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Amigo, amiga,
Você abre um livro de poesia e, logo no início, num poema chamado "Ao Leitor", o autor
avisa: "Na almofada do mal é Satã Trismegisto/ Quem docemente nosso espírito consola".
Para não deixar dúvida, mais adiante ele reafirma: "É o Diabo que nos move e até nos
manuseia!"
Não, não adianta fingir que não é com você. O poeta assegura que você sabe do que ele
está falando, e termina mandando mordazes e cordiais saudações: "Hipócrita leitor, meu
igual, meu irmão!"
Claro, você já adivinhou: o livro é Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal) e o poeta, o
francês Charles Baudelaire. Continue a folhear. O tom é sombrio. São textos cheios de
tédio, morte, sepultura, melancolia, volúpia, luxúria, demônios, vermes, serpentes,
maldições e até uma ladainha invocando o Demônio: "Tem piedade, ó Satã, desta longa
miséria".
Celebrado como o primeiro poeta moderno e um dos escritores de mais forte influência
nas gerações posteriores mundo afora, Baudelaire contrabandeou para a poesia de sua
época, marcada pelo idealismo romântico, o mal-estar das cidades e o choque do feio, dos
temas sujos e doentios.
Ao publicar As Flores do Mal, ele foi condenado por ofensa à moral pública. Além de
pagar uma multa em dinheiro, a justiça obrigou-o a retirar seis poemas do volume. Os
seis voltaram a integrar a obra onze anos depois, na primeira edição póstuma do livro,
em 1868.
O primeiro texto ao lado é um desses poemas condenados, "A celle qui est trop gaie" ("A
que está sempre alegre"). Ao comentar especificamente a censura a esse poema,
Baudelaire diz: "Os juízes julgaram descobrir um sentido a um tempo sanguinário e
obsceno nas duas últimas estrofes. A gravidade da coletânea excluía semelhantes
gracejos. Mas veneno equivalendo a spleen ou a melancolia era uma idéia muito simples
para criminalistas. Que sua interpretação sifilítica lhes fique na consciência!"
Segundo nota do editor francês, "a que está sempre alegre" é Apollonia Sabatier,
animadora cultural pariense, cuja casa era freqüentada por figuras como Gustave
Flaubert, Théophile Gautier e o próprio Baudelaire. A sorridente Madame Sabatier
também teve um caso com o poeta.
Outra pequena amostra de Baudelaire vem de seu livro "Petites Poèmes en Prose", de
1862. Trata-se do conhecido poema "Enivrez-vous" ("Embriaguem-se"). Uma
curiosidade: esse texto é citado no "Poema da Necessidade", de Carlos Drummond de
Andrade:
"É preciso estudar volapuque/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire/ é
preciso colher as flores/ de que falam velhos autores." (In Sentimento do Mundo, 1940)
Por fim, "O Convite à Viagem", uma simpática florzinha do mal que propõe uma fuga
para um lugar onde "tudo é paz e rigor/ luxo, beleza e langor". Enfim, uma proposta de
sonho e fuga que hoje não tem nada de maldito. Até lembra o clima da canção de Gilberto
Gil: "Vamos fugir/ Pr'outro lugar, baby/ (...) outro lugar ao sol/ Outro lugar ao sul/ Céu
azul, céu azul/ Onde haja só meu corpo nu/ Junto ao seu corpo nu".
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EMBRIAGUEM-SE
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo
horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna
do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à
vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo
que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o
relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do
Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a
escolher.
O CONVITE À VIAGEM
Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.
Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.
Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
— Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.