Montanhas do Navio desde a saída da mineradora. A res�
do Tumucumaque. O trajeto é cheio de corredeiras perigosas. Para visitar posta tão procurada pode estar no uso sus�
a área, o fotógrafo Maurício de Paiva, a guarda-parque Marli da Silva, o guia tentável do ambiente, explorado por meio do
e o piloto tiveram de carregar a voadeira em meio às pedras em vários trechos. turismo e da coleta racional dos produtos da
floresta. Quem diria: a recuperação de um pa�
trimônio arquitetônico em risco, erguido pelo
valor do minério extraído do solo, reside em
um parque nacional e em toda a vida que ex�
plode sob a copa de suas árvores gigantescas. j
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