Você está na página 1de 7

ARTIGO / ARTICLE

A Quem Interessa a Relação Médico Paciente ?


Who Cares How Doctors and Patients Relate ?

João Claudio Lara Fernandes 1

FERNANDES, J. C. L. Who Cares How Doctors and Patients Relate ? Cad. Saúde Públ., Rio
de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993.
The relationship between doctors and their patients is part of everyday life for thousands of
professionals. In order to avoid an idealistic or merely emotional approach to this question, it is
necessary to investigate how it is related to medical science and to the overall relationship
between medicine and society. Indeed, far from being aleatory, the doctor-patient relationship as
it has been practiced can be understood as a tool for maintaining the power of both the medical
establishment and the state over society.
To change this practice, the author proposes two different approaches to specific fields of
medical practice: the hospital and non-hospital fields. In the field outside hospitals, the
humanization of medical practice depends basically on broadened training for professionals in
order to prepare them to deal with this work’s inherent demands, where a physiopathological
approach is often insufficient. Inside hospitals, a more humanistic relationship depends more
directly on the action of a multiprofessional health team.
Keywords: Doctor Patient Relationship; Primary Health Care; Multiprofessional Health Team

INTRODUÇÃO dos doentes; portanto, um conceito idealizado.


Por outro lado, boa parte das críticas dirigidas
O assunto da relação médico-paciente (RMP) à forma como se estabelece usualmente esta
tem sido tratado extensamente por numerosos relação carece igualmente da proposição de
autores. Entretanto, na maioria das vezes, suas alternativas factíveis dentro da realidade cotidia-
análises são lidas e debatidas por profissionais na dos profissionais de saúde e, portanto,
distantes da prática clínica, o que não deixa de compartilham da mesma ilusão idealista.
conferir a estas discussões uma aparência de Um exemplo bastante prático disto é a abor-
inutilidade. A Medicina, como comenta Cla- dagem do aspecto afetivo da RMP. Ora, a
vreul (1983), segue indiferente ao que dela se afetividade existe inevitavelmente, na medida
diz. em que ela se refere a um contato entre pesso-
Para a maioria dos clínicos, a questão da as, embora concordemos com Sartre (Birman,
relação com seus clientes remete basicamente a 1980) quando considera a relação com o médi-
algumas aulas da graduação, ou aparece na co como um fato original, diferenciado das
forma de um discurso mais ou menos lírico, características das outras relações, o que certa-
utilizado em conversas entre colegas, freqüen- mente não invalida a afirmação anterior. Desta
temente sem maiores correlações com a reali- forma, por mais que se procure manter um
dade vivida nos consultórios e enfermarias. distanciamento, sentimentos estarão sempre
Mostra-se, desta forma, despossuída de qual- presentes, nas mais variadas formas, como
quer conteúdo positivo ou intrínseco às ap- afeição, empatia, antipatia, aversão, medo,
tidões objetivamente exigidas para o cuidado compaixão, erotismo, etc. Pode ocorrer uma
negação desta realidade por parte de alguns
1
Posto de Saúde da Associação dos Moradores e profissionais, enquanto outros, ao contrário,
Amigos do Bairro Barcellos. Travessa Flores, 4, Favela tendem a reduzir a RMP exclusivamente ao seu
da Rocinha, 22451-410, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
conteúdo afetivo, definindo-a a partir de catego-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993 21


Fernandes, J. C. L.

rias como amizade, carinho, etc. Não pretende- órgãos doentes. O lugar do indivíduo passou a
mos menosprezar este aspecto da RMP. Entre- ser o de portador de lesões, estas sim vistas
tanto, parece-nos mais adequado aceitar sim- com interesse e positividade pelo médico. Outra
plesmente o caráter imprevisível dos afetos importante contribuição para o entendimento da
presentes na consulta, na medida em que envol- relação entre a ciência médica e a questão da
vem um campo alheio à racionalidade humana. subjetividade na atividade clínica é o trabalho
É um pré-conceito considerar que o médico de Canguilhem (1990) em O Normal e o
deva ser amigo ou gostar de seus pacientes. Patológico. Neste texto, ele discute a asso-
Este pré-conceito é incapaz de dar conta da ciação entre experiências de fisiologia nos
prática clínica concreta, e reduzir a RMP a uma laboratórios e a elaboração de conceitos sobre
questão afetiva significa esvaziá-la de qualquer a saúde e a doença e, conseqüentemente, sobre
conteúdo instrumentalizável, destinando-a ao o diagnóstico e terapêutica, conceitos estes
universo do aleatório. Aleatório aqui não signi- baseados em uma normalidade experimental,
fica, de modo algum, neutro, porque, na verda- isto é, definidos com base em médias obtidas
de, este esvaziamento ajuda a encobrir outros em situações cientificamente controladas, mas
mecanismos bem mais sutis onde a RMP, da freqüentemente distantes da realidade concreta
forma como é estabelecida, segue produzindo das pessoas.
seus efeitos no indivíduo e na sociedade. Conseqüentemente, a definição do que é
De todo modo, talvez pelo fato de atuarmos na doença e, em contraposição, do que é saúde
clínica médica, temos a esperança de, mes- passa a depender do achado de substratos
mo de forma bastante restrita, contrariar a anatômicos e fisiopatológicos que identifiquem
tradição de distância entre este debate e a uma ou, na ausência desta, a outra, e, por
prática médica, e levantar questões que atendam conseguinte, estas passam a ser definidas não
aos interesses dos colegas e colaborem com sua pelo doente, mas pelo médico. Destitui-se,
atividade profissional. É, portanto, uma intenção assim, a experiência da doença do seu caráter
pragmática que justifica este texto, mesmo subjetivo, negando ao paciente o direito de
considerando que os aspectos levantados mere- sentir aquilo que ele relata — caso não exista
ceriam um tratamento por um viés mais teórico. uma base cientificamente definida para esta
Para atingir este nosso objetivo, consideramos sensação —, e recorrendo-se, como descreve
necessário investigar quais as possibilidades de Boltanski (1989), até à transferência do doente
inserção da RMP dentro do próprio campo para o psiquiatra, se ele obstina-se em sentir o
clínico. Em outras palavras, devemos perguntar: que sente. Canguilhem (1990) procura resgatar
para que serve a RMP? Como ela pode contri- à saúde o seu caráter subjetivo e normativo,
buir para a prática clínica? Ou seja: Qual é a conceituando-a num campo que, de certa forma,
importância do sujeito na prática do médico? viria a ser assumido posteriormente pela Orga-
nização Mundial da Saúde, em Alma-Ata. De
fato, se, a partir de Alma-Ata, a saúde é defini-
O LUGAR DO SUJEITO NA da como bem-estar, isto significa que a saúde
CIÊNCIA DO MÉDICO é definida a partir de quem sente. Canguilhem,
na verdade, ultrapassa este conceito, definindo a
Em O Nascimento da Clínica, Foucault saúde a partir de sua potencialidade normati-
(1987) descreve como, com a descoberta da va, isto é, de superação, de criação de novas
anatomia patológica, o interesse médico foi se normas vitais.
voltando cada vez mais para as estruturas De qualquer modo, mantidos os mesmos
internas do organismo, na busca de lesões que instrumentais de formação e atuação médicas, a
explicassem as doenças, e como, com isto, a saber, a anatomia patológica e a fisiopatologia,
importância do sujeito foi se tornando cada vez o encontro do médico com o doente ocorre
mais secundária. Construiu-se uma nosologia unicamente na medida em que este é portador
baseada na generalização dos achados anatômi- de uma lesão inscrita no interior do seu corpo,
cos, sem lugar para o que não possa ser referi- identificada não a partir de sua percepção, mas
do ao corpo doente ou, mais especificamente, a em função de uma norma exterior a ele. A

22 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993


Relação Médico-Paciente

única informação capaz de ser compreendida, sociais produzem seus intelectuais orgânicos —
valorizada e transformada em diagnóstico e aqui incluindo-se os médicos —, referindo-os
terapêutica é a que se refere a este domínio. como “comissários do grupo dominante para o
Portanto, a relação ocorre entre o médico e a exercício de funções subalternas da hegemonia
doença do sujeito, independentemente do sujeito social”. A prática médica coloca se, portanto,
da doença. como um instrumento de consenso/coerção,
Clavreul (1983) vai mais adiante e sugere assegurando a manutenção de uma determinada
que, na verdade, também o médico é submetido hegemonia de classe. Como refere Luz (1986),
a uma redução, colocando-se essencialmente “reduzir a saúde à ausência relativa de doença,
enquanto o porta-voz da instituição médica, a programas médicos curativos ou preventivos,
cujos conceitos e legitimidade é obrigado e tem sido, no modo de produção capitalista, a
convencido a defender. Esta instituição tem forma política de eludir o problema das con-
suas leis e seu estatuto predefinidos, bem como dições de existência nele vigentes”.
seus mecanismos de controle e fiscalização, e é Deste modo, a medicina desempenha o papel
esta ordem que deve ser apresentada e reafirma- de legitimar o esforço e a preocupação do
da ao paciente. Deste ponto de vista, a RMP Estado com o bem-estar comum. A ela cabe o
torna-se, na realidade, a relação entre a insti- trabalho de conformação das classes não-hege-
tuição médica e a doença, não existindo espaço mônicas à ordem social em vigor. Quando o
para a presença subjetiva, isto é, para o sujeito médico atende um paciente com cefaléia, o
do médico e o sujeito do paciente. A expressão examina e se limita a pedir exames e prescrever
consagrada por Balint (1984) ao descrever o um analgésico, ele está dizendo a este paciente,
que ocorre na assistência médica como um dentro dos melhores preceitos clínicos, que
“conluio do anonimato”, onde a responsabilida- aquele sintoma guarda uma coerência e uma
de pelas condutas adotadas é diluída por enca- causalidade circunscritas ao seu corpo, e, por-
minhamentos e opiniões de especialistas — fato tanto, passíveis de serem tratadas e curadas
este amplamente observado nos serviços de através daqueles procedimentos. Não aparece no
saúde —, poderia ser considerada, na verdade, como positiva, na consulta médica, a relação
um reflexo desta realidade. Outro exemplo deste sintoma com as condições de vida desta
interessante é a questão dos prontuários médi- pessoa, ou se ela está desempregada, ou se está
cos, cuja função teórica seria a de registrar os infeliz, ou se trabalha muito. Não há espaço,
dados de interesse do paciente. Na prática, desta forma, para a emergência de conteúdos
entretanto, estes servem muito mais como um políticos contra-hegemônicos na consulta médi-
documento onde o médico presta contas à ca, isto é, dos aspectos subjetivos que compõem
instituição, relatando-lhe as lesões encontradas a cidadania, e, em nome da neutralidade cientí-
no exame e as corretas condutas adotadas fica, o médico atua politicamente, conformando
(mesmo que, eventualmente, a coisa não tenha o paciente à ordem social em vigor.
sido bem assim), e, deste modo, se defendendo A RMP pode ser entendida, neste sentido,
legal e eticamente de qualquer eventual acu- como uma relação de dominação da ordem
sação. Análise semelhante poderia ser feita médica sobre a sociedade, e de dominação do
acerca dos receituários médicos: não importa se estado sobre as classes não-hegemônicas. Um
o paciente pode ou não comprar o medicamen- dos instrumentos que exemplificam esta dupla
to, mas apenas que a prescrição esteja tecnica- dominação é a linguagem utilizada pelos médi-
mente correta e salvaguarde, deste modo, a boa cos. Boltanski (1989) descreve a existência de
reputação do profissional no seu meio. uma barreira lingüística que separa o médico do
doente pertecente às classes populares, barreira
que se deve tanto à utilização de um vocabulá-
RMP E ESTADO rio médico especializado quanto às diferenças
que separam a língua das classes cultas daquela
Olhando por outro ângulo, esta relação, longe das classes populares. Este autor refere, ainda,
de ser fortuita, atende a interesses bem defini- que se, por um lado, desautoriza-se a utilização
dos. Gramsci (1968) analisa como as classes da linguagem médica pelo leigo, por outro, são

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993 23


Fernandes, J. C. L.

desenvolvidos e incentivados trabalhos educati- está dirigido ao restabelecimento de uma norma


vos que visam ampliar o domínio médico e vital, percebida como um valor pelo indivíduo
“educar” o paciente a aceitar e se submeter à doente, isto é, se a doença é do doente, não
autoridade deste. Um outro instrumento essen- seria o fato de uma clínica ser hospitalar que
cial a este projeto é a medicalização, que, além lhe forneceria o estatuto de ciência. Isto é, o ato
de atender aos interesses do complexo médico- clínico, por princípio, não é científico, na
-industrial, consubstancia a supremacia do medida em que está comprometido com o
conhecimento médico e a dependência do restabelecimento de uma norma vital subjetiva,
paciente. Para ampliar este projeto de hegemo- embora obviamente este ato seja baseado, em
nia, a ordem médica busca, continuamente, grande parte, em conhecimentos oriundos das
substratos científicos para sujeitar os mais ciências biológicas. A ironia e, ao mesmo
diversos campos da vida a seus preceitos, tempo, a pertinência desta observação estão no
transformando as pessoas em doentes em poten- fato da concepção desta medicina das inter-re-
cial, ou suspeitos, à revelia do que elas sentem lações proposta por Balint ter sido expandida
de si mesmas. institucionalmente, ao menos na nossa obser-
Existe, deste modo, uma série de situações vação pessoal, mais nos hospitais do que nas
subjacentes à RMP que determinam a sua unidades extra-hospitalares, tendendo, em
existência com as características que conhece- alguns casos, a se constituir, na prática, enquan-
mos. Isto significa que pouco adianta recorrer to serviços de psicologia, atuando de modo
a um discurso doutrinário que incentive a multiprofissional com as demais especialidades
humanização do atendimento médico caso não hospitalares, o que parece corroborar a análise
sejam visualizadas e modificadas as causalida- que faremos posteriormente acerca das caracte-
des envolvidas no estabelecimento desta re- rísticas da RMP naquele espaço de prática
lação. Devemos, neste ponto, esclarecer previa- clínica. É inegável, por outro lado, a influência
mente que não desconsideramos a necessidade positiva que estas concepções proporcionaram,
de mudanças macro-estruturais nas políticas de mesmo que de forma parcial e adaptada, ao
assistência e na própria sociedade, as quais trabalho médico em geral, abrindo terreno para
certamente interferem no ambiente da RMP. novas investigações e análises.
Entretanto, nosso objetivo neste trabalho é Feitas estas ressalvas, podemos iniciar nossa
salientar um aspecto específico que considera- avaliação acerca das características da RMP
mos central nesta questão e, dialeticamente, nestes dois campos.
indissociável em relação àquelas mudanças. A prática clínica extra-hospitalar, a qual
Assim, queremos avaliar quais as condições de preferimos chamar, especificamente, de Aten-
possibilidade para uma mudança nesta relação, ção Primária à Saúde — para demarcar clara-
no sentido de incorporação de aspectos positi- mente um campo e, ao mesmo tempo, uma
vos para o próprio ato clínico. relação dentro de um sistema—, tem como
elemento constitutivo básico a direta interli-
gação das queixas trazidas pelo paciente com
O LUGAR DO SUJEITO NA RMP suas condições de existência, seu sentir-se mal
com a vida. Em função desta característica, o
Para tentar responder a esta questão, parece- raciocínio anatomo-fisiopatológico resulta
-nos necessário avaliar distintamente dois ineficaz para satisfazer, qualitativamente, boa
campos específicos da prática médica: o hospi- parte da demanda. Em outras palavras, o racio-
talar e o extra-hospitalar. Esta distinção e cínio anatomo-clínico é freqüentemente insufi-
suas diferentes repercussões sobre a RMP ciente para dar conta do sofrimento apresentado
foram levantadas por Balint (Birman, 1980), ao médico, cujas causalidades predominantes,
que definia estes campos como medicina hospi- na maioria das vezes, encontram-se em outros
talar, ou científica, e medicina extra-hospitalar, campos da vida, isto é, nos campos social,
a qual denominou, de forma interrogada, de emocional, ambiental, etc. O termo predomi-
prática médica. Ora, a partir dos estudos de nante traduz um conceito empírico que julga-
Canguilhem (1990), se o ato clínico terapêutico mos clinicamente necessário dentro do campo

24 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993


Relação Médico-Paciente

epistemológico que estamos propondo. Isto é, os quais não há possibilidade de desenvolvi-


pretendemos, com isto, não segmentar pacientes mento de um diagnóstico e de uma ação tera-
em fisiopatológicos, psicológicos, epidemiológi- pêutica consistentes. Em outras palavras, é a
co-programáticos, sociais, etc., nem definir uma presença subjetiva, neste campo de atuação, que
causalidade “essencial” psicológica das relações, fornece as condições de possibilidade de desen-
em cada queixa ambulatorial, como defende volvimento de uma ação médica tecnicamente
Balint (1984), mas exatamente evidenciar a eficaz, e é a partir desta condição que uma
característica de interligação e pluralidade entre RMP mais humanizada poderá ocorrer.
os vários campos da existência humana e, Por outro lado, esta interação de conhecimen-
portanto, do adoecimento, evidenciada de modo tos pode gerar, em conseqüência, um processo
claro e eventualmente explícito na prática de contra-hegemonia, na medida em que define
extra-hospitalar. Disto conclui-se a necessidade as condições de vida enquanto um campo
de abordagens diagnósticas e terapêuticas mais positivo para a anamnese e, ao mesmo tempo,
abrangentes que a fisiopatologia para fazer face que confere um limite à atuação do médico.
a estas solicitações. Isto é, o clínico é instado, através da aquisição
Não é à toa que a prática clínica extra-hospi- de um instrumental mais amplo e mais crítico,
talar goza de tão má reputação entre os médi- a adquirir consciência de seus limites, responsa-
cos, na medida em que, na verdade, estes se bilidades, bem como da realidade das pessoas
vêem desguarnecidos de instrumentos teóricos que atende; e o paciente, de seus processos
capazes de ajudá-los a dar conta de boa parte mórbidos, de seus determinantes e de sua
da demanda que têm a atender. O resultado responsabilidade na modificação destes. Do
desta situação normalmente é traduzido em ponto de vista do médico, este limite é forneci-
receitas inócuas — verdadeiros efeitos-placebo do tanto pela sua incompetência objetiva para
—, cronificação de doentes, pedidos de exame solucionar questões que pôde, eventualmente,
desnecessários; em uma palavra, medicalização. ajudar a visualizar, como, por exemplo, a
Portanto, para realizar um atendimento médico necessidade de mudança de um emprego insalu-
tecnicamente consistente no campo extra-hospi- bre, melhoria nos rendimentos, as condições de
talar, torna-se necessário ampliar o campo de habitação, etc., como pela constatação de um
percepção clínica, de modo a buscar em outras limite dado, entre outros motivos, pelo seu
áreas do conhecimento humano e científico as (des)conhecimento objetivo para o aprofunda-
análises e respostas mais adequadas às queixas e mento de aspectos específicos implicados na
sintomas, sob o risco de se desenvolver uma consulta, levando-o a recorrer a profissionais
atuação profissional superficial, ineficiente e de especializados em outras áreas, como psicólo-
baixa resolutividade, dominada pela monotonia gos, internistas, assistentes sociais, etc. Com
e repetitividade oriundas da pobreza fisiopatoló- isto, queremos realçar, parafraseando Birman
gica dos casos e da estreiteza do olhar médico. (1980), a incompetência da medicina para a
Isto levanta, obviamente, a questão da necessi- totalidade da existência humana.
dade de uma formação médica específica para Como exemplo, este tipo de abordagem
este campo de atuação profissional. permite tornar consciente o fato de, na atividade
Ocorre que, para utilizar as palavras de extra-hospitalar, o médico raramente ser direta-
Almeida (1988), este campo clínico ampliado mente responsável pelo tratamento do paciente,
cria, como conseqüência, a ampliação também cabendo a este último a decisão real e final
da presença subjetiva do paciente na consulta, sobre o procedimento terapêutico. Isto acarreta,
enquanto portador de um conhecimento essen- certamente, um lugar de poder diferenciado do
cial para a aplicação destes instrumentais. Desta usuário em relação ao paciente hospitalar, bem
forma, para ser eficaz, do ponto de vista clíni- como um aspecto favorecedor de sua conscien-
co, a prática médica extra-hospitalar necessita, tização e autonomia. Ou, como refere Rifkin
obrigatoriamente, da interação entre dois conhe- (1986) em um contexto mais geral, comunitário,
cimentos positivos: o conhecimento teórico do aponta que “os profissionais médicos não
médico sobre os processos de adoecimento e o podem ditar nem controlar o envolvimento das
conhecimento do paciente sobre sua vida, sem pessoas, mas apenas servir como recursos para

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993 25


Fernandes, J. C. L.

suas escolhas”. Incluimos propositalmente esta tanto a nível da quantidade dos conhecimentos
última citação para apontar um campo bastante específicos que exigem quanto a nível do tipo
interessante para futuras investigações, que é a de “olhar” que demandam do profissional,
relação da participação (ou envolvimento, como muitas vezes necessariamente excludente em
prefere Rifkin) comunitária nos trabalhos de relação a outros enfoques.
saúde com a forma como ocorre a participação A partir destas considerações, acreditamos
do paciente na consulta clínica. que a condição para a existência do sujeito no
A atividade médica hospitalar, ao contrário campo hospitalar será dada, fundamentalmente,
da anterior, caracteriza-se por uma importância pela atuação da equipe multiprofissional, que,
relativamente maior da anatomo-fisio-patologia, através de suas variadas abordagens, poderá
na medida em que o paciente internado apresen- ampliar o espaço subjetivo do indivíduo porta-
ta, em princípio, um quadro de maior complexi- dor da lesão, contribuindo para a sua humani-
dade neste campo. Ele necessita de especialis- zação. Quando possível, a visita do médico
tas que possuam a habilidade necessária para generalista (extra-hospitalar) ao paciente inter-
olhar suas lesões em profundidade e medicali- nado e sua atuação junto à equipe hospitalar
zá-las adequadamente. Como descreve Foucault também poderão contribuir para a discussão e
(1987), o hospital moderno se estruturou em compreensão dos aspectos histórico-existenciais
função da racionalidade anatomo-clínica, e é deste paciente. Caberá, neste sentido, ao médico
este o conhecimento básico demandado a seus do hospital reconhecer a estreiteza (necessária)
profissionais. O exemplo máximo desta realida- de sua abordagem e aceitar seu papel (ou ser
de é o centro cirúrgico, ou o Centro de Trata- pressionado a isto) como membro de uma
mento Intensivo (CTI), onde a subjetividade do equipe que questionará, eventualmente, seu
doente jaz sob anestesia, ou perdida entre tubos. autoritarismo ou sua conduta, e (de)limitará seu
Neste caso, falar em relação médico-paciente campo de atuação sobre o paciente e sobre o
próprio espaço hospitalar.
significa pouco mais que um exercício metafísi-
co, já que a história de vida e a subjetividade
do paciente pouco acrescentam ao médico que CONCLUSÃO
o trata. A este pede-se que seja hábil e compe-
tente, dentro de sua área de conhecimento, O objetivo destas reflexões foi o de contribuir
relativizando-se a importância de suas habilida- para a discussão da RMP, relacionando-a às
des no trato humano. Com isto, queremos dizer racionalidades presentes na prática clínica.
que, embora seja preferível, obviamente, que o Pretendemos, também, de forma indireta, apon-
cirurgião, internista ou especialista seja empáti- tar a importância desta discussão em relação às
co e atencioso, esta característica não está políticas de organização do Sistema de Saúde:
relacionada diretamente à demanda clínica pouco adianta o zeloso diretor de uma unidade
efetivamente em questão. Por outro lado, exigir extra hospitalar acorrentar a cadeira do paciente
que estes profissionais tenham um instrumental à mesa do médico. Mesmo que aquele se sente,
amplo, estudem ciências humanas, etc., não a consulta durará 5 minutos, tempo mais que
passa muito de um apelo idealista pouco referi- suficiente para o médico exercitar o conheci-
do aos interesses, necessidades e possibilidades mento que tem para esta circunstância, para a
concretas destes profisionais. Neste sentido, nos qual ele não foi preparado.
opomos às afirmações de Campos (1991), que Este é, obviamente, apenas um dos aspectos
defende que “o saber cirúrgico deve pressupor da questão da qualidade do atendimento, mas
o clínico, e este, noções sobre saúde mental, certamente é um deles. De qualquer modo, para
determinação do processo-saúde-doença”, que o debate da RMP ultrapasse os limites do
incluindo aí também a necessidade do saber idealismo, deve-se situar os campos de prática
epidemiológico. Este tipo de apelo traduz uma médica, as diferentes racionalidades envolvidas,
concepção onipotente e idealista da medicina, e, a partir disto, definir condições que favore-
bem como uma falta de percepção das limi- çam o surgimento de uma relação entre sujeitos
tações impostas pelas especialidades médicas, e, portanto, entre seres humanos.

26 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993


Relação Médico-Paciente

AGRADECIMENTOS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

O autor agradece aos Drs. André Rangel Rios ALMEIDA, E. L. V., 1988. Medicina Hospitalar —
e Maria Teresa Pereira pelas críticas e su- Medicina Extra-hospitalar: Duas Medicinas?
gestões ao texto. Tese de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de
Medicina Social, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
BALINT, M., 1984. O Médico, seu Paciente e a
Doença. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu.
RESUMO
BIRMAN, J., 1980. Enfermidade e Loucura. Rio de
Janeiro: Campus.
FERNANDES, J. C. L. A Quem Interessa a BOLTANSKI, L., 1989. As Classes Sociais e o
Relação Médico-Paciente ? Cad. Saúde Corpo. Rio de Janeiro: Graal.
Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, CAMPOS, G. W. S., 1991. A Saúde Pública e a
1993. Defesa da Vida. São Paulo: Hucitec.
A relação médico-paciente é parte integrante CANGUILHEM, G. 1990. O Normal e o Patológico.
do cotidiano de milhares de profissionais. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Para evitar uma abordagem idealista ou CLAVREUL, J., 1983. A Ordem Médica. São Paulo:
meramente afetiva desta questão, é necessário Brasiliense.
FOUCAULT, M., 1987. O Nascimento da Clínica.
investigar como ela está relacionada ao
Rio de Janeiro: Forense Universitária.
conhecimento médico e à relação mais geral
GRAMSCI, A., 1968. Os Intelectuais e a Organi-
entre medicina e sociedade. Na verdade, longe zação da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização
de ser aleatória, esta relação, da forma como Brasileira.
foi estabelecida, pode ser vista como um LUZ, M. T., 1986. As Instituições Médicas no
instrumento de difusão e manutenção do Brasil. Rio de Janeiro: Graal.
poder do Estado e da instituição médica sobre RIFKIN, S. B. & WALT, G., 1986. Why health
a sociedade. improves: defining the issues concerning “com-
Para modificar esta prática, o autor propõe prehensive primary health care” and “selective
duas abordagens, relativas a campos distintos primary health care”. Social Science and Medi-
da prática médica: os campos hospitalar e cine, 23: 559-566.
extra-hospitalar. Na área extra-hospitalar, a
humanização da prática médica dependeria,
basicamente, de uma formação profissional
abrangente, de modo a adaptar o médico às
demandas inerentes a esta área, onde o
raciocínio fisio-patológico mostra-se
freqüentemente limitado. No campo
hospitalar, a humanização do ato médico
dependeria mais diretamente da atuação
integrada de uma equipe multi-profissional.
Palavras-Chave: Relação Médico-Paciente;
Atenção Primária à Saúde; Equipe
Multiprofissional de Saúde

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 21-27, jan/mar, 1993 27

Você também pode gostar