Você está na página 1de 119

1

® Lu Mounier, 2007
Estudante na área de Comunicação Social, nasceu e foi criado em São Paulo. É o autor de
@mor.com.br; A marca de batom; Quase Levy um fora; Um estranho dentro de mim;
Prazer em conhecer; Eles perguntam, ele responde.
Começou a escrever livros aos seus 17 anos, trazendo como temas centrais romances,
transgressões culturais, envolvendo também os acontecimentos mundiais e problemas atuais
que o país enfrenta. Explicando das formas mais simples que todo ser humano possui sua
identidade própria, vontades e sentimentos que os diferenciam do perfil ideal criado pela
sociedade. Sendo visados como pecadores, marginais, acabam sendo vítimas de
preconceitos, discriminações, injustamente, quando na verdade eles apenas são diferentes.

2
“Pena que os Emos não sejam nada mais além
de jovens inofensivos, buscando apenas amor e compreensão.”

3
Introdução.........................................................................................................................................06
Capítulo 1
O trote.................................................................................................................................................07
Capítulo 2
Mudando de sala................................................................................................................................14
Capítulo 3
O primeiro beijo.................................................................................................................................23
Capítulo 4
O almoço na casa do Cauê.................................................................................................................33
Capítulo 5
Emílio morde Jéssica..........................................................................................................................37
Capítulo 6
O problema de Soraia.........................................................................................................................44
Capítulo 7
Dividindo os grupos...........................................................................................................................48
Capítulo 8
A primeira balada a gente nunca esquece..........................................................................................57
Capítulo 9
Uma noite de sonhos..........................................................................................................................61
Capítulo 10
Um passeio de domingo......................................................................................................................66
Capítulo 11
O trabalho na casa da Jéssica............................................................................................................70
Capítulo 12
Uma brincadeira de mal gosto...........................................................................................................75
Capítulo 13
Que a justiça seja feita.......................................................................................................................79
Capítulo 14
A decepção..........................................................................................................................................86
Capítulo 15
Descobrindo a verdade.......................................................................................................................91
Capítulo 16
O sequestro.........................................................................................................................................96
Capítulo 17
A revelação de um sentimento..........................................................................................................100
Capítulo 18
O grande pesadelo............................................................................................................................106
Capítulo 19
Um sofrimento sem fim.....................................................................................................................108
Capítulo 20

4
Meu mundo vazio..............................................................................................................................112
Capítulo 21
Pra sempre te amarei........................................................................................................................115
Comentário do autor.......................................................................................................................117
Informações Bibliográficas............................................................................................................118

5
Após um conturbado período escolar, Rustom inicia sua vida acadêmica, e logo no
primeiro dia de aula já começou a se meter em confusão. Depois de presenciar um ato covarde
provocado por veteranos contra um calouro, Rustom decide ajudar o garoto, a partir dai surge uma
grande amizade entre eles.
O contraste entre um garoto Emo e um deficiente visual tornam-os cada vez mais
próximos, até se descobrirem apaixonados. Juntos, Cauê e Rustom se unem para lutar contra o
preconceito que ambos sofrem dos próprios colegas na faculdade.
Essa história traz discussões de assuntos atuais, como a violência provocada por
jovens da classe média brasileira, obesidade e transtorno do comer compulsivo, intolerância contra
diferenças, a definição de Emo, e também o acidente aéreo do dia 17 de julho de 2007.

6
A char que a beleza das coisas está só onde os olhos podem enxergar é pura
ignorância. Existem pessoas que possuem o incrível poder de surgir e mudar
completamente nossas vidas, e sentir isso na pele como eu senti, foi a melhor coisa
que já me aconteceu.
Cresci em uma família típica de classe média, filho único, e embora nunca tenha
faltado-me nada material, jamais recebi carinho de pai, apenas o desprezo. Por diversas vezes eu
chorava sozinho, tentando entender o motivo de todo aquele descaso, e pedindo a Deus um novo
sentido para minha vida.
Foi em uma manhã de fevereiro que tudo começou. O tempo la fora estava fechado.
Acordei cedo para ir à faculdade, seria meu primeiro dia de aula, o início de um novo ciclo em
minha vida. O relógio da sala marcava 06h32 da manhã. Olhei pela janela do meu quarto e o tempo
ameaçava chover, cheiro de grama molhada.
Vestia uma jaqueta preta quando minha mãe entrou em meu quarto dizendo:
-Rustom...
-Oi, mãe!
-Bom dia!... Deixei a chave do carro sobre a mesinha do telefone.
-Ah sim, obrigado!
-Pegou o iogurte que eu guardei para você na geladeira?
Arrumando meu cabelo em frente ao espelho eu disse:
-Mãe, eu não sou mais criança pra você ficar me tratando assim...
-Pra mim você será sempre meu bebê.
-Ta bom... Vou indo...
-Rustom...
-Oi?
-Por favor, não arrume confusão dessa vez...
-Humpft... Eu não procuro confusão, mãe... Apenas me defendo.
Depois de me dar um abraço ela falou:
-Boa aula!
-Obrigado!
Sempre que eu precisava, minha mãe emprestava-me seu carro, para que eu não
sofresse no transporte caótico de São Paulo. Naquela manhã o trânsito estava bom, pois peguei o
contra fluxo da Marginal. Ao chegar perto da faculdade, notei a dificuldade que seria estacionar nas
ruas próximas, pois estava repleta de carros.
Em frente a entrada principal havia muitos veteranos aguardando os calouros, para
passar o tão conhecido Trote. Passei por eles sem ser notado, subindo direto para a sala de aula.
Todas as informações de localização eu já havia recebido da faculdade por e-mail, sendo assim, não
precisei pesquisar naquelas listas coladas nas paredes da secretaria.
Ao entrar à sala, avistei a terceira carteira do canto próximo à porta, e decidi que era
ali onde eu ia me sentar durante as aulas. O ambiente não era muito grande, mas estava lotado.
Encostei a cabeça na parede e olhava em direção à porta, quando avistei o professor chegar.
-Bom dia, classe!
-Bom dia!

7
Colocando sua pasta sobre à mesa ele se apresentou:
-Meu nome é Ricardo, sou um dos professores do curso de Direito. Darei aula para a turma de
vocês durante esse semestre.
O professor Ricardo parecia ser bem tranquilo. Seu jeito calmo de falar, misturado a
espontaneidade, mostrava ter um espírito jovem, apesar de seus cabelos grisalhos. Após uma breve
apresentação, a aula começou pra valer, com matéria na lousa e até marcando datas para entrega de
trabalhos.
Pouco antes do intervalo, percebi que os veteranos estavam sondando nossa sala para
pegar os novatos e pôr em prática suas maldades. Antes que eles me surpreendessem, deixei a sala
como se fosse ao banheiro, esquivando-me pelos cantos para não ser visto. Desci pela escada
rolante onde não havia ninguém, em seguida caminhei até a lanchonete e comprei um sanduíche que
eles chamavam de “natural”.
Eu estava com muita fome, e não me faria bem ingerir frituras ou coisas muito
pesadas àquela hora da manhã. Enquanto comia, caminhava pelo enorme jardim entre os prédios do
campus. Sentei-me próximo à uma árvore para admirar a paisagem, quando ouvi um latido de
cachorro. No início estranhei, pois não é comum ver um animal circulando locais fechados onde
transitam muitas pessoas. Tudo bem que poderia ser do caseiro ou apoio de algum dos seguranças, e
mesmo assim não deveria ficar exposto próximo aos alunos.
Pela altura do latido ele não parecia estar muito longe. Deixando a curiosidade falar
mais alto, comecei a procurar pelo animal em meio ao arvoredo. O barulho das folhas secas sendo
pisadas o fizeram latir ainda mais, e quando o encontrei, percebi que agonizava parecendo pedir
socorro. O animal era muito bonito, bem cuidado, da raça labrador. Apontando para a entrada do
prédio de Educação Física ele tentava escapar da corda que o prendia.
-O que você tem?... Calma, cachorrinho... O que tem lá dentro, hein?
Preocupado, caminhei em direção à porta de vidro que dava acesso à piscina.
Empurrei-a lentamente para que não fizesse barulho e chamasse atenção de alguém que lá pudesse
estar, além do cachorro. O ambiente era enorme, bem equipado e moderno. Haviam duas piscinas,
uma delas era semi-olímpica, com bóias coloridas formando fileiras.
Não havia ninguém no local, apenas eu que por curiosidade caminhava pelo deck,
tomando cuidado para não cair dentro de uma das piscinas, pois as luzes do ambiente estavam
desligadas pela não utilização do espaço naquele momento. O silêncio logo foi quebrado pelo soar
de gargalhadas que vinham do vestiário.
-Hahaha... Bem vindo!... Uhuuu...
Ao perceber que vinha alguém, escondi-me atrás de uma pilastra para não ser visto.
Embora o local estivesse um pouco escuro, a luz que transpassava pelas portas de vidro permitiu-me
ver quatro garotos caminharem em direção à piscina, e um deles dizendo:
-Aonde vocês estão me levando?
Enquanto o grupo gargalhava, outro respondeu:
-Agora você virou "bicho", cara... Precisa ser batizado...
Um dos meninos parecia não pertencer ao grupo, o que logo me fez sacar que aquilo
se tratava de um “trote” de mau gosto. Como se fosse uma bola, os garotos o empurravam de um
lado para o outro, enquanto ele se debatia sem entender o que acontecia.
-Por favor, parem com isso.
-Bem vindo à universidade, mano...
Rolar na lama, beber até não aguentar mais, pedir dinheiro nos faróis, tomar banho
de óleo queimado, comemorações como essas não é o que se esperam aqueles que acabam de entrar
para a faculdade. Além do desgaste de ter enfrentado o vestibular, cobranças da sociedade e dos
país, na maioria das vezes são obrigados a passar por "testes" como esses, denominados Trotes e
praticado por alunos veteranos.
Por muito tempo os novatos tiveram que aceitar vários tipos de humilhações, porém,
nos últimos anos o registro de denúncias contra abusos na prática dos trotes acumularam-se, e com
isso despertou reação em algumas instituições, sendo proibido a prática por algumas dentro de suas

8
dependências. Consequentemente, várias universidades criaram punições e restrições para a prática
de trotes que não fosse acolhedor, solidário.
Espiando por trás da pilastra, senti pena do pobre garoto. Aqueles caras perversos
poderiam machucá-lo, e não demorou muito para que algo ruim acontecesse. Enquanto um pegou
pelos seus braços, outros dois seguraram suas pernas e o balançaram, tomando impulso e o atirando
na piscina semi-olímpica logo em seguida.
Enquanto caiam na gargalhada, o rapaz agonizava no interior da piscina, pedindo por
socorro. O que estavam fazendo com ele ia além de um trote, mas sim uma perversidade. Próximo a
mim havia um cesto de lixo feito de lata. Caminhei até ele e comecei a balançá-lo, fazendo um forte
barulho para tentar assustar os moleques.
Confesso que minha idéia foi bem primitiva, além idiota, mas acabou dando certo, e
isso é o que importa. Com medo de serem pegos por alguém, deixaram o garoto dentro da piscina e
saíram correndo dizendo:
-Ih... Sujô, sujô...
-Corre, caralho... Corre...
Esperei que eles saíssem e fui até a piscina onde haviam jogado o rapaz. Quase sem
forças ele ainda tentava nadar, batendo braços e pernas, intercalando com gritos de ajuda e tosse.
Procurei algo para que ele pudesse agarrar e assim poder puxá-lo, mas não encontrei. Vendo que o
garoto não aguentaria por muito tempo, tirei minha roupa e pulei na piscina apenas de cueca.
A água estava muito fria, chegando a doer os ossos, mesmo assim nadei em sua
direção. Ao me aproximar, passei meu braço esquerdo por baixo de sua axila esquerda e nadei em
direção à margem, com suas costas apoiada sobre meu peito.
Aquela piscina era enorme, deveria ter uns três metros de profundidade e se ele
permanecesse por mais um tempo boiando sem ajuda, com certeza não teria resistido e certamente
se afogaria.
Quando nos aproximamos à margem, falei:
-Segure na beirada do deck...
-Por favor, não me machuque...
-Fique calmo, eu não vou machucá-lo.
Tateando à borda, ele procurava onde se apoiar. Para ajudá-lo, coloquei suas mãos na
beira da piscina, enquanto isso sai da água para puxá-lo. O vento frio que entrava por um dos vitrais
abertos fazia-me tremer de bater os dentes.
Já fora da água, estendi minha mão a ele dizendo:
-Segure minha mão...
Esperei que ele a pegasse, mas ao invés disso o garoto estendeu a sua esperando que
eu o fizesse. Percebi que ele parecia não estar bem, e isso me preocupou ainda mais. Peguei pelo
seu braço e o puxei para fora da água, de uma vez só.
Seu corpo todo tremia muito de frio. O deitei ao lado da piscina, enquanto isso vesti
minha roupa para proteger-me do vento gelado. Seu corpo era franzino, aparência frágil. Com medo
que algo pior acontecesse com ele, o peguei no colo e o levei para a sauna que ficava ao lado dos
vestiários, pois achei que o garoto poderia entrar em estado de hipotermia.
Tranquei à porta, para caso os garotos voltassem, não nos pegassem novamente. O
tempo inteiro ele chamava pelo nome de alguém, talvez seu pai, pois o nome era masculino. Liguei
o aquecedor e tirei suas roupas, o deixando só de cueca. Após torce-las, estendi na bancada para que
pudessem secar.
Permaneci abraçado ao seu corpo por quase uma hora, até ter certeza de que a sua
temperatura corporal já havia se estabilizado. Acabamos cochilando um pouco, mas logo acordei
quando ele começou a se mexer.
O ajudando a levantar, perguntei:
-Você está bem?
-Humpft... Estou... Cadê o Emílio?
-Quem é Emílio?

9
-Meu cachorro.
-Por acaso seria um labrador?
-Isso!
-Ah... Ele está la fora... Não se preocupe, pois ele está bem.
Apertando forte minha mão e demonstrando estar com muito medo ele pediu:
-Por favor, não deixe que me machuquem...
-Não se preocupe... Ninguém fará nada contra você enquanto eu estiver aqui.
-Você promete?
-Prometo... Confie em mim.
-Obrigado!
-Mas será necessário denunciar as pessoas que fizeram isso com você... Saberia reconhecê-los se
os vissem entre os alunos?
Após um longo suspiro ele respondeu:
-Eu não posso enxergar, sou deficiente visual...
Tudo bem que eu percebi nele algo diferente, mas em momento nenhum eu havia
reparado que fosse cego, pois seus olhos eram praticamente perfeitos. A partir daí eu entendi o por
quê dele ter estendido seu braço ao invés de pegar em minha mão, o latido desesperado de seu
cachorro.
Para que trotes violentos fossem repreendidos e proibidos literalmente, foi necessário
acontecer uma tragédia, e no ano de 1999 o Brasil tomou ciência do caso do calouro Edson Hsueh
da Faculdade de Medicina da USP, encontrado morto dentro da piscina da associação atlética dos
alunos, um dia depois de um churrasco oferecido pelos veteranos no mesmo local.
Fiquei sem saber o que pensar, vendo aquele garoto na minha frente, chorando e
tremendo de frio e medo. O que aconteceu com ele foi além de um trote, pode ser classificado como
uma tentativa de homicídio, pois eles tinham a ciência da deficiência do garoto, e fizeram aquilo por
maldade, de caso pensado, desde o local onde saberiam que não seriam vistos, até amarrando seu
animal em uma árvore para não serem seguidos ou descobertos.
Sem jeito, falei:
-Desculpa, eu não havia notado que você não enxerga...
-Não tem problema.
-Humpft... Acho melhor irmos embora enquanto estão todos nas salas assistindo à aula.
-Eu estou com medo...
Tocando em sua face, falei:
-Ei... Não precisa ter medo, eu estou aqui, não deixarei ninguém te fazer mal.
-Obrigado!
Depois de ajudá-lo a se vestir, abrindo à porta da sauna para irmos embora,
perguntei:
-Você mora em que bairro?
Segurando forte em meu braço ele respondeu:
-Sacomã...
-Tudo bem, então vamos buscar o seu cachorro que eu vou levar vocês pra casa.
-Nos levar?
-É... Não vou te deixar ir sozinho para que você corra o risco novamente de ser pego por algum
outro marginal... Estou com o carro da minha mãe...
-Não precisa, eu me viro com o Emílio...
-Não ficarei em paz sabendo que você está correndo risco sendo que eu poderia ter evitado.
Após um suspiro, ele questionou:
-Desculpa, mas por que você está me ajudando?
-Porque eu também passei por muitas injustiças e preconceitos nessa vida... Agora vamos pegar
seu cachorro e sair daqui logo...
-Eu estou com medo...
-Calma... Não tem ninguém por perto, devem estar todos na sala.

10
-Humpft... Ta bem.
Voltamos ao bosque e pegamos seu cachorro, em seguida fomos para o carro que
estava estacionado próximo dali. Traumatizado, ele não largava meu braço. Caminhamos
apressados, nos esquivando para não sermos vistos.
Deixamos o campus pela saída lateral e caminhamos pelas ruas que estavam vazias,
pois o segundo período de aula ainda não havia se acabado.
Enquanto seu cachorro o guiava, perguntei:
-Para todo lugar que você vai o Emílio te acompanha?
-Sim... Ele que me livra dos obstáculos... Às vezes eu uso a vareta, mas na maioria das vezes é com
o Emílio que me locomovo pela cidade.
-Podemos dizer que ele é seu melhor amigo então...
-O Emílio é praticamente meus olhos.
Abri a porta dianteira e o ajudei a entrar no carro. Depois de prender o cinto de
segurança nele e acomodar o Emílio no banco traseiro, liguei o carro e antes de dar partida percebi
que ele ainda tremia. Travei as portas, tirei o cinto de segurança e falei:
-Você ainda está com frio?
-Muito.
Toquei em seu peito e senti sua roupa ainda úmida. Liguei o ar quente do carro e
disse a ele:
-É melhor você tirar essa camisa, se não vai ficar doente... Vou te emprestar minha blusa que está
quentinha...
-Obrigado!
Tirei minha jaqueta, e o após tirar sua blusa, o ajudei a vesti-la, pois ele acabou se
atrapalhando com uma das mangas.
-Deixa que eu te ajudo...
-Tudo bem.
-Opa... Hahaha, agora foi.
-Obrigado...
-Rustom.
-Obrigado, Rustom!
-De nada.
-Eu me chamo Cauê.
-Prazer, Cauê!
O Cauê não aparentava dispor de muitos recursos financeiros, mas sua aparência era
bem cuidada, e deveria ter uma mãe muito cautelosa. Enquanto eu dirigia, conversávamos:
-Você mora com quem, Cauê?
-Só eu e minha mãe.
Nesse momento o Emílio latiu:
-Ah!... E o Emílio também... E você?
-Em casa moramos eu, minha mãe e meu pai.
-Que legal!
-É... Nem tanto assim.
-Por quê?
-Quando a gente convive com seres humanos, é difícil agradar.
-Eu posso imaginar... Você não se dá bem com eles?
-Com minha mãe sim.
-E com seu pai?
-Humpft... Não muito.
-Você deve ser muito rebelde então... Hahaha...
-Antes fosse... Bem, acho que chegamos no endereço que você me passou. Qual é o número?
-32.
-Achei!

11
Paramos em frente sua casa. O sol começava a esquentar, mas o vento frio ainda
soprava. Abri a porta do carro e o ajudei a descer, auxiliando também o Emílio. Dando-me um forte
abraço ele falou:
-Muito obrigado, Rustom!
-Não precisa agradecer...
-Entre um pouco, deixe eu te apresentar minha mãe...
-Gostaria muito, mas não vou poder... Minha mãe vai precisar do carro, não posso demorar.
-Humpft... Tudo bem.
-Foi um prazer conhecê-lo.
Voltava para o carro quando ele pediu minha atenção:
-Rustom?
-Eu.
-A gente se fala outra vez?
-Claro!
Entrei no carro e segui para casa. Para um primeiro dia de aula, começou um pouco
agitado demais, mas se fosse muito parado também não haveria graça. Estacionei em frente ao
portão, onde avistei meu primo brincando na garagem.
-Tom!
-Oi Felipe!
Depois de lhe dar um abraço, entrei pela porta da cozinha, onde minha mãe e a tia
Márcia conversavam e tomavam chá com bolo:
-Tom!
-Oi tia, tudo bem?
-Tudo... Sua mãe estava me contando que hoje foi seu primeiro dia de aula...
-É...
-E como foi?
-Mais agitado do que eu esperava...
-Filho, cadê sua jaqueta?
-É uma longa história, depois te conto.
Partindo um pedaço de bolo, comentei:
-Ah... Hoje eu conheci um cachorro que faz faculdade.
-Sério?
-Sim... É um labrador de um deficiente visual...
Abraçando minha tia, meu primo perguntou:
-Mãe... No meu aniversário você me dá um cachorro que faz faculdade?
Todos rimos.
-Vou pensar no seu caso.
-Bom, vou tomar banho e dormir um pouco.
-Rustom, não vai almoçar primeiro? Já está pronto...
-Não estou com fome, mãe.
Subi para o meu quarto e comecei a ouvir um pouco de música. Deitado em minha
cama eu olhava através da janela, com o pensamento perdido entre as nuvens que passam em meio
ao céu azul que se formava. Assim adormeci.
Acordei com o aroma de café que vinha da cozinha. O sol já estava se pondo, e o
vento gelado que entrava pela janela me fez arrepiar. Entrei no banheiro e abri o chuveiro. Esperei
que a água esquentasse, enquanto isso escovava os dentes já despido.
Após um longo banho quente, desci até a cozinha, onde minha mãe e a tia Márcia
ainda conversavam sentadas à mesa:
-Tom... Não quer um pedaço de bolo, filho?
-Outro?
-Sim, comprei agora a pouco na padaria...
-Bolo de quê?

12
-Mármore.
-Hum... Adoro! Cadê o Felipe?
-Está dormindo no sofá da sala... Não vá acordá-lo.
-Ah... Tudo bem...
Cortei duas fatias de bolo, coloquei-as em um prato e voltei ao meu quarto. Deixei
tocando o CD do NX Zero bem baixinho, enquanto isso comia deitado sobre minha cama. Meu
quarto era o único lugar onde eu me sentia seguro, a vontade, mesmo tendo pouca privacidade, pois
meus pais entravam sem bater na maioria das vezes.
Antes que eu terminasse a primeira fatia o telefone tocou:
-Alô?
-Tom? É o Kico.
-Oi miguxo!
-O que você ta fazendo?
-Estou ouvindo um pouco de música e comendo um pedaço de bolo.
-Eu ainda to no trabalho... Tá um saco isso aqui.
-Por quê?
-Estou sozinho, não tem cliente...
-E você não entrou na internet?
-Sim, mas não tem ninguém online... Ai resolvi ligar pra você para conversar um pouco.
-É porque hoje começaram as aulas, ai o povo não fica mesmo.
-Ah é mesmo... E você foi pra aula?
-Sim.
-Gostou?
-Achei um pouco chato, mas minha tia disse que no começo é assim...
-Pois é, depois vai melhorando.
-Pelo menos fiz minha boa ação do dia.
-Como assim?
-Acredita que tentaram afogar um garoto na piscina da faculdade?
-Nossa! Mas conseguiram?
-Claro que não... Eu dei um jeito de impedir que matassem o garoto.
-Mas por que isso?
-Por maldade...
-Credo.
-Depois te conto como foi.
-Tudo bem.
-Domingo você vai encontrar o pessoal na Liberdade?
-Ainda não sei... Meu pai ta querendo viajar, mas se a gente não for eu te ligo pra combinarmos de
ir.
-Está bem.
-Bom, vou indo agora.
-Nos falamos depois.
-Sim.
-Até.
O Kico era meu melhor amigo, e apesar de saber da minha sexualidade, nunca me
tratou diferente do restante da turma. Nos conhecemos no tempo do colégio, e desde então não nos
separamos mais, sendo a única pessoa que eu poderia confiar e compartilhar meus segredos.
Após desligar o telefone fui ver um pouco de TV. Eu não estava me sentindo muito
bem, uma dor horrível de cabeça não me deixa fazer mais nada, e não tive outra opção a não ser
voltar a dormir.

13
Durante aquela noite tive um pesadelo horrível com o Cauê. Talvez fosse a
preocupação e ansiedade pelo que acontecera, porém, mesmo sendo um sonho deixou-me muito
angustiado. Ao acordar não conseguia me lembrar de nada. Olhei no relógio e faltavam dezessete
minutos para as seis.
Bocejando, desci até a cozinha. A cafeteira estava ligada. Logo apareceu meu pai,
que me cumprimentou com um “bom dia” seco e a cara fechada, típico mau humor ao acordar que
ele tinha como ninguém mais. O clima entre ele e minha mãe parecia não estar nada bem.
De óculos escuro e colocando os brincos, minha mãe apareceu à cozinha
exclamando:
-Bom dia!
-Bom dia, mãe!
-Rustom, vou precisar do carro hoje.
-Tudo bem, eu pego um ônibus.
-Não é necessário. Eu te deixo na faculdade e depois vou trabalhar.
-Ah... Tudo bem então.
Sem dizer nada, meu pai saiu batendo a porta da sala. Enquanto isso eu e minha mãe
tomávamos nosso café, calados. Achei estranho ela usar um óculos escuro dentro de casa, mas
também fiquei sem graça de perguntar.
Já no carro, o caminho todo ela foi calada, dando respostas fechadas ao que eu
perguntava. Às vezes eu percebia em minha mãe uns comportamentos estranhos, pensava até que
fosse coisas de mulher, e por isso evitava querer saber mais do que ela quisesse me contar.
Ao chegar na faculdade, nos despedimos com um beijo, em seguida ela foi trabalhar.
Eu sentia que alguma coisa havia acontecido, mesmo não me contando, eu a conhecia, e tinha
certeza que queria me contar, mas lhe faltava coragem.
Na hora do intervalo desci até a praça de alimentação para comprar um sanduíche de
pão sírio que eu adorava. Sobre os azulejos brancos das paredes havia um cartaz informando os
alunos sobre as novas carteirinhas da escola, próximo ao portão que dava acesso ao prédio de
Medicina. Ouvindo meu MP5 notei que as mesas estavam vazias, e ao aproximar-me mais avistei o
Cauê tomando seu suco de melão.
Comprei meu sanduíche, aproximei-me dele e tapei seu olho, de forma a brincar com
o Cauê. Ao tocar em minhas mãos ele deu um sorriso e exclamou em seguida:
-Rustom!
-Acertou! Posso me sentar aqui com você?
-Mas é claro... Queria muito te rever.
-Ah é?
-Sim... Para lhe agradecer por ontem.
-Eu também queria te ver.
-Sério?
-É... Para ter certeza que você está bem.
-Poderia estar melhor se as pessoas me entendessem.
-Por que está dizendo isso?
-Porque o pessoal da sala fica me caçoando...
-Caçoando por quê?
14
-Porque não enxergo.
-Humpft... Que idiotice...
-Fico muito triste...
-Essas pessoas não sabem reconhecer o verdadeiro valor das outras.
-Acho que vou desistir de fazer faculdade.
-Por causa disso?
-É...
-E vai entregar o ouro na mão do bandido?
-Como assim?
-Se você desistir, eles vão se sentir vitoriosos e você estará dando razão a eles...
-Mas eu fico muito chateado.
-Pois não fique. Mostre a eles que você é mais forte do que aquelas piadas destrutivas.
-Humpft... Você não sabe o quanto suas palavras me fazem bem.
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Eu também me senti super bem na sua companhia.
-Sério?
-Sim...
-Nossa!... Ninguém nunca disse isso para mim antes.
-Nunca?
-Nunca.
-Então agora eu disse. Pronto.
Sem que eu esperasse ele começou a chorar.
-Ei... Por que você está chorando?
-Porque fiquei emocionado.
-Nossa... Eu que sou o Emo e você quem chora.
-Emo?
-É...
-O que é isso?
-Bem... Emo é um estilo de música mais sentimental dentro da categoria do Rock.
Emo é a abreviação da palavra inglesa Emotional, pertencentes a um gênero de
música denominado Emotionalcore, derivado do Hardcore. Originalmente o termo foi dado às
bandas do cenário Punk da cidade de Washington, que compunham num ritmo mais emotivo que o
habitual.
Hoje em dia, Emo tornou-se um rótulo para os adolescentes que usam roupas com
pelo menos dois números menores que seu biotipo, com franjas caídas sobre os olhos, mochilas
com bottons e chaveiros com bichos presos aos zíperes, munhequeiras, entre outros.
Esboçando um pequeno sorriso o Cauê exclamou:
-Que legal!
-Legal nada, se você soubesse o tanto de preconceito que já sofri e ainda sofro por isso.
-Não entendo...
-O quê?
-Se você é uma pessoa pelo amor, por que existem aquelas que não gostam?
Os Emos se autodefinem como sensíveis, carinhosos, calmos e que não gostam de
briga, querem apenas amar e serem amados. Por chorarem com frequência e pela forma com que se
tratam entre si acabam sendo mal compreendidos, recriminados, marginalizados, agredidos
verbalmente e fisicamente por outras tribos, ofendidos, vítimas de preconceito quase que constante.
Existem várias versões que tentam explicar a origem desse termo, mas a versão mais
aceita como sendo a real é a de que o nome foi criado por publicações alternativas, tal como o
fanzine Maximum RocknRoll e também a revista Thrasher, para falar sobre a nova geração de
bandas de hardcore emocional que mostrava no meio dos anos 80, derivadas de algumas bandas da
gravadora Dischord de Washington.

15
No Brasil, o estilo Emo começou a ganhar muita influência a partir de 2003,
começando por São Paulo e espalhando-se depois para todo o país, influenciando adolescentes não
apenas a um estilo musical, mas também pelo comportamento emotivo e tolerante de ser. Dentro da
cultura alternativa, quando alguém demonstra muita sensibilidade diz-se que é ou está tornando-se
Emo.
-Na verdade, a maioria daqueles que não gostam nem sabem o motivo, simplesmente não gostam
porque o colega disse que também não curtia. Não fazemos nada de mal a ninguém, apenas
acreditamos no amor.

"Esses dias na escola eu estava respondendo o caderno de perguntas da minha melhor amiga, e tinha
uma questão perguntando o que a pessoa achava dos Emos. Ela respondeu que Emo era uma
palhaçada e que eram gays. Fiquei muito chateada com ela, chegando a conclusão de que ela não
gosta de mim, não era minha amiga verdadeira, porque se fosse não iria estar falando isso dos Emos
e me apoiaria em qualquer mudança." (Srtá Nahty, 15 anos, São Paulo)

-Eu imagino, Rustom...


-Posso te contar um segredo?
-Claro!
-Eu já fui expulso de três colégios em um único ano.
-Nossa!... Pelo fato de ser Emo?
-Não, por envolvimento em brigas.
-Mas você não disse que é contra tudo isso?
-E sou, mas diferente da maioria dos Emos, não sei apanhar e ficar calado.
-Batiam muito em você?
-Tentavam, mas eu sei me defender muito bem, e também não sou de chorar por qualquer coisa.
-Entendo.
-Vamos subindo? O professor já deve estar na sala...
-Tudo bem.
Ao nos levantarmos, peguei em seu braço quando ele falou:
-Não...
-O que foi?
-Deixe que eu seguro em você.
-Ah!... Tudo bem...
-As pessoas têm mania de pegar pelo braço da gente e puxar de uma forma que machuca...
-Sério?
-Sim... Fora aquelas que gritam no nosso ouvido achando que além de cego, somos surdos.
-Que horror! Acontece muito isso?
-Sim, principalmente quando pedimos ajuda ou informação na rua...
Enquanto caminhávamos em direção ao elevador, notei que algo de estranho estava
acontecendo. As pessoas passavam por nós rindo, cochichando. O motivo eu descobri logo, assim
que percebi um papel colado às costas do Cauê onde estava escrito “me chute”.
Tratei de tirá-lo sem que ele percebesse, pois poderia magoá-lo ainda mais do que já
estava. Esse tipo de coisa deixa-me revoltado, pois enquanto somos punidos e obrigados a nos
esconder para demonstrar o amor, guerras acontecem diante aos nossos olhos em plena luz do dia.
Após acompanhá-lo até sua sala, voltei para a minha que ficava ao lado. O segundo
dia de aula até que foi melhor que o primeiro, pois a matéria era mais interessante e o professor,
jovem, bem mais comunicativo e espontâneo. Ele parecia ter “recarregado as baterias” , pois passou
tanta lição que meu braço já começava a doer.
Ao término da aula, juntei minhas coisas na mochila e parei em frente a sala do Cauê
para ver se ele já estava de saída, mas ao aproximar-me avistei o ambiente vazio, provavelmente já
haviam sido dispensados mais cedo. Desci pelo elevador de serviço, deixando o prédio da faculdade
16
pelo acesso da praça de alimentação
Seguia tranquilamente pela calçada em direção à estação de metrô, quando do outro
lado da rua avistei o Cauê, caminhando em passos curtos em direção ao ponto de táxi, com o auxilio
de sua vareta. Atravessei à rua e dirigia-me até ele quando dois rapazes o cercaram. Após tirarem a
vareta de sua mão, atiraram ao chão seus livros, e sem entender o que acontecia, o Cauê começou a
chorar, apreensivo.
-Por favor, não me machuquem...
-Olé... Olé...
-Pára, por favor, pára...
Corri até eles e arranquei a mochila do Cauê da mão de um dos caras.
-Tira a mão dele... Eu já chamei a polícia, você tá ferrado...
Apreensivos, os garotos saíram correndo sem olhar para trás. Caído ao chão, o Cauê
chorava com sua cabeça apoiada sobre seu braço esquerdo. Ver aquela cena partiu-me o coração.
Abaixei-me à sua frente, e acariciando seu cabelo falei:
-Ei... Calma, já passou...
Ao erguer sua cabeça, notei que o seio direito de sua face estava ferido, decorrente da
queda provocada por um empurrão de um dos garotos.
Peguei em seu braço e o ajudei a levantar. Entregando seus livros em sua mão falei:
-Não se preocupe, eles já foram.
Tremendo, ele disse com a voz embargada:
-Obrigado... É você, Rustom?
-Sim...
-Nossa!...
-O quê?
-Você está sempre me ajudando...
-Vai ver é coisa do destino.
-Você acredita em destino?
-Acredito que nós fazemos nosso destino... Para onde você estava indo??
-Para o ponto de táxi.
-Vamos de metrô...
-Estou com medo de andar de metrô.
-Por quê?
-Hoje pela manhã eu fui empurrado e acabei caindo...
-Nossa! Mas não se preocupe, eu estou aqui com você. Ninguém irá te empurrar.
-Você promete?
-Sim... Confia em mim?
-Humpft... Confio.
-Bem... Guarde esse dinheiro para tomar um sorvete, deixe que eu te acompanho...
-Só se você aceitar tomar esse sorvete comigo.
-Tenho outra opção?
-Não.
-Então ta, eu aceito.
-Oba!
-Agora deixa eu te ajudar...
Enquanto caminhávamos íamos conversando:
-Rustom...
-Pode me chamar de Tom.
-Tom?
-É...
-Tudo bem, Tom... Eu ainda não devolvi sua blusa ainda porque minha mãe lavou e não deu tempo
de secar, mas não se preocupe que logo ela estará de volta aos seus braços.
-Ah! Obrigado, mas não precisa de tanto...

17
-Minha mãe estranhou um pouco.
-O quê?
-Os desenhos dela...
-Você se refere aos rebites?
-O que é rebite?
-São aqueles ferrinhos que têm na manga.
-Ah!... Não, foi os botões... Tanto que ela duvidou quando eu disse que era de um menino, mas
depois que você me contou que é Emo eu to começando a entender.
-Entender o quê?
-Que todo Emo é gay.
-Isso não é verdade.
-Não?
-Não... Os Emos são sensíveis, gostam de amor e carinho, mas nem todos são gays. Têm aqueles
garotos que cumprimentam os amigos com um beijo na boca, mas isso não altera a sexualidade
deles, pois as meninas que os atraem...
-Nossa!... Pensei mal de você então.
-Por quê?
-Porque achei que você fosse gay.
-Mas eu sou gay.
-Oh!... Eu já não estou entendendo mais nada.
-Hahaha... Deixa pra lá...
-Então ta...
Mesmo não enxergando, o Cauê possuía uma percepção muito aguçada, conseguindo
identificar os sentimentos de alguém apenas por um gesto, voz, respiração, uma sensibilidade
inigualável que me deixava impressionado.
A aula estava um saco. O professor pouco falava, em compensação encheu a lousa de
textos, mal dando tempo de respirar enquanto escrevíamos. Quando deu a hora do intervalo, todos
respiraram aliviados, e com razão, pois meu braço já estava doendo.
Desci a escada em direção ao jardim, e logo ao pisar à grama avistei o Cauê sentado
em uma das mesas. Suspirei fundo. Caminhei em sua direção e antes que eu dissesse qualquer coisa
ele exclamou:
-Tom!
-Nossa!... Como você sabe que sou eu?
-Reconheci pelo seu perfume.
-E se fosse outra pessoa usando o mesmo perfume que eu?
-Sei reconhecer o seu perfume misturado ao cheiro de sua pele.
-Uau! Eu já ia te procurar...
-Ah sim, não esqueci de sua blusa. Minha mãe já lavou e...
-Não se preocupe. O motivo foi outro...
-Qual?
-Eu queria saber como você estava, apenas.
-Humpft... Eu estou bem.
-Que bom!... Seu rosto está bem melhor...
-Minha mãe colocou um pouco de gelo para diminuir o inchaço.
-E deu resultado.
-Acho que sim, pelo menos não está doendo tanto.
-Humpft... Como foi seu segundo dia de aula?
-Chato. Não gostei muito do pessoal da minha sala...
-Qual curso você está fazendo?
-Direito.
-Eu também!
-Nossa! Por isso sua sala é ao lado da minha.

18
-Que bacana!
Enquanto conversávamos, achando que eu não ia perceber, um garoto trocou
discretamente o tubo de ketchup pelo de pimenta. Sem perceber, o Cauê pegou o vidro de pimenta e
quase colocou em seu sanduíche, mas antes que isso acontecesse, eu o avisei:
-Não!
-O que foi?
-Um imbecil trocou por pimenta o ketchup...
-Humpft... Eles não cansam de me agredir...
-Agredir?
-É... Não só fisicamente como ontem, mas com piadas, ofensas...
-Que tipo de agressão mais você sofreu?
-Humpft... Deixe pra lá, não vale a pena falar disso.
-Não. As pessoas não podem abusar de você devido sua condição.
-Eu já estou acostumado...
-Mas você não deve aceitar tudo isso calado.
-E o que eu posso fazer?
-Cobre seus direitos.
-Eu tenho medo... As pessoas são más...
-Não precisa ter medo, agora eu estou aqui pra te ajudar.
-Mas você não está ao meu lado o tempo todo.
-Humpft... Não se preocupe. Hoje mesmo vou pedir para mudar de sala, assim ficarei mais próximo
de você.
-Tudo isso por mim?
-Não só por você, mas para acabar com um pouco das injustiças que somos vitimados no dia a dia.
-Ah!
-Estou indo até a secretaria.
-Tudo bem.
-Nos vemos depois?
-Claro!
Todo início de ano letivo é aquele tumulto. Problemas com os cartões RA, confusão
com boleto de matrícula, acumulam o trabalho da secretaria, e aqueles que precisam de uma simples
informação acabam prejudicados.
A fila na secretaria estava enorme. Peguei a senha de número 122 e fiquei
aguardando ser chamado.
-Bom dia!
-Bom dia!... Eu quero saber o procedimento para mudar de sala.
-Por qual motivo você quer mudar de sala?
-Não estou me adaptando nessa turma que estou.
-É que todo início de aula é assim, mas depois os alunos acostumam.
-Sim, os alunos sim, mas eu não sou os alunos, sou um aluno e sei o que eu quero. Por favor, faça
minha transferência para a turma ao lado.
-Olha, eu não sei se será possível...
-É possível sim. Por gentileza, me transfira.
-Humpft... Qual é o seu RA?
Depois de muito insistir, finalmente consegui a transferência para a turma do Cauê.
O que faltava era boa vontade daquela funcionária, pois a turma dele havia metade dos alunos que a
minha, sendo assim não haveria problema quanto a disponibilidade de vaga.
Alguns dias se passaram. Cheguei à faculdade ansioso, não vendo a hora de contar ao
Cauê a novidade. Peguei uma carona com minha mãe, como fazíamos sempre que ela iria precisar
do carro durante as tardes. Enquanto aguardava o elevador, avistei o Cauê entrar pelo acesso de
apoio, ao lado das catracas.
Aproximando-me dele exclamei:

19
-Que bom que te encontrei!
-Bom dia, Tom!
-Uau... Você está com um ar de felicidade...
-Sim, estou muito feliz...
-Posso saber o motivo?
Colocando o pé direito à frente ele disse sorrindo:
-Veja!... Ganhei da minha mãe.
-Que lindo tênis!
Ainda estava um pouco cedo para o início da aula, sendo assim, seguimos para o
jardim, e envolta do chafariz continuamos a conversar:
-Minha mãe é tão boa comigo...
-Eu percebo que você fica feliz com coisas bem simples.
-O valor das coisas está na satisfação que elas podem trazer...
-Ganhar um presente de quem a gente gosta não tem preço mesmo.
-Minha mãe falou que ele é vermelho.
-Sim, é muito bonito.
-Tom...
-Eu?
-Como é o vermelho?
-Bem... O vermelho é uma cor muito bonita, viva, chama atenção...
-É parecida com o verde?
-Hahaha... Não, o vermelho é uma cor muito mais quente, agressiva...
-Nossa!... Deve ser muito linda.
-Tenho uma novidade que vai te deixar ainda mais feliz.
-Qual?
-A partir de hoje eu começo a estudar na mesma sala que você.
-Sério?
-Sim.
-Que notícia maravilhosa!
-Agora eu vou estar do seu lado, ninguém mais te fará mal.
Demos um abraço e logo depois seguimos para a sala de aula. No início passei
desapercebido entre os alunos do primeiro A, mas nem precisei fazer nada para que fosse notado e
assim começassem as provocações.
Piadinhas rolavam a solta no decorrer da aula, porém, não afetaram-me nem um
pouco. Sentado à carteira ao meu lado o Cauê aproximou-se de mim sussurrando:
-Está vendo? É todo dia assim...
-É só fingir que não é com você.
-Às vezes é difícil...
-Você já denunciou à coordenação o ocorrido no primeiro dia de aula?
-Humpft... Não...
-Por quê?
Antes que ele respondesse o professor pediu atenção:
-Pessoal, silêncio... Prestem atenção aqui... Abram o livro na página 37 e observem o capítulo 12...
Durante o primeiro período de aula tivemos o esclarecimento de alguns capítulos do
livro e exercícios complementares. Pra mim foi fácil, pois a turma em que eu estava anteriormente
já havia feito aqueles exercícios, estando adiantados com relação a sala do Cauê.
No horário do intervalo segui até a coordenação. Sentada em uma mesa estava a
recepcionista, que mesmo notando minha presença, não parou de digitar no computador à sua
frente.
-Bom dia?
-Bom dia! Posso ajudar?
-Eu quero falar com o coordenador do curso de Direito.

20
-Ah!... Com a Gabriela... Bem, ela ainda não chegou...
-E que horas ela chega?
-Não sei se ela vem hoje...
-Como não? Então quem responde pelo curso nesse momento?
-Agora não tem ninguém...
Com uma pasta na mão e falando ao celular finalmente a Gabriela chegou.
Levantando-se da cadeira a recepcionista disse à ela:
-Gabriela, esse rapaz quer falar com você...
Desligando o celular a Gabriela disse:
-Depois eu te ligo, tchau... Você quer falar comigo?
-Sim.
-Pode falar.
-Prefiro que seja em um local reservado.
-Vamos até minha sala então.
Entregando-lhe um papel, a recepcionista falou:
-Gabriela, o professor Ricardo deixou esse recado pra você.
-Obrigada!
Seguimos pelo corredor até sua sala. O barulho do contato de seu salto com o piso
soavam num alto eco. Tirando uma chave de sua bolsa ela lamentou:
-Nossa!... Hoje o trânsito está um caos... Pode entrar...
-Obrigado!
Após fechar a porta ela disse:
-Sente-se... Em que posso te ajudar?
-Eu quero fazer uma denúncia.
-Denúncia?
-Sim...
Colocando um chiclete em sua boca ela questionou:
-Qual seria?
-Há alguns dias um colega de classe sofreu um trote violento...
-Desculpe, mas qual é o seu nome?
-Rustom.
-Rustom, a faculdade não permite que trotes aconteçam dentro dos campus, mas não temos como
impedir que isso aconteça fora... Além do mais, a prática de trote é normal em grandes
universidades.
-Entendo, mas o trote que meu amigo sofreu foi na piscina aqui do campus... Se é que se pode
chamar aquilo de trote, pois pra mim foi uma tentativa de homicídio.
Apoiando-se ao encosto da cadeira ela questionou:
-E o que te fez supor que houve uma intenção homicida nisso?
-Acha normal um grupo de garotos jogar uma pessoa que não sabe nadar em uma piscina semi-
olímpica?
-Mas nossa piscina possui bóias, bordas, sinalização... Mesmo não sabendo nadar, identificar as
bóias e chegar até elas é simples...
-Não para um deficiente visual.
-Como?
-Gabriela, estamos falando de um deficiente visual.
-Um cego?
-Sim...
-Seria o Cauê do primeiro A?
-Exato.
-Bem, nos falamos há poucos dias e ele nunca tocou nesse assunto...
-Acontece que ele tem medo.
-Humpft... Você sabe quem são esses garotos que o jogaram na piscina?

21
-Não me recordo da fisionomia deles.
-Há alguma outra testemunha que possa reconhecê-los?
-Acredito que não.
-Nesse caso não posso fazer nada...
-Como não?
-Não há como fazer uma acusação sem ter um culpado.
-E essas câmeras do circuito interno servem para quê?
-Para a segurança de vocês.
-E que segurança é essa que mal consegue identificar um momento como esse?... Como faço para
solicitar essa gravação?
-As filmagens ficam armazenadas em um servidor... E há três dias nós tivemos um problema e
perdemos todos os dados armazenados...
-Ou seja, nada poderá ser feito. Estou certo?
-Humpft... Infelizmente.
-Que absurdo!
Deixei sua sala indignado com o descaso. O que me deixou pior foi a indiferença
com que a Gabriela tratou o caso, agindo com naturalidade e não demonstrando em nenhum
momento espanto ou qualquer surpresa quanto ao fato.

22
No sábado o dia amanheceu ensolarado. Embora eu não gostasse muito de sol forte,
tenho que confessar que o dia estava bonito, céu limpo, sem nuvens. Acordei com o celular tocando.
Levantei-me da cama, tirei-o da mochila e com a voz um pouco travada, atendi:
-Alô?
-Tom... É o Kico...
-Oi...
-O senhor estava dormindo?
-Sim.
-Nossa... Foi mal...
-Fale?
-O quê?
-Pra que você ligou?
-Ah é!... Eu te liguei pra saber se você está a fim de sair.
-Pra onde?
-Lá no nosso ponto de encontro de costume.
-Na Liberdade?
-É.
-Quem vai?
-A Prizinha, eu, o Xandi, a Debi e o Dudu.
-Humpft... Que horas vocês irão se encontrar lá?
-Às uma da tarde.
-Que horas são agora?
-Agora são nove horas.
-Tudo bem. Mais tarde eu colo lá.
-Beleza.
-Beijo.
-Beijo.
Desliguei o telefone e fui tomar um banho. Em casa não havia ninguém, estavam
todos trabalhando. Ao ligar o chuveiro, senti que a água estava muito gelada. Enquanto esperava
que ela esquentasse, me veio o Cauê em pensamento. Eu nunca havia conhecido alguém com
deficiência visual antes de uma forma tão próxima como ele. É engraçado como as coisas são
diferentes quando estamos fora, e ao vermos de um outro ângulo desfazemos toda aquela imagem
distorcida que tínhamos por falta de conhecimento de causa.
Acredito que nada na vida acontece por acaso, e conhecer o Cauê só iria ensinar-me a
viver melhor, sentir o mundo através de uma forma que menosprezamos, pois o campo visual torna-
se prioritário no mundo em que vivemos, desprezando os outros sentidos.
Após o banho desci até a cozinha, apenas com a toalha enrolada à cintura. Na
geladeira havia suco de laranja, bolo, e algumas outras coisas gostosas. Minha barriga já roncava de
fome. Passei manteiga em um pão e o coloquei na chapa para dourar um pouco. Sentei-me à mesa
para tomar meu café da manhã traquilamente. Aproveitei que a torrada estava crocante e comi três
com geléia de morango.
Tomar café da manhã não era um hábito que eu exercia com frequência. Geralmente
eu não sentia fome na parte da manhã, mas como naquele dia minha barriga amanheceu pedindo
23
comida preferi não contrariá-la.
Depois de me fartar, voltei ao meu quarto e vesti uma bermuda, em seguida entrei à
internet para checar meus e-mails e conversar um pouco com meus amigos. Algum tempo depois o
telefone tocou. Corri até a sala para atendê-lo, mas ao segundo toque parou de chamar. Voltei ao
quarto e continuei o que estava fazendo.

/// Srtº Tom \\\ diz:


volteiiiiiii

----KiCo---- diz:
tom... eu tow mt afim da debi...

/// Srtº Tom \\\ diz:


e vuxe jah disse issu pra ela????

----KiCo---- diz:
inda naum

/// Srtº Tom \\\ diz:


puke?

----KiCo---- diz:
to cum medu di leva um NAUM

/// Srtº Tom \\\ diz:


mais issu faix part

/// Srtº Tom \\\ diz:


converxa cum ela e conte o q vuxe ta sentindu!!!!

----KiCo---- diz:
axu ki vo faze issu memu

----KiCo---- diz:
maix mudandu de assuntu... eu liguei pro thi e eli disse q num vai hj

/// Srtº Tom \\\ diz:


puke?

----KiCo---- diz:
pk onti uns puks bateu neli

/// Srtº Tom \\\ diz:


nuss! Ondi?

----KiCo---- diz:
na avenida paulista... eli tava saindu du metro ai os kara viram eli e pegaram... nem deu tempu deli
corre

/// Srtº Tom \\\ diz:


mais bateram mt neli?

24
----KiCo---- diz:
naum puke a policia tava passandu e ajudou eli... mas si num fosse isso axu ke teria matadu ele de
tantu bater...

/// Srtº Tom \\\ diz:


ki horror... as pessoas naum podem nem ser o ke saum soh puke um grupu axa erradu, feiu...

----KiCo---- diz:
essax pessoax naum sabem comu u mundu seria xatu si todax as pessoax foxem tudu iguaix

A internet é uma das formas mais ativas de demonstração do preconceito contra os


Emos. Sendo o principal divulgador e responsável por propagar a tribo no Brasil, a internet tornou-
se também um veículo para demonstrações e exibições de agressões contra os jovens pertencentes à
tribo. O que impressiona é o crescimento contínuo de adeptos à prática dessa violência, provando
que a juventude brasileira vem tornando-se cada vez mais rebelde influenciada por grupos
intolerantes à diferenças, criados e praticados em outros países e copiados aqui.

"Preconceito, com qualquer forma de estilo novo que está surgindo sempre existirá, é inevitável, o lance é
lutar contra isso..." (Felipe, 22, Brasília)

"Já me chamaram de demônio quando eu estava voltando pra casa. Uma vez um menino chegou por trás e
me enforcou, não sei se por brincadeira, mas ele me machucou." (Prizinha, 17 anos, Salvador.)

No começo da tarde fui encontrar o pessoal no bairro da Liberdade. Ao chegar,


avistei a galera sentada aos degraus da escadaria da estação do metrô. Aproximei-me do pessoal e
cumprimentei todos com um beijo no rosto.
Acariciando meu cabelo a Ana perguntou:
-Quais são as novidades, lindo?
-Humpft... Começaram as aulas na faculdade.
-E você ta gostando?
-Estou.
Naquela tarde o pessoal estava bem animado, falando alto, contando sobre as férias,
baladas. Em meio a conversa do grupo acabei me pegando em meus pensamentos e viajando pra
bem longe.
-Tom?... Tom?... Tom!
-Oi linda!
-O que houve?
-Nada... Por quê?
-Você de repente ficou ai calado...
-Humpft... Desculpe, é que estava pensando no que aconteceu essa semana...
-O que aconteceu?
-Lá na faculdade... Tentaram afogar um garoto que é cego.
-Nossa!
-Que horror, miguxo!
-Pois é.
Deitando sua cabeça sobre o meu colo o Cadu falou:
-Você está sabendo da novidade?
-Não... Qual?
-O Kico e a Debi estão ficando.
-Ficando?
-É.
-Desde quando?
25
-Desde agora há pouco...
-Cadê eles?
-Foram no mercado comprar suco de soja pra gente e daqui a pouco estão de volta.
-Entendi... Que inveja deles.
-Por que inveja?
-Ah... Eu também estou a fim de um amor.
-Mas logo você encontra, miguxo.
-Gente... Eu posso apresentar a vocês o Cauê?
-Quem é Cauê?
-É aquele garoto cego que comentei com vocês.
-Claro que pode, Tom!
-Vocês vão adorar o Cauê. Ele é um cara super alegre, bonito, legal, inteligente...
-Uau... O Tom ta apaixonado...
-Eu?
Sem que eu esperasse, todos começaram a gritar:
-Ta apaixonado, ta apaixonado, ta apaixonado...
-Gente, por favor... Não tem nada a ver...
Confesso que senti um pouco de inveja quando soube que o Kico estava ficando com
a Debi. Não que fosse dos dois, mas pela situação em si. Fazia tempo que eu não me envolvi com
ninguém, e isso estava fazendo-me falta.
Voltei pra casa já havia anoitecido. Ao chegar, meus pais já estavam em casa, e não
foi preciso dizerem nada para que eu percebesse um clima melancólico no ar. Subi para meu quarto
e de lá não sai, nem para jantar.
Deitado em minha cama, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o Cauê.
Não sei por que aquele garoto não me saía da cabeça, talvez o motivo pudesse ser o episódio inédito
que eu acabara de presenciar, porém, algo em mim dizia que não era somente isso. Adormeci
pensando nele.
Meu domingo começou perfeito. O dia estava ensolarado, lindo. O céu azul sem
nuvens estava propício para empinar pipa. Ainda admirando o dia apoiado à janela ouvi altas vozes
vindas da cozinha. Troquei de roupa, lavei o rosto e desci para ver o que estava acontecendo. Ao
chegar, flagrei meu pai dando um tapa na cara da minha mãe, sendo jogada à parede pelo impacto
da pancada.
Naquele instante eu perdi a noção de tudo. Voei em cima dele para que não voltasse a
fazer nada contra minha mãe, que envergonhada levantou-se do chão e correu em direção ao
telefone, ameaçando chamar a polícia para prendê-lo. Em um movimento brusco ele jogou-me ao
chão e saiu pela porta da cozinha, pegando o carro e sumindo aos nossos olhos.
Violência doméstica é aquela violência explicita ou assistida, praticada dentro do lar
por parentes. O ato inclui várias práticas, como maus tratos contra idosos, violência contra a mulher,
abuso sexual contra crianças, entre outras.
Os tipos de violência podem ser classificados em física, quando envolve a agressão
direta contra pessoas pertencentes a família; violência sócio econômica, acontecendo quando um
indivíduo possui acesso a recursos econômicos e acesso social controlados por familiar; violência
psicológica quando são proferidas agressões verbais, coação, ameaças;
Apreensivo, corri até a sala para saber como minha mãe estava. Chorando, ela mal
conseguia segurar o telefone. Abracei-a com força e questionei:
-Por que escondeu isso de mim?
-Filho, desculpa?
-Desde quando isso está ocorrendo?
Sem responder ela seguiu para seu quarto, trancou a porta e de lá não saiu. Presenciar
aquela cena acabou com meu domingo. Não é fácil presenciar um pai bater na mãe, é traumatizante.
Chorei sozinho, imaginando a todo tempo o que poderia ter ocorrido se eu não chegasse ou não
estivesse em casa.

26
Palavras horríveis, acusações sem fundamentos, ofensas, ameaças, difamação. As
palavras ferem e o tom de voz aumenta, e de repente um tapa, um empurrão, soco, falta de controle,
são deferidos contra o agredido. Não se pode medir o tamanho dos danos provocados por essa
violência que atinge não só ao agredido, mas também a filhos, parentes.
As estatísticas mostram que a violência contra a mulher é muito maior do que contra
o homem. Conforme a Fundação Perseu Abramo, 43% das mulheres brasileiras confessam terem
sofrido algum tipo de violência, sendo que um terço delas dizem ter sofrido agressão física. Com
relação a violência psicológica, 27% das mulheres confirmam ter sofrido e as que sofreram assédio
sexual somam 11%.
Bati à porta de seu quarto, mas ela não abriu. Comecei a entender o porquê da
utilização de óculos escuros dentro de casa, e às vezes que perguntei ela abafou o caso, tentando me
poupar de saber o verdadeiro caráter do meu pai.
Na grande maioria dos casos, os responsáveis pelas agressões domésticas sãos os
maridos/namorados, com maior incidência nas classes financeiras mais baixas, ocorrendo também
com mulheres da classe média e alta, porém, o medo de se exporem e expor sua família faz com que
denunciem menos.
Passei o dia preocupado, angustiado, aflito. No começo da noite minha mãe
finalmente deixou o quarto, escondendo sua face para que eu não visse a vergonha e humilhação
estampada em seus olhos. Tentei conversar sobre, mas percebi que ela não estava a fim, sendo assim
respeitei e não insisti.
No outro dia sai de casa mais cedo. Deixei o carro em casa e fui de ônibus. Meus
pensamentos estavam longe, e a angústia tomava conta do meu peito. O trânsito não estava muito
bom, e para piorar um caminhão havia provocado um acidente na Marginal, formando um
congestionamento de mais de dois quilômetros.
Cheguei à faculdade e a aula ainda não havia começado. Entrei na sala e logo em
seguida o Cauê chegou. Sentando-se em sua carteira ele falou:
-Tom?
-Oi!
-Bom dia!... O que você tem?
-Nada...
-Como nada? Eu conheço você...
-Humpft... Eu...
-A tristeza em sua voz revela que você não está bem... Se quiser conversar, estou disposto a te ouvir.
-Está bem... Podemos sair depois da aula?
-Claro! Vou te levar para um lugar especial.
-Que lugar?
-Não conto... Será surpresa. Você confia em mim?
-Confio.
Após o término da aula, descemos juntos pelo elevador lateral, pois era bem mais
vazio. Com o auxílio de sua vareta o Cauê tocou em meu braço, e caminhando em passos lentos
questionei:
-Você não veio com o Emílio hoje?
-Não... Ele está adoentado.
-O que ele tem?
-Não sei... Hoje minha mãe vai levá-lo ao veterinário.
-Espero que não seja nada grave.
-Se Deus quiser, não será.
Meu peito continuava angustiado. Às vezes vinha em mente aquela cena do
domingo, e uma vontade enorme de chorar tornava-se inevitável. O que me preocupava mais era
minha mãe, pois eu havia saído sem vê-la e saber como estava.
Seguimos o Cauê e eu em direção ao ponto de táxi. Com seu jeito espontâneo ele
falava o percurso inteiro, enquanto eu respondia com palavras monossilábicas. Ao chegarmos, o

27
motorista logo foi abrindo a porta do carro quando o viu, exclamando:
-Menino Cauê!
-Bom dia, Nicolau!
-Bom dia? Já é quase boa tarde...
-É que eu ainda não almocei.
Fechando a porta do carro o Nicolau questionou:
-Hahaha... Ta certo. Para onde vamos?
-Leve-nos para o céu.
-Pode deixar.
Curioso, sussurrei:
-Céu?
-Sim...
-Que lugar é esse?
-O verdadeiro paraíso... Você gosta de natureza?
-Gosto.
-Que bom!
Pouco tempo depois chegamos no lugar do qual o Cauê apelidava de “céu”. Ao meu
lado direito avistei um lindo parque, cheio de árvores, pássaros voando. Desci do carro, em seguida
o ajudei a descer e sem que eu precisasse perguntar o Cauê falou:
-Todas às vezes que estou triste, eu venho pra cá...
-E você me traz para um lugar onde você só vem quando está triste?
-Sim...
-Por quê?
-Porque aqui eu recupero todas as energias boas que alguma coisa ou alguém me fez perder...
Sentamos à grama em volta do lago. A brisa suave do começa da tarde batia
levemente em nossas faces, acompanhada do cheiro de terra molhada. Cobertos pela sombra de uma
das arvores, dividíamos espaço com as folhas secas caídas à grama.
Tirando parte da franja do olho perguntei:
-Qual é o nome desse lugar, Cauê?
-Jardim Botânico.
-Ah!
-Um pouco mais à frente fica o Zoológico de São Paulo.
-Eu sabia que já havia passado por aqui antes!

A origem do Jardim Botânico foi fruto da paixão do


naturalista Frederico Carlos Hoehne, em 1928, quando iniciou o
Orquidário do Estado, na Água Funda. Hoje, são 143 hectares
abrigando várias espécies vegetais. Em seu interior foram
construídas duas estufas - que se tornaram a marca do Jardim
Botânico -, uma abriga plantas típicas da mata atlântica,
enquanto a outra é destinada a exposições temporárias. O
Instituto de Botânica dispõe de uma biblioteca com cerca de
6.400 livros, inúmeras obras do século passado e um acervo
botânico sem igual no Estado de São Paulo. No Museu
Botânico encontram-se inúmeras amostras de plantas da flora
brasileira, uma coleção de produtos extraídos de plantas, fibras,
óleos, madeiras, sementes e também quadros e fotos
representativos dos diversos ecossistemas do Estado. No
conjunto arquitetônico-cultural do Jardim Botânico destacam-
se, além do Museu, o Jardim de Lineu, inspirado no Jardim
Botânico de Uppsala, na Suécia, as estufas históricas, o portão
histórico de 1894, e o marco das nascentes do riacho Ipiranga.
(Daniel Guimarães, 2007)

28
Deitamos à grama. Enquanto eu observava as nuvens passarem, após um longo
suspiro o Cauê perguntou com a voz serena:
-Tom... O que te aflige ao ponto de deixar dessa forma?
-Humpft... A situação em casa não anda nada boa...
-Por quê?
-Alguns problemas de tolerância familiar...
-Ah...
-Mas prefiro não falar nisso por enquanto.
-Claro, não vou te obrigar a nada.
-Obrigado!
Tocando à grama, o Cauê perguntou:
-Posso te contar um segredo?
-Pode.
-Pensei em você o final de semana inteiro.
-Em mim?
-É... Pela forma com que me defendeu...
-Deveria ter me ligado.
-Pra quê?
-Pra conversar, sair, somos amigos, não?
-Ah... Humpft... Eu preferi evitar...
-Evitar?
-É.
-Por quê?
-Pra ver se te esqueço um pouco.
-Esquecer de mim? Você não...
-Rustom, desculpa, mas eu acabei confundindo as coisas.
-Que coisas?
Aproximando-se de mim ele tentava explicar:
-Você sempre foi muito legal, e isso acabou mexendo comigo de uma tal maneira que quando me
dei conta, era tarde demais, eu já estava apaixonado por você. Eu não quero que a nossa
amizade...
-Cauê, fique calmo.
Tocando em sua mão, continuei:
-Eu também tenho sentido algo diferente por você.
-O quê?
-Não sei explicar... Passei o final de semana pensando em você, até quis te ligar... Sua presença me
faz bem, sinto vontade de te abraçar...
-O que mais?
-De te beijar...
Aproximei-me dele, e aproximei-me pouco a pouco, iniciando um delicioso beijo na
boca. Meu coração bateu acelerado, e o do Cauê também. Seus lábios tocavam levemente os meus,
enquanto sua mão direita apoiava-se em meu peito. Naquele momento o mundo ao nosso redor se
transformou. O cheiro da grama tornou-se mais forte, o som dos pássaros mais nítidos e os meus
sentimentos mais claros.
Chacoalhando a outra mão o Cauê interrompeu o beijo exclamando:
-Ai!... Tem alguma coisa no meu braço...
-Calma... Era só uma borboleta.
-Ah... Pensei que fosse um pássaro perigoso.
-Hahaha... Não... Existe muita diferença entre eles.
-Tom...
Acariciando sua mão questionei:
-Eu?

29
-Como é uma borboleta?
Fui pego de surpresa com aquela pergunta. Como eu poderia descrever sobre algo
para alguém que não enxergava? Encostei sua cabeça em meu peito e com toda paciência e cautela
tentei explicar:
-A borboleta é um ser muito bonito. Possui muitas cores e...
-É como as flores?
-Não, é muito mais colorida... E fina como uma pétala de uma rosa.
-Nossa!... Deve ser realmente linda.
-Muito!
Sentando-se novamente à grama o Cauê começou a tocar meu rosto com as pontas
dos dedos. Fechei meus olhos. Enquanto ele tocava parte por parte de minha face, uma sensação
diferente acariciava minha alma, brotando dentro de mim uma felicidade sem explicação.
Esboçando um leve sorriso ele comentou:
-Como você é bonito, Tom!
-Bonito?
-Sim... Muito!
-Como você sabe?
-Um deficiente, devido ao seu problema, acaba desenvolvendo outras habilidades. No meu caso,
possuo o tato, olfato e audição mais desenvolvidos.
-Que coisa curiosa! Você já nasceu assim?
-Não. Fui vítima de uma doença chamada Fibroplasia Retrolental
A Fibroplasia Retrolental é uma doença ocasionada pelo uso em excesso e não
controlado do oxigênio em recém-nascidos. Se diagnosticada precocemente ela pode ser tratada ou
evitada.
Acariciando seu cabelo comentei:
-Eu acho que todo ser humano seria mais feliz se estivessem essa percepção que você demonstra
ter. Hoje em dia as pessoas enxergam apenas o superficial, até onde os olhos podem ver.
-Será que elas são felizes?
-Eu gostaria de ter essa sensibilidade.
-Então desenvolva.
-Como?
-Feche os olhos.
-Fechar meus olhos?
-É... Confie em mim?
-Eu confio.
Fechei meus olhos e permaneci sentado à grama. Pouco a pouco fui sentindo suas
mãos tocarem meus ombros e deitarem meu corpo. Continuei de olhos fechados. A respiração
faltava-me a medida em que minha emoção e sensação de bem estar tornava-se mais forte, intensa.
Tocando em minha mão ele colocou algo, dizendo em seguida:
-Pegue...
Curioso, questionei:
-O que é isso?
-Sinta e me diga você o que é.
-Deixa eu ver...
-Ver não... Sentir...
-Isso.
Logo quando o peguei nas mãos senti que era algo orgânico. Apalpei com as duas
mãos e notei a textura áspera, e se desfazia ao apertar com força. Confuso, o apalpei ainda mais. Em
momento nenhum eu abri os olhos. Fiz tudo da maneira que ele pediu, e confesso que foi difícil.
-Nossa!
-O quê?
-É muito difícil...

30
-Não é difícil, basta você sentir com o coração, tocar com a alma...
-Humpft...
-Sinta a forma, textura, cheiro...
-Já sei!
-Já?
-Sim...
-Então o que é?
-Um pinhão.
-Acertou!
Abri os olhos e realmente era um pinhão.
-Não entendo...
-O quê?
-Como eu consegui acertar sem muito chonhecer um pinhão.
-É simples... Todas as características dele já estavam em seu inconsciente, bastava ter contato para
associá-las.
-Que legal!
-Feche os olhos.
-Outra vez?
-Sim.
-Pronto.
-Sinta o cheiro dessa leve brisa...
-Hum!...
-Ouça o cantar dos pássaros...
Enquanto eu fazia o que ele pedia, diferentes sensações de percepção eu sentia.
Jamais havia parado em minha vida para sentir o cheiro do vento, aliás, eu nem sabia que vento
tinha cheiro, e o canto dos pássaros passavam despercebidos misturados ao barulho da cidade.
-Cauê...
-Eu?
Toquei levemente em seu rosto e o acariciando falei:
-Você é um cara muito especial.
-Por quê?
-Humpft... Você me faz sentir diferente...
-Diferente como?
-Não sei... Sua companhia me faz bem...
-Que bom!
-Com você eu aprendi muito, principalmente a enxergar o verdadeiro valor das coisas.
-Pare que se não vou chorar.
-Tudo bem, não quero que você chore. Posso te dar mais um beijo?
-Com toda certeza.
Nos abraçamos novamente, iniciando um beijo molhado e cheio de vontade. O Cauê
foi o responsável por me apresentar o lado mais bonito das coisas, um mundo que eu ainda não
conhecia, assim como a maior parte da humanidade.
Aquela tarde foi inesquecível. Cheguei em casa já estava anoitecendo. Coloquei a
mochila sobre o sofá quando o telefone começou a tocar:
-Alô?
-Rustom?
-Oi mãe!
-Estou ligando a tarde inteira e ninguém atende esse telefone...
-É que eu não estava em casa, acabei de chegar.
-Aonde você foi?
-Fui conhecer o Jardim Botânico.
-Humpft... Eu preciso que você tire do freezer o bife para o jantar...

31
-Tudo bem.
-Nem sei se vai dar tempo de descongelar.
-Então eu vou pôr pra descongelar no microondas.
-Ta.
-Era só isso?
-Só.
-Você está bem?
-Humpft... Estou, filho.
-Ele... Está ai?
-Sim, mas não está falando comigo...
-Melhor assim.
-Preciso ir, filho...
-Então ta bom, vou tomar banho.
-Beijo.
Fui até meu quarto pegar uma peça de roupa e deixar minha mochila, logo em
seguida entrei no banheiro para tomar banho. A sensação que eu tinha era de estar pisando em
algodão, flutuando, pois meu corpo estava leve, e o sorriso ia de orelha a orelha, tamanha era a
felicidade que eu estava sentindo.

32
No outro dia acordei um pouco mais cedo. Olhei no relógio e ainda eram seis horas.
Peguei minha toalha e fui para o banheiro tomar banho. Deixava aquela água quente massagear
minha nuca de olhos fechados, levando parte do stress embora.
Ensaboava meu cabelo quando ouvi fortes batidas à porta. Pouco tempo depois ouvi
meu pai gritando:
-Você vai demorar muito ai, caralho?... Você está me ouvindo?
-Já estou saindo.
-Não me responde assim... Me respeite que eu sou teu pai... Duas hora dentro desse banheiro,
porra...
Eu nem sabia que ele tinha voltado, o que me deixou surpreso. Desliguei o chuveiro
e olhei que horas eram em meu relógio. Não fazia muito tempo que eu havia entrado, pois ainda
eram 6 horas e 12 minutos. Na verdade ele queria uma desculpa para brigar comigo, e não teve
caráter suficiente para fazer sem motivos e viu naquele momento a oportunidade de criar um
pretexto.
Desde criança eu percebia em meu pai uma certa intolerância com a minha pessoa,
encontrando sempre um motivo para me agredir verbalmente, mesmo sem dar motivos para isso.
Ao sair do banheiro ele continuou a falar:
-Quarenta minuto no banho, rapaz?
-Não faz nem quinze minutos que eu entrei. Você quer um motivo para me agredir e fica com
desculpas.
Nesse momento minha mãe apareceu:
-Você cala essa boca. Eu sou teu pai, você me respeita.
Eu não havia falado nada demais, e diferente dele, minha voz estava calma e
controlada, mesmo assim ele colocou o dedo na minha cara enquanto falava. Apreensiva, minha
mãe o segurava, sem entender o motivo de tanta ira.
-Está pensando que você é o quê? Seu bosta.
Fechei a porta do quarto chorando. Jamais esperava aquela reação do meu pai, pois
ele estava sendo injusto e covarde, por inventar uma desculpa qualquer para dizer tudo que pensava
a meu respeito.
Enquanto vestia minha roupa, conseguia ouvir seus gritos discutindo com minha
mãe:
-Você está exagerando... Você viu como falou com seu filho?
-Foda-se... Nunca foi...
-Você está parecendo um louco...
-Fica defendendo... Você só defende quem não presta.
-É meu filho, claro que vou defender.
-Você tinha que ficar do meu lado, porque eu sou seu marido... Espera que você vai ver a
recompensa que ele vai te dar no futuro.
-Eu não espero recompensa nenhuma, faço porque sou mãe, carreguei durante nove meses, tive
dor... Não troco meu filho por homem nenhum.
Antes de sair do quarto, coloquei meus óculos escuro para ninguém ver que eu estava
chorando. Todas aquelas palavras que ele proferiu doeram fundo, não porque foram feias ou
impróprias, mas por eu não merecer, atravessando meu peito como uma lança.
33
Desde criança, nunca fui de chorar fácil, porém, naquele dia por mais que eu
segurasse, as lágrimas insistiam em descer.
Cheguei na faculdade a aula já havia começado. Sentei-me ao lado do Cauê que logo
se virou dizendo:
-Bom dia, Tom!
-Bom dia!
Sussurrando o Cauê perguntou:
-Você não está bem. O que aconteceu?
-Humpft... Depois eu te conto.
-Tudo bem.
Enquanto o professor passava um texto no quadro perguntei ao Cauê:
-Faz tempo que a aula começou?
-Não... Ele também chegou um pouco atrasado...
-Ta bom.
A aula estava um pouco chata, sorte que haviam apenas duas aulas naquele dia,
sendo apenas no primeiro período. As horas pareciam não passar, e o professor de Sociologia
gostava de falar muito.
Sentando-se em sua cadeira ele disse em voz alta:
-Galera... A data de entrega do trabalho eu vou enviar por e-mail...
Após um leve suspiro o Cauê disse:
-Tom?
-Oi?
-A Soraia pediu para entrar pro nosso grupo pra fazer o trabalho...
-Ué... Ela está sozinha?
-Sim...
-Mas o trabalho não é em dupla?
-Pode ser em trio.
-Ah!... Por mim tudo bem.
-Depois eu falo com ela então.
Assim que o professor terminou a aula, guardei meu fichário dentro da mochila e
esperei pelo Cauê próximo à porta. Com o auxílio de sua vareta ele caminhou em minha direção.
Esboçando um leve sorriso ele perguntou:
-Para onde vamos?
-Não sei... Você tem alguma idéia?
-Sim... Aceita almoçar comigo?
-Claro! Onde?
-Em minha casa.
-Nossa!
-O quê?
-Eu tenho vergonha...
-Vergonha de quê?
-Não estou bem vestido...
-Pra mim você está lindo!
-Isso é o que mais me fascina em você.
-O quê?
-A forma como você vê o mundo...
-Você topa almoçar comigo em minha casa?
-Não tenho como negar um pedido seu, mozinho.
Eu estava apaixonado, isso não podia negar. De todas as paixões que eu já tive em
minha vida, a que eu sentia pelo Cauê era diferente, pois ele gostava de mim pelo que eu era e não
pelo que eu aparentava ser. O que mais me fazia apaixonar era seu jeito meigo de ser, carinhoso,
atencioso.

34
Chegamos em sua casa e logo da calçada ouvi os latidos do Emílio. Abrindo o
portão do quintal o Cauê falou:
-Seja bem vindo à minha casa!
-Obrigado!
Antes que ele tocasse na maçaneta sua mãe abriu a porta. Com um sorriso estampado
na face ela exclamou:
-Oi!
-Mãe... Eu trouxe o Tom para almoçar com a gente.
-Então você que é o Tom?
-Acho que sim.
-Entrem...
-Pelo visto a senhora já me conhece...
-Claro! O Cauê só fala em você.
-Sério?
-Minha mãe estava morrendo de curiosidade para conhecê-lo, de tanto que eu falo em você pra
ela...
-E ele fala bem ou mal?
-Claro que falo bem.
Encostando a porta sua mãe disse:
-Sente-se, Tom... O almoço está quase pronto.
-Olha dona...
-Irene.
-Dona Irene, não quero dar trabalho...
-Não é trabalho nenhum.
Enquanto ela dirigiu-se à cozinha o Cauê falou:
-Viu só como minha mãe é legal?
-Sim...
-Eu sei que sua cabeça está confusa.
-Confusa?
-É... Pelo fato da minha mãe ser negra e eu ser branco...
Confesso que a primeira vista fiquei confuso em saber que sua mãe era negra, mas
tudo começou a fazer sentido quando ele revelou ser adotado. Por mais que eu negue, aquela atitude
que tive foi preconceituosa, mas não por que eu quis, mas sim por consequência de estímulos
recebidos desde a infância pelo meio social em que vivemos.
Sem graça, perguntei:
-Você tem o poder de ler pensamentos, agora?
-Não, mas tenho o poder de entender as pessoas que gosto.
-Humpft... Eu... Bom, a primeira vista eu estranhei sim. Desculpa falar isso.
-Não precisa se desculpar, você não é diferente de ninguém...
-Fiquei sem graça, agora.
-Não precisa tanto. A Irene me adotou quando eu tinha um ano de idade...
-E sua mãe verdadeira?
-Você quer dizer biológica?
-Isso!
-Não sei... Sinceramente não me faz um pingo de falta. A Irene me deu tudo o que eu precisava, que
é amor, caráter, formação...
-Humpft... Bom, melhor mudarmos de assunto.
Nesse momento a Irene voltou à sala dizendo:
-Meninos, a comida está na mesa.
-Oba!
-Hum... Pelo cheiro sua comida deve ser muito boa mesmo, dona Irene.
-Imagine.

35
-Minha mãe cozinha como ninguém.
-Parem com isso vocês dois.
Sentamos à mesa e continuamos a conversar durante a refeição:
-A senhora trabalha com o quê?
-Eu sou enfermeira por formação.
Segurando o copo o Cauê falou:
-Minha mãe trabalha no hospital do câncer.
-E também na emergência de um hospital público.
A comida estava maravilhosa, assim como a conversa que estávamos tendo. Sua mãe
era muito simpática, atenciosa, assim como o filho.

36
Algumas semanas se passaram. Já estávamos na metade do semestre, e o primeiro
ciclo de provas começava a se aproximar. Acordei angustiado em uma manhã de quarta feira. Após
arrumar o cabelo, desci para tomar café da manhã com minha mãe.
Sentei-me ao seu lado e enquanto cortava um pedaço de bolo questionei:
-Aconteceu alguma coisa, mãe?
-Não... Por quê?
-Tenho notado uma certa tristeza em seu olhar.
-Tristeza?
-É... E não é de agora.
-Impressão sua, Rustom.
-Humpft... Mãe, está acontecendo alguma coisa que você quer contar?
-Não, querido... Está tudo bem.
-Ta bom... Caso queira me dizer, vou estar sempre disposto a te ouvir.
Levantando-se da mesa ela falou:
-Vou buscar minha bolsa no quarto para sairmos.
-E eu vou escovar meus dentes enquanto isso.
-Não demore.
-Ta.
Escovei os dentes rapidamente e fui esperá-la no carro. Minha mãe estava diferente,
melancólica, embora tentasse disfarçar era perceptível seu estado emocional abalado.
Seguimos calados pela Marginal até que eu, incomodado, questionei:
-Podemos almoçar juntos hoje?
-Hoje?
-Sim...
-Humpft... Tudo bem.
-Assim que eu sair da faculdade eu te encontro no shopping.
-Por que no shopping?
-Porque sim, ué.
-Mas Rustom, nós podemos almoçar na lanchonete...
-Não... Prefiro em outro lugar.
-Ta... Então eu passo na faculdade para te buscar.
-Ótimo!
Nos despedimos com um beijo no rosto e segui para a aula. Fechei a porta do carro,
arrumei a mochila nas costas e segui em direção à escada rolante.
Cheguei um pouco atrasado, pois o trânsito estava parado. No segundo andar, a
escada rolante estava em manutenção, com isso tive que ir até o hall pegar o elevador. Enquanto
aguardava notei uma certa movimentação de seguranças fora do comum.
Já no sétimo andar, caminhava em direção à sala de aula, quando avistei metade dos
alunos tumultuando o corredor.
Ao me ver chegando, a Soraia correu até mim e ofegante ela disse:
-Tom... Ainda bem que você chegou...
-Por quê? O que houve?
-O Emílio...
37
-Fala logo?
-O Emílio mordeu a Jéssica.
-Mordeu? Como?
-Humpft... O pessoal diz que ele teve um ataque de fúria...
-Cadê o Cauê?
-Está na coordenação.
-Na coordenação?
-É...
Dei meia volta e segui para a coordenação. Correndo a Soraia tentava me
acompanhar perguntando:
-Tom... Aonde você vai?
-Vou ver como ele está...
-Mas pediram que apenas as testemunhas comparecessem.
-E você acha que eu vou deixar de apoiá-lo no momento em que mais precisa de mim?
-Humpft... Eu vou com você.
-Então vamos.
Chegando à reitoria havia dois seguranças na porta. Ao tentar entrar fui logo
impedido por um deles.
-Pode falar?
-Eu preciso entrar...
-No momento não é possível.
-É possível sim... Eu sou testemunha do caso do cachorro.
-Tudo bem, entre.
Caminhei por um curto corredor até avistar o Cauê, sentado em um banco, isolado,
chorando calado. Segui em sua direção e ele logo percebeu minha presença:
-Tom?
-Sim, sou eu, amor.
Dei-lhe um abraço.
-Tom... Querem tirar o Emilio de mim.
-Por quê?
-Porque estão dizendo que ele mordeu a Jéssica.
-E ele mordeu?
-Não sei...
Com os braços cruzados e a cabeça pendida, a Soraia falou:
-Ele chegou a morder sim.
-Mas o Emílio não é de morder ninguém...
Acariciando sua face concordei:
-Eu sei... Essa história está muito mal contada...
Sentada ao lado do Cauê a Soraia perguntou:
-Cadê seu cachorro?
-Não sei onde o Emílio está...
Revoltado, questionei:
-E por que você está aqui cercado como se fosse um criminoso? Vamos procurar o Emílio...
-Mas eu não posso sair daqui, estou esperando minha mãe trazer a carteirinha de vacinação dele.
-Humpft... Está bem. Vou ficar aqui com você então.
-Não... Volte para a sala e tente descobrir o que realmente aconteceu.
-Mas Cauê...
-Por favor, Tom?
-Está bem. Qualquer coisa me avisa.
-Pode deixar. Vamos, Soraia.
-Vamos!
-Tchau.

38
-Tchau.
Deixei a reitoria e voltei para a sala de aula. Seguindo em direção ao sanitário a
Soraia falou:
-Eu vou ao banheiro...
-Tudo bem.
O professor já explicava a matéria posta à lousa. Sentei-me à cadeira e comecei a
copiar ao mesmo tempo em que ele falava. Olhando-me diferente a Cátia e a Bruna entraram na
sala, seguindo para suas respectivas cadeiras.
Pouco tempo depois chegou a Soraia, aflita. Após sentar-se na carteira atrás de mim
ela tocou em meu ombro dizendo:
-Tom...
-Sim?
-Preciso te contar uma coisa...
Virei-me de frente para ela.
-Diga?
Sussurrando ela começou a falar:
-Eu estava no banheiro, com a porta do box fechada eu só ouvi as vozes...
-Fale logo, estou ficando irritado.
-É que eu ouvi a Bruna e a Cátia comentarem no banheiro que o Emílio mordeu a Jéssica de
propósito...
-De propósito? Como assim?
-É... Humpft... Não entendo o motivo, mas parece que ela colocou o pé na frente do Cauê para ele
cair...
-Maldita!
-Mas antes disse que ela sujou a carteira dele com tinta de caneta.
-Mas qual finalidade disso?
-Provavelmente o expor ao ridículo, já que o Cauê está de calça clara...
Levantei-me da carteira e fui até a que o Cauê costumava sentar-se. Notei que
realmente o assento de sua cadeira estava sujo de tinta fresca. Tirei meu celular do bolso e
fotografei a prova. Guardei-o novamente e deixei a sala.
Eu queria entender até onde iria tanta perversidade e o motivo dela. Uma pessoa que
não fazia mal a ninguém, não havia motivo ou justificativa para tanta maldade.
Segui para a enfermaria soltando fogo pelas ventas. Covardia me revoltava. Minha
vontade naquele momento era de esfregar a cara da Jéssica naquele monte de tinta sobre a cadeira.
Não demorou muito e a Soraia apareceu, correndo atrás de mim e chamando pelo meu nome:
-Tom... Tom... Espere...
-Não estou com tempo disponível para perder...
-Tom, você está nervoso... Precisa se acalmar...
-Acalmar? E se o Cauê caísse na escada? Você tem ciência de que ele poderia ter morrido?
-Que horror!
-Horror é essa violência provocada por jovens que esse país vem passando.
Entrei na enfermaria e logo avistei a Jéssica, deitada sobre a maca de olhos fechados.
Aproveitando que a enfermeira não estava, disse à Soraia enquanto fechava a porta:
-Vigie a porta.
-Ta.
Percebendo minha presença na sala do ambulatório, a Jéssica abriu os olhos e
surpresa exclamou:
-Rustom!
-Vim saber como você está...
Com a maior falsidade ela se fez de vítima, achando que eu acreditaria em seu teatro
amador:
-Humpft... Obrigada! Estou bem, apesar de um pouco traumatizada.

39
-Traumatizada...
Aproximei-me dela e toquei em seu pulso direito. Olhando em seus olhos eu o
apertei e disse:
-Acha que tenho cara de trouxa para acreditar em você?
-Ai... Você está me machucando...
-Isso não é nada perto do que você merece... Deixe eu ver sua mão...
-O que tem minha mão?
Peguei sua mão esquerda, e ao abri-la confirmei que estava sujo de tinta de caneta.
Uma fúria enorme consumia-me por dentro. Soltei-a exclamando:
-Eu sabia!
-Sabia o quê?
-Se você pensa que vou deixar barato isso que você fez com o Cauê está muito enganada.
-O que você vai fazer? Me bater?
-Não posso, embora eu tenha vontade...
Segurando à porta a Soraia disse:
-Mas eu posso...
-Cala essa boca, baleia Orca.
-Calma, Soraia... Não vale a pena perder a razão pagando com a mesma moeda... Tenho idéia
melhor.
Ironizando a Jéssica falou:
-Nossa... Nem vou dormir à noite de tanto medo.
-Deboche o quanto quiser.
Deixando a enfermaria, falei:
-Em breve você terá noticias minhas.
A reação dela foi como eu já esperava, fazendo pouco caso da situação e
menosprezando aqueles que julga inferiores. Claro que não iria deixar barato, pois aqueles imbecis
tinham que levar uma lição para aprender a nunca mais mexer com quem não conhece.
Caminhava pelo corredor sentido o elevador quando a Soraia questionou:
-Aonde você está indo, Tom?
-À coordenação.
Enquanto aguardávamos ela desabafou:
-Por pouco eu não quebrei a cara daquela enjoada...
-Oportunidades não faltarão...
Ao chegarmos na coordenação avistei o Cauê sentado no mesmo lugar, chorando,
enquanto o outro coordenador do curso dava-lhe uma bronca:
-O seu cachorro colocou a vida de um aluno em risco. Você foi irresponsável em...
Revoltado o interrompi:
-Mas o que é isso?
-Quem são vocês?
-Somos testemunhas de que o animal só mordeu a Jéssica para defender seu dono.
-Mas do que você está falando?
Tirei o celular do bolso e mostrei a foto dizendo:
-Isso é o resultado de um ato de vandalismo e violência injustificável contra uma pessoa que não
dispõe de condições físicas para defender-se sozinha.
Após tirar parte de sua franja do olho a Soraia iniciou o relato sobre o fato.
-A Jéssica sujou a cadeira do Cauê com tinta de caneta para que ele se sentasse e marcasse sua
roupa, e depois disso ela colocou o pé na frente do Cauê quando ele caminhava para a sala, foi
nesse momento que o Emilio mordeu sua perna.
-Vocês tem como provar?
Irritado, questionei:
-Olha, você me desculpe, mas a impressão que tenho é de que você não quer acreditar em nós. Há
algum preconceito pelo fato do Cauê ser bolsista e deficiente?

40
-Não é bem assim...
-Isso é crime e nós podemos abrir um processo contra essa instituição.
-Você é muito arredio, rapaz.
-Não, apenas não gosto de injustiças e covardia. Agora, como aluno eu exijo que as imagens da
dependência do prédio sejam examinadas.
Percebendo que não estava lhe dando com nenhum leigo, parou para nos ouvir.
-Eu... Vou pedir para que chequem as filmagens...
-Ótimo. E quanto a criminosa?
-Quem?
-A aluna que agrediu nosso colega. Ela precisa ser punida, não acha?
-Primeiro precisamos comprovar a culpa...
-Considera pouca a imagem que te mostrei da cadeira toda suja?
-Qualquer outro aluno poderia ter feito aquilo...
-Pois então vá até a enfermaria e veja sua mão esquerda suja com a mesma tinta. Detalhe: ela é
canhota.
No mesmo instante ele dirigiu-se até a enfermaria para verificar a veracidade da
informação que eu havia lhe passado. Fiz questão de acompanhá-lo e ver de perto sua cara após
confirmar o que eu havia dito. Durante o caminho ele permaneceu calado, acompanhado por dois
seguranças, utilizando as escadas ao invés do elevador.
Ao entrarmos na enfermaria cruzamos com a Jéssica que já deixava o local
acompanhada pela enfermeira. Trancando a porta o coordenador questionou:
-Aonde você ia?
Tomando à frente a enfermeira respondeu:
-Ela será encaminhada para um hospital, precisa tomar a vacina anti-rábica.
-Sim, mas antes quero conversar com ela.
-Desculpe, mas agora não estou muito bem para lembrar e falar sobre o horrível episódio com esse
violento cão.
Tirando a franja do olho eu respondi:
-O Emílio não é violento.
Mostrando sua autoridade o coordenador pediu:
-Mostre sua mão esquerda, Jéssica.
Sem graça, ela ficou sem reação.
-Mas... O que tem minha mão?
-Quero checar uma informação...
-Informação?... De que está falando?
-Você foi acusada de ter sabotado um assento...
-Mas que absurdo!
-Pode mostrar-me sua mão, por favor?
Ao mesmo tempo em que a escondia, a Jéssica tentava argumentar:
-O que vocês estão querendo? Não vê que estou ferida? Abalada?
-Eu compreendo que a situação seja desagradável, mas preciso comprovar a veracidade das
acusações.
-Nunca fui tão humilhada em toda minha vida...
Irritado, caminhei até ela e peguei em seu braço, abrindo sua mão logo em seguida.
Para minha surpresa sua mão estava limpa, sem nenhum resíduo de tinta.
Confuso, questionei:
-Ué... Cadê a tinta?
Antes que a Jéssica respondesse a enfermeira foi logo adiantando:
-Ela lavou a mão agora há pouco para tirar aquele monte de tinta.
-Cale a boca, sua enfermeira estúpida.
Apertando seu braço o coordenador disse:
-Cale a boca você. Está pensando o quê?

41
-Isso é jeito de falar comigo? Eu pago seu salário...
-Lamento, mas em meu holerite não vem escrito seu nome. O seu dinheiro é investido em
conhecimento que a faculdade lhe oferece, uma remuneração pelos serviços que são prestados. O
fato de você pagar para utilizar nossas dependências e serviços não quer dizer que poderá fazer o
que quiser sem ser advertida ou punida.
Calada, ela o olhava espantada.
-Devido a todo esse ocorrido de hoje, eu peço que compareça amanhã em minha sala...
-Para quê?
-Quero conversar com você...
-Referente a ...?
-A sua denuncia contra o cão-guia do Cauê Proença.
-Tudo que eu tinha a dizer já disse, não vou ficar repetindo a mesma coisa um milhão de vezes.
-Não será necessário repetir novamente, apenas quero conversar com você.
-Humpft... Está bem, amanhã antes da aula eu passo na coordenação.
-Obrigado.
Passamos a manhã inteira envolvidos com aquele tumulto provocado pela Jéssica.
Acabei nem assistindo aula, pois permaneci com o Cauê o tempo inteiro, dando força e carinho que
era o que ele precisava naquele momento.
No horário de saída minha mãe telefonou-me dizendo que já esperava por mim em
frente ao campus. Despedi-me do Cauê e de sua mãe que já havia chego e saí. Abria a porta do carro
quando minha mãe reclamava:
-Nossa... Que demora...
-Humpft... É que aconteceu algo meio chato hoje...
-O que houve?
-Uma aluna tentou agredir o Cauê e o cão-guia dele mordeu ela.
-Mas agredir por quê?
-Por maldade. Só porque ele é cego.
-Que horror! E não fizeram nada com essa aluna?
-Ainda não sei o que vai acontecer com ela. Acredita que o coordenador estava quase expulsando o
Cauê da universidade?
-Sem verificar as duas partes?
-É... Na verdade foi uma demonstração clara de preconceito.
-Porque ele é cego?
-Também, além de ser bolsista.
Chegamos à churrascaria. Desci do carro primeiro, enquanto minha mãe pegava sua
bolsa e procurava seu anel que deixara cair ao puxar o freio de mão. Após entregar a chave para o
manobrista, cruzamos a porta e caminhamos em direção à uma mesa ao lado da janela, com vista
para a Marginal.
Sentei-me à cadeira. Após um suspiro minha mãe perguntou:
-Já quer pedir as bebidas?
-Pede pra mim. Eu vou pegar um pouco de risoto de camarão...
Eu já havia levantado-me da cadeira quando ela questionou:
-O que você vai querer beber?
-Pode pedir um guaraná.
-Ta bom.
Peguei um prato e fui até o buffet que ficava embaixo de um lindo e enorme aquário
azul. Segurando os talheres e o prato acabei me entretendo com os enormes peixes que nadavam
lentamente.
A churrascaria era ótima. A mobília feita de madeira bem trabalhada, cadeiras
confortáveis, e nas janelas haviam cortinas claras que combinavam com as paredes texturizadas. O
que eu mais gostava era da mesa de sobremesas que ficavam perto da cascata d'água, ao lado do
aquário. Era uma mais gostosa que a outra, e sempre quando eu e minha mãe íamos, eu pedia para

42
embrulharem alguma que não conseguia terminar de comer.
Peguei um pouco de salada, batata palha e o risoto de camarão, em seguida voltei à
mesa. Coloquei o prato sobre a mesa. Levantando-se da cadeira minha mãe disse:
-O rapaz já vai trazer nossas bebidas. Eu vou pegar um pouco de salada e já volto.
-Certo.
Enquanto ela se servia, o garçom nos trouxe as bebidas. Após abrir a lata, despejou o
refrigerante dentro do copo para mim, que já veio com uma fina rodela de limão e duas pedras de
gelo.
Dei a primeira garfada no arroz, logo em seguida minha mãe voltou à mesa dizendo:
-Hum... Essa salada de berinjela está com uma cara ótima...
-Eu percebi, mas vou deixar para depois.
-Isso aqui é sal?
-Deixa eu ver... Não, é açúcar.
-Ah!... Esse aqui é o sal... O sache é menor...
-Mãe...
-Hum?
-Humpft... Há dias eu venho notado em você um comportamento estranho.
-Comportamento estranho em mim?
-O que está acontecendo?
-Nada, meu querido...
-Como nada? Você está estranha... Se abra comigo...
Nesse momento tirei seus óculos escuros e vi o hematoma roxo próximo ao seu olho.
Fiquei abismado. Constrangida ela tentava esconder, calada, sentindo vergonha de si mesma.
-O que é isso no seu olho?
Pegando seus óculos da minha mão, suspirou agoniada sem nada dizer. Apenas o
barulho do talher tocando o prato soava. Agoniado questionei novamente:
-Responda... O que foi isso no seu olho? Aquele mal amado te bateu outra vez?
-Ele não teve culpa... Estávamos discutindo e sem querer ele me empurrou e eu caí...
-Como da outra vez?...Pára de tentar amenizar a situação... Ninguém empurra ninguém sem
querer...
Cabisbaixa ela não disse nada.
-Você precisa ir à uma delegacia prestar queixa.
-Não!
-Como não? Isso não pode ficar assim...
-Eu já falei, foi um acidente...
-É difícil acreditar, sabia?
Silêncio.
-Esquece isso, Tom.
-Não dá pra esquecer... Mas de qualquer forma, não posso lhe obrigar a nada.
-Humpft...
Toquei em sua mão.
-Promete que se ele tocar em você novamente, irá me avisar?
-Humpft...
Fazendo sinal com a cabeça ela confirmou, assim continuamos nosso almoço. Há
anos eu não via minha mãe sorrir de verdade, se olhar no espelho e se sentir mulher ao invés de um
objeto.

43
Dois dias se passaram, e durante esse período a Soraia não foi à faculdade. No
segundo dia, ao chegar em casa fui telefonar para ela, pois teríamos que entregar o trabalho na
semana seguinte e ainda não havíamos feito.
Liguei em seu celular, mas deu caixa postal e em sua casa ninguém atendia. Depois
de almoçar, digitei todas as informações por e-mail e enviei para ela, pedindo que me retornasse
assim que recebesse. Até o momento em que fui dormir, não obtive nenhuma resposta, o que
deixou-me ainda mais preocupado.
Antes de dormir esqueci de programar meu celular para despertar, fazendo com que
eu perdesse a hora de ir à faculdade no dia seguinte. Durante a tarde telefonei pro Cauê para saber o
que foi dado em sala de aula.
-Alô?
-Boa tarde! O Cauê está, dona Irene?
-Oi Rustom! O Cauê está dormindo.
-Ah!... Eu ligo mais tarde então.
-Rustom...
-Eu?
-Humpft... Queria te agradecer pelo que você fez.
-O que eu fiz?
-Graças a você meu filho não foi injustiçado na faculdade...
-Não há do que me agradecer. Eu apenas fiz valer o direito de um cidadão. Se todas as pessoas
desse país fossem unidas, jamais estaríamos passando por situações como essa.
-Humpft... Eu sei... Mas o Cauê é muito ingênuo...
-Na verdade as pessoas abusam da deficiência que ele possui, mas isso vai ter que acabar.
-Sabendo que ele tem você para ajudá-lo eu fico bem mais tranquila...
-Pode deixar que na minha frente ninguém o fará mal. Mais tarde eu volto a ligar para ele.
-Está bem.
-Tenha uma boa tarde!
-Igualmente.
Desliguei o telefone e logo em seguida liguei para a Soraia. Após três tentativas,
finalmente alguém atendeu ao telefone:
-Alô?
-Oi... Por favor, eu quero falar com a Soraia.
-Quem gostaria?
-É o Rustom.
-Oi Rustom! Aqui é a mãe dela...
-Tudo bem com a senhora?
-Não muito... Estou um pouco preocupada com a Soraia...
-Por quê? Aconteceu algo?
-Não sei... Ela não sai do quarto...
-Não sai do quarto?
-Humpft... Às vezes quando chego do trabalho a vejo chorando, mas quando questiono o que
aconteceu ela se cala...
-Que estranho!
44
-Você não gostaria de vim aqui e conversar com ela?
-Bem... Eu posso tentar...
-Humpft... Hoje não fui trabalhar, tamanha minha preocupação... Estou acuada, sem saber o que
fazer...
-Entendo... Daqui a pouco eu passo ai.
-Muito obrigada, Rustom!
-Por nada.
-Até mais.
A Soraia sempre dizia ser muito sozinha, pois sua mãe sendo uma das executivas de
uma grande empresa nacional do ramo alimentício, passava a maior parte de seu tempo trabalhando,
com isso a Soraia tornou-se uma pessoa solitária e depressiva.
Cheguei em sua casa, e ao tocar a campainha fui recebido pela sua mãe, que
simpática dirigiu-se até o portão exclamando:
-Olá!
-Oi... A Soraia...
-Então você que é o Tom que a Soraia tanto fala...
-Bom... Só espero que ela fale bem de mim.
-Disso pode ter certeza.
Entrando na sala perguntei:
-Onde ela está?
-No quarto... Você sobe a escada, segunda porta à direita.
-Tudo bem, obrigado!
-Por nada.
Atravessei a enorme sala e subi por uma longa escada de madeira. Enquanto pisava
aos degraus, um leve barulho soava, abafado pelo tapete forrado ao centro. Sua casa era enorme, e
para duas pessoas apenas tornava-se ainda maior. Caminhando pelo corredor avistava ao final uma
estátua sobre uma pequena mesa, enquanto uma cortina de renda dançava suavemente com o vento
que entrava pela fresta de vidro.
Bati à porta e esperei que respondesse:
-Entre!
-Licença...
-Tom!
Caminhei em sua direção para dar-lhe um abraço. Pálida e abatida, levantou-se da
cama onde estava deitada para receber-me.
-Que surpresa você aqui!
-Eu vim saber como você está...
-Humpft... Não estou muito bem...
Seu quarto era típico de uma patricinha. Em frente sua cama havia uma escrivaninha
com um computador portátil sobre ela. A decoração se dividia entre branco e rosa, e o cheiro de
chocolate prevalecia no ar. Pelo que pude notar a Soraia estava longe de ter problemas financeiros,
pelo contrário, parecia ter uma vida bem confortável.
Sentando-me à beira da cama questionei:
-Mas o que aconteceu?
Chorando ela começou a explicar:
-Eu estava voltando da faculdade, e pra chegar mais rápido em casa resolvi pegar um micro-
ônibus...
-Sei...
-Quando eu fui passar na catraca a cobradora disse pra eu descer pela porta da frente, porque se
não eu ia entalar...
-Ela falou isso?
-Sim.
-Com essas palavras?

45
-Foi...
-E você não anotou os dados desse micro-ônibus?
-Na hora fiquei tão nervosa que desci um ponto antes.
-Humpft... Que absurdo!

“A renovação da frota dos ônibus que compõem o


sistema de transporte coletivo urbano de passageiros de São
Paulo não só traz mais segurança e conforto aos usuários, como
também promove ganhos ambientais com a redução da emissão
de poluentes no ar. Com a conclusão da incorporação desses
novos ônibus ao sistema em 2008, o ar da Capital deixará de
receber 1.500 toneladas de poluentes por ano.
Além de serem mais novas, maiores e mais
confortáveis, as adaptações fixadas para os novos ônibus
incluem o rebaixamento do piso, aumento da largura das portas,
eliminação de obstáculos, transmissão automática, suspensão
pneumática, limitadores de velocidade e áreas reservadas para
cadeirantes e cão-guia. Os microônibus (com apenas uma porta
e corredor estreito) não serão mais aceitos no sistema de
transporte. "A partir de agosto, todos os veículos deverão
atender os critérios estabelecidos", informa o secretário
municipal de Transportes.” (Prefeitura, 2007)

Apesar das adaptações, as catracas dos veículos tornaram-se ainda menor, detalhe
que não foi tratado nas adaptações e reestruturação dos carros.
Ao levantar-me de sua cama, tropecei em uma caixa de bombons cheia de
embalagens vazias. Abismado, não acreditei no que vi, pois a quantidade consumida era o
equivalente à dez barras de chocolate.
-Soraia!... Você comeu tudo isso?
-Humpft... Sim...
-Mas você acha que vai adiantar alguma coisa?
-Eu precisava... Estava muito triste, nervosa.
-Você come quando está ansiosa?
-Demais...
-E como é que você quer emagrecer comendo desse jeito?
-Eu sei... Mas a vontade de comer é mais forte do que eu...
-Humpft.... Desde quando você começou a sentir essa necessidade exagerada de comer?
-Acho que desde quando meus pais se separaram...
-E a partir de quando você começou a engordar?
-Desde essa época.
-Você já conversou com sua mae sobre isso?
-Ela nunca tem tempo, sempre trabalhando... Fico muito sozinha, me sinto vazia.
-Sei... E a forma que encontrou para suprir essa necessidade foi a comida.
-Sim.
Confesso que quando ela falou sobre “entalar na catraca” tive vontade de rir. Até
seria cômico se não fosse trágico. Depois daquela conversa comecei a entender o porquê de sua
tristeza no olhar, a compulsão pela comida.
Nos últimos anos, o transtorno de comer compulsivamente vem sendo reconhecido
como uma síndrome, da qual se caracteriza pela ingestão de alimentos mesmo sem ter fome. O que
a difere da bulimia nervosa é a não tentativa de perca de peso utilizando métodos compensatórios,
mesmo sofrendo por agir daquela forma. Pessoas que comem compulsoriamente despertam
sentimentos de culpa e vergonha, além da sensação de falta de controle sobre o ato de comer. A
maioria das pessoas que sofrem dessa síndrome são obesas, apresentando variações de peso
constante, pois a comida é um refúgio para seus problemas psicológicos.
46
Fiquei triste em ver minha amiga naquela situação sem muito poder fazer. Assim
como ela existem milhões de pessoas pelo mundo a fora sofrendo pelo mesmo problema, mas sem
saber como nem para quem pedir ajuda.
A obesidade é uma enfermidade (Doença) que se caracteriza pelo acúmulo excessivo
de gordura corporal, associada a problemas de saúde, trazendo prejuízos ao bem estar. Ela se
desenvolve em diversas etapas, podendo ser motivada através de herança genética, por questões
socioeconômicas, ambientes individuais ou familiares, até mesmo cultural e educativo. Com isso,
uma pessoa pode apresentar algumas características que a distinguem, principalmente na sua saúde
e nutrição.
Depois que nos despedimos, deixei seu quarto e descia a escada quando sua mãe
abordou-me:
-Tom...
-Oi!
-Você conversou com ela?
-Sim.
Sentando-se ao sofá e deixando seu computador portátil de lado ela perguntou:
-Por favor, sente-se... O que ela disse a você?
-Desculpe por eu falar dessa forma, mas a senhora não está sendo uma boa mãe.
-Foi isso que ela lhe disse?
-Não... Quer dizer, não com essas palavras.
-Como assim?
Sentando-me ao sofá respondi:
-Humpft... Eu não sou psicólogo, mas nem precisa ser profissional da área para perceber que o
problema de sua filha é carência.
-Carência? Nunca deixei que faltasse nada à Soraia...
-Tem certeza?... Quando foi a ultima vez que vocês duas almoçaram juntas sentadas à mesa?
Calada, baixou sua cabeça.
-A Soraia está sofrendo muito, sentindo-se sozinha, e todos esses problemas começaram na
separação...
-Refere-se a minha e do pai dela?
-Claro.
-Humpft... Eu vou conversar com ela...
-Bem... Eu preciso ir.
-Tom, muito obrigada por ter me contado...
Parado próximo à porta respondi:
-Sabe por que o mundo está cada vez mais difícil e as pessoas cada vez mais violentas?
-Não...
-Humpft... Porque não tem quem os ouça...
-Eu...
-Se essas pessoas tivessem recebido o amor de pai e mãe em sua formação, fossem ouvidos, com
certeza não precisariam chamar atenção dessa forma, e o mundo seria bem menos violento.
-Você fala de uma forma tão melancólica...
-Sofro até hoje as consequências de ser desprezado pelo pai, e você não imagina o quanto dói uma
palavra ruim vinda de alguém que você só gostaria de ouvir coisas boas, que pudesse confiar...
-Entendo...
-Os pais são as únicas pessoas que os filhos confiam, e se eles não passam confiança, em que ou
quem irão acreditar? Olhe mais para sua filha... Ainda há tempo.
Levantando-se e se aproximando de mim ela falou:
-Aquele que não enxerga o garoto maravilhoso que você é, só pode ser uma pessoa do mal.
-Acredito que não... Não culpo as pessoas por isso... Somente os seres especiais sabem o
significado de amar de verdade, pois o amor é um sentimento nobre, que Deus dá somente aos
merecedores.

47
Demos um abraço, em seguida fui embora.

Acordei com muita preguiça naquela manhã. Levantei, escovei os dentes, tomei
banho e desci para tomar café, vestindo apenas um roupão. A mesa já estava pronta e minha mãe
retirava uma torta do microondas quando perguntei:
-O que é isso, mãe?
-Torta de maçã.
-Hum!
Nesse momento o telefone tocou. Segui em direção à sala dizendo:
-Deixa que eu atendo...
Ao pegar o telefone, chamei por duas vezes, mas ninguém respondeu, desligando
logo em seguida.
-Alô?... Alô?
Voltei à cozinha e sentei-me à mesa novamente. Pegando a jarra de suco na geladeira
minha mãe perguntou:
-Quem era?
-Não sei... Não falou nada.
Assustei-me com o barulho da jarra se quebrando ao chão.
-Nossa!... Está tudo bem?
-Ai, droga...
-O que houve?
-Acho que me distrai...
-Mãe... Fale a verdade, não foi só isso...
Percebi que minha mãe havia ficado muito nervosa quando disse que ninguém havia
respondido ao telefone.
-Tom... Vá se vestir para sairmos, se não você vai se atrasar.
-Mãe... Era ele, não é?
-Pára...
-Fale? Era ele?
-Não sei... Acho que sim...
-Humpft... Ele tem te ligado?
-Tom...
-Ele tem te ligado?
-Sim.
-E o que ele diz?
-Filho...
-Fale, mãe?
-Às vezes ele faz ameaças...
-Que tipo de ameaças?
-Humpft... Ele... Diz que vai nos tirar tudo.
-Não acredite no que ele disser... Você é forte, mãe... Mesmo que ele queira, metade de tudo é nosso
por direito legal...
48
A intenção dele era fazer uma pressão psicológica, e claro que não era somente
aquilo que ele estava ameaçando, pois eu tinha certeza que muito mais delitos haviam ali, porém,
minha mãe preferiu omitir, por vergonha talvez, mas independente do motivo eu iria descobrir.
-Mãe... Peça para que mudem o número do telefone...
-Não acho que seja necessário...
-Por favor, mãe.
-Humpft... Tudo bem... Quando você voltar da faculdade, pode fazer isso por mim?
-Claro!
Não toquei mais no assunto durante o caminho até a faculdade. Após deixar-me em
frente ao campus ela seguiu para a lanchonete para trabalhar. Entrei na sala de aula e notei um certo
tumulto, arrastando as carteiras para os lados e conversas em altas vozes.
O professor começou a dividir a sala ao meio e iniciou um debate sobre cotas em
universidades. Eu odiava quando ele promovia seus debates daquela forma, pois eu ou um dos
“excluídos” sempre éramos alvos de alguma piada, e claro, naquele dia não seria diferente.
-Galera... Silêncio... Eu quero que vocês me digam a opinião de vocês com relação às cotas em
universidades. Isso gera ou não preconceito? Dividam-se em dois grupos com vinte alunos cada
um.
-A gente escolhe em qual grupo quer ficar?
-Pode escolher... Um grupo defenderá as cotas e o outro se manifestar contra...
-E qual será a favor?
-Isso eu vou escolher...
Após um breve sorteio ele definiu que o grupo da esquerda seria a favor das cotas.
-Esse grupo aqui será contra, e esse a favor.
Com uma caneta à mão, o Roberto, que ficou no grupo a favor das cotas iniciou
dizendo:
-Essa questão é muito complicada, professor... Pode ser vista como preconceito se for vista apenas
a questão das cotas isolada do propósito...
De uma forma arrogante, a Amanda, que para variar estava no grupo que debatia
contra, colocou sua opinião diante a sala:
-Eu acho que pobre já tem uma vida muito sofrida, não deveria fazer faculdade.
Apoiando-se em sua mesa o professor questionou:
-Ué... Por quê?
-Não que eu seja preconceituosa, mas acho que existem coisas nessa vida que são feitas para
determinados tipos de pessoas, e curso superior não foi criado para a classe proletariada.
Até admiro a coragem que ela teve em expor sua radical opinião, porém, eu não ia
deixar passar a oportunidade de mostrar o quanto sua vida era vazia. Pedi a palavra ao professor e
retruquei sua afirmação:
-Mas depende da pobreza da qual você está se referindo, pois existem aquelas pessoas que são tão
pobres, tão pobres, que só o que elas têm é dinheiro...
Claro que ela entendeu que a indireta era pra ela, e decorrente a isso não respondeu
mais nada, dando ao professor a palavra para prosseguir com o debate. Assim como a Amanda, toda
a sala entendeu o recado, como a carapuça do saci.
No horário do intervalo descemos eu, o Cauê e a Soraia para a praça de alimentação,
pois a fome havia batido e um pequeno lanche naquele momento cairia muito bem.
Sentamos à mesa, o Cauê comentou:
-Você foi demais, Tom!
-Por quê?
-Falou tão bonito... Me senti orgulhoso de você...
Levantando-se da mesa a Soraia disse:
-Nossa, Tom!... Eu queria ter essa coragem que você tem...
-Parem com isso.
-Estou indo até a cantina. Alguém quer alguma coisa de lá?

49
-Eu quero um achocolatado, lindinha.
-E você, Cauê?
-Pode me trazer um pão de queijo?
-Claro! Volto logo.
Após um curto suspiro o Cauê chamou-me atenção para a entrega do trabalho:
-Tom... A semana que vem temos que entregar aquele trabalho das duplas.
-É verdade! Eu havia esquecido...
-Podemos fazer no próximo sábado em minha casa, se vocês quiserem...
-Por mim tudo bem...
-Será que a Soraia irá topar?
-O que tem eu?
-Eu estava sugerindo ao Tom em fazer aquele trabalho das duplas em minha casa no próximo
sábado. O que você acha?
-Eu adorei a idéia!
-Então fechou. Faremos o trabalho na minha casa.
-Ótimo! O que eu levo?
-Você já leve as pesquisas prontas da internet e o Tom leva as de revista... Em casa eu já tenho o
código...
Depois de tomarmos nosso lanche, voltamos à sala e continuamos assistindo à aula e
participando do debate, porém, sem piadas ou picuinhas, pois todos já haviam entendido que
nenhuma gracinha seria tolerada calado.
No domingo minha mãe não foi trabalhar, pois não seria dia de folga dos
empregados, sendo assim ela optou em descansar o final de semana em casa. Eu sempre incentivei-
a em não trabalhar aos finais de semana, pois haviam os empregados que cuidavam da lanchonete
sem que minha mãe precisasse supervisionar, porém, sua mania de se sentir inútil estando em casa
sem fazer nada causava-lhe um certo incomodo.
Acordei por volta das oito horas da manhã, seguindo direto para o banho. O dia lá
fora estava agradável, sol ameno e ventando moderadamente. Meus olhos ainda ardiam de sono, e
ao lavar o rosto acabei molhando o cabelo, algo que eu não queria que acontecesse. Após juntar o
material do trabalho e passar o perfume, desci a escada na ponta dos pés.
Sai de casa rápido, nem tomei café para não ter que cruzar com minha mãe, pois
acabaria enchendo-me de perguntas e eu não estava a fim de interrogatórios naquele dia.
Caminhando pela rua eu ia pensando na montagem do trabalho, não vendo a hora de
chegar la e por em prática minhas idéias. Não que eu me considerasse o melhor, mas sempre
defendi minhas idéias em tudo que fazia, mesmo que não fossem aproveitadas ou ouvidas, mas eu
fazia questão de expor.
Desci do metrô e peguei um ônibus até a casa do Cauê, pois eu não estava a fim de
caminhar por dez minutos e chegar em sua casa suando, fedendo. Minha mochila estava pesada,
mas não ao ponto de me incomodar, pelo contrário, o que mais me deixou sem graça foram os
olhares das pessoas de espanto, tudo pelo meu jeito diferente de se vestir.
Ao chegar no portão de sua casa, toquei a campainha e aguardei alguém aparecer.
Sua rua estava cheia de crianças brincando. Na casa ao lado, quatro garotas pulavam corda no
quintal, e ao ver-me parado na calçada uma delas falou:
-A Irene saiu...
Após um suspiro profundo eu respondi:
-Obrigado!...
Olhando-me torto outra garota perguntou:
-Você é menino ou menina?
Antes que eu respondesse uma delas disse:
-Ele é Emo, sua burra.
-Credo!... Ele é muito estranho...

50
"Essa semana uma girl (menina) perguntou se eu era roqueira, eu disse que sou Emo, e ela
perguntou se eu era o capeta. Que ridículo!" (Prizinha, 15 anos, Salvador)

Sinceramente eu nunca entendi essa “rejeição” com relação às pessoas que


pertencem a tribo Emocore. Não pelo motivo de pertencer ao grupo, mas a falta de motivos ruins
para que se veja os Emos de uma forma pejorativa. Depois de muito questionar e não encontrar
respostas, cheguei a conclusão de que a felicidade alheia incomoda. A humanidade vem se tornando
cada vez mais violenta, e os motivos são os mais estúpidos que se possa existir. Hoje em dia mata-
se por um bilhete de ônibus, um relógio de pulso, ciúme do namorado, ou simplesmente por não ir
com a cara do outro e vários outros motivos que se não justificam a violência.
Espiando pela janela a Soraia exclamou:
-É o Tom!
Dirigindo-se até o portão o Cauê caminhou como se fosse uma pessoa comum, sem
precisar do auxílio do Emílio ou de sua vareta. Exibindo um leve sorriso ele disse:
-Que bom que você chegou!
-Por quê?
-Eu já estava com saudade...
-Que lindoooooo!
-Entre, amor!
Ao entrar, duas crianças apoiaram-se ao portão e perguntaram:
-Cauê... Quem é esse menino estranho?
Correndo, uma mulher aproximou-se dele, pegou pelo seu braço e falou:
-Eu já não te falei pra você não chegar perto... Isso não é coisa de Deus...
Aquilo deixou-me muito mal. Sem nada dizer, entramos pela porta da sala, e uma
vontade enorme de chorar evazou-se sem que eu pudesse controlar. Dando-me um abraço a Soraia
disse:
-Puxa, Tom... Não fique assim... Que gente perversa!
-Tom... Não chore, por favor... Essa gente é malvada assim mesmo, não ligue...
-Humpft... Tudo bem... Eu já deveria estar acostumado com isso.
-Jamais volte a dizer isso...
-Mas é verdade, Cauê.
-Você não deve aguentar o preconceito calado... Não foi isso que você me ensinou?
-Humpft... Sim...
Dando-me um abraço forte ele questionou sussurrando ao meu ouvido:
-Você confia em mim?
-Confio!
Seguimos para a cozinha, juntamos todo o material e nos sentamos às cadeiras de
madeira trabalhada. O silêncio se fez presente. Próximo à geladeira havia um relógio de parede em
formato de gato, onde o tic-tac produzido pelo pêndulo tornou-se o único som por alguns instantes,
até que o Cauê levantou-se da cadeira perguntando:
-Alguém quer suco?
Colocando seus óculos a Soraia perguntou:
-Suco de quê?
-De maracujá.
-Eu quero!
-Foi minha mãe quem fez... Ela também já deixou almoço pronto para nós...
-Que delícia!
-É... Além de um bolo de laranja.
-Ai... Hoje vou sair daqui mais gorda do que já estou.
Sua casa era simples, mas bem montada. Os azulejos da cozinha continham cerejas
desenhadas, combinando com a enorme toalha que recobria sua mesa. De frente para a pia havia
uma janela com vista para o quintal, por onde entrava uma deliciosa brisa fresca.

51
Folheando as impressões que a Soraia havia levado, questionei:
-Soraia... Isso aqui é o texto bruto extraído da internet ou você resumiu?
-Não... Fiz uma resenha...
-Ah ta!
Passamos a manhã inteira discutindo, resumindo e montando o trabalho. Não que o
tema fosse difícil de ser tratado, porém, não poderíamos deixar margens ou aberturas para que
nossas opiniões fossem contestadas, pois o que faz um bom advogado é seu poder de argumentação
convincente.
Antes mesmo de almoçarmos, a Soraia já havia comido seis fatias de bolo. Eu apenas
observei calado, achando um certo exagero, mas não consegui me segurar quando a vi pegando o
sétimo.
-Soraia... Você não acha que está comendo demais?
-Ai gente... Desculpem, mas é que está tão gostoso...
-Humpft... Não que eu esteja me incomodando com o quanto você come, mas estou preocupado
com sua saúde...
-Tom... Sinto vontade de comer sem ter fome, não acho que isso seja normal...
-Por que você não faz uma dieta?
-Eu vivo fazendo, mas nunca consigo emagrecer...
Os sintomas mais comuns do transtorno do comer compulsivo são caracterizados por
comer mesmo sem ter fome, dietas e uso de medicamentos contínuos para perca de peso, comer
sozinho por sentir-se envergonhado da quantidade de comida ingerida, alteração frequente no peso,
ingestão exagerada de alimentos, assaltar a geladeira durante as madrugadas.
O que irá caracterizar se a pessoa possui o transtorno é a repetição de pelo menos
dois episódios por semana conforme citados. Durante a ocorrência desses episódios, no mínimo três
características devem estar presentes, tal como sentir-se culpado ou envergonhado após ter comido
em grande quantidade, comer sozinho por sentir-se envergonhado da quantidade de comida
ingerida, ingerir grandes quantidades de comida mesmo estando sem fome, assaltar a geladeira nas
madrugadas, comer até se sentir desconfortável fisicamente, ingerir alimentos muito mais rápido
que o normal.
-Alguém tira esse bolo da minha frente, por favor?
-Pegando a bandeja o Cauê falou:
-Deixa que eu tiro...
Enquanto o Cauê guardava o que havia restado do bolo na geladeira a Soraia
perguntou-me enquanto folheava um livro:
-Tom...
-Hum?
-O Cauê disse que você e ele...
-Nós o quê?
-Estão...
-Estamos o quê?
-Ficando?
Tentando desculpar-se o Cauê disse:
-Foi sem querer, Tom... Escapou... Por favor, não fique bravo?
-Não há problema... Nós estamos ficando sim.
-Que gracinha!... Mas na verdade eu já sabia.
-Sabia?
-Claro... Naquele dia vocês se chamando de amor na frente de todos na coordenação...
-Nossa!... Eu nem percebi...
-Nem eu, Tom!... Saiu tão naturalmente...
Dando um gole em seu suco a Soraia perguntou:
-Gente... Vocês viram aquele congresso que vai ter em Porto Alegre?
Mordendo sua fatia de bolo o Cauê quis saber:

52
-Que congresso?
-Vai haver um congresso em julho lá em Porto Alegre, com palestras de profissionais da área
judiciária e valerá como horas complementares.
-E qualquer um poderá participar?
-Não... Acho que tem duas vagas somente.
-Por sala?
-Não, é por universidade. Gente, vocês não viram o cartaz no mural da sala?
-Eu não reparei...
Descontraído o Cauê falou:
-Eu também não vi.
Todos rimos. Seguido de um breve suspiro, comentei:
-Eu to precisando é de uma balada...
Amarrando seu cabelo a Soraia disse:
-Se eu disser que nunca fui em uma balada, vocês acreditam?
-Eu acredito, pois também nunca fui.
-Sério que vocês dois nunca foram em uma balada?
-Qual é o problema?
-Calma, Soraia...
-Humpft... Desculpe.
-Não tem problema... É que... Ai, eu sofro muito.
Sem entender o Cauê perguntou:
-Com o que você sofre, So?
-Eu tenho medo de passar vergonha...
-Vergonha?
-É...
Curioso, quis saber:
-O que aconteceu, miguxa?
-Humpft... Ai Tom... As pessoas vivem me chamando de gorda, riem de mim... Uma vez eu fiquei a
fim de um garoto e sofri muito, pois ele não me quis e disse pra todo mundo da escola que eu era
muito gorda e feia.
-E o que você fez?
-Chorei.
-Você é uma burra...
-Ai, Tom!
-Mas é verdade... Você deveria se empenhar e mudar o jogo...
-Como?
-Mostrar a ele o que perdeu...
-Continuo sem entender.
-Faça um esforço, emagreça, e quando você estiver uma girl magérrima, passe por ele e esnobe...
-Será que eu consigo?
-Consegue sim...
Ansioso o Cauê disse:
-Prometa pra gente então que você vai se inscrever no concurso de Miss?
-Ai gente, não exagerem...
-O Cauê tem razão, So...
-Mas meninos... Eu não sei nem como faz pra participar disso... Além do mais, não tenho corpo
nem beleza para...
-Pára com isso. Você é linda, e quando emagrecer vai calar a boca daquela galera que te esnoba e
te ridiculariza...
-Não sei...
-Promete que vai pensar?
-Humpft... Prometo...

53
-Tive uma idéia!
-Qual, amor?
-Vou levar vocês para conhecer meus amigos...
-Sério, mor?
-Sim... E vou levá-los para conhecer uma balada.
-Quando?
-Pode ser hoje à noite...
-Eu topo, mô!... Mas você vai cuidar de mim, né?
-Claro...
-Bem... Então eu também topo, Tom.
-Você vai ver, So... Lá ninguém vai te olhar torto só porque você não pertence ao grupo de
sarados...
-Espero que ninguém ria de mim...
-Isso não acontecerá... Bem... Vamos voltar à se concentrar no trabalho...
Naquele dia cheguei em casa já eram quase quatro horas da tarde. Antes de ir tomar
banho, entrei na internet para ver se a galera estava on-line, para assim avisá-los que iria levar duas
pessoas comigo para conhecê-los.
Sentado à cadeira, sem camisa, abria o navegador quando minha mãe entrou no
quarto toda feliz dizendo:
-Tom... Sua tia Sandra ligou...
-E?...
-E está grávida.
-Sério?
-Sim... Finalmente ela conseguiu...
A tia Sandra era uma das sete irmãs da minha mãe. Sendo dois anos mais nova,
nunca conseguiu engravidar, e há três anos estava fazendo tratamento junto com seu marido para
que o sonho de ser mãe se realizasse.
-Que notícia ótima, mãe!
-Amanhã nós iremos até la visitá-la...
-Claro!
-Você... Vai sair?
-Sim...
-E vai passar à noite fora?
-Não pretendo... Irei levar o Cauê e a Soraia na balada. Acredita que eles nunca foram?
-Por quê?
-A Soraia disse que não foi por vergonha.
-Vergonha de quê?
-Por ser gorda.
-Coitada...
-É... Mas eu já disse pra ela que a minha turma não irá ridicularizá-la por conta disso.
-Bem... Pelo visto você não irá jantar em casa...
-Não... Só vou comer algo rápido antes de sair.
-Eu fiz pão de queijo hoje à tarde...
-Hummmmm... Adoroooooo!
Encostando a porta ela disse:
-Eu vou ver um pouco de TV na sala.
-Ta bom.
Da turma de amigos, apenas o Kico estava on-line. Ao conectar, fui logo chamando
para conversar:

/// Srtº Tom \\\ diz:


oie migow

54
----KiCo---- diz:
oi fofinhu

/// Srtº Tom \\\ diz:


td bein?

----KiCo---- diz:
xim e vuxe?

/// Srtº Tom \\\ diz:


to tb... vcs vaum lah hj?

----KiCo---- diz:
num sei...

----KiCo---- diz:
hj num to mt bein naum

/// Srtº Tom \\\ diz:


o q vc tem?

----KiCo---- diz:
to desanimadu

/// Srtº Tom \\\ diz:


ah... para cum issu... e o namoru?

----KiCo---- diz:
ki namoru?

/// Srtº Tom \\\ diz:


vc e a debi num tava ficandu?

----KiCo---- diz:
ixi... acabamu faix tempow...

/// Srtº Tom \\\ diz:


q pena

----KiCo---- diz:
bein... axu ki vo cum vc entaum

----KiCo---- diz:
kem vai cum vuxe?

/// Srtº Tom \\\ diz:


eu vo com doix amigu da facu

/// Srtº Tom \\\ diz:


ker dize... uma miga e meu ficanti...

55
----KiCo---- diz:
fexaduuuuu... a genti se encontra lah entaum

/// Srtº Tom \\\ diz:


xertuuuuu

----KiCo---- diz:
eu emo vuxe

/// Srtº Tom \\\ diz:


bju

Após desconectar fui tomar um banho. A galera costumava ir todo sábado à balada
no bairro do Bom Retiro, aqui em São Paulo. Lá tem banda ao vivo, toca as músicas que a gente
curte e ninguém nos importuna por sermos o que somos.

56
Eu não via a hora de apresentar a minha “razão de viver” aos meus amigos. Ao entrar
em minha vida, o Cauê transformou-a completamente, levando-me ao paraíso sem sair do lugar,
fazendo-me viver um sonho acordado.
Cheguei na estação Armênia do metrô e fiquei esperando pelos dois. Olhei no relógio
e já eram oito horas da noite, sendo que havíamos marcado para nos encontrar às oito e dez. Cinco
minutos depois a Soraia chegou, toda elegante, com um perfume que deixava rastro por onde
passava, cheia de pose em cima de um salto agulha.
-Oi Tom!
-Boa noite! Você está linda...
Tocando em sua mão, girei-a para ver em ângulo de 360 graus.
-Eu?
-Sim...
Realmente, a Soraia estava muito bonita. Os olhos pintados, realçados com uma
sobra brilhante moderadamente, e nos lábios um gloss, deixando-as com um ar sexy. Ao notar uma
certa tristeza em seu olhar, não exitei em perguntar:
-Miguxa... Você está triste?
-Humpft... Ai Tom... Estou um pouco mal...
-Por quê?
-Hoje quando fui me arrumar pra vim, nenhuma roupa me servia...
-Sério?
-É... Tive que ir correndo até o shopping comprar algo pra vestir...
-Nossa!
-Fiquei muito mal.
-Eu imagino.
-Bem... Mas graças a você minha mãe tem me dado mais atenção...
-Ah é?
-Sim... Ela me incentivou a fazer um regime, ou melhor, uma reeducação alimentar através de uma
nutricionista...
-Com isso eu concordo, mas ainda acho que você deveria consultar um médico.
-Você acha?
-Acho.
-É... Vou pensar...
-E, por favor, pare de se entupir com aqueles remédios que não adiantam nada.
-Humpft... Tentarei.
Com o auxílio de um funcionário o Cauê desembarcou. Guiado também com sua
vareta eles caminhavam em direção às catracas quando os abordamos.
Estando os três juntos, seguimos para a baladinha onde eu costumava frequentar.
Descíamos à escada rolante quando a Soraia perguntou:
-Cauê... Como você faz pra andar sozinho por São Paulo que é tão grande?
-Eu saio com o Emílio quando vou para lugares que não conheço...
-E quando não está com o Emílio?
-Quando não estou com o Emílio eu uso a vareta para me guiar...
-Mas não é ruim andar pelo metrô? Você não tem medo de cair nos buracos das calçadas?

57
-Ah... Os funcionários do metrô nos ajudam a se locomover nas estações... Além de ter sinalização
no piso para guiar pessoas com problemas como o meu...
Em 2005 a Secretaria Municipal das Subprefeituras de São Paulo iniciou o Programa
Passeio Livre, onde através do decreto 45.904/05 estabeleceu normas de acessibilidade, dimensões
e materiais adequados para implantação de calçadas e uma forma de parceria com a iniciativa
privada para reconstruir calçadas.
Para que a padronização e acessibilidade dos passeios atinjam toda a cidade, as
calçadas dos imóveis particulares também foram reformadas, sendo de responsabilidade do
proprietário do imóvel a conservação, manutenção e reforma, independente se residencial ou
comercial. As calçadas que estiverem irregulares ou mal conservadas são passíveis de multa.
Em 2007 o total de calçadas reformadas na cidade já passava dos 500.000 m², sendo
revestidas com pavimento de blocos intertravados, nas cores vermelha, cinza e cinza escuro, com
extremidades rebaixadas para facilitar o trânsito de cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida,
onde idosos, gestantes, deficientes e crianças possam transitar sem preocupação e riscos de
acidentes. Há também pavimentos feitos de concreto moldado, placas pré-moldadas e ladrilho
hidráulico. Os motivos que levaram a prefeitura a escolher materiais como esses foram a estética, a
durabilidade e flexibilidade de remoção e recolocação, sendo econômico e ecológico, por permitir
que a água penetre no solo entre os blocos.
Ao chegarmos avistei o Kico parado à porta, vestindo uma calça preta e uma
camiseta branca. Usando um boné com a aba virada para trás e os olhos pintados, nem notou nossa
presença.
Calado, aproximei-me dele e puxei seu cinto por trás, dando-lhe um susto.
-Tom! Que sustooooooo...
-Hahaha... Deixa eu te apresentar... Esse é o Cauê...
-Prazer, Cauê!
-Prazer!
-E essa é nossa amiga Soraia...
-Nossa, girl! Como você é bonita...
Tímida, a Soraia agradeceu após cumprimentá-lo com um beijo no rosto.
-Bonita?... Obrigada!
Nem precisou que ela dissesse para notar sua felicidade. Claro que na frente do Kico
eu não falaria nada, mas depois confirmaria sem sombra de dúvidas minhas suspeitas, com
discrição. Caminhando em direção à porta perguntei ao Kico:
-Você não vai entrar?
-Estou esperando o Dinho...
-A gente se vê lá dentro então.
-Certo.
Tornei-me apoio da Soraia e do Cauê, pois ambos seguravam em meu braço, um de
cada lado, estando eu ao meio, recheando o sanduiche. Procurei um canto onde pudéssemos ficar
sem muitas pessoas em volta. Ao lado esquerdo encontramos uma mesa, e logo depois que nos
instalamos o Kico e o Dinho nos encontraram:
-Nossa... Por que vocês estão se escondendo?
-Quem disse que estamos nos escondendo?
-Então pra que ficar aqui no canto?
-Não posso deixar o Cauê no meio do povo, ele tem deficiência visual...
-Ah!... Eu vou buscar uma cerveja e já volto...
-Beleza.
Enquanto os dois foram ao bar, perguntei à Soraia:
-So... Por que você está toda solta desse jeito?
-Eu?... Como assim?
-Sim... Depois que o Kico falou que você estava bonita...
-Ai amigo... Nunca ninguém me fez um elogio desse antes...

58
-Sério?
-É...
Segurando duas latas de cerveja na mão o Kico voltou, oferecendo uma delas à
Soraia. Eu não era bobo, e percebi logo um clima rolando entre os dois. Por volta das nove horas
toda a turma já havia chego, concentrando-nos em volta da mesa e conversando sobre diversas
coisas.
Dando um gole em sua caipirinha a Linoka perguntou:
-Tom... Quanto tempo faz que você e seu amorzinho estão namorando?
Após um suspiro o Cauê respondeu por mim:
-Não estamos namorando, apenas ficando.
-E o que falta pra vocês namorarem?
-O Tom me pedir em namoro.
Nesse momento todos começaram a gritar:
-Pede... Pede... Pede...
Até a banda que tocava no palco parou e aderiu ao coro. Morri de vergonha, pois
nunca havia passado por tal situação. Pedindo silêncio, toquei na mão do meu amorzinho e com
uma certa timidez tentei dizer:
-Bem... Mozinho... Você aceita namorar comigo?
-Aceito!
Todos começaram gritar:
-Aeeeeeeeeeeeeeeeee...
Demos um beijo, e logo em seguida a banda retomou às músicas. Minhas mãos
tremiam, tamanha timidez. Tirando o cigarro da boca o Kico puxou-me de lado falando:
-Tom... Será que tem jeito de você tentar um esquema com sua amiga?
-Você está falando da Soraia?
-É.
-Pra você?
-É...
-Bem... Eu posso falar com ela...
-Brigadu, migow!
Voltei à mesa e disse no ouvido da Soraia:
-So... Humpft... Eu acho que o Kico ficou a fim de você.
-De mim?
-É... O que você acha?
-Mas Tom, eu sou gorda...
-Não foi isso que ele disse para você...
-É verdade... Ai meu Deus...
-O que foi?
-Eu não sei o que eu faço... Ninguém nunca se interessou por mim...
-Então decide, eu posso dizer a ele que você topa conversar?
-Humpft... Pode.
Fiz apenas um sinal com a cabeça para ele que se aproximou e sentou-se ao nosso
lado. Deixei-os conversando e fiquei dando atenção ao Cauê, e ao virar-me novamente avistei os
dois se beijando, abraçados, trocando carinhos. Fiquei super feliz pelos dois, pois ambos eram
pessoas que eu gostava, e logo contei a novidade ao Cauê que vibrou com a notícia.
-Mozinho... A Soraia e o Kico estão se beijando...
-Sério?
-É...
-Me beija também?
Pegando o embalo dos dois, eu e o Cauê iniciamos um beijo também. Passamos uma
noite muito agradável, principalmente a Soraia, que aproveitou bastante com o Kico. Fiquei muito
feliz por ela, pois o meu amigo era um cara muito bacana, e eu não digo isso pelo fato dele ser meu

59
amigo, mas sim por reconhecer o valor real das pessoas.
Deixamos à balada já passava dás onze horas da noite. Por insistência da Soraia e do
Cauê, acabamos voltando de táxi, e no estado em que a Soraia ficou após beber meio copo de
batida, não seria seguro se ela voltasse de metrô.

60
Ao chegarmos na casa do Cauê, desci para o acompanhar. Nos despedimos da Soraia
que permaneceu no carro, seguindo para sua casa logo em seguida. Parados em frente ao portão, dei
um abraço em meu mais novo namorado. Nossos corpos juntos, sentindo o calor de sua pele faziam-
me um bem enorme, como um remédio para as soluções dos meus problemas.
Tocando em meu rosto o Cauê disse com a voz embargada:
-Tom... Eu quero ser seu... Só seu... Por completo...
-Você já é meu desde quando te tirei daquela piscina...
Encostei-o na parede e recomeçamos a nos beijar. Suas mãos exploravam minhas
costas com suaves toques, caricias leves que me faziam arrepiar. No intervalo de um beijo e outro
olhei no relógio e já passava da meia noite.
-Caramba!
-O que foi?
-Já são meia noite e quarenta... Como vou embora agora?
-Não vá... Durma aqui comigo...
-Dormir aqui?
-É...
-Mas sua mãe...
-Ela não irá se importar... A gente explica a causa para ela amanhã...
-Bem... Então tudo bem... Só vou ligar para minha mãe e dizer que não dormirei em casa.
-Sim, meu amor.
Telefonei para minha mãe e avisei que não dormiria em casa. Embora não fosse
muito favorável à idéia, não restou outra alternativa, pois não havia mais transporte pelo horário e ir
até lá me buscar seria difícil pelo fato de já ser noite e ela não conhecer a região.
Ao entrarmos, seguimos direto para a cozinha. Puxando uma cadeira o Cauê
perguntou-me:
-Amor... Você está com fome?
-Um pouco.
-Minha mãe deve ter deixado algo pronto aqui... Você pode ver se está dentro do microondas?
-Claro, mozinho.
Abri a porta do microondas e logo avistei metade de uma torta de frango que parecia
estar com uma cara ótima.
-Meu príncipe... Tem torta de frango...
-Oba! Esquenta pra mim, por favor?
-Claro!
Enquanto a torta aquecia, eu e o Cauê arrumávamos à mesa para jantarmos. O
silêncio da madrugada me fazia um bem enorme, em todos os sentidos, levando-me a um estado de
paz.
Sempre quando eu me sentia sozinho, subia no telhado e passava a madrugada inteira
pensando na vida, enquanto a cidade continuava trabalhando sem parar. As luzes dos grandes
prédios formavam um lindo cenário, abrigando meus pensamentos e acolhendo-me nos meus
momentos de tristeza.
Sentados à mesa, jantávamos a torta de frango, que por sinal estava maravilhosa
quando o Cauê disse:

61
-Está ouvindo esse barulho?
-Que barulho?
-De carros.
-Não ouço barulho algum...
-É porque está bem baixinho...
-Certamente.
-Humpft... Esses carros devem estar bem longe daqui...
-Bota longe nisso.
-Sabe que eu adoro esse barulho de São Paulo?
-Sério?
-É... Barulho de cidade grande à noite...
-Hum... Eu também adoro!
-Enquanto alguns dormem, outros trabalham...
-Pois é. Essa cidade não pára.
Após dar um gole em seu suco de abacaxi o Cauê perguntou:
-Tom...
-Hum?
-Como é a noite?
-Em que sentido?
-Todos!
-Bem... A noite é escura, mais fresca...
-É muito escuro?
-Não. A lua ilumina parte dela, mas não como o sol faz com o dia.
-Ah!
-Durante à noite o ceu fica coberto de estrelas...
-E como são as estrelas?
-Lindas! Brilham bastante, cobrindo com beleza nossos telhados.
-Eu lembro que na escola aprendi que elas ficam muito longe da Terra.
-Isso é verdade.
-Devem ser lindas mesma.
-Seu eu pudesse te daria de presente.
-Deus já me deu o melhor presente do mundo: você.
Naquele momento toquei em sua mão, sentindo-me o cara mais feliz do mundo. O
Cauê foi um presente de Deus, e juntos viveríamos para sempre, unidos pelo sentimento mais nobre
do mundo que é o Amor.
Após jantarmos, seguimos para seu quarto, pois meus olhos já estavam pregando de
sono. Fechei a porta assim que entramos. A janela de seu quarto estava aberta, deixando o ambiente
bem agradável e fresco.
Depois de colocar um CD pra tocar o Cauê sentou-se em sua cama, e tirando seu
tênis ele falou:
-Você se importa de dormir em minha cama?
-Não se preocupe, mozinho... Eu posso dormir no tapete mesmo.
-Por que no tapete?... Você é meu namorado, pode dormir comigo. Ao menos que você não queira.
-Não quero dormir com você.
-Não?
-Não só dormir, mas também acordar, tomar banho...
-Hum... E fazer amor?
-Também!
A luz do quarto já estava apagada quando o Cauê tocou em minha mão e pediu:
-Tom, me beija?
Silêncio entre nós. Fechei meus olhos e iniciamos nosso beijo, um beijo único,
singular. Apenas nossos corpos falavam, acompanhados pelas fortes batidas de nossos corações.

62
De fundo o barulho da cidade se misturava ao som de Não vá embora – Marisa
Monte. Abraçados, nos deitamos. Suas mãos tocavam minha face como se pudessem enxergar
minha alma, meus pensamentos, enquanto a letra da música falava por nós.

Não Vá Embora

E no meio de tanta gente eu encontrei você


Entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio
E eu que pensava que não ia me apaixonar
Nunca mais na vida

Eu podia ficar feio só perdido


Mas com você eu fico muito mais bonito
Mais esperto
E podia estar tudo agora dando errado pra mim
Mas com você dá certo

Por isso não vá embora


Por isso não me deixe nunca nunca mais
Por isso não vá, não vá embora
Por isso não me deixe nunca, nunca mais

Eu podia estar sofrendo caído por aí


Mas com você eu fico muito mais feliz
Mais desperto
Eu podia estar agora sem você
Mas eu não quero, não quero

Por isso não vá embora


Por isso não me deixe nunca, nunca mais
Por isso não vá, não vá embora
Por isso não me deixe nunca, nunca mais

Intérprete: Marisa Monte


Composição: Marisa Monte

Sussurrando ele falou em meu ouvido:


-Faça-me feliz, Tom?
Depois de um intenso suspiro, respondi:
-Como?
-Torne-me seu... Por completo.
Com sua mão direita ele tocou em minha esquerda e a levou em direção ao botão de
sua calça. Voltei a beijá-lo, sem questionar mais nada. Peça por peça fomos nos despindo, até
ficarmos totalmente nus. Abraçados, podíamos sentir as batidas do coração um do outro.
Eu já transei com outros meninos anteriormente, mas nunca havia sentido satisfação
como aquela, um estado de felicidade plena.
Ao tocar em sua cintura, o Cauê falou:
-Preciso te dizer algo...
-O quê?
-Eu... Eu nunca fiz...
-Você é virgem?
-Sim...
-Oh!

63
-Humpft... Decepcionei você?
Respondi primeiramente com um beijo em sua testa.
-Claro que não... Humpft... Você é muito especial, sabia?
-Eu amo você, Tom!
-Também te amo.
Nossos lábios se tocavam carinhosamente, em um beijo calmo, molhado e repleto de
sentimento sincero. A sensação que eu vivia naquele momento jamais sentira antes, impossível
descrever.
A noite estava linda. O vento fresco que entrava pela janela refrescava-nos do suor
provocado pelo clima que rolava no quarto, e a luz da lua, que ao tocar nossas peles recarregava
nossas energias consumidas no momento em que fazíamos amor.
Nossos corpos pela primeira vez sentiram um ao outro, em um verdadeiro e profundo
toque de pele. Sem pêlos, trocávamos suores e beijos, que tornavam-se cada vez mais intensos.
Aquele foi o melhor momento da minha vida, inesquecível, único, mágico,
eternizado por nós, tendo apenas as paredes brancas de seu quarto como testemunha.
Enquanto fazíamos os movimentos pélvicos, dei-lhe um beijo na testa e perguntei em
seguida:
-Está tudo bem, mozinho?
-Sim... Você é maravilhoso...
-Qualquer incômodo, você me avisa.
-Ta bem.
O abracei forte, compartilhando as batidas dos nossos corações. Nossas peles
respondiam na mesma intensidade, cúmplices, em busca do prazer mútuo.
Fizemos amor, como eu nunca havia feito na vida. Aquela noite eu me realizei,
descobrindo algo que até então eu não conhecia.
Com sua cabeça apoiada ao meu peito e o lençol nos cobrindo até a cintura ele disse:
-Obrigado!
-Pelo quê?
-Por me proporcionar um momento tão mágico como esse...
-Não precisa agradecer...
Dei-lhe um beijo na testa e o abracei forte. Assim adormecemos. É impossível
descrever a sensação que se sente ao fazer amor com quem a gente ama. Sozinhos naquele quarto
compartilhamos sonhos, carinho, dividimos prazeres, nos tornamos um só corpo, uma só alma.
No outro dia acordamos por volta das nove da manhã. O cheiro de café já se
espalhara pela casa, despertando em nosso estômago uma euforia quase que incontrolável.
Acariciando meu peitoral o Cauê disse:
-Amorzinho... Dormiu bem?
-Bom dia, mo! Dormi nas nuvens, e você?
-Ainda estou sonhando... Não quero acordar tão cedo...
-Humpft... Acho melhor a gente levantar...
-Também acho. Vamos tomar banho?
-Claro!
Nos levantamos da cama, ambos nus. De mãos dadas caminhamos até seu banheiro.
Liguei o chuveiro, fechei a porta e antes de entrar na água o Cauê exclamou:
-Está fria!... Deixa mais quente, amor?
-Calmai... Pronto, já começou a esquentar.
-Tom...
-Oi?
-Como é a água?
-A água?
-É.
-Bem... A água não tem cor, é...

64
-Não tem cor?
-Não.
-Mas eu sempre ouvi dizer que o mar é azul...
-Sim, mas não porque a cor da água seja azul.
-Então por que é?
-Bem... não sei te explicar com detalhes, mas sei que tem a ver com profundidade, terreno, raios
solares...
-Ah!... E qual é o tamanho do mar?
-Vixi... É muito grande.
-Maior que a China?
-Maior que todos os países juntos.
-Nossa! Um dia você me leva pra conhecer?
-Claro... Você nunca foi à praia?
-Não.
-Então eu te levo pra conhecer.
-Você promete?
-Prometo.

65
Cheguei em casa um pouco antes das nove e meia da manhã. Sem fazer barulho, subi
a escada até meu quarto. Por mais que eu tivesse dormido maravilhosamente bem na companhia do
meu amor, ainda tinha sono, e uma vontade louca de me jogar na cama outra vez.
Joguei-me sobre ela e comecei a tirar o tênis, mas antes que voltasse a pegar no sono
novamente, minha mãe bateu à porta:
-Tom?
-Oi mãe!
-Chegou agora?
-Humpft... Sim.
-Já estou quase pronta, só estava te esperando.
-Para quê?
-Esqueceu que hoje iremos almoçar na casa da sua tia Sandra?
-É mesmo!
Levantando-me da cama, falei:
-Eu vou trocar de roupa e já desço.
-Está bem. Enquanto isso eu vou passar a chapinha no cabelo.
-Mas o seu cabelo está ótimo...
-Ficará melhor depois da chapinha.
-Depois você faz em mim?
-Desse jeito não iremos sair nunca de casa.
-Humpft... Está bem, eu vou colocar um boné então.
-Não demore.
-Ta.
Troquei de roupa, coloquei um boné e fui esperar pela minha mãe no carro. Enquanto
colocava um CD do Fresno para ouvir, meu celular começou a tocar.
-Alô?
-Oi Tom!
-Oi, Kico.
-Eu preciso de um favor seu.
-Que favor?
-Você pode me dar o telefone da Soraia?
-Nossa! Como assim? Voces não trocaram telefone ontem?
-E você acha que a gente ia perder tempo com isso?
-Humpft... Espere que eu vou pegar.
-Ta.
Do Kico eu poderia esperar tudo, pois desligado do jeito que ele era, não me
surpreenderia que alguns detalhes fossem esquecidos.
-Nossa... Sua amiga é demais!
-Eu sei...
-Mas eu to falando em outro sentido.
-Ué... Vocês já...
-Ainda não, mas o beijo daquela mina é bom demais, mano... Imagine o resto...
-Bem, isso você descobrirá sozinho.

66
-Sozinho não, com ela.
-É verdade. Bom domingo pra você e boa sorte.
-Pra você também.
Após fechar a porta de casa, minha mãe entrou no carro dizendo:
-Pronto! Não ficou do jeito que eu queria, mas ta bom... Afinal, não vamos para nenhum
casamento.
Durante o caminho pouco nos falamos, pois a tia Sandra não morava tão longe de
casa, além de eu ter cochilado um pouco. Assim que chegarmos, logo fomos recebidos pela minha
avó, surpreendendo-me em saber que também estava lá. Até então eu pensava que só estariam a tia
Sandra e o tio Marcelo.
Desci do carro e ela já foi logo me abraçando:
-Rustom!
-Oi, vó!
-Como você ta bonito...
-Ué... Estou igual quando a senhora me viu da última vez... Nem faz tanto tempo assim.
-Claro que faz... Foi no Natal...
Enquanto minha mãe e a vovó se cumprimentavam, cruzei o portão e logo senti o
cheiro de churrasco. Eu nunca gostei dessas reuniões de família, pois eram muito chatas, onde todo
mundo se encontra para ficarem se elogiando como se não se vissem há anos, e o pior de tudo,
adoravam apertar minhas bochechas, isso me irritava.
Segurando uma bandeja a tia Sandra apareceu no quintal.
-Rustom!
-Oi tia!
-Como você está lindo!
-Pare com isso...
-Não está com calor com essa roupa preta?
-Já estou acostumado...
Sentei-me em uma das cadeiras que haviam próximas ao muro, embaixo da sombra
fresca que também abrigava a churrasqueira.
Abraçada à vovó, minha mãe chegou dizendo:
-Nossa! Eu não sabia que iria ter até churrasco...
Segurando um copo de cerveja na mão o tio Marcelo apareceu, e apoiando-se ao
batente da porta falou:
-E você acha que a ocasião não merece?
-Claro!
-Cadê o Renatão?
Ele foi muito infeliz ao fazer aquela pergunta, e quando eu pensei que deixaria minha
mãe em uma situação embaraçosa, ela tirou de letra.
-Nós estamos nos separando.
Puxando uma cadeira a tia Sandra falou:
-Ah... Mas já estava mais que na hora. Até que você demorou pra acordar...
Para que o assunto não tivesse proporções maiores, minha mãe mudou logo de
assunto:
-Vocês só convidaram nós para esse churrasco?
Após dar um gole em um copo de refrigerante minha tia respondeu:
-Foi de última hora... A gente vai fazer um outro em breve e chamar todo mundo, né mo?
-Uhum.
Tudo corria bem, até que o tio Marcelo, com suas inconveniências, perdeu a
oportunidade de ficar calado:
-E as namoradas, Tom?
-Que namoradas?
-Não tem catado umas menininhas?

67
-Sou um homem de uma pessoa só.
-Corta essa... Todo homem nunca deixa de “caçar”.
-Não fale por você, tio.
Silêncio. Por que será que em toda familia sempre tem alguém para fazer esse tipo de
pergunta? Se for por falta de assunto, acho que a melhor coisa é se calar, pois eu já não tolerava
perguntas invasivas como aquela, e as respostas seriam as piores possíveis, à altura.
Tirando aquele estúpido episódio, até que passamos um domingo agradável, em
família, ou parte dela.
Cheguei em casa morto de cansado, e depois de tomar um banho, caí na cama e não
vi mais nada, apaguei.
No outro dia cheguei um pouco atrasado para à aula. Reparei que as coisas do Cauê
estavam sobre sua carteira, porém, ele não estava. Enquanto o professor explicava sobre um
determinado trabalho para fechamento do semestre, a Soraia sussurrou:
-Tom... Seu amigo é demais...
-O que vocês aprontaram?
-Nada...
-Sei. Ficou em casa ontem?
-Não, fui ao cinema com o Kico.
-Ah é?
-Ai Tom... Seu amigo é tão carinhoso, romântico... Acho que estou apaixonada.
-Que bom para você.
-Estou vivendo um sonho...
Mordendo a ponta do lápis, perguntei:
-Soraia... Onde está o Cauê?
-Não sei. Ele saiu, mas não disse para onde iria.
Colocando a mão dentro de uma urna o professor disse:
-Pessoal, agora eu vou sortear os integrantes para formarem os grupos. Grupo número um...
Dênis... Cauê... Cristina... Isabel e... Tânia.
Nesse momento o Cauê entrou à sala, e após sentar-se em sua cadeira, perguntou:
-O professor já sorteou os grupos?
Sussurrando, a Soraia respondeu:
-Ele começou agora, e você está no grupo número um.
-Eu e mais quem?
Interrompendo o assunto, respondi:
-Gente, deixem isso para depois. O professor está esperando silêncio...
Apoiando-se à mesa o professor perguntou:
-Posso continuar?
Todos:
-Pode.
-Vamos lá... Grupo número dois... Leandro... Rustom... Jéssica... Bianca e... Soraia.
Era só o que faltava, eu e a Jéssica no mesmo grupo. Por mais que a gente nos
cumprimentava, era óbvio que um não gostava do outro, por diversos motivos. Parecia uma praga, e
o pior de tudo era que o trabalho não poderia deixar de ser feito, pois daquela disciplina não havia
prova, somente o trabalho, e se eu deixasse de fazer consequentemente ficaria em DP.
Após o término da aula, procurei o professor antes que ele deixasse a sala e disse:
-Professor... Eu gostaria de te pedir um favor...
-Diga, Rustom?
-Eu quero pedir para mudar de grupo.
-Por qual motivo?
-Bem... Eu não me dou bem com uma integrante do grupo e prefiro...
-Sinto muito, mas as diferenças pessoais de vocês não devem interferir no lado profissional. Ambos
terão que aprender a conviver juntos sem se gostar...

68
-Mas professor...
-Rustom, ninguém entra no meio jurídico para fazer amizades. Todos possuem objetivos e
interesses profissionais, sendo assim, comece a ter maturidade.
Sem mais nada a dizer ele pegou suas coisas e deixou à sala.

69
Alguns dias se passaram. Naquela manhã de sábado, levantei cedo antes que minha
mãe saísse para trabalhar, pois precisava pegar um dinheiro com ela para fazer o trabalho de direito.
Confesso que não me sentia nem um pouco confortável com a idéia de ter que ir fazer o trabalho na
casa da Jéssica, mas já que todo mundo concordou, não tive como não ir.
Peguei carona com a mãe da Soraia, que se ofereceu para nos levar, pois era caminho
de seu trabalho. Marcamos de nos encontrar às 13 horas em frente ao parque Trianon-Masp, na
Avenida Paulista.
Cheguei lá pontualmente, e minutos depois ouvi a buzina do carro.
-Boa dia!
-Bom dia, Tom!
Fechando à porta traseira perguntei:
-Você recebeu meu e-mail ontem à noite, Soraia?
-Recebi sim... Eu trouxe o lap top, está na mochila ai atrás.
-Que bom!
-Sabe que eu não estou muito a fim de ir até a casa da Jéssica...
-Eu também não.
Pegando à Avenida 23 de maio sua mãe perguntou:
-Por quê?
-Porque a maioria das pessoas que estarão lá são do mal.
-Do mal?
-É... Vivem praticando maldade...
-Que tipo de maldade?
-Humpft... Eles vivem aprontando na faculdade, brigam na balada, e são super preconceituosos.
-Que horror! São todos da sala?
-Todos não, poucos, mas contaminam todo o resto... Você sabe como moleques são...
Tirando a franja do olho, completei:
-E o pior é que as meninas também se deixam influenciar.
-Soraia, eu não quero que você se misture com esse tipo de gente.
-Mas não estou no grupo deles porque eu quero, o professor fez um maldito sorteiro e infelizmente
eu e o Tom fomos “premiados”.
Parando o carro em uma travessa da Avenida Ibirapuera, a mãe da Soraia falou:
-Bem... Aqui está bom pra vocês?
-Sim.
-Bom estudo, crianças!
-Obrigado!
Descemos do carro e seguimos caminhando e conversando pela rua da igreja até o
condomínio onde a Jéssica morava:
-Tom... Estive pensando...
-O quê?
-Se a Jéssica está no meio daquele pessoal que pratica maldade, a gente bem que poderia usar isso
para descobrir quem tentou afogar o Cauê no trote...
-Mas será que ela ficou sabendo?
-É quase certo que sim...
-E como faremos então para conseguir?
70
-Ainda não sei... Mas vou pensar em uma maneira.
-Humpft... Está bem...
Tocamos o interfone e aguardamos o porteiro liberar nossa entrada. Enquanto isso,
observávamos os empregados do condomínio lavar a escada da portaria. Eu já estava quase
desistindo e voltando para minha casa quando chegou a permissão para que subíssemos.
Ao entrarmos no elevador, comentei com a Soraia:
-Espero que não demore muito esse trabalho.
-Pois é... Eu só vim porque não terá substitutiva no final do semestre.
-Humpft... Você lembra qual é o andar?
-Acho que é o oitavo.
-Certo.
Os apartamentos eram um por andar. Já no oitavo tocamos a campainha e fomos
recebidos pela Bianca, melhor amiga da Jéssica:
-Ola!
-Oi...
-Chegaram cedo...
Suspirando, respondi:
-É porque queremos ir embora cedo.
-Então tá... A Jéssica está no banho...
Apontando para o sofá ela falou:
-Sentem-se... Ela já deve estar saindo.
Colocando sua mochila sobre o colo a Soraia sussurrou:
-Pelo menos a Bianca é mais simpática.
-Embora tenho tido pouco contato, não tenho nada contra ela.
Puxando a cadeira, a Bianca sentou-se à mesa da sala dizendo:
-Gente... Eu trouxe a constituição...
-Ai eu ia trazer, mas acabei esquecendo...
-Não tem problema, Soraia... Se precisar pode usar a que eu trouxe... Vocês já querem começar?
Olhei para a Soraia e levantamos, sentando-nos à mesa para darmos início ao
trabalho e assim podermos ir embora mais cedo. Tirando o estojo da mochila, falei:
-Estive pesquisando na internet sobre Direito Penal e encontrei muita coisa.
-Você trouxe?
-Gravei no meu MP5...
Estendendo à mão a Soraia disse:
-Dá ele aqui pra eu ver no meu lap top.
-Toma.
Pegando meu estojo em sua mão a Bianca falou:
-Ai que gracinha esse cachorrinho!
-Tenho vários... Mas não dá pra colocar todos no estojo...
-Eu amei! Onde vende?
-Ah... Não adianta, minha tia me deu, pois ela comprou de uma artesã bem velhinha lá em Minas...
-Ah que pena!
-Mas já que você gostou tanto, pode ficar com ele.
-Imagina... Ele é seu...
-Pode pegar, tenho vários.
-Jura? Obrigada!
Presos ao ziper do meu estojo haviam vários pequenos cachorrinhos de madeira,
dados pela tia Sandra que comprou quando foi passar suas férias na casa de sua sogra em Belo
Horizonte.
Virando a tela do computador para nós a Soraia falou:
-Gente... Está aqui...
Folheando o Código Penal, perguntei:

71
-Sobre o que vamos ter que falar mesmo?
-Crime contra a vida.
Nesse momento a Jéssica apareceu na sala, com o cabelo molhado e banhada em
perfume, chegando a dar dor de cabeça.
Puxando à cadeira ao lado da Bianca ela falou:
-Desculpem a demora...
-Olha o que eu ganhei, Ka?
-O que é isso?
-Um cachorrinho... Não é uma gracinha?
-Tira esse negócio horroroso de perto de mim.
-Credo, Ka!
A campainha tocou. Demonstrando total repugnância quanto ao cachorrinho, a
Jéssica levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta. Já era de se esperar que alguma reação pejorativa
aquela garota teria, pois seu jeito esnobe e arrogante de ser não permitiria outra atitude que não
fosse preconceituosa.
O clima ficou pior ainda com a chegada do Leandro. Não que eu tivesse algo contra
ele, pois mal nos falávamos, mas fazendo parte do grupinho da Jéssica já deixava-me desconfiado.
Ao sentarem-se à mesa, demos início ao trabalho. Enquanto selecionávamos o que iriamos incluir
no editor de texto, a Soraia já o digitava em metodologia acadêmica.
Levantando-se da cadeira a Bianca falou:
-Vou até a cozinha beber água. Alguém quer?
Juntando umas folhas de seu fichário o Leandro respondeu:
-Eu quero.
Enquanto ela foi buscar, entreguei o Código Penal para a Jéssica dizendo:
-Dá uma olhada nisso...
-Humpft... Como você encontrou?
-Procurando.
Achando que eu havia debochado, o Leandro começou a rir e disse:
-Hahaha... Bem feito...
-Cala a boca, Leandro... Obrigada, Rustom...
-Desculpa, eu não falei por mal...
-Olha aqui, Rustom... É com grande desprazer e sacrifício que estou lhe recebendo em minha
casa...
-Não se preocupe, a recíproca é verdadeira.
-Não pense que esqueci que por sua causa eu fiquei dois dias suspensa na faculdade...
Nesse momento a Bianca voltou à sala, colocou um copo com água sobre à mesa e
disse:
-Gente... Quando é que teremos aula sobre Medicina Legal?
Pegando o copo da mesa o Leandro falou:
-Não faço idéia.
Tirando uma folha de seu fichário a Jéssica disse:
-Por falar em medicina... Minha prima está cursando e disse que na aula de laboratório eles
mexem em corpos de verdade...
Rindo, o Leandro questionou:
-Você achou que fosse o quê? Bonecos?
-Ai... Sei lá...
Colocando seus óculos a Soraia entrou na conversa:
-Minha mãe uma vez me contou que são corpos de mendigos e indigentes.
-Que horror!
Completei:
-Mas também tem aqueles que a família doa para estudo.
-Sim, mas são raros.

72
Dirigindo-se até a varanda da sala a Jéssica disse:
-Deus me livre ter que colocar a mão em um mendigo... Arriscando a pegar uma doença...
Ajeitando-se à cadeira a Bianca falou:
-Mas os corpos ficam banhados em formol, não tem mais como transmitirem doenças...
-Você que pensa, minha filha... Essa gente já nasce contaminada...
Abismada, a Soraia exclamou:
-Que horror!
-A Jéssica tem razão... Tem que exterminar essa raça... Está certo o meu irmão...
Curiosa, a Bianca perguntou:
-O que tem seu irmão?
-Vixi... Ele odeia... Já pôs fogo em um monte...
Levando a mão ao peito a Soraia questionou:
-Seu irmão põe fogo em mendigo?
-Meu irmão é foda... E quando ele bate nas puta? Nossa... Chega a dar dó...
Cruzando os braços a Bianca demonstrou sua indignação, questionando:
-E você já participou disso?
-Lógico...
-E ainda fala como se fosse um esporte saudável...
-Depois te mostro as fotos e os vídeos do mendigo pegando fogo e gritando...
-Eu não quero ver nada, seu nojento.
Aproximando-se à mesa a Jéssica disse:
-É aquele que você me mandou?
-Sim...
-Você também está nessa, Ka?
-Eu não, mas ele me mandou e eu vi... É de dar dó mesmo.
-Ei... O Cristiano foi...
-Que Cristiano?
-O do terceiro ano.
-Você já conhecia ele antes de entrar na faculdade, Leandro?
-Ele é amigo do meu irmão...
Rindo, a Jéssica falou:
-São tudo da mesma laia...
Jogando-lhe uma bolinha de papel o Leandro falou:
-O que você ta falando ai?... Até parece que você fica atrás... Jogando ovo em pedestre.
Pronto, começaram a falar dos podres um do outro, enquanto eu e a Soraia
assistíamos a tudo, chocados.
-Que história é essa de ovo, Ka?
-É que minha prima mora em um apartamento de frente para o mar em Copacabana, e ela tem o
costume de brincar com as amigas do prédio jogando ovo nos turistas que caminham no
calçadão...
-E você acha isso engraçado?
-Muito. Quando vou pro Rio, passamos boa parte da madrugada brincando de acertar os carros
que passam pela avenida...
-E sua tia, não fala nada?
-Que nada, às vezes ela até se junta a nós...
Após um suspiro, a Soraia perguntou:
-E ninguém vê vocês fazendo isso?
-Claro que não... A gente se esconde muito bem. Além do mais, a polícia não irá perturbar um
prédio de luxo como aquele.
Fiquei perplexo com tudo que ouvi. Eu já sabia que a Jéssica não valia nada, mas
confesso que fiquei surpreso com a confissão de suas barbaridades, e o que era pior, agia como se
aquele tipo de atividade fizesse bem para ela, assim como o Leandro também.

73
Terminamos o trabalho já passava das quatro da tarde. Eu não via a hora de sair
daquela casa, pois não aguentava mais ter que suportar a Jéssica e suas futilidades. Ao cruzarmos o
portão do condomínio, a Soraia exclamou:
-Graças à Deus!
-Humpft... Nunca mais quero voltar a esse lugar.
-Nem eu.
-Ainda bem que a estação de metrô não está muito longe daqui.
-Metrô?
-É.
-Ah não... Vamos de táxi...
-Nem tenho grana pra pegar táxi.
-Sem problemas, eu pago.
-Nada disso, miguxa... Mas se você quiser ir de táxi não tem problema...
-Eu vim com você e voltarei com você. Vamos pegar o metrô.
-Oba!
Acredito que nada na vida acontece por acaso, e ter ido parar na casa daquela
enjoada teria mais um motivo por ajuda do destino, dando o primeiro passo para identificar quem
eram os delinquentes que tentaram afogar o Cauê.

74
Na segunda feira acordei ansioso, não vendo a hora de apresentar logo aquele
trabalho e finalmente fechar aquele semestre. Depois de tomar café, peguei carona com minha mãe
para ir à faculdade.
Sempre quando eu ia com ela chegava mais cedo, e naquele dia não foi diferente. Por
ser a última semana de aula, os alunos estavam afoitos, louco pelas férias de meio de ano, e eu,
claro, não via a hora de poder viajar com o meu amorzinho.
Ao entrar no elevador cruzei com a Bianca, que ao me ver exclamou:
-Bom dia, Rustom!
-Oi florzinha!
-Tempo maluco esse, né?
-É... Mas hoje está gostosinho...
-Finalmente!
Ao sairmos do elevador, a Jéssica e a Amanda estavam paradas à porta no hall.
Coloquei meu fone de ouvido para não ouvir qualquer provocação que elas viessem a fazer e passei
direto, seguindo para a sala de aula.
Sentei-me à carteira e fiquei aguardando o professor chegar, para assim começarem
as apresentações dos trabalhos. Eu nem reparei em quem já estava na sala, e ao ver-me sentar-se
mais à frente a Soraia mudou-se para uma carteira próxima à minha.
-Nossa!... Nem falou comigo...
Tirando o fone do ouvido, falei:
-Desculpa, o que você disse?
-Eu disse que você chegou e nem falou comigo...
-Ah... Eu estava distraído, nem vi quem estava na sala. Não foi por mal, miguxa.
-Humpft... Tudo bem.
Os alunos começaram a entrar na sala e tomarem seus lugares, e no meio do tumulto
estava o professor, zoando com a galera. Aquele professor não regulava muito bem das idéias,
parecia um adolescente. Certa vez eu o vi sentado na sala dos professores, sozinho, olhando para o
teto sem se mover, permanecendo naquela posição por longo tempo.
Antes das apresentações começarem o Cauê entrou na sala, guiado pelo Emílio, que
finalmente recebeu autorização permanente para entrar nas dependências da universidade, quase
que um semestre inteiro enfrentando a burocracia.
-Bom dia, Tom!
-Bom dia, mozinhu.
-A aula já começou?
-Ainda não...
Abrindo seu fichário a Soraia comentou:
-Ai... Não aguento mais ouvir falar de Platão, Ética, Moral...
-Soraia! Nem percebi que você estava ai...
-Oi Cauê! Estou sim...
-Não senti a fragrância do seu creme de baunilha...
-É que hoje passei outro...
-Ah! Por isso.
Quando as apresentações iniciaram, deixei meu MP5 gravar o áudio para estudar
depois, porque é sempre bom guardar matéria e informação para aperfeiçoar nossos estudos.
75
Seríamos o quinto grupo a se apresentar, e aquela aula parecia uma eternidade, pois as horas não
passavam e o calor em sala estava incomodando, mesmo estando ligados todos os ventiladores de
parede.
Enquanto o segundo grupo explicava o conteúdo de sua pesquisa, a Soraia levantou-
se e deixou a sala, provavelmente para ir ao banheiro.
Com o rosto virado de lado o Cauê falou sussurrando:
-Depois você faz uma cópia da explicação para mim, mo?
No mesmo tom, respondi:
-Ta bom.
Às vezes o áudio não ficava muito bom para entendimento, isso acontecia quando o
professor percorria a sala inteira ou quando todo mundo resolvia falar ao mesmo tempo. No
decorrer da aula, percebi uns cochichos e risadinhas vindas da turma do fundo. Algo de perverso
eles estavam tramando e não demoraria muito para perceber o tamanho da maldade.
Quando a Soraia voltou à sala, o silêncio se fez presente enquanto fechava à porta.
No momento em que ela sentou-se à cadeira, todo mundo levantou-se, como se simulassem um
forte impacto, seguida de uma gargalhada coletiva.
A Soraia ficou arrasada. Também, pudera, o que aquelas pessoas estavam fazendo era
uma tortura psicológica, a pior que existe. Naquele momento eu tive vontade de bater em todo
mundo, com ódio daquelas pessoas malditas que se achavam perfeitas.
Chorando, ela saiu da sala, e eu, indignado com o que fui obrigado a presenciar, corri
atrás dela. Pessoas como aquelas não tinham coração. O que eu não entendia era como pessoas
daquela índole poderiam defender alguém em um tribal, cobrar justiça se elas eram os primeiros a
burlar, julgar, irem contra os princípios éticos da classe. Várias vezes eu os ouvi comentando sobre
o que praticavam no dia a dia, como o suborno a policiais, brigas envolvendo agressões em transito.
Será essa a nova geração de profissionais da classe média alta que terá o país?
Encontrei a Soraia sentada ao degrau da escada, chorando, com suas mãos tapando
seu rosto coberto de vergonha.
Sentando-me ao seu lado, dei-lhe um abraço e disse:
-So... Não fique assim...
-Não é fácil... Passar por isso...
-Humpft... Eu sei que não é, sou vítima de preconceito o tempo inteiro... Mas se eu mostrar que sou
fraco e que isso me abala eles estarão se achando vencedores.
-Só Deus sabe o quanto eu sofro por ser assim...
-Tudo na vida tem um motivo, e nada acontece por acaso. Use essa experiência dolorosa para que
seu futuro tenha valor pelas dificuldades que você passou.
Limpando suas lágrimas ela disse:
-Sabe que... Você é o primeiro Emo que eu vejo que não apanha da vida calado, não chora fácil e
nem se corta quando está triste.
-Não é só porque sou Emo que devo fazer tudo que a maioria deles fazem. Eu me sinto bem
ouvindo as músicas, usando as roupas, a balada, mas não preciso aderir à uma personalidade
coletiva... Eu tenho a minha...
-Quando eu ia pra balada, ninguém olhava pra mim... Só porque sou gorda.
-Você é linda!... Agora tem o Kico que te quis do jeito que você é...
-Sim... Ele é o melhor namorado do mundo!
-Sabe que o Cauê me ensinou muitas coisas, e uma delas é ver o mundo com os olhos do coração.
Você, Soraia, é a melhor amiga que alguém pode ter, e se eles não te têm é porque não merecem.
-Estou sem palavras, Tom...
-Não precisa dizer nada.
-Escreve o que eu to dizendo... Eu ainda serei uma Miss...
-Com certeza!
Demos um abraço gostoso, em seguida falei:
-Agora erga essa cabeça e mostre a todos que você é muito mais do que eles imaginam.

76
-Pode deixar.
-Vamos pra sala, porque ainda temos que apresentar nosso trabalho, e eu quero ver você
arrasando...
-Tudo bem.
Ao voltarmos para a sala de aula, nosso grupo já estava se preparando para iniciar a
apresentação. Após um profundo suspiro a Soraia começou, dando um show de inteligência e força,
mostrando a todos que piada alguma abalaria sua vida, nunca mais. Confesso que todos nos saímos
muito bem, e pela cara do professor, nossa nota não seria inferior a 8.
Na hora do intervalo combinamos de descer para comer algo, pois todos os três já
haviam se apresentado. Enquanto ajudava o Cauê a se levantar, notei que a Bianca aproximava-se
de nós:
-Soraia... Será que eu poderia falar com você?
-Por favor, seja breve.
-Humpft... Eu quero pedir desculpa por ter participado dessa brincadeira...
-De mal gosto, por sinal.
-Eu não sabia que te faria tão mal...
-Humpft... Tudo bem... Vamos esquecer as mágoas.
-Obrigada!
Assim que a Bianca deixou à sala a Soraia comentou:
-Nem sei por que desculpei ela.
-Você deixou o coração falar?
-Pois é... Sou boa demais.
-Está explicado... Você fez a coisa certa.
-Fiz?
-Claro... Somente os nobres são capazes de desculpar. Se seu coração sentiu que ela estava sendo
sincera, não tinha motivos para que não fizesse.
-É...
Caminhávamos em direção à porta quando dois rapazes apareceram, e um deles
perguntou à Soraia em voz alta:
-O Leandro veio hoje?
-Veio...
-Valeu.
Nesse momento o Cauê apertou-me o braço com força, demonstrando um certo
temor. Preocupado perguntei:
-Está tudo bem, mozinho?
Trêmulo ele respondeu:
-Essa voz...
-O que tem?
-Foi ele, Tom.
-O que ele fez?
-Ele foi um dos que me jogou na piscina no primeiro dia de aula...
-Você tem certeza?
-Tenho... Eu jamais esqueceria essa voz.
-Preciso descobrir de que sala ele é... Se ao menos eu soubesse seu nome...
Apertando o botão do elevador a Soraia falou:
-Ele é o Cristiano, amigo do irmão do Leandro...
-Ah!... Aquele que eles estavam comentando na casa da Jéssica...
-É...
-Vamos até a coordenação agora.
Tirando seus óculos, a Soraia questionou:
-Fazer o quê?
-Agora nós temos como prestar queixa contra os criminosos que quase mataram o amor da minha

77
vida, pois sabemos quem foi.
-Mas o Cauê só reconheceu um.
-Não importa... Ele não vai querer pagar sozinho e vai dizer o nome dos comparsas...
Amedrontado, o Cauê não largava meu braço. As portas do elevador se fecharam, e
com a voz embargada o Cauê falou:
-Tom... Por favor, não deixe que me machuquem...
-Ninguém vai te machucar... Estou aqui para te defender e proteger de tudo e de todos. Você confia
em mim?
-Confio.
Ao chegarmos na coordenação, pedi para falar com a Gabriela, responsável pelo
curso de Direito naquele dia. Pouco tempo depois ela recebeu-me em sua sala. Claro que fui bem
recebido, porque eles já sabiam do que eu era capaz, não medindo esforços para defender o que era
meu.

78
Apagando seu cigarro, a Gabriela pediu para que eu me sentasse, abrindo um chiclete
logo em seguida. Enquanto isso o Cauê e a Soraia aguardavam por mim na recepção. Embora eu
convivesse com pessoas que fumassem, nunca senti vontade de provar ou utilizar qualquer droga
para poder me divertir. É engraçado como o ser humano nunca está satisfeito com o que tem. Várias
vezes eu pedia para que meu pai não fumasse perto de mim, pois a fumaça fazia-me mal, e ele, ao
invés de se preocupar comigo, só faltava me bater porque eu estava falando alguma coisa.
Tirando uns papéis de cima de sua mesa a Gabriela perguntou:
-Em que posso ajudar você, Rustom?
-Humpft... Bem, o Cauê reconheceu um dos garotos que o empurraram na piscina no dia do trote.
-Reconheceu?
-Sim... Agora já podemos fazer a denúncia...
-Certamente... Mas eu preciso que ele relate tudo detalhadamente como aconteceu.
-Ele está lá na recepção...
-Sim, mas hoje não vai ser possível.
-Por quê?
-Porque precisamos da presença do reitor, só que ele estará aqui amanhã apenas.
-Certo...
-Vamos marcar para amanhã então?
-Claro!
-Então ta bom, Rustom.
-Com licença...
Eu abria à porta quando ela chamou-me atenção:
-Rustom...
-Oi?
-Você sabe quem é o garoto que o Cauê reconheceu?
-Sim... É o Cristiano do terceiro A.
Dessa vez a Gabriela aceitou minha queixa sem contestar, pois já sabia que eu
provaria tudo que havia dito, como fiz no caso da Jéssica. Aliviado, não via a hora de pôr aquele
cretino na cadeia, e fazê-lo pagar pelo mal que provocou na vida do meu amor.
Passando pela recepção, avistei o Cauê e a Soraia sentados ao banco conversando
com aquela recepcionista tonta. Ao aproximar-me deles, disse:
-Soraia... Você acompanhar o Cauê...
Levantando-se o Cauê perguntou:
-Por que, amor?
-Porque eu não poderei.
Preocupada ela quis saber:
-O que aconteceu, Tom?
-Nada demais... É que esqueci de tirar uma dúvida com o professor...
-Ah...
-Depois nos falamos.
-Tchau, amor!
-Tchau!
Peguei o elevador e fui até o quinto andar, onde os alunos do terceiro ano tinham
aula. Embora o tempo da prova já tivesse esgotado, parte dos alunos ainda estavam em sala, porém,
79
o único que me interessava era o Cristiano.
Ao entrar na sala, me dirigi até ele e em poucas palavras falei:
-Quero falar com você.
Com um ar de deboche e pose de superioridade ele questionou:
-Comigo?
-É.
-Ta... Fala?
-Acho que você não vai gostar se eu disser na frente de todo mundo.
Levantando da carteira e pegando seus livros ele disse:
-Tudo bem. Para onde você quer ir?
-Me acompanha.
Descemos até o térreo, em seguida seguimos para o prédio de Educação Física, onde
haviam as piscinas. Descemos à escada das arquibancadas em direção ao deck. O ambiente estava
um pouco escuro, pois a única luz que tinha naquele momento era a que transpassava de fora pelas
portas de vidro.
Ao caminharmos, um eco soava. Curioso, ele parou de caminhar à beira da piscina e
perguntou:
-Para que você me trouxe aqui?
Olhando fundo em seus olhos, respondi:
-Esse lugar não te faz lembrar de nada?
-Não... Eu faço curso de Direito, e não de Educação Física.
-Então eu vou te dar uma ajuda...
Nesse momento eu o empurrei dentro da piscina com livros e tudo. Furioso, ele
começou a gritar:
-Você está louco, moleque?
-Será que agora você se lembra do dia quatorze de fevereiro?
Calado, ele só me olhava. Aproximei-me da borda da piscina e disse:
-Não pense que você ficará impune pelo que fez. Amanhã sua ficha vai estar registrada na polícia,
e um cidadão que se preze jamais em sã consciência irá contratar um criminoso para defende-lo...
Sua vida profissional está acabada.
Deixei ele lá, boiando, como se fosse um nada, da mesma forma como ele fez com o
meu mozinho.
Peguei um ônibus e segui para casa, com um alívio enorme na alma, além da
satisfação de que a justiça seria feita. Ao chegar, subi correndo para o meu quarto e telefonei para a
Jéssica para certificar-me que ela não estaria em casa:
-Alô?
-Por favor, eu quero falar com a Jéssica...
-No momento a dona Jéssica não se encontra.
-Que horas ela estará em casa?
-Olha... Hoje ela foi ao cabeleireiro... Eu acho que por volta das seis horas da tarde ela já esteja de
volta...
-Entendi... Tem algum outro responsável pela casa?
-No momento não há ninguém. Deseja deixar algum recado?
-Não, não. Obrigado!
-De nada.
Logo em seguida telefone para a Soraia. Quatro toques depois ela atendeu:
-Alô?
-Miguxa... Ta ocupada?
-Não... Acabei de sair do banho... O que aconteceu?
-Vou precisar da sua ajuda.
-Vai?
-Sim... Humpft... Vai ser necessário alguma prova para incriminar aqueles bandidos.

80
-Ah... Se você quiser eu posso depor como testemunha...
-Não adianta, uma só não é suficiente.
-Então em que posso ajudar?
-Você lembra que no dia do trabalho na casa da Jéssica eles estavam comentando sobre o que eles
já aprontaram?
-Uhum.
-Pois é, provavelmente ela deve ter as fotos e os vídeos no computador dela.
-E como você pretende consegui-las?
-Indo até lá.
-Quando?
-Agora.
-Mas agora ela não deve estar em casa...
-Por isso mesmo. Já liguei lá e falei com a empregada. A Jéssica foi ao cabeleireiro e deve voltar lá
pelas seis horas... Vou te contar o que você deve fazer.
-Tudo bem.
Após explicar o que ela deveria fazer, começamos a colocar em prática o meu plano.
Tínhamos tudo para dar certo, e a Soraia, com seus dotes artísticos, sabia interpretar muito bem,
graças às suas aulas de teatro, e isso nos ajudaria muito naquele dia.
Assim que desliguei o telefone ela ligou para a Jéssica, pondo em prática o nosso
plano:
-Alô?
-Jéssica? É Soraia...
-Humpft... Fala?
-Desculpa estar te incomodando, mas é que eu perdi um dos cabos do meu lap-top e o último lugar
em que o usei foi naquele dia em sua casa...
-Ta... Você está achando que eu roubei o cabo do seu computador?
-Longe de mim pensar isso... O que eu quero dizer é que provavelmente ele deve ter caído pela
sala.
-Tudo bem, se a empregada encontrar algo eu te aviso.
-Mas Jéssica... Eu estou precisando com urgência... Será que eu poderia ir até lá falar com ela?
-Humpft... Não estou a fim de me aborrecer hoje... Vou ligar pra ela e dizer que você vai até lá...
-Obrigada!
-Tchau.
Passei na casa da Soraia para buscá-la com o carro da minha mãe, para irmos até o
apartamento da Jéssica tentar conseguir as provas que provavelmente ela guardava.
-Você trouxe o lap-top, So?
-Está aqui.
-E os cabos?
-Também.
-Ótimo!
Ao chegarmos, o porteiro pediu nossa identificação e após confirmar com a
empregada fomos autorizados a subir. Enquanto a Soraia utilizou o elevador social, subi pelo acesso
de serviço e fiquei aguardando por ela em frente à porta da cozinha, conforme havíamos combinado
no caminho.
-Olá! A Jéssica disse que eu vinha...
-A sim... Dona Soraia?
-Isso!
-Por favor, entre.
-Obrigada!
-Olha... Eu olhei por toda parte da sala, mas não encontrei nenhum cabo solto.
-Jura?... Eu tinha certeza que havia perdido aqui...
-Se a senhora quiser eu posso procurar novamente...

81
-Vou ajudá-la, então, mas antes eu posso beber um copo d'água?
-Eu trago para a senhora.
-Não... Fique ai procurando que eu mesma pego, eu sei onde fica a cozinha, já sou de casa...
-Tudo bem.
Enquanto a empregada permaneceu na sala, a Soraia foi até a cozinha, e abriu à porta
de serviço para que eu entrasse. Logo depois ela voltou à sala, segurando na mão esquerda um copo
com água pela metade. Com seu lap-top embaixo do braço, esquivei-me pelos cantos para não ser
visto e caminhei até o quarto da Jéssica. Ao encontrá-lo, fechei à porta para não chamar atenção e
liguei seu computador. Procurei fazer tudo rapidamente, pois não dispunha de muito tempo pra tal
façanha.
Para minha sorte, seu computador não possuía senha para iniciar o sistema
operacional. Conectei o cabo nos dois equipamentos e iniciei a transferência de dados. O processo
todo levou nove minutos, e eu já estava ficando desesperado.
Após concluído, desliguei seu computador e o deixei da mesma forma como havia
encontrado. Com cuidado, abri à porta do quarto e quando estava quase chegando à cozinha, percebi
que alguém estava vindo em minha direção. Para tentar salvar minha pele a Soraia derrubou o copo
que segurava ao chão, chamando à atenção da empregada com o barulho do vidro se quebrando.
-Oh meu Deus!
-O que houve, senhora?
-Ai como sou estabanada... Deixei cair o copo...
-Não tem problema, pode deixar que eu limpo. A senhora se machucou?
-Por sorte, não.
Rapidamente atravessei a cozinha e saí pela porta de serviço, a mesma por onde
havia entrado, enquanto o tumulto na sala concentrava as atenções. Peguei o elevador e desci até o
térreo, telefonando para a Soraia logo em seguida para informar que ocorrera tudo bem.
-Humpft... Bom, acho que não está aqui mesmo o cabo... Devo ter me enganado.
-Caso eu ache, peço para a dona Jéssica lhe entregar.
-Você me faria esse favor?
-Claro!
-Mas você é mesmo um amor. Muito obrigada!
-De nada!
Nos encontramos no hall do elevador para deixarmos o condomínio juntos e não
levantar suspeitas no porteiro. Colocando seus óculos escuros ela perguntou:
-Deu certo?
-Sim.
-Ótimo!
-Você me assustou deixando aquele copo cair...
-Susto tive eu quando vi a empregada indo pro quarto.
-Essa foi por pouco.
-O que pretende fazer com isso agora?
-Preciso primeiro ver o que tem aqui...
-Humpft... Então fique com o lap-top, depois você me entrega.
-Posso?
-Claro!
Deixei a Soraia em sua casa e logo depois segui para a minha, onde tratei
imediatamente de checar tudo que havia conseguido e pudesse ser utilizado como prova para
comprovar as maldades daquela gente.
Após estacionar o carro na garagem de casa, entrei pela porta da cozinha e subi
direto para meu quarto. Imediatamente comecei a vasculhar os arquivos, e não demorou muito para
que as bizarrices começassem vir à tona.
Vídeos, fotos, depoimentos, formas sarcásticas e perversas de divertimento. Em um
dos mais de dez vídeos aparecia a Jéssica e a Amanda, rindo, tendo como fundo uma enorme janela.

82
O clima parecia de uma festa, encontro de amigos, onde ambas brincavam de repórteres
entrevistando algumas pessoas que lá estavam.

“-Já joguei muito ovo em muita vagabunda...”

Gargalhadas eram ouvidas ao fundo.

“-Eu... Já coloquei fogo na medingada da Sé... Já espanquei dois travesti...” - Disse um dos
rapazes bêbado.
A violência era praticada como diversão, compartilhada entre pessoas que nasceram,
cresceram e receberam todo conforto e educação das melhores possíveis.
Das ocorrências em que os jovens da classe média alta estão envolvidos, as vítimas,
em grande parte, pertencem à classes inferiores, homossexuais, negros, prostitutas, índios, entre
outros.
Contudo, não há como deixa de associar o preconceito às agressões. Grupos racistas,
neonazistas, estão crescendo cada vez mais nas grandes cidades, tornando-se moda entre os jovens
da classe média alta, inspirados em grupos norte-americanos principalmente e ingleses. No Brasil, a
impunidade contribui para que esses grupos cresçam cada vez mais e disseminem seu ódio gratuito
diante de uma população diversificada, proveniente de várias etnias.
Pouco tempo depois a Soraia entrou na internet e começamos a conversar:

/// Srtº Tom \\\ diz:


so...

tInA diz:
oi tom!!!!!

/// Srtº Tom \\\ diz:


miguxa... a koisa eh peor du ke a genti penxavah...

tInA diz:
pq?

/// Srtº Tom \\\ diz:


ixtou assuxtadu cum tanta maudadi...

tInA diz:
bem... vindo da jessica e do ciclo de amizades dela naum me surpreende...

/// Srtº Tom \\\ diz:


naum sei u q leva alguem a agir dexa forma... vo ti mandah u vidioOo

tInA diz:
ta baum

No outro dia cheguei à faculdade ansioso para encontrar o Cauê e assim


oficializarmos junto à coordenação a queixa crime. Sentei-me à carteira e logo em seguida a Soraia
chegou, e com uma boa expressão facial ela exclamou:
-Bom dia, Tom!
-Bom dia!... Uau... O que aconteceu pra você estar toda animada assim?
-Segui o seu conselho e ontem consultei um endocrinologista...
-Que legal!

83
-É... Ele me passou uma dieta e hoje eu já comecei...
-Você vai superar isso bem rápido, e assim calar a boca de todo mundo que te colocou pra baixo.
-Semana que vem vou ao psicólogo com minha mãe.
-E como está a relação entre vocês duas?
-Perfeita! Minha mãe agora está mais próxima de mim... A gente tem conversado bastante, até
fizemos compras juntas domingo no shopping...
-Sério?
-É... E o Kico foi junto.
-Você já o apresentou como seu namorado?
-Já... E minha mãe adorou ele.
Nesse momento o Cauê chegou, porém, sem a companhia do Emílio. Caminhando
com o auxilio de sua vareta ele aproximou-se de nós exclamando:
-Bom dia!
-Bom dia!
Levantei-me da cadeira e falei:
-Podemos ir então?
Tirando a caixa de óculos de sua bolsa a Soraia perguntou:
-Ir aonde, Tom?
-Na coordenação falar com o reitor...
Parado à minha frente o Cauê falou:
-Tom... Acho melhor deixarmos essa história pra lá...
Levantando-se da cadeira a Soraia disse:
-Eu quero ir com vocês.
-Então vamos.
Percebi que o Cauê estava meio estranho, mas não questionei os motivos, preferi
deixar para depois.
Ao chegarmos na coordenação, a Gabriela já esperava por nós, acompanhada do
reitor que nos recebeu com um aperto de mão.
-Bom dia!
-Bom dia!
-Sentem-se, por favor...
Segurando uma caneta na mão a Gabriela falou:
-Eu expliquei ao professor Wilson tudo que vocês me relataram.
Com uma folha de papel à mão ele perguntou ao Cauê:
-Então você confirma com toda certeza de que um dos participantes do trote contra você foi o
Cristiano Soares do terceiro ano?
Surpreendendo a todos, sua resposta foi direta:
-Não.
Todos fomos pegos de surpresa. Confusa, a Gabriela perguntou novamente:
-Como não? Vocês disseram que tinham certeza de que ele havia participado...
-Eu me enganei... Desculpem, mas eu preciso voltar...
Sem dizer mais nada ele se retirou da sala, deixando-me confuso e envergonhado
perante a todos que ali estavam presentes.
Com uma expressão de ira a Gabriela falou debruçando sobre a mesa:
-Rustom, nós não estamos aqui de brincadeira, sabia?
-Eu não sei o que deu nele... O Cauê disse que tinha certeza de...
-Olha garoto, vocês dois mereciam ser convidados a se retirarem dessa instituição.
Assustada, a Soraia falou:
-Ah gente... Mas também não é pra tanto, né?
Olhando para ela o reitor falou:
-Nós já havíamos preparado toda a documentação de desligamento do aluno Cristiano Soares da
instituição... E se já estivéssemos concluído?... Teríamos expulsado um inocente, acreditando na

84
palavra de vocês.
Calado, não respondi nada. Após um suspiro a Gabriela levantou-se da mesa,
caminhou até um armário e pegou uma pasta. Ao volta para a mesa ela falou:
-Nós não temos outra alternativa se não suspender você e o Cauê.
-Suspender?
-Isso é o minimo...
-Mas... Suspensão de quantos dias?
-Deveriam ser três dias, mas por estar no final do semestre, e haver aula somente até sexta feira,
vamos aplicar apenas um.
Sem entender, a Soraia perguntou:
-Mas não era hoje o último dia de aula?
-Sim, mas vocês tiveram três dias sem aula no início do semestre, então elas serão repostas
amanhã, quinta e sexta.
-Humpft... Tudo bem.
Olhei para a Soraia inconformado. Eu confiei no Cauê, e além do mais, ele havia
afirmado com tanta convicção que eu não teria motivos pra duvidar.

85
Passei o dia arrasado. Tranquei-me no quarto e chorei sozinho, calado, com vergonha
de mim mesmo. O que eu iria dizer à minha mãe? Não queria que ela se chateasse por minha culpa,
pois já bastavam seus problemas.
Custei a dormir. A madrugada estava quente, céu estrelado, lua perfeita. Virava-me
de um lado para o outro, e o aperto em meu peito não aliviava, tornando-me refém de mim mesmo.
No outro dia acordei com minha mãe batendo à porta do quarto. Com sono, levantei-
me e abri:
-Filho... Você não vai pra faculdade hoje?
-Humpft... Hoje não, mãe.
-Por quê?
-Eu... Não estou passando muito bem.
-O que você está sentindo?
-Nada de grave... Não se preocupe, pode ir trabalhar tranquila.
-Vou deixar o celular ligado o dia inteiro. Qualquer coisa, me liga.
-Pode deixar.
Fechei à porta do quarto e voltei a deitar. Rolei de um lado pro outro na tentativa de
voltar a dormir, mas não consegui. Tomei um banho quente para começar o dia.
Liguei o computador para imprimir a letra da música do Fresno, e enquanto isso eu
comecei a assistir aos vídeos que havia copiado do computador da Jéssica.
No que parecia uma lanchonete, vários jovens bebiam e gargalhavam, parecendo ser
um simples encontro de amigos, até que o Cristiano aparece, e atrás dele estava a Jéssica, fumando,
e após um gole à lata de cerveja ela perguntou a ele:

“-Conta pra eles do ceguinho...


-Esse ano a gente jogou um ceguinho na piscina...”

Várias gargalhadas eram ouvidas. Junto deles estava a Bianca, sentada ao balcão
ouvindo toda a história. Naquele momento tive a certeza de que ele era mesmo culpado, e de que o
Cauê havia mentido para nós no dia anterior.
Gravei todos aqueles vídeos e fotos num Pen Drive, em seguida vesti uma roupa e
segui até a casa do Cauê. Fiquei intrigado, afinal, por que ele havia mentido pra mim?
Ao chegar cruzei com sua mãe no portão que saia para trabalhar.
-Tom!
-Oi dona Irene. O Cauê está ai?
-Sim... Pode entrar, ele está na cozinha...
-Obrigado!
Entrei e segui direto para a cozinha, onde o avistei sentado à mesa, comendo maçã
coberta por mel. Aproximei-me da mesa e falei:
-Cauê... Por que você mentiu?
Assustado ele exclamou:
-Tom! O que você faz aqui?
-Vim lhe pedir que não me procure mais.
-Por quê?
-Você mentiu... Me fez passar por mentiroso na frente de...
86
-Eu não menti...
-Chega... Eu vi o vídeo em que o Cristiano confessa para os amigos que tentou te afogar...
-Você... Viu?
-Sim... Humpft... Eu te desculpo, se você for comigo agora até a faculdade e fale toda a verdade
para o reitor.
-Isso não.
-É assim?
-Desculpe, Tom... Não vou fazer isso... Não se intrometa mais nessa história.
-É dessa forma que você diz me amar?
Silêncio.
-Jamais esperei isso de você, Cauê. Adeus.
Deixei sua casa arrasado, chorando, culpado por amar, e ser enganado. Cansei de ser
usado, feito de idiota. Naquele dia coloquei um fim em meu namoro, interrompendo uma linda
história de amor, e iniciando um longo período de sofrimento.
No último dia de reposição de aula, o professor de Sociologia fez um debate em sala
de aula. Enquanto os alunos discutiam entre si, fiquei calado apenas observando as argumentações
até ser agredido verbalmente pela Jéssica:
-Eu não acho que todo mundo só porque vive dentro de uma sociedade deva ter um comportamento
igual aos outros. Acho que cada um tem o direito de ser e se comportar da forma que se sentir bem.
-Pra Bianca tudo está bem, professor... Não tem preconceito... Sinto muito, mas ninguém é
obrigado a conviver com certas coisas... Eu fico super perdida sem saber se o Rustom é homem ou
mulher...
Risos coletivos. No mesmo instante levantei-me e disse para todos ouvirem:
-Pior do que confundir a sexualidade é se esconder atrás de uma janela, após atirar ovos nas
pessoas que caminham pelas calçadas. Demonstração de vergonha dos próprios atos, pois não
mostra a cara.
Fazendo-se de desentendida ela questionou:
-Mas do que você está falando?
-Estou falando daquele vídeo onde você e seus amigos se divertem às custas do constrangimento e
sofrimento dos outros... É esse o profissional que irá defender um país? Quem aqui gostaria de ser
defendido por um criminoso, imoral? Que ética ele terá para cobrar justiça?
-Eu espero que você prove tudo isso que está falando, se não eu te processo.
Dirigindo-me à lousa falei:
-Não se preocupe, aqueles que tiverem alguma dúvida do que eu falei, pode assistir a festinha da
Jéssica nesse link... Ontem, depois de muito procurar acabei encontra vários vídeos seus e de seus
amigos na internet... Postados por vocês mesmos.
Escrevi na lousa o link onde a Jéssica havia publicado o vídeo, e para concluir falei:
-Está ai um material para se estudar ética e moral...
Seus olhos cuspiam fogo, tamanho ódio que a pessoa. A culpa foi dela, pois eu estava
calado em meu canto, sendo ofendido e agredido gratuitamente.
Um mês se passou e durante esse período o vídeo da Jéssica bateu recordes de
visitação no site, até que ela o tirou com medo de ser prejudicada, mas eu fiz questão de toná-lo
público novamente, e dessa vez ela não teria como tirá-lo se fosse postado por mim. Não pensei em
duas vezes em repostá-lo.
Durante as férias, eu e a Soraia nos falávamos quase todos os dias, além de estarmos
sempre nos vendo, pois seu namoro com o Kico fazia com que nos víssemos com frequência.
A dieta para emagrecer que ela estava fazendo surtiu ótimos resultados, fazendo-a
perder medidas rapidamente, e o resultado era tão visível que ela mesma começara a notar com os
elogios masculinos direcionados à ela ao sair pelas ruas.
O tratamento da obesidade necessita principalmente da colaboração do paciente,
envolvendo reeducação alimentar, medicações auxiliares caso necessário, aumento de atividades
físicas, tratamento comportamental com psiquiatra e psicológico, até mermo intervenção cirúrgica

87
(Redução de estômago) caso necessário. Se a obesidade for uma causa secundária, ou seja,
motivada por um problema inicial como depressão, por exemplo, o tratamento deve ser direcionado
inicialmente para a causa desse distúrbio.
A obesidade pode ser prevenida com uma dieta saudável estimulada desde a infância,
evitando que a criança adquira maus hábitos alimentares e cresçam com evolução do peso acima do
normal. Essa dieta inclui também atividades físicas, lazer, estrutura familiar organizada e
relacionamentos afetivos adequado.
Quem estava feliz da vida era o Kico, que agora tinha uma nova mulher ao seu lado,
até ataque de ciúme ele tinha de vez enquando, pois os elogios eram constantes.
Estávamos em sua casa, conversando em seu quarto. Deitado sobre sua cama eu
viajava nos pensamentos, enquanto a Soraia andava de um lado pro outro pensando em algum
presente para o Kico, seu namorado.
-Ai Tom... Me ajuda?
-Ajudar como?
-Sei lá... Ele é seu amigo, você o conhece bem melhor que eu... Do que o Kico gosta?
-Bem... Dê uma camiseta, um bracelete, sei lá.
-Roupa? Acho meio arriscado, vai que ele não gosta.
-Então não sei...
-E se eu desse pra ele um ingresso pro show do NX Zero?
-Faz isso que ele te pede em casamento na mesma hora.
-Hahaha... Perfeito!
Sentando-se em frente a tela de seu computador a Soraia falou:
-Deixa eu ver aqui a data mais próxima...
-Vê se tem alguma perto do aniversário dele.
-É o que eu to fazendo agora... Nossa!
-O que foi?
-Vai ter um show aqui em São Paulo, nesse sábado.
-Pronto! Poderá comemorar o aniversário dele no próprio sábado.
-Melhor ainda. É sempre bom comemorar nosso aniversário no próprio dia...
-Eu não ligo muito pra esse negócio de aniversário.
Ligando a impressora, ela disse:
-Já reservei três ingressos... No melhor lugar disponível.
-Humpft... Eu nem sei se eu vou...
-Ah, pára! Você vai sim.
-Lindinha... Não estou muito bem...
-Agora eu já comprei, você vai. Amigo, não pode ficar assim, tem que sair pra se distrair...
-Humpft... Acho que você tem razão.
-Por favor, não comente nada com o Kico por enquanto... Quero fazer surpresa.
-Pode deixar.
Confesso que senti uma pontinha de inveja daquele namoro que ia tão bem entre eles.
Algumas vezes eu até pensava em esquecer tudo e voltar pro meu amor, mas faltava-me coragem de
chegar no Cauê e dizer o quanto era grande o meu amor.
No sábado acordei triste, sem vontade de levantar da cama, e somente chorar. Por
volta das onze horas da manhã a Soraia me ligou para confirmar minha ida ao show naquela noite.
Embora eu não tivesse vontade alguma de pôr os pés na rua, confirmei que iria, pois ficar em casa
chorando não iria resolver nada, e me distrair um pouco faria-me bem, além do mais, NX Zero era
uma das minhas bandas preferidas.
O show aconteceria às seis horas da tarde. Antes de ir tomar banho para começar a
me arrumar, entrei na internet para verificar meus e-mails. A tentação foi grande, e acabei não
resistindo, passei pelo diário virtual do Cauê.
Logo na página inicial havia uma foto nossa juntos, abraçados. Ao ver, meu coração
bateu acelerado. Após um breve comentário feito pelo Cauê, uma letra de música expressava tudo

88
que ele sentia e queria naquele instante.

Porta Retrato

Parecia um sonho
A gente ficar juntos
Andar a pé na chuva
Sem medo de amar...

Lembra!
De tudo que vivemos
Das tardes de domingo
Da mágica no olhar...

Aceitar que tudo se perdeu


Amor, não dá
Ouvir meu coração pedindo
Pra você voltar
Vai passando o tempo
E eu não sei
Me controlar
Não dá!
Ficar sem você
Não dá!...

No porta retrato
A gente se abraçando
Momentos que ficaram
Difíceis de esquecer
Ou! Ou!...

Te amo!
Sei que ainda me ama
Bateu saudade, chama
Eu volto pra você...

Aceitar que tudo se perdeu


Amor, não dá
Ouvir meu coração pedindo
Pra você voltar
Vai passando o tempo
E eu não sei
Me controlar
Não dá!
Ficar sem você
Não dá!...

Intérprete: Edson e Hudson


Composição: TIVAS/Carlos Randall

Meu peito apertou. O sentimento que eu tinha pelo Cauê era forte demais, ao ponto
de me fazer acordar com febre nas noites de sonhos em que não estávamos juntos. Uma lágrima
desceu sem que eu pudesse controlar, e sobre meus olhos nossa história passava como um filme,
uma linda história de amor.
Tomei banho, arrumei-me todo e fiquei na sala aguardando pelo Kico e a Soraia, que

89
passariam em casa para me buscarem antes de irmos ao show. Deitado ao sofá, o sono já começava
a chegar quando ouvi a buzina do carro. Levantei-me do sofá e espiei pela janela para confirmar se
eram eles, em seguida tranquei a porta de casa e entrei no carro.
Aquela foi a primeira vez que eu andei com a Soraia sendo ela a condutora do
veículo, e confesso que morri de inveja, pois ela sabia conduzir bem melhor que eu.
O show estava lotado. Ficamos bem perto do palco, no camarote. Claro que nem
preciso descrever a alegria que dominava o Kico, e por tabela a Soraia também, ao vê-lo tão
contente.
Ao som de Razões e emoções, lágrimas desciam de meus olhos sem que eu pudesse
controlar. Olhar perdido, saudade intensa. A sensação que eu tinha era de estar preso dentro de um
tubo de vidro, sem oxigênio, impossibilitado de respirar. Enquanto todos pulavam e cantavam eu
permaneci calado, na companhia da tristeza que se hospedou em minha vida sem previsão de ir
embora.
Acariciando meu cabelo a Soraia disse:
-Humpft... É ele... Não é?
-Sim...
-Tom, não fique assim, por favor. As coisas não devem ser levadas dessa forma...
-Sinto como se meu coração tivesse sido arrancado com a mão, de uma só vez...
-Miguxo... Pode ser que tenha acontecido algum mal entendido...
-Obrigado, lindinha... Mas tudo está muito claro.
Dando-me um abraço ela falou:
-O tempo é o melhor amigo nessas horas.
O tempo... Quanto tempo mais eu deveria esperar para que a vida me trouxesse a
felicidade novamente? Difícil não é esperar, mas sim, não encontrar esperanças de que se pode
mudar.

90
No domingo acordei angustiado, com febre. Ainda de pijama desci até a cozinha e
avistei minha mãe sentada à mesa, comendo um pedaço de bolo de laranja, receita da minha avó.
Abri a geladeira, peguei a jarra de suco e sentando-me à cadeira, exclamei:
-Bom dia!
-Bom dia, filho!... Você está pálido... Não está passando bem?
-Acho que não... Estou com febre.
-Quer ir ao médico?
-Não vejo necessidade... Logo passa.
Passando geléia em uma torrada ela falou:
-A Soraia te ligou. Disse que precisa conversar com você urgente.
-Será que aconteceu algo?
-Não sei... Acredito que não, porque se fosse ela teria vindo aqui.
Levantando-me da mesa eu disse:
-De qualquer forma eu vou ligar pra ela agora... Fiquei curioso...
-Ta bom.
Segurando o copo de suco caminhei até a sala, peguei o telefone e disquei pra ela:
-Alô?
-So?
-Oi Tom!
-Você ligou pra mim?
-Humpf... Sim... Estou me sentindo muito culpada por algo que...
-Que o quê?
-Não dá pra falar por telefone. Podemos nos encontrar?
-Aonde você quer ir?
-Podemos almoçar juntos hoje no Ibirapuera?
-Claro!
-Te encontro às duas?
-Não pode ser meio-dia?
-Por mim tudo bem!
-Eu vou de carro.
-Eu também.
-Encontro você no shopping então.
-Perfeito!
-Beijo, lindaaaaaaaa!
-Outros.
Desliguei o telefone e voltei à cozinha para deixar o copo. Tirando a toalha da mesa
minha mãe perguntou:
-Conversou com ela?
-Sim... Marcamos de almoçar hoje. Acho que deve ser algum problema com o namoro dela e do
Kico... Vou tomar banho, mãe.
-Está bem.
Subi para meu quarto e fui tomar um banho antes de sair para encontrá-la. Preferi
não sofrer por antecipação e pensar em outras coisas, pois havia grande possibilidade de pirar se eu

91
ficasse pensando muito no assunto, tentando adivinhar o que seria.
Cheguei no shopping e segui direto para a praça de alimentação. Pouco tempo depois
a Soraia chegou, cada vez mais magra e bonita. Sorrindo, ela seguiu em direção a mim, acenando
com a mão esquerda e caminhando tranquilamente entre as mesas, pois o ambiente não estava muito
cheio, embora devesse estar por se tratar de um domingo e horário de almoço.
Enquanto conversávamos, percebi nela um certo incomodo, sentindo-me na liberdade
de perguntar:
-Você parece não estar muito à vontade...
-Humpft... Eu gosto muito de você, Tom... Não gosto de te ver sofrer assim...
-Sei que você se preocupa, mas sinonimo de amar é sofrer, miguxa...
-Depois de te ver daquele jeito ontem... Estou me sentindo culpada...
-Culpada pelo quê?
-Eu... Não sei se deveria, mas vou contar.
-Você está me assustando... Contar o quê?
-Humpft... O Cauê foi ameaçado, por isso ele mentiu.
-Ameaçado? Como assim?
-O Cristiano o procurou naquela manhã que vocês foram falar com o reitor, depois de você ter o
jogado na piscina... Humpft... E disse que se ele fosse acusado de algo, você iria apanhar até não
aguentar mais.
-Não acredito que o Cristiano foi capaz disso... E o Cauê não me contou nada...
-O Cauê fez isso para te proteger... Ele te ama. Quer prova maior que essa?
-Por que você não me falou isso antes?
-Fiquei sabendo faz pouco tempo...
-Droga! E eu sofrendo achando que ele não prestava...
Levantei-me da cadeira e saí correndo em direção ao estacionamento. Peguei o carro
e segui para a casa do Cauê. Receber aquela notícia foi como se a orquestra do amor voltasse a tocar
em meu ouvido, a serenata dos eternos apaixonados. Eu não via a hora de reencontrá-lo, poder
abraçar, beijar, sentir sua pele, seu cheiro novamente.
Por mais que eu tivesse ficado chateado com sua atitude, compreendi que havia sido
por uma boa causa, como a Soraia havia dito, realmente foi uma verdadeira prova de amor. Não
houve um só dia em que peguei o telefone para ligar e pedir desculpa, mas na hora faltava coragem.
Estacionei o carro em frente ao portão de sua casa. Desci com a pressão arterial às
alturas. Toquei a campainha, trêmulo, nostálgico. Pouco tempo depois sua mãe apareceu à porta.
Com a mão esquerda apoiada ao gradil, perguntei:
-Dona Irene... O Cauê está em casa?
Percebi que ela não estava à vontade em me ver. Compreensível devido ao
rompimento entre eu e seu filho ter acontecido de uma forma tão conturbada, cheia de mágoas.
Após um longo suspiro ela cruzou seus braços ao peito, caminhou em minha direção e disse:
-Tom... Eu acho que vocês já se magoaram demais para...
-Por favor, dona Irene... Eu preciso falar com o Cauê.
-Eu não quero mais que meu filho se magoe.
-Dê-me uma chance de tentar?
Silêncio. Olhando em seus olhos, implorei:
-Por favor, me deixe viver novamente?
Emocionada, ela abriu o portão dizendo:
-Humpft... Ele está no quarto.
-Obrigado!
Corri em direção ao seu quarto. Meu coração parecia querer sair pela boca, e o frio
na barriga era constante. Ao aproximar-me da porta, percebi que estava aberta. Sentado em sua
cama, o Cauê dobrava uma camisa, e ao seu lado esquerdo uma mala aberta com algumas peças de
roupa ocupava parte do colchão.
Em passos lentos, entrei no quarto. Ao ver nossa foto sobre as roupas, não consegui

92
segurar as lágrimas.
Colocando a blusa sobre a cama ele falou:
-Mãe... Já pode chamar o táxi...
Permaneci calado. Levantando-se, ele disse:
-Esse perfume...
Levando sua mão ao peito, completou:
-Será que estou enganado?... É você, Tom?
-Sim...
-Por favor... Não quero mais brigar...
-Calma. Eu... Não vim aqui brigar com você.
-Não?
-Não... Eu já sei toda a verdade...
-Que verdade?
-A única verdade... De que você só quis me proteger...
-Tom...
-Você me perdoa?
Exibindo um leve sorriso ele falou:
-Eu te amei desde a primeira vez que te conheci... A gente não perdoa um amor, apenas sente.
-Você deveria ter me contado.
-O amor que sinto por você é grande demais, não há lugar para egoismo. Eu quero você bem,
ileso... Mesmo que para isso o preço seja você longe de mim.
-Você não existe.
-Existo sim... Existo pra te amar.
Suas palavras me tocaram fundo. Imediatamente o abracei e começamos a nos beijar
loucamente. Sentir seu toque novamente me fez sentir vivo outra vez. Nossos corações batiam
acelerados, e o encostar de nossas peles recarregavam as baterias de nossa paixão.
-Para que são essas malas?
-Estou indo viajar.
-Viajar?
-É... Eu ganhei um convite para ir àquele congresso de Direito...
-O de Porto Alegre?
-É.
-Humpft... E... Quando você embarca?
-Hoje, às três e meia da tarde.
Acariciei seu rosto perguntando:
-E quando você volta?
-Dia dezessete, terça-feira.
-Humpft... Tudo bem... Eu vou morrer de saudade sua...
-E você acha que eu não?
-Sua mãe também vai?
-Sim... Ela pediu cinco dias de férias no trabalho para me acompanhar...
-Humpft...
-Para ser sincero eu nem queria ir.
-Por quê?
-Eu preferia ficar aqui com você...
-Nós teremos muito tempo para ficarmos juntos... Não perca essa oportunidade única.
-É... Você tem razão...
-Quando você voltar, iremos passar uma semana na praia.
-Você promete?
-Prometo.
-Eu não vejo a hora... Você vai cuidar bem de mim?
-Claro... Não confia em mim?

93
-Confio.
Nesse momento sua mãe apareceu à porta dizendo:
-Já está pronto, Cauê?
-Sim...
-Então vamos nos apressar se não acabaremos pegando transito na Washington Luiz...
-O táxi já chegou?
-Ainda não.
-Pode deixar que eu levo vocês até o aeroporto.
-Não há necessidade, Tom.
-Mas eu quero acompanhá-los, dona Irene...
-Deixe ele nos levar, mãe... Assim passamos um pouco mais de tempo juntos.
-Bem... Eu só não quero incomodar...
-Vocês nunca incomodam.
-Então vamos, meninos...
Após colocarmos as malas no carro, seguimos para o aeroporto. Até que o trânsito
estava bom, e a consequência disso foi chegarmos lá em vinte minutos, uma hora antes de embarcar.
O Emílio também viajaria com eles, claro, pois o Cauê não conseguia ficar muito tempo longe de
seu melhor amigo.
Enquanto sua mãe fazia o check-in, ficamos eu e o Cauê sentados no saguão de
espera, abraçados um ao outro, matando a eterna saudade de um tempo perdido e jamais
recuperado.
-Pronto... Já fiz o check-in, agora é só esperar.
Encostando sua cabeça em meu ombro o Cauê disse:
-Humpft... Eu queria tanto que você fosse comigo...
-Mas eu vou te acompanhar em seu coração, não vou?
-De lá você nunca saiu.
-Que bom!
-Promete que vai me esperar?
-Pra sempre.
É incrível como o amor tem o poder de transformar as pessoas. A presença do Cauê
me fazia tão bem que meu organismo respondia por si só. Jamais amei alguém como amava aquele
garoto, uma sensação difícil de explicar, mas muito boa de sentir.

“Atenção passageiros do voo com destino à Porto Alegre, embarque imediato no portão 5.”

Levantando-se das poltronas a dona Irene falou:


-Precisamos ir...
Dando-me um abraço bem forte o Cauê disse:
-Humpft... Estou com medo, Tom.
-Medo por quê?
-É que eu nunca andei de avião... Hahaha...
-Você vai gostar... É muito legal.
-Provavelmente sim... Eu não enxergo mesmo.
-Acredite em mim... Esse fator lhe ajudará muito.
-Humpft... Queria tanto que você estivesse comigo...
Nesse momento tirei meu bracelete e o coloquei em sua mão dizendo:
-Leve isso com você... Assim poderá me ter mais perto de você nesse tempo.
-Eu te amo, Tom!
-Também te amo!... E não se preocupe, vou colocar todos aqueles que te fizeram mal na cadeia.
-Humpft... É muito difícil...
-Você confia em mim?
-Confio.

94
Vê-lo caminhar em direção ao portão de embarque apertou-me a alma. Seu jeito
tímido de caminhar, sua voz meio roca, a gargalhada, mal sabia ele o tamanho da saudade que
deixaria em meu coração durante esse tempo em que ficaria fora, mesmo sendo pouco, mas pra mim
era uma eternidade.
Antes de entrar no portão de embarque ele se virou e acenou para mim. Aquele
momento eu jamais vou esquecer, principalmente o sorriso daquele instante, diferente de todos os
outros que já tinha visto vindos dele. O avião nem havia decolado ainda e eu já morria de saudade,
esperando eternamente pela volta do meu amor, que pouco a pouco ganhava os céus.
Naquele mesmo dia nos falamos por telefone, com o Cauê já em Porto Alegre.
-Tom...
-Fala, mozinho?
-Sabe que... Eu to sonhando com o dia em que você me levará para conhecer o mar?
-Ah é?
-Sim...
-Quando você voltar, iremos realizar muitos sonhos juntos.
-Você promete?
-Prometo.
-Preciso desligar agora, mo.
-Humpft... Está bem.
-Olha...
-Hum?
-Eu amo você, tá?
-Também te amo, mozinho.
Desliguei o telefone. Pouco tempo depois minha mãe bateu à porta do meu quarto:
-Rustom?
-Oi, mãe!
-O que você acha de sairmos para jantar?
-Jantar? Nossa!... Que horas são?
-Sete e meia.
-Caraca!... Nem notei às horas passarem... Aonde você quer ir?
-Vamos a uma churrascaria?
-Um rodízio?
-Ótimo!
-Vou tomar banho.
-Não demore que logo irei eu.
-Ta.
Depois que meu pai sumiu no mundo sem dar notícias, eu e minha mãe nos
tornávamos cada vez mais próximos um do outro.

95
Naquela noite, tivemos o melhor jantar de nossas vidas até então, pela primeira vez
um momento mãe e filho.
-O que você acha se eu fizesse uma reforma na lanchonete?
-Sabe que eu acho... Você deveria transformar aquele lugar em um bar-restaurante.
-Como assim?
-Aproveitar melhor os espaços... O que acha de uma pista de dança no segundo andar?
-Mas pista de dança não combina com restaurante...
-Restaurante durante o dia, né?
-E a noite música?
-Sim.
-Até que não é uma má idéia.
-Humpft... Mãe... Ele não te procurou mais?
-Rustom...
-Por favor, não esconda nada de mim.
-Não... Ele não me procurou mais.
-Melhor assim.
Fiquei aliviado em saber que meu pai parou de procurar pela minha mãe.
Provavelmente ele havia se conformado com a separação proposta pela minha mãe, e finalmente
nos deixando em paz para sempre.
Após jantarmos, voltamos para casa. O relógio marcava dez e dez da noite. Entramos
pela porta da cozinha, e após deixar a chave à fechadura minha mãe colocou sua bolsa sobre à mesa
dizendo:
-Nossa... Me deu uma vontade de comer um bolo...
-Agora que você vem dizer?
-É porque agora que me deu vontade.
-Vontade de comer bolo às dez da noite...
-O que tem de errado?
-Nada... Mas na geladeira não tem um de laranja?
-Sim, mas minha vontade é de chocolate... Eu vou fazer um.
-Hum... Então eu não vou dormir tão cedo... Quero um pedaço de bolo também.
-Ta...
-Enquanto isso eu vou ver TV no meu quarto...
-Te aviso quando estiver pronto.
-Acho que o cheiro me avisa antes...
Subi para o meu quarto, troquei de roupa e deitei em minha cama. O Cauê não me
saia da cabeça. É impressionante como algumas pessoas podem mudar outras vidas, deixando em
nossas mãos a felicidade, como um controle remoto do destino.
De braços cruzados, encostei-me ao canto da janela enquanto observava o
movimento da rua no breu do quarto, pensando e planejando o meu futuro ao lado do meu amor.
Em um certo momento, reparei algo suspeito no portão. Imediatamente peguei meu celular que
estava sobre a cama e disquei para a polícia.
-Alô? É da polícia?
-Sim...
-É que tem alguém tentando entrar em minha casa...
96
-Tente manter a calma e me passe o endereço.
-Tudo bem.
Enquanto falava com a pessoa que me atendeu, permaneci próximo à janela,
observando atentamente o indivíduo que tentava entrar em minha casa.
-Você consegue me dizer como essa pessoa é?
-Não dá pra ver... O rosto está encoberto pela aba do boné...
-São quantas pessoas?
-Só vejo uma.
Nesse momento ele conseguiu abrir o portão e entrar. Assustado, exclamei:
-Oh! Ele conseguiu entrar...
Deixei o telefone cair e corri em direção à porta. Desci a escada em dois pulos,
seguindo direto para a cozinha. Minha mãe colocava o bolo no forno, e ao ver-me em prantos,
perguntou:
-Rustom! O que é isso?
-Vem, mãe...
Peguei pelo seu braço puxando-a em direção ao meu quarto. Preocupada, ela
questionou:
-O que está acontecendo, Rustom?
-A gente precisa sair daqui, mãe.
Ao entrarmos em meu quarto, tranquei à porta. Apreensiva, ela quis saber:
-Fala, Rustom? O que está havendo?
-Alguém entrou em casa, mãe...
-Mas quem?
-Não sei... Não te passa nenhuma idéia na cabeça de quem seja?
-Será?
-Sim... Ele veio se vingar...
Minha suspeita era de que fosse meu pai, e logo se confirmou quando ele conseguiu
arrombar à porta da sala gritando:
-Eu sei que vocês estão ai...
-Ah meu Deus!
-Calma, mãe...
Até então, não sabíamos o que ele queria, mas algo de bom não haveria de ser, pois a
maneira com que ele entrou em casa não estava pra fazer amigos. Com receio do que ele pudesse
fazer, nos trancamos dentro do banheiro em meu quarto. Minha mãe estava trêmula, com medo do
que ele pudesse fazer contra nós.
Sentando-me ao chão encostado à parede, exclamei:
-Caramba!
-O que foi?
-Esqueci de pegar o telefone... Eu vou lá buscar.
-Não! Por favor, Rustom...
-Calma, mãe. Eu tomarei cuidado...
-Rustom...
-Já volto.
Abri à porta do banheiro e dei a volta até o outro lado da cama para pegar o telefone
que eu havia deixado cair. Peguei-o do chão, e quando aproximava-me do banheiro ouvi uma forte
pancada à porta do quarto. O susto fez-me tropeçar e cair, desmaiando logo ao bater a cabeça ao
chão.
Permaneci ali, caído, à merce da violência alheia sem motivo. Preocupada, minha
mãe saiu do banheiro e tentou reanimar-me, porém, continuei desacordado. Nervosa ela colocou
meu celular em seu bolso, logo em seguida pegou em meus braços e arrastou-me para o banheiro.
Não sei quanto tempo permaneci desmaia, só sei que acordei um pouco tonto. Segurando-me a mão,
minha mãe chorava com medo que meu pai invadisse o ambiente e nos fizesse alguma maldade.

97
Isso não demoraria a acontecer, pois pela violência com que ele batia à porta, com certeza ela não
resistiria por muito tempo.
Abraçados, mantínhamos distância da porta, porém, não conseguimos evitar a
rendição. O ódio que ele sentia por nós estava estampado em sua face, e na sua mão direita havia
uma arma de fogo, deixando-nos em pânico ao ser apontada para nós.
-Renato... Pelo amor de Deus...
Irritado ele pegou pelo braço da minha mãe e a jogou com força sobre minha cama.
Nesse momento, quatro viaturas policiais pararam na porta de casa.
-Não põe a mão na minha mãe.
-Cala essa boca, moleque.
A sirene das viaturas chamaram sua atenção. Nervoso, meu pai puxou-me pelos
cabelos e me arrastou até a janela do quarto. Apontando a arma para minha cabeça, gritava aos
quatro ventos:
-Se alguém entrar, eu mato todo mundo.
A partir daquele instante, estava caracterizado um sequestro, tendo o próprio chefe de
família como o criminoso. Em pouco tempo o número de viaturas já havia se multiplicado. A rua foi
isolada, os vizinhos cercaram o portão e as emissoras de TV os céus com seus helicópteros.
Eu parecia estar vivenciando um pesadelo. Por um momento meu pai fechou à janela,
nos deixando totalmente isolados. A tortura psicológica era constante. Quatro horas se passaram e
após amarrar-me à cama, foi a vez da minha mãe tornar-se alvo daquele covarde.
-Está pensando que eu vou deixar tudo de mão beijada pra você?
-Renato, por favor...
-Se você acha que vai se sair bem desa, está enganada.
-Você não está bem...
-Eu vou acabar com tudo isso...
-Por favor, vamos conversar?
Pegando forte em seus cabelos, ele questionou:
-Conversar? Agora que você quer conversar?
-Será que você não vê que está prejudicando ainda mais sua situação?
-Estou pouco me importando... Ninguém vai sair vivo daqui.
Acredito que toda aquela situação poderia ter sido evitada se minha mãe o tivesse
denunciado desde o começo, seguindo meus conselhos. Acredito que ela não tenha feito isso por
medo que ele fizesse alguma coisa contra mim, pois embora ela negasse, eu sempre desconfiei que
as ameaças contra nós eram constantes.
A vítima ao chegar na delegacia registra um Boletim de Ocorrência, em seguida ela
passará pelo exame de corpo de delito. Se a parte agredida não retirar a queixa posteriormente
(Como acontece em grande parte dos casos por medo de represálias) o agressor será notificado a
comparecer à Delegacia de Defesa da Mulher e dar seu depoimento. Após isso, o processo será
encaminhado ao Fórum e a justiça quem ficará responsável em penalizar o agressor, e não a
delegacia.
Após anos sofrendo violência verbal e física, muitas mulheres procuram a delegacia
para denunciar as agressões.

"Eu lavava, passava, deixava a comida pronta para quando ele chegasse do serviço poder jantar, e
ele me xingava de nomes que eu nunca havia ouvido na vida, falava que não eu prestava. Sempre deixei pra
lá, até que minha filha me levou à delegacia e eu prestei queixa." (Sandra, 45 anos, aguentou as
agressões durante 12 anos)

De janeiro a dezembro de 2006, mais de três mil casos de violência foram registrados
na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).
O tempo parecia não passar, e respirar tornava-se cada vez mais difícil, pois uma
meia havia sido colocada em minha boca para que eu não falasse ou gritasse. A negociação com os

98
policiais se estendeu pela madrugada adentro, e ao amanhecer, ainda nada estava resolvido.
Todos estávamos exaustos. Eu já perdia as esperanças, quando avistei alguém
escondendo-se próximo à porta. Ao mesmo tempo em que fiquei feliz, o medo de que um conflito
nascesse também era presente.
O relógio da parede já marcavam nove horas da manhã. Foi por um descuido de um
policial que vi nossas vidas por um fio. Irado, meu pai avistou que haviam entrado em casa e que
ele estava praticamente cercado.
-Larga a arma e põe a mão na cabeça...
-Se alguém chegar perto eu mato todo mundo e me mato.
Imediatamente ele apontou a arma para mim, ameaçando atirar caso alguém se
aproximasse. Encorajada pelo instinto materno minha mãe jogou-se sobre mim, usando seu corpo
para cobrir-me, servindo como escudo.
Em 7 de agosto de 2006, o presidente Lula sancionou a lei de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, recebendo o nome de Lei Maria da Penha. A nova lei altera o Código
Penal, permitindo que os agressores tenham prisão preventiva decretada e sejam presos em
flagrante, acabando também com aquela penas solidárias, onde o agressor doa cestas básicas ou
paga multa.

"Essa mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica
no nosso país." (Presidente Lula)

Após ouvir muitos gritos masculinos e vários passos de pessoas correndo, um tiro
soou alto. Percebi que minha mãe havia parado de se mover, fazendo-me entrar em desespero. Por
um instante achei que ela estava morta, mas tudo não passou de um susto, pois o tiro havia sido
disparado por um policial, atingindo meu pai, e nos livrando de um pesadelo.
Existem momentos em nossas vidas que nos põe à prova, testando nossas forças e
mostrando a nós mesmos até onde as pessoas podem chegar. Sei que cada ser humano possui um
limite, e eu já estava próximo do meu.
A Lei de Execuções Penais altera para permitir que o juiz obrigue o agressor a
comparecer em programas de recuperação e reeducação. Além disso, a lei trás uma série de medidas
que protegem a mulher agredida, que esteja em situação de agressão onde a vida corre riscos. Uma
delas é a saída do agressor de casa. Reaver seus bens materiais e proteção dos filhos também estão
incluídos. Passa a ser considerada violência doméstica a violência psicológica. Caso seja constatada
a necessidade de tratamento físico ou psicológico, a mulher poderá ficar afastada de seu trabalho
por até seis meses sem perder o emprego.
Para denunciar a prática de violência e orientar os procedimentos, a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres criou o telefone 180, que recebe diariamente mais de três mil
ligações por dia.
Foram momentos intermináveis que marcariam nossas vidas para sempre, mas que
terminou com final feliz, graças a Deus.
Passei o resto daquele dia dormindo, tentando aliviar o trauma psicológico que havia
se instalado em nós. Por mais que eu e meu pai não nos gostássemos, ver seu corpo caído em meu
quarto foi traumático, assustador.

99
No outro dia, assim que acordei telefonei para a Soraia. Conforme havia prometido
para o meu amorzinho, aqueles que haviam lhe feito mal não ficaria impune, e eu não poderia mais
perder tempo, pois a experiência própria havia me dado a prova de que o silêncio custa muito caro.
-Alô?
-Oi... Por favor, a Soraia?
-Olá, Tom!
-Olá... Tudo bom com a senhora?
-Tudo sim. Aguarde só um instante que irei chamá-la.
-Obrigado.
-Alô?
-Oi So!
-Oi miguxo!
-Eu... Humpft... Estou indo à delegacia fazer a denúncia contra aqueles...
-Quer que eu vá com você?
-Eu quero sim.
-Minha mãe vai sair com o carro... Você vai estar com o seu?
-Vou... Pode deixar que eu passo ai e te busco.
-Ótimo! Você se importa se o Kico for junto? É que ele dormiu aqui em casa e...
-Por mim não há problema algum...
-Humpft... Você parece não estar muito bem, Tom...
-Estou precisando conversar um pouco...
-Claro! Irei ouvi-lo com prazer.
-Obrigado, miguxa.
-Até mais tarde.
-Até!
Após o almoço, passei na casa da Soraia e seguimos logo depois para a delegacia,
munido de todas as provas que havia conseguido. A queixa foi registrada mais rápido do que eu
esperava, e se dependesse de mim, a justiça seria feita.
A presença de meus dois melhores amigos fizeram-me bem, além do conforto de
ouvir uma palavra amiga no momento em que eu mais precisava.
-Tom... Deus nos coloca à prova para testar até onde somos capazes de chegar, o tamanho de nossa
fé...
-Talvez seja... Mas nos faz tão mal...
-Eu sei, mas tudo isso serve para que nos fortaleça cada vez mais.
-É tão bom ouvir uma palavra amiga...
Dando-me um abraço a Soraia falou:
-Agora chega de tristeza. Vamos falar de coisas boas.
-E qual é a nova?
Respondendo por ela, o Kico disse:
-A Soraia irá se inscrever no concurso de Miss Brasil.
-Sério?
-Sim... Graças ao Cauê...
-É mesmo, ele havia pedido... Nossa!
-O que foi?
100
-Que dia é hoje?
-Dezessete de julho, por quê?
-Se eu não me engano, é hoje que ele volta...
-Que legal!
-Eu vou para casa...
-Nós também vamos, pois com esse tempo chuvoso só dá vontade de ficar em casa namorando.
-Então vamos que eu deixo vocês em casa.
-Tudo bem...
Enquanto caminhávamos até o carro a Soraia pegou seu celular e telefonou para a
Jéssica, debochando de sua cara após a queixa que havíamos prestado contra ela e sua corja.
Confesso que até senti vontade de participar, mas a ansiedade em rever o Cauê era tão grande que
meus pensamentos foram longe.
Cheguei em casa e avistei minha mãe sentada ao sofá, com a mão cobrindo seu rosto.
Percebendo que algo havia acontecido, tranquei a porta e sentei-me ao seu lado perguntando
preocupado:
-Mãe... Está tudo bem?
Sem se mover ela respondeu:
-Por que você não me contou que é gay?
Levantei-me do sofá assustado.
-Quem te falou isso?
Olhando em meus olhos e chorando ela falou:
-Não sei... Alguém me ligou e disse que você namorava um aleijado...
Gritei:
-Ele não é aleijado.
-Então é verdade!
-Humpft... Eu... Eu sou gay sim.
-Ah meu Deus!
-Calma, mãe... Não precisa ficar assim... Isso não é um bicho de sete cabeças.
-Você fala como se fosse fácil viver nessa situação...
-Claro que não é fácil...
-Para uma mãe, qualquer comportamento de um filho que fuja do considerado comum pela
sociedade causa preocupação... O mundo é cruel, Rustom...
-Como... Você ficou sabendo disso?
-Alguém me ligou e disse que você estava tendo um caso com um colega de classe... Mas não se
identificou.
-Era voz masculina? Feminina?
-Parecia uma mulher.
Nesse momento o telefone da sala tocou. Limpando suas lágrimas minha mãe
atendeu, com a voz embargada:
-Alô?
Apenas com o olhar ela contou-me quem era. Peguei o telefone para confirmar:
-Alô?
-Oi mozinho!
-Oi!... Cauê, você poderia me ligar daqui a pouco?
-Mas é que... Humpft... Tudo bem.
-Depois eu te explico.
-Ta bom.
Desliguei o telefone e logo em seguida ela olhou-me, e pela forma pedia a
confirmação daquilo que já suspeitava:
-Sim, mãe... É ele.
Após levantar-se do sofá ela subiu a escada em direção ao seu quarto, chorando.
Confesso que fiquei triste pela forma com que ela ficou sabendo. Acredito que saber por você é bem

101
melhor do que pela boca alheia, mas já que a verdade já havia sido exposta, não havia mais nada
que eu pudesse fazer, aliás, havia sim, e o culpado pagaria muito caro.
Subi para meu quarto triste, angustiado. Sempre tive um bom relacionamento com
minha mãe, e todo aquele clima acabou fazendo-me mal, além do mais, ambos passamos por maus
momentos menos de vinte e quatro horas antes. Deitei-me à cama pensando na vida, e assim acabei
adormecendo.
Acordei algum tempo depois, com o telefone tocando. Atendi bocejando:
-Alô?
-Tom?
-Oi Cauê... Desculpas por aquela hora...
-Aconteceu algum problema?
-Humpft... Alguns... Você já me conhece, né?
-Claro... Do fio da cabeça aos pés.
-Cauê... Minha mãe descobriu tudo sobre nós.
-Mas como?
-Humpft... Ligaram pra ela e contaram.
-Ligaram?
-Sim.
-Mas quem ligou?
-Não tenho certeza, mas desconfio da Jéssica.
-Safada.
-Deixe isso pra lá... Sabia que eu estou com saudade de você?
-Eu também... Mas eu tenho uma boa notícia...
-Qual?
-Estou voltando hoje para São Paulo.
-Sério?
-Sim...
-Que horas?
-Por volta das seis da tarde eu desembarco em Congonhas.
-Então eu vou te buscar no aeroporto.
-Oba!
-Em qual voo você vem?
-Ah... Não estou com os bilhetes aqui... Devem estar com a minha mãe, mas depois eu te ligo e
passo.
-Ótimo!
-Não aguento mais esperar para ficar ao seu lado novamente.
-Ainda hoje você vai estar.
-E ninguém irá nos separar.
-Nunca mais.
-Te amo.
-Eu também.
Desliguei o telefone feliz da vida. Peguei uma roupa e fui tomar um banho antes de
sair. O relógio do meu quarto marcavam quatro horas. Ao sair do banheiro, voltei ao quarto com a
toalha enrolada à cintura, peguei o secador de cabelo e voltei ao banheiro. Calcei o tênis e logo em
seguida passei aquele perfume que o Cauê gostava.
Desci à escada colocando a carteira no bolso traseiro da calça, quando minha mãe
surpreendeu-me perguntando:
-Aonde você vai?
-Mãe!... Eu...
-Sem mentiras, Rustom... Por favor.
-Humpft... Está bem... Eu vou até o aeroporto encontrar o Cauê. Posso usar seu carro?
-Eu vou com você.

102
-Tudo bem, eu vou de ônibus... O quê?
-É isso mesmo que você ouviu... Quero ir também.
Aproximando-se de mim ela disse:
-Quero conhecer o responsável por fazer seus olhos brilharem, sorrir o dia todo...
Eu não acreditei quando ouvi minha mãe falar aquilo.
-Você não está com raiva de mim, mãe?
-Raiva por quê? Por você ser esse menino maravilhoso que você é?
Demos um forte abraço. Naquele momento eu tive a certeza de que não estava
sozinho no mundo. Por mais que minha mãe tivesse enfrentado uma vida difícil em sua infância,
chegando até a passar fome, nunca a vi maltratando alguém, querendo se vingar do mundo quando
parecia que todos haviam virado às costas para ela. Sempre que eu precisava ela estava lá, com seu
colo pronto para eu chorar, acompanhado de um carinho, uma palavra otimista para me dizer, no
momento certo.
Enquanto minha mãe dirigia, conversávamos:
-Por que você escondeu isso de mim, Rustom?
-Eu não tive intenção de te enganar, mentir... Humpft... Quis poupá-la...
-Você deveria ter me contado.
-E te fazer sofrer? Correr o risco de ser rejeitado?
-Eu nunca faria isso.
-Não é tão fácil assim, mãe... A gente não sabe como será a reação de nossos pais...
-Humpft...
-Além disso, é constrangedor abrir sua sexualidade aos pais... É como um filho hetero dizer à mãe
que prefere garotas com seios maiores, menores, genitália depilada de certa forma...
-Mas é diferente.
-Não, não é... Eu não sou anormal... Minha sexualidade não pode vir à frente de meus valores, não
precisa ser exposta...
-Rustom... Isso tem alguma coisa a ver com suas brigas nos colégios?
-Humpft... Sim.
Foi bom ter esclarecido tudo de uma vez, sem mágoas e ressentimentos. Senti-me
mais aliviado, sem culpa ou sensação de estar enganando alguém. Sei que sou uma pessoa de sorte
por ter uma mãe como a minha, que mesmo sofrendo por ter um filho diferente, acolheu-me em
seus braços.
Ao entrarmos na Avenida Washington Luiz ela quis saber:
-E esse Cauê... Como ele é?
-O garoto mais perfeito do mundo... É carinhoso, meigo, inocente, puro...
-Você está feliz com ele?
-Muito!... Ele me ensinou muitas coisas...
-Ah é?... Como o quê, por exemplo?
-Graças ao Cauê eu aprendi que o valor das coisas não está em quanto elas custam, mas sim no
tamanho da satisfação que podem proporcionar... E que a beleza das coisas estão além do que os
olhos podem ver...
-Que lindo!
-Você vai adorá-lo, mãe.
-Só pelo fato de fazer meu filho feliz eu já gosto dele... Você está com os dados do voo ai?
-O Cauê ficou de me retornar para me passar...
-Será que ele já não ligou?
-Não sei... O meu celular está sem sinal.
-Eu já falei pra você trocar de operadora... Olha que chuva?
-Ainda bem que já estamos perto.
-Só espero que o aeroporto não feche por conta disso.
-Ou o voo atrase...
Chegamos ao aeroporto. Fazia frio naquele começo de noite em São Paulo, além de

103
chover. Após deixarmos o carro no estacionamento, seguimos para a área de desembarque para
esperar pelo Cauê.
Enquanto caminhávamos pelo saguão, minha mãe apontou para o portão e falou:
-Vamos aguardar ali.
-Ta bem.
Peguei em sua mão e a coloquei em meu peito dizendo:
-Olha como eu estou?
-Nossa!... Tudo isso é ansiedade?
-Não... É amor, mãe.
Nesse momento ouvimos um forte barulho, seguido de um leve tremor. Parecia
fogos, devido ao breve clarão duplo que veio de fora, mas sabíamos que não era. Minhas pernas
começaram a tremer. Olhei para minha mãe tentando achar uma resposta, mas seu silêncio também
indiciava sua dúvida.
O relógio do painel do aeroporto marcavam 18h51. Pouco tempo depois, começaram
a desembarcar os passageiros de um voo vindo do sul. Após um forte aperto em minha mão, minha
mãe falou:
-Será que ele está nesse?
-Não sei... Deixa eu tentar ligar pra ele...
-Mas filho, se ele ainda estiver no avião não poderá atender...
-Mas se eu ligar e der caixa postal saberei que ainda está voando.
Peguei o telefone celular do bolso, e antes de começar a discar para o Cauê, notei que
havia uma mensagem na caixa postal. Com o sorriso de orelha a orelha, exclamei:
-Tem recado na caixa postal!... Será que é o Cauê?
-Ouve para saber de quem é.
-É o que vou fazer...
Digitei a senha e logo em seguida comecei a ouvir o recado do Cauê, como já
suspeitávamos.

“Oi Tom!... Estou morrendo de saudade, não tirei seu bracelete nem por um minuto do braço... Estamos
embarcando para São Paulo... Agora são 17h00... Os dados do voo... Ops... É o voo 3054 da companhia
TAM. Acredito que por volta de 18h50 estaremos pousando em Congonhas... Humpft... Estou um pouco
angustiado... Deve ser a saudade. Bem... preciso desligar, tá? Olha... Todas às vezes em que você sentir a
brisa do ar te tocar, sou eu lhe fazendo carinho. Um beijo, te amo!”

Desliguei o telefone com o sorriso que ia de orelha a orelha. Naquele momento eu fui
ao céu e voltei num piscar de olhos. A sensação que sentimos quando vivemos um amor é
inexplicável, assim como a alegria que percorria minhas veias.
Olhando-me minha mãe afirmou:
-Era ele...
-Sim... Ai mãe, não vejo a hora de poder abraçá-lo novamente...
-Em qual voo ele vem?
Quando eu ia responder, nossa atenção foi desviada para uma mulher que começou a
gritar descontroladamente, jogando-se ao chão desesperada, amparada por duas pessoas que, assim
como ela, também choravam:

“Não... Meus filhos não...”

Fiquei assustado. O clima começou a mudar naquele aeroporto. No inicio não se


sabia o que havia realmente ocorrido, mas algum tempo depois já estava claro que se tratava de um
acidente.
Várias pessoas começaram a correr em direção ao balcão da TAM, enquanto dois
bombeiros passaram por mim apressados, pedindo para que as pessoas abrissem passagem. Um
tumulto começou a se formar, e preocupado, parei um homem que passava por nós apressado e
104
perguntei:
-Moço, por favor, o que está acontecendo?
-Parece... Que um avião caiu...
-Avião? Ah meu Deus!
Meu coração apertou. Um frio pela espinha subiu-me arrepiando todos os pêlos do
corpo. Minha frequência cardíaca duplicou, e as lágrimas começaram a descer sem que eu pudesse
controlar. Horrorizada, minha mãe deu-me um abraço. Trêmulo, eu disse:
-Mãe... Estou com medo...
-Calma, Rustom... Vamos até o balcão da TAM ver se conseguimos alguma informação sobre o voo
do Cauê.
Várias pessoas começaram a se dirigir para o aeroporto, familiares e amigos. Muita
gente passava por nós, aflitas, angustiadas, chorando. Até aquele momento, a Companhia aérea não
tinha nenhuma informação concreta para nos passar, pedindo para que aguardássemos apenas. Uma
espera angustiante, feita de dor, sofrimento.
-Ai, mãe...
-O que foi, filho?
-Diz que nada disso está acontecendo?
-Rustom... Não se precipite, filho...
Meu peito apertou, e uma angústia enorme invadiu-me sem pedir licença.
Tentávamos saber o que de fato havia acontecido, mas ninguém sabia nos dar qualquer tipo de
informação.

"Eu só ouvi o barulho da queda do avião e o relâmpago na janela da cozinha, eu estava fazendo a janta, a
geladeira tremeu eu vi um clarão. Na hora pensei que fosse um relâmpago."

"A gente só escutou o estrondo e saiu correndo, só depois a gente ficou sabendo do que aconteceu."

Será que o voo dele atrasou? Será que pegou outro voo, perdeu o avião? Mas se ele
estiver lá, será que sobreviveu? Geralmente, parentes das vítimas de acidentes aéreos se apegam à
qualquer esperança que possa haver, mesmo às mais remotas, e comigo não foi diferente.

"Não dão uma informação decente, e ficam tratando a gente como se nós fossemos criminosos, é
vergonhoso o que está acontecendo."

Eu não sei o que vai acontecer agora, não sei qual o procedimento que vai ser tomado, como que eu vou
chegar até meu filho."

Por volta dás 19h20 A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo confirmou que
176 pessoas estavam a bordo da aeronave acidentada. Boatos e contradições haviam por todos os
lados, deixando os familiares confusos e aumentando ainda mais nossa dor e sofrimento.
-Nãooooooooooooooooo... Não pode ser...
-Rustom...
Ajoelhei-me ao chão.
-Deus... Não me abandone agora, por favor...
-Calma, filho... Vamos ter fé que...
-É o voo que ele disse que iria estar...
-Mas talvez ele não embarcou...
-Ai mãe, meu peito dói... Pelo amor de Deus, mãe... Me ajuda?...
-Como eu posso te ajudar, filho?
-Tira essa dor de dentro de mim, mãe?
Recebi um abraço como resposta, mas a dor que eu estava sofrendo, assim como
todos os familiares que ali estavam, não havia remédio que a confortasse, curasse aquela ferida que
sangrava sem parar.

105
Enquanto as equipes de bombeiros faziam buscas às vítimas, familiares e amigos
aguardavam por informações que nunca chegavam. No aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre,
uma sala foi reservada pela Infraero aos amigos e parentes dos passageiros.

"Vocês estão lhe dando com vidas, gente... Vida aqui fora e vidas que estão aqui ainda, que estão tendo dor,
sofrimento."

Já em Congonhas, foram direcionados para a sala de autoridades do aeroporto.


Preferi não ir e aguardar por informações no próprio saguão, acompanhando a movimentação dos
militares.
Às 20h14 a companhia aérea TAM divulgou uma nota oficial sobre o acidente em
seu site:

"A aeronave da TAM Airbus A320, vôo JJ 3054, que partiu de


Porto Alegre, às 17h16, com destino ao aeroporto de
Congonhas (SP), sofreu acidente no pouso no aeroporto em São
Paulo.
Neste momento não podemos determinar a extensão dos danos
ou de possíveis lesões sofridas pelos ocupantes do avião,
passageiros e tripulantes. Uma equipe da TAM já está no local e
outros técnicos da companhia estão a caminho. A assistência de
emergência também está sendo prestada pelo Corpo de
Bombeiros, Infraero e outras autoridades aeronáuticas.
A TAM já ativou seu Programa de Assistência às Vítimas e
Familiares e disponibilizou um número de chamadas gratuitas
voltado para o atendimento aos familiares dos passageiros e
tripulantes deste vôo: 0800 117900.
Qualquer outra informação relevante será comunicada
imediatamente pela TAM."

O meu mundo desabou naquele momento. Impossível descrever a dor que senti no
instante em que vi a possibilidade de ter perdido o grande amor da minha vida, dor essa que não tem
cura, remédio, nem como explicar. Parecia que haviam feito um buraco em meu peito, deixado após
arrancar meu coração em um único golpe fatal.
Parte de mim deixava de existir. Ao nosso lado uma senhora chorava, segurando uma
criança em seu colo que lhe perguntou:

“-Vovó... A mamãe já está chegando?


-Acho que a mamãe não vai mais voltar...
-Por quê?
-Porque a mamãe foi pro céu...”

Sorte tiveram dois casais que conseguiram falar com seus parentes e receber a feliz
notícia de que haviam deixado de embarcar no voo 3054. Por mais que eu tivesse certeza de que era
o mesmo voo em que o Cauê e sua mãe embarcaram, agarrei-me na esperança deles terem mudado,

106
se atrasado, pois haviam dito que alguns passageiros que eram para seguir no voo 3054, trocaram ou
deixaram de embarcar.
Eu pensei que fosse morrer junto, e para ser sincero, naquele momento essa foi a
minha vontade. Meu olhos pararam de ver, meu coração parou de bater, meu pulmão de respirar. As
lágrimas já haviam secado, e a única vontade que eu tinha naquele momento era de acordar, acordar
de um pesado que parecia num ter mais fim.
Abraçado à uma senhora, um rapaz dizia:

“-Ela tem que estar naquele avião de Curitiba, dona Vanda.


-Se Deus quiser.”

Tocada, minha mãe falou:


-Deus nunca nos desampara, moço...
-É nele que estou me apegando agora.
-É seu parente?
-Minha esposa...
Abraçando o rapaz, a senhora completou:
-É a minha filha... Está grávida...
Tanto sofrimento, tanta dor, tantas pessoas querendo apenas uma coisa naquele
momento: informação. Sentei-me ao chão anestesiado pelo pesar da situação. No prédio da TAM
Express, onde o avião havia colidido, bombeiros lutavam contra o incêndio de grandes proporções
para resgatar os funcionários da empresa que trabalhavam no local no momento da colisão.
Todos os meios de comunicação no Brasil estavam focados como tema principal o
acidente, tornando-se notícia no mundo inteiro.
Agachando-se de frente para mim, minha mãe questionou:
-Rustom... Vamos para casa, você não está bem...
Não consegui falar, pensar, mover-me. Apenas meu corpo estava ali, pois minha alma
vagava pelo ar, procurando uma razão pra viver, meu complemento chamado Cauê. Assim como eu,
todos os familiares e amigos das vítimas, só queríamos o que era nosso por direito: informação
sobre quem havia embarcado naquele avião.
Eu já não aguentava mais tanta tortura. Atravessei à Avenida Washington Luiz
correndo em direção ao local da colisão. Toda a região ao redor foi isolada. O trânsito teve que ser
direcionado para outras avenidas, causando um verdadeiro caos na zona sul de São Paulo.
Ver aquele fogo ardendo e parte da cauda do avião sendo consumida fizeram-me cair
em si. O desastre levou apenas 28 segundos para acontecer, mas que marcaria eternamente a vida
dos brasileiros.
Cruzei a fita de isolamento e caminhava em direção aos destroços quando fui
impedido por um bombeiro:
-Você não pode ficar aqui...
-Parte da minha vida pode estar la dentro...
-Lamento, mas é muito arriscado você ficar aqui.
Nesse momento uma funcionária da TAM Express que se equilibrava na marquise do
prédio pulou de onde estava, entrando em óbto com o impacto da queda. Minha mãe ficou
horrorizada. Aquela cena foi traumatizante, ver o desespero daquela jovem mulher de cabelos lisos,
que mesmo sendo aconselhada pelos bombeiros em permanecer onde estava, viu uma chance de se
salvar e não morrer queimada pulando.
Inferno. Essa foi a única palavra que eu consegui encontrar para descrever aquele
ambiente. Enquanto o fogo ardia, eu conseguia ouvir os gritos dos bombeiros, funcionários da
empresa que ainda permaneciam no interior do prédio, familiares. Junto com eles era possível ouvir
a angústia, o medo, da dor de perder quem se ama. Olhando os destroços se perdendo às chamas,
tentava imaginar o Cauê ali dentro, e só de pensar uma fisgada suprimia meu peito.

107
A pedido da minha mãe, acabamos voltando para o aeroporto, pois a chuva começara
a cair novamente. Nem a TAM nem a Infraero passavam qualquer tipo de informação sobre as
vítimas. Era uma angústia que não tinha fim, e como se não bastasse o desrespeito com os
familiares, o descaso nos faziam sofrer ainda mais.
-Filho... Não acha melhor irmos para casa?
-Mãe... Cadê o meu Cauê?
-Eu... Não sei, filho...
Deixei em seu colo.
-Mãe... Por quê Deus faz isso com a gente?
-Faz o quê?
-Tira de nós quem amamos?
Emocionada, ela tentou explicar:
-É... É porque o Cauê era um garoto muito especial, por isso Deus o chamou mais cedo pra perto
dele.
-Eu to sofrendo muito...
-Humpft... Filho, vamos pra casa... Não irá adiantar muito ficarmos aqui...
-Eu só saio daqui quando souber se ele realmente embarcou naquele avião.
-Humpft... Se você soubesse o quanto eu estou sofrendo vendo você nesse estado...
Com o olhar perdido, falei:
-Mãe... Eu e o Cauê vamos pra praia na sexta-feira... Vou levá-lo para conhecer o mar. Ele vai
adorar...
-Filho...
-Está sentindo essa brisa?
-Estou.
-É ele, mãe... É o Cauê me tocando... Como ele havia prometido no telefone...
Acariciando meus cabelos ela começou a chorar, e como se voltasse a realidade,
chorei, desesperado:
-Aonde ele foi?... Sumiu sem me dizer nada... Será que ele não sabe que estou com saudade? Ele
não pode me deixar aqui esperando...
-Rustom, você não está bem, filho.
-Mãe... Ele prometeu que iria voltar... Cadê meu amorzinho?

"-Você está bem?


-Humpft... Estou... Cadê o Emílio?
-Quem é Emílio?
-Meu cachorro."

"-Faça-me feliz, Tom?


-Como?
-Torne-me seu... Por completo."

Já passava das onze e meia da noite quando a Justiça de Porto Alegre tentava uma

108
medida para obrigar a TAM a liberar a lista de nomes dos passageiros do voo JJ 3054, mas foi
somente às meia noite e meia que a TAM divulgou seu 4º comunicado em seu site, com uma lista
parcial de passageiros e funcionários:

“COMUNICADO TAM 4

Todos nós da TAM expressamos os mais


profundos sentimentos aos familiares e amigos dos passageiros,
funcionários e tripulantes da empresa que estavam no vôo
número JJ 3054, acidentado hoje no aeroporto de Congonhas.

Até o momento os nomes confirmados a bordo do vôo JJ 3054


são:

AKIO IWASAKI
ANDREA ROTA SIECZKOWSKI
ANDREI FRANÇOIS MELLO
CARLOS GILBERTO ZANOTTO
CASSIO VIEIRA SERVULO DA CUNHA
CLOVE MENDONÇA JUNIOR

FABIOLA KO FREITAG (funcionário TAM)


MARCEL CASSAL VICENTIM (funcionário TAM)
MICHELLE SILVEIRA UNTERBERGER (funcionário TAM)
RICARDO KLEY SANTOS (funcionário TAM)
VINICIUS COSTA COELHO (funcionário TAM)

A TAM está com seu Programa de Assistência


às Vítimas e Familiares ativado desde os primeiros momentos
após o acidente e disponibilizou um número de chamadas
gratuitas voltado para o atendimento aos familiares dos
passageiros e tripulantes deste vôo: 0800 117900.
Qualquer outra informação relevante será
comunicada imediatamente pela TAM.”

O sono vinha, mas a vontade de dormir era nenhuma. Enquanto minha mãe falava
com a Soraia pelo telefone, percebi pela sua expressão facial que logo não receberia boas notícias.
Ao receber a confirmação através da minha mãe que o meu mozinho embarcou
naquele voo, tive a certeza de que minha vida acabava ali.
-Tom...
-Oi?
-Humpft...
-Já divulgaram alguns nomes das vítimas...
Comecei a chorar de soluçar, e olhando fundo em seus olhos questionei:
-Fala... Fala que ele não tava... Fala?
-Humpft... Filho... Você precisa ser forte...
-Não... Não fala isso, mãe... Aonde foi o meu menino especial?
-Filho...
Revoltado, gritei:
-Não é possível que Deus me tirou aquele que me deu sentido à vida... Nãooooooooooooooooooo...
Como dói, meu Deus... Me leve com eleeeeeeeeeeeeeeeeeeeee... Me leve com você, Cauê... Eu não
quero mais viver... Por quê? Por que você me deixou?

“-Alô?

109
-Alô... É o garoto dos meus sonhos que está falando?
-Sim... Dos seus sonhos mais reais!"

-Tom... Não fique assim... O céu ganhou mais um anjo, por isso que...
-Ah meu Deus!...Ele não pode ter me deixado...
-Calma, filho...
-Nãooooooooooooooooo... Diz que não é verdade... Diz que não é verdade...

"-Posso te contar um segredo, Tom?


-Pode!
-Pensei em você o final de semana inteiro."

"-Tom...
-Eu?
-Como é o vermelho?
-Bem... O vermelho é uma cor muito bonita, viva, chama atenção...
-É parecida com o verde?
-Hahaha... Não, o vermelho é uma cor muito mais quente, agressiva..."

-Eu queria muito poder dizer que...


-Não pode ser... Mãe... Nós vamos à praia... A gente combinou que nunca mais iríamos nos
separar... Ele prometeu...

"-Você me promete uma coisa, Tom?


-O quê?
-Quando eu não estiver ao seu lado, você jamais me esquecerá?
-Mas por que isso?
-Promete?
-Só se você também me prometer...
-Eu prometo!"

“Assim não vale, Tom...


E por que não?
Porque você já conhece há mais tempo do que eu...
Hahaha... Isso é papo de quem está com medooooo...
Então me dê um beijo para me encorajar?”

-Filho...
-Ai meu peito... Ai...
-Rustom, calma...
-Deus... Cadê você agora que eu mais preciso?
Suas palavras foram bloqueadas pela emoção que lhe apossou naquele momento.
Todos os momentos em que passamos juntos vieram à tona, como um filme em minha memória.
Seu sorriso iluminado, seu toque carinhoso, o beijo romântico, sua voz doce. Eu não me
conformava em ter perdido aquele que um dia me ensinou que viver era a melhor coisa do mundo, e
que não existe vida sem amor.
No aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre, familiares e amigos das vítimas
receberam a divulgação parcial da lista de passageiros através de uma rádio, pois segundo
funcionários da companhia TAM do aeroporto Salgado Filho, a empresa havia bloqueado o sistema

110
por segurança, partindo de São Paulo o bloqueio.

“-Promete que vai me esperar?


-Pra sempre.
-Eu Emo você!”

“-Você me perdoa?
-Eu te amei desde a primeira vez que te conheci... A gente não perdoa um amor, apenas sente.”

Foram filhos que perderam pais, mães que perderam filhos, maridos que perderam
esposas, e todos com suas profundas feridas se perguntando: Até quando isso? Quantas pessoas
mais serão necessárias perderem suas vidas para que os responsáveis pelo controle aéreo do país
reveja nosso sistema?
Dois dias se passaram, e até aquele momento apenas 36 passageiros haviam sido
identificados pelo Instituto Médico Legal. A empresa TAM informou que a capacidade da aeronave
era de 174 passageiros e 11 tripulantes, sendo 185 no total, porém, houveram 187 mortes
constatadas devido a presença de dois bebês de colo a bordo.
Foram dias de angústia, sofrimento, tortura para todos aqueles parentes que
aguardavam o corpo de seu familiar para poder enterrá-lo com dignidade, aliviando parte de um
sofrimento eterno.

111
No sexto dia após o acidente, acordei com uma sensação estranha. Nada mais fazia
sentido pra mim, tamanho era o vazio que aquele desastre me deixou. Ainda vestindo apenas uma
cueca samba-canção, desci até a cozinha para beber um copo d'água, e ao chegar avistei a Soraia e o
Kico sentados à mesa conversando com minha mãe.
Assim que perceberam minha presença, pararam de falar.
-Bom dia!
-Bom dia!... Filho... Humpft... Preciso falar com você...
-É, Tom...
No fundo eu já sabia, e a presença dos meus dois melhores amigos à uma hora
daquela só confirmaram minha suspeita:
-É o que estou pensando, não é?
-Humpft... Foi identificado o corpo do Cauê.
-Corpo? Que corpo? Meu Cauê não é um corpo... Nós vamos pra praia, mãe... Vamos conhecer o
mar... Ele disse que iria esperar por mim, ele prometeu...
Chorando, a Soraia abraçou-me dizendo:
-Miguxo... Ele está presente... Em nossos corações pra sempre...
-Por que as pessoas têm que morrer, So?
-Não sei...
-Roubaram a minha vida, So.
-Humpft... Nós estamos aqui para te apoiar, Tom.
-Mãe...
-Oi?
-Eu to morrendo...
-Por favor, não diga uma coisa dessas...
A identificação mais rápida do corpo do Cauê foi possível graças à Soraia, que
comunicou o IML sobre o bracelete que supostamente ele estaria usando no momento do acidente, o
mesmo bracelete que eu havia lhe dado antes de embarcar para sempre.
Eu já não tinha mais lágrimas para chorar. Recebi um abraço como conforto, porém,
remédio algum poderia curar minha dor. Eu já não sentia mais fome, sede, sono. Para dormir eu
precisava da ajuda de remédios, pois nada mais eu sentia, como se deixasse de existir, de viver.
Graças à Soraia e sua mãe, todos os trâmites burocráticos foram resolvidos para a
liberação dos corpos, pois eu não tinha condições físicas nem psicológicas pra isso. É em hora como
essa que nós vemos quem são nosso amigos de verdade, e graças a Deus eu tinha eles por mim.
Acordei no dia seguinte graças à minha mãe, que entrou ao quarto trazendo em suas
mãos um terno preto, pois se dependesse de mim, dormiria pra sempre. Ainda um pouco tonto,
levantei-me da cama e perguntei:
-Mãe... De quem é isso?
-Seu.
-Pra quê?
-Humpft... É que hoje terá a missa de sétimo dia das vítimas na Catedral da Sé...
-Missa... Nós vamos rezar pelo meu mozinho?
-Sim, meu querido.
-Humpft... Eu tenho que vestir essa roupa?
-Sim.
112
-Tudo bem. Eu vou tomar um banho e já visto.
-Só não demore, porque a missa está marcada para daqui a pouco.
-Ta.
Por baixo do terno vesti uma camiseta, com uma foto do Cauê estampada nela, assim
como minha mãe, a Soraia, e todos aqueles que se sentiram solidários comigo.
Chegamos à igreja e logo entramos. Estava lotada. Nos sentamos à primeira fileira,
onde estava reservada para os familiares. Eu parecia estar anestesiado, pois não sentia nada.
Emocionada, a irmã da Irene veio cumprimentar-me, dando um forte abraço e molhando meu
ombro com suas lágrimas. Segurando um lenço branco em sua mão esquerda, ela assuou o nariz e
caminhou em direção à outra fileira.
Permaneci sentado, calado, ferido. Enquanto a missa não começava eu observava o
coroinha ascendendo as velas do altar. Na primeira fileira, uma senhora segurava em suas mãos um
objeto, provavelmente pertencia ao seu entequerido vítima do acidente. A cada pessoa que a
cumprimentava ela iniciava um ataque de choro, como se revisse os momentos de tortura, vendo
quem ama sendo consumido pela parede de chamas daquela noite.
Olhei para meu lado esquerdo e avistei a imagem de Nossa Senhora sentada, e em
seus braços segurava seu filho Jesus, ferido. Fiquei imaginando a dor que ela sofreu naquele
instante, incontavelmente maior que a minha, pois sendo mãe o sofrimento é indescritível.
Acariciando meu cabelo, minha mãe disse:
-Você está bem, filho?
-Eu nunca estarei bem, mãe.
-Não fale assim, Tom...
-Mãe... Alguma vez você já se imaginou dentro de um tudo de vidro, sem oxigênio?
-Não.
-Pois é assim que estou me sentindo... Sufocado.
Assisti à missa calado, com a cabeça apoiada ao ombro de minha mãe. Meus
pensamentos estavam longe, perdidos, gritando por socorro em um deserto de tristeza. Ainda
faltando um pouco para terminar a missa, o padre pediu para que eu fosse à frente, ou melhor,
prestar uma homenagem ao Cauê.
Não exitei. Levantei-me de onde estava e caminhei em direção ao púlpito enquanto
era aplaudido.
-Boa noite!
-Boa noite!
-Bem... Não estou em condições de falar muito, assim como a maioria de todos vocês, mas farei um
esforço pelo grande amor que sinto... Perder alguém que se ama não é fácil. Somente quem já
passou por isso sabe o quanto dói, marca... Está sendo muito difícil pra mim ter que me conformar
com essa perda, e claro, já se tornou uma ferida incurável dentro do meu peito. Tem uma música
que se chama “Cidade triste”, cujo a letra diz tudo que sinto nesse momento. Por isso, irei cantá-la
agora, dedicando ao Cauê e todas as vítimas desse trágico acidente...
Quando a banda começou a tocar a melodia, pensei que não iria conseguir continuar.
Comecei a chorar, relembrando os momentos em que fui feliz ao lado do meu mozinho, e quando
estava quase desistindo senti uma leve brisa me tocar. Naquele momento eu percebi que não estava
sozinho, e que o Cauê estava ali, ao meu lado, esperando ansioso pela minha homenagem.

Cidade triste

A, dor, de ter ver ir embora,


Fechando as portas,
não dá pra entender

Eu, vi, a cidade sumindo,


Não têm mais sentido,
Não é mais, o meu lugar

113
Já tentei me perder,
pra não sofrer,
Agora tudo lembra você

E essa solidão,
que me faz ver

A cidade dos sonhos,


Não tem mais o brilho,
Tudo o que é belo se foi
Agora só restou uma cidade triste (cidade triste)

Eu, sei, que era tudo o que tinha,


Era toda uma vida,
Não dá pra esquecer

Já tentei me perder,
Pra não sofrer,
Agora tudo lembra você

E essa solidão,
que me faz ver

A cidade dos sonhos,


Não tem mais o brilho,
Tudo o que é belo se foi
Agora só restou uma cidade triste

Tudo que eu sempre quiz se disfez,


Se foi, pra sempre
Eu, não posso mais sofrer,
Não vou esperar a sua volta,
Pois não tem volta...

A cidade dos sonhos,


Não tem mais o brilho

A cidade dos sonhos,


Não tem mais o brilho,
Tudo o que é belo se foi
Agora só restou uma cidade triste

A cidade dos sonhos,


Não tem mais o brilho, (Não tem brilho, uhu)
Tudo o que é belo se foi (Não..)
Agora só restou uma cidade triste (Cidade triste, cidade triste)

Composição: Indisponível
Intérprete: Juliana Baroni

Fui aplaudido de pé. Olhando aquela multidão de pessoas a minha frente, percebi que
consegui comover boa parte delas, além do padre também.
A meu pedido, o corpo do Cauê foi cremado, e suas cinzas jogadas por mim ao mar,
onde um dia eu havia prometido levá-lo para conhecer. Foi um momento muito especial, onde a
brisa do mar cortando meu rosto fez-me sentir sua presença ali, comigo, como se quisesse me dizer

114
que estava tudo bem, e que ainda me amava.

Alguns meses se passaram. O tratamento da Soraia surtiu efeitos mais que


satisfatórios, pois tornou-a outra mulher, mais feliz e segura de si mesma, além de exteriorizar sua
beleza que se escondia por trás da tristeza. Nessa manhã acordei com a feliz notícia de que ela
ganhou o primeiro lugar no concurso de Miss São Paulo, podendo mostrar àquelas pessoas que por
diversas vezes a humilhou, o quanto se enganam com as outras, e de que o mundo dá voltas, onde
somente os derrotados permanecem parados no mesmo lugar.
O processo sobre as agressões contra a Jéssica e sua turma está correndo na justiça,
enquanto todos nós, cidadãos de bem, torcemos para que os culpados sejam punidos, aliviando parte
da dor das famílias que tiveram seus parentes vitimados pela violência gratuita provocada por
jovens da classe média. Para nossa surpresa a Bianca decidiu testemunhar a nosso favor e contra sua
amiga, deixando-me muito feliz. Pena que nem todos receberão o castigo merecido, pois o Cristiano
e seus amigos faleceram há duas semanas, ao baterem o carro contra um poste durante a madrugada
na Avenida Nove de Julho. Testemunhas disseram que estavam em alta velocidade, e a perícia
constatou que o álcool foi o culpado pelo acidente.
Até o momento não se ouve mais falar em crise aérea no país. Pousos e decolagens
operando dentro da normalidade, e reparos foram efetuados nas pistas de Congonhas, depois de
quase um ano enfrentando problemas e descasos.
Hoje, vivo apenas por viver. Cada dia que passa, um pedaço de mim vai embora,
deixando um buraco que não pára de crescer, formando um poço de lágrimas sem fim, onde afogo-
me na saudade, e por mais que eu grite ninguém pode me salvar.
Podem separar nossos olhares, mas nunca nosso coração.

115
Os personagens Rustom e Cauê fazem parte de uma obra de ficção, apenas para
mostrar alguns assuntos atuais que vêm tomando conta das discussões dos brasileiros. Com relação
ao acidente da TAM, em momento nenhum esse livro tem a intenção de apontar culpados quanto ao
acidente, muito menos denegrir a imagem de autoridades e empresas. Os depoimentos foram
baseados nos publicados na mídia, proferidos pelos próprios parentes das vítimas em seus
momentos de desespero.
Referente ao personagem Rustom ser Emo e gay não quer dizer que seja proposital a
classificação quanto a sua orientação sexual. Como ele diz no decorrer da história, nem todos são
iguais, possuem personalidade própria, e que a tribo é um estilo musical, confirmado por outros
pertencentes dela. Procurei mostrar da maneira mais imparcial possível o que são, como se
comportam e os motivos, evitando adotar estereótipos.
Lembrem-se: “A graça de viver, está nas diferenças.” Imagine que tédio seria se todo
mundo tivesse a mesma cor, cara, cabelo, voz, sexo...

116
117
CZEPIELEWSKI, Dr. Mauro Antônio / ABC da Saúde. (2001). OBESIDADE, (Online). Disponível:
http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?303 , (02/11/2007).

LIMA, Milena / UOL (16/08/2004). Transtorno do Comer Compulsivo, Cyber Diet (Online).
Disponível: http://www1.uol.com.br/cyberdiet/colunas/040816_nut_comer.htm , (02/11/2007).

G1, Portal. (2007) Acidente do vôo jj 3054 da tam (Online). Disponível:


http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL71929-5605,00.html , (10/10/2007).

TERRA, Redação / TERRA. (2007). O jeito Emo de ser e se vestir, Fala Sério (Online). Disponível:
http://www.terra.com.br/jovem/falaserio/2007/04/26/000.htm , (15/10/2007).

MENA, Fernanda / Folha OnLine. (2003) Trote violento perde espaço para trote solidário em
faculdades, Folha de S. Paulo (Online). Disponível:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u12472.shtml , (10/11/2007).

PAIVA, Celso do Lago / Geocities. (2002) Trote: para que?, (Online). Disponível:
http://www.geocities.com/lagopaiva/trotenao.htm , (29/09/2007).

UNIVÉRSIA (18/02/2003) Ritual questionado, (On-line). Disponível:


http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=1217 , (05/10/2007).

TERRA, Redação (18/07/2007). Tragédia em Congonhas. (On-line) Disponível:


http://noticias.terra.com.br/brasil/acidentecongonhas/interna/0,,OI1766648-EI10210,00.html ,
(09/09/2007).

PREFEITURA, Portal (11/05/2005). Prefeitura lança novo padrão para as calçadas da cidade.
Disponível: http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=1882 ,
(14/10/2007).

NEWS, BBC / Folha Online (18/07/07 ). TAM divulga lista parcial de ocupantes de avião que caiu
em SP. (On-line) Disponível:
http://bbcnews.com.br/index.php?p=noticias&cat=96&id=107822&nome=Pesquisa%20-
%20Leitura , (05/10,2007).

WIKIPÉDIA, Enciclopédia (2007). Vôo TAM 3054. (On-line). Disponível:


http://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%B4o_TAM_3054 , (15/11/2007).

JR, Dr Joel Rennó / UOL (2007). Será que tenho compulsão alimentar? (On-line). Disponível:
http://www1.uol.com.br/vyaestelar/compulsao_alimentar.htm , (01/09/2007).
118
ROMERO, Douglas (03/11/2006). Definição de Emo. (On-line). Disponível:
http://www.dsromero.com.br/noticias/definicao/definicao_de_emo.html , (05/09/2007).

WIKIPÉDIA, Enciclopédia (2007). Emo. (On-line). Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Emo ,


(07/09/2007).

TERRA, Redação / TERRA (2007). Do que eles gostam? (On-line) Disponível:


http://www.terra.com.br/jovem/falaserio/2007/04/26/001.htm , (15/10/2007).

GUIMARÃES, Daniel / Governo do Estado de São Paulo (2007). Jardim Botânico. (On-line)
Disponível: http://www.saopaulo.sp.gov.br/saopaulo/turismo/cap_parq_botan.htm , (05/08/2007).

ESTADO, Agência / Portal Último Segundo (01/10/2007). Congonhas terá 62 vôos a menos a
partir de hoje. (On-line) Disponível:
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2007/10/01/congonhas_ter225_62_v244os_a_menos_a_partir
_de_hoje_1026810.html , (05/10/2007).

IMPRENSA, Assessoria / TAM (2007) Comunicado TAM 1, (On-line) Disponível:


http://www.tam.com.br/b2c/jsp/default.jhtml?adPagina=3&adArtigo=10742 , (20/08/2007).

COTES, Paloma / Época (2007). Punks no jardim-de-infância. (On-line). Disponível:


http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG73077-6014,00.html , (20/10/2007).

ABERTO, Espaço / USP. (05/2005). Reagindo contra a violência doméstica. (On-line) Disponível:
http://www.usp.br/espacoaberto/arquivo/2005/espaco53mar/0capa.htm , (07/08/2007).

ABRAMO, Fundação Perseu (30/10/2001). Ações de combate à violência contra a mulher. (On-
line). Disponível: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=232 ,
(15/10/2007).

TEIXEIRA, Eliana / Gazeta de Piracicaba (2007). Violência da Classe Media. (On-line).


Disponível:
http://www.gazetadepiracicaba.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1338651&ordem=26050 ,
(25/09/2007).

GILDO (2007). Violência da Classe Media. (On-line) Disponível:


http://www.integralweb.com.br/downloads/Textos%20Atualidades/5%C2%AA%20s%C3%A9rie/A
TUAL_Violencia_5a.pdf , (10/10/2007).

Pesquisa eletrônica:
www.terra.com.br/falaserio
www.google.com.br
www.tam.com.br
www.nxzero.com.br
www.youtube.com
www.orkut.com

119

Você também pode gostar