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Lições de Introdução ao Direito

Fernando José Bronze


(Ed. Coimbra).
14ª Lição – O modo-de-ser do Direito

A normatividade jurídica não remete apenas à intenção polarizadora do sentido geral e


específico do direito, manifesta-se igualmente como uma realidade (ou objectividade) – como
um ser – cultural.

Qual o modo de ser do direito? Ou seja, como é que se oferece objectivamente o direito?

1. Modalidades de existência.
a) O modo de existência como vigência.
Específico modo de ser do direito = a vigência.
A vigência é a modalidade de existência da normatividade jurídica.
A vigência é, teoricamente, a síntese do modo-de-ser do direito.
A vigência tem ainda um decisivo significado prático – que se manifesta no âmbito do
problema das fontes de direito e no da “metodomologia”.

A vigência do direito é uma categoria paralela a vigência da cultura.


A cultura hoje vigente não se confunde com a cultura medieval.
Uma cultura é vigente quando é a dimensão de existência de uma comunidade,
portanto, quando ela se apresenta determinante da comunicação das pessoas no dado
presente. Isto porque, nós nos comunicamos de acordo com certos sentidos (sentidos
densificadores da cultura constituenda que compartilhamos no presente) que permitem que
nos compreendamos, que compreendamos os outros e o mundo.
A CULTURA: ponte lançada em cada presente, entre o passado e o futuro, em função das
concretas solicitações problemáticas dialecticamente articuladas com as (por sua mediação
instituídas ou remodeladas) exigências de sentido humanamente predicativas, apresenta-se-
nos como uma analogicamente dinamizada deveniente objectivaçao do devir, constituindo, por
tudo isso, um exercício poiético irredutivelmente caracterizado pela abertura possível de novas
possibilidades.
A cultura nasce, evolui e morre. É vigente quando se manifesta como dimensão
determinante da nossa auto-compreensão e da compreensão dos outros e do mundo,
balizando o horizonte de possibilidades das multividências plurais que se afirmam nas
sociedades abertas dos nossos dias.
O Direito vigente (o direito de hoje) se afirma como instância reguladora dos problemas
juridicamente relevantes suscitados pelo nosso actual encontro mundanal: a vigencia
normativo-jurídica (tal como a prático-cultural) afirma-se num certo âmbito espacial e num
determinado momento temporal.
O direito é um dever ser que é (Castanheira Neves). – A vigência é exactamente este
modo de existir de um dever ser (em que o dever-ser se realiza: sendo / visão pratico-
argumentativa, que se opõe a visão lógico-analitica do “dever-ser que não é”.)
A cultura é ao mesmo tempo um conjunto de exigencias de sentido normativo (valores,
princípios...), mas está presente possibilitando a nossa comunicação. E o direito é
simultaneamente uma específica normatividade (uma validade) e uma instância reguladora
dos problemas juridicamente relevantes suscitados pelo nosso encontro mudanal. – Os
princípios normativos apresentam uma dimensão societária por isto, eles só são vigentes
quando traduzem uma validade intencional socialmente encarnada.
Por isto que há culturas que já foram mas não são mais. E da mesma forma podem
permanecer expressões de um direito formalmente subsistente, mas pratico-intencionalmente
superado (normas caducas e obsoletas).
A vigência identifica, portanto, a subsistência histórico-social de uma normatividade. –
Entendemos por vigência aquele fenômeno ou modo-de-ser do normativo que se verifica
quando uma validade e um regulativo normativos são assumidos vinculativamente e informam
praticamente, como sua dimensão culturalmente real, a vida histórica de uma determinada
comunidade social.
O direito é uma realidade cultural.

b) As suas relaçõ es com a validade e eficá cia.


Vigência – onde apresenta-se uma dialética entre uma face ideal (validade) e uma outra
empírica ou factual (eficácia), por isso o direito é um dever ser que é.
A vigência do direito não é só uma idealidade, pois a esta falta a radicação na historia e
o compromisso prático. Ou seja: a vigência acrescenta à validade (ao sentido normativo) o
momento de realidade da existência histórica, que tende a estabilizar-se na institucionalização.

Mas o direito vigente não é também apenas aquele que tenha de considerar-se eficaz,
em virtude da força do poder capaz de o impor (erro cometido pelo positivismo).
Se fosse assim, as violações dos critérios jurídicos impostos significariam a preterição da
respectiva vigência. E não é assim, pois os factos que desrespeitam as expectativas normativas
não são suficientes para as anular, não são suficientes para retirar a vigência da validade em
que radicam.

Quando é violado, o direito vigente perde em eficácia e remete para uma exigência de
sentido da vigência. (Pois o direito vigora fundamentalmente como uma exigência de sentido.)
O direito (tal como a cultura) admite preterições, ou seja, até certo grau suporta
transgressões. – pois são fundamentalmente exigências de valor e não de factos.
A normatividade, enquanto intencional validade, não se reduz à meramente fáctica
socialidade, embora tenha no social um seu pressuposto estrutural. Já uma expectativa
empírica não tolera qualquer desmentido.
Os valores (que densificam o segmento de validade constitutivo da vigência) toleram,
com uma margem, preterições. (Por isso existem homicídios e o valor da vida não deixou de
existir.)
Um direito (ou uma cultura) será tanto mais vigente quanto maior for sua margem de
tolerância. (Tolerância – é um vector nuclearmente constitutivo de uma ordem jurídico-
política democrática.)
Os valores (integrantes da vigência) só se avultam de forma mais explícita quando
ocorrem preterições (quando eles são desrespeitados). Todavia, quando essas contravenções
tornam-se freqüentes, as intenções de validade deixam de ser eficazes, e com a continuação
disto, perdem a vigência.
Por outro lado, a dialectica que entretece a vigência mostra-nos que só estaremos
diantes de direito se justificadamente o pudermos dizer positivo.

Eficácia – olhamos agora a vigência de um ponto de vista empírico-sociológico.


Material intencional da vigência – ele é oferecido pela validade intersujectivo-
normativamente partilhada (pelos princípios axiológicos, pelas exigências de sentido (pelos
valores) que a con-formam). Sendo assim: quando os mencionados referentes deixarem de ser
comunitariamente reconhecidos (quando nos não nos re-vimos mais neles) deveremos
concluir que a vigência estilou.
A vigência e a eficácia traduzem, respectivamente, uma existência ideal e uma existência
real que se manifestam num determinado horizonte temporal.
Bipolaridade da vigência – a validade é o seu pólo ao nível do conteúdo (plano
axiológico) e a eficácia o seu pólo ao nível do fáctico (plano sociológico).
A vigência é, portanto, dialecticamente modelada por ambos, mas não se confunde ou
se reduz a eles.
- Não se identifica com a estrita eficácia pois admite, dentro de determinados limites, a
preterições. (Um erro do positivismo era não identificar isto.)
- Nem se equipara à pura validade porque lança raízes no “mundo da vida”. (Os
jusnaturalistas acreditavam no contrário.)
“A validade sem a eficácia é inoperante e a eficácia sem a validade é cega.”

O direito, como criação do homem que é, apresenta sua maior fragilidade na dimensão
espiritual (validade).
Vigência – modo de ser específico do direito (e também da cultura).
Validade – dimensão espiritual da vigência.
A eficácia, ao tolerar preterições, está longe de manifestar a solidez dos estratos
inferiores ao qual Hartmann alude.
O direito vigente pode dizer-se constituído, em cada momento, pelo resultado da
constituenda dialéctica entretecedora das dimensões que nele constitutivamente se
reflractam, ou, pela síntese da circunstancialmente deviniente correspodencia que entre todas
elas se estabelece.
Existe entre a validade e a eficácia uma relação de tensão, sucessivamente polarizada
nas “exigências normativas que correm o constante perigo de perderem o contacto com a
realidade social” e nos “dados objectivos que tendem a apagar” as mencionadas exigências.
A vigência do direito não pode ser pensada sem uma referência complementar à sua
legitimidade axiológica e à sua ancoração fáctica, à sua fundamentação ética e à sua eficácia
social.

Conclusão: a vigência é o específico modo de existência do direito e é dilecticamente


constituída pela validade e pela eficácia.

2. Modalidades normativas: direito objectivo e direito subjectivo.


Duas modalidades normativas muito importantes: o direito subjectivo e o direito
objectivo.

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