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Charles Baudelaire

Amigo, amiga,

Você abre um livro de poesia e, logo no início, num poema chamado "Ao Leitor", o autor
avisa: "Na almofada do mal é Satã Trismegisto/ Quem docemente nosso espírito consola".
Para não deixar dúvida, mais adiante ele reafirma: "É o Diabo que nos move e até nos
manuseia!"

Não, não adianta fingir que não é com você. O poeta assegura que você sabe do que ele
está falando, e termina mandando mordazes e cordiais saudações: "Hipócrita leitor, meu
igual, meu irmão!"

Claro, você já adivinhou: o livro é Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal) e o poeta, o
francês Charles Baudelaire. Continue a folhear. O tom é sombrio. São textos cheios de
tédio, morte, sepultura, melancolia, volúpia, luxúria, demônios, vermes, serpentes,
maldições e até uma ladainha invocando o Demônio: "Tem piedade, ó Satã, desta longa
miséria".

Não se assuste. Religioso a seu modo, pagão e satanista, Charles-Pierre Baudelaire


(1821-1867) é considerado o pai do simbolismo francês, movimento cuja origem os
críticos localizam exatamente no livro As Flores do Mal, de 1857. Na França, a obra de
Baudelaire reverbera na poesia de outros poetas "malditos", como Arthur Rimbaud, Paul
Verlaine e Stéphane Mallarmé.

Celebrado como o primeiro poeta moderno e um dos escritores de mais forte influência
nas gerações posteriores mundo afora, Baudelaire contrabandeou para a poesia de sua
época, marcada pelo idealismo romântico, o mal-estar das cidades e o choque do feio, dos
temas sujos e doentios.

Ao publicar As Flores do Mal, ele foi condenado por ofensa à moral pública. Além de
pagar uma multa em dinheiro, a justiça obrigou-o a retirar seis poemas do volume. Os
seis voltaram a integrar a obra onze anos depois, na primeira edição póstuma do livro,
em 1868.

O primeiro texto ao lado é um desses poemas condenados, "A celle qui est trop gaie" ("A
que está sempre alegre"). Ao comentar especificamente a censura a esse poema,
Baudelaire diz: "Os juízes julgaram descobrir um sentido a um tempo sanguinário e
obsceno nas duas últimas estrofes. A gravidade da coletânea excluía semelhantes
gracejos. Mas veneno equivalendo a spleen ou a melancolia era uma idéia muito simples
para criminalistas. Que sua interpretação sifilítica lhes fique na consciência!"

Segundo nota do editor francês, "a que está sempre alegre" é Apollonia Sabatier,
animadora cultural pariense, cuja casa era freqüentada por figuras como Gustave
Flaubert, Théophile Gautier e o próprio Baudelaire. A sorridente Madame Sabatier
também teve um caso com o poeta.

Outra pequena amostra de Baudelaire vem de seu livro "Petites Poèmes en Prose", de
1862. Trata-se do conhecido poema "Enivrez-vous" ("Embriaguem-se"). Uma
curiosidade: esse texto é citado no "Poema da Necessidade", de Carlos Drummond de
Andrade:
"É preciso estudar volapuque/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire/ é
preciso colher as flores/ de que falam velhos autores." (In Sentimento do Mundo, 1940)

Por fim, "O Convite à Viagem", uma simpática florzinha do mal que propõe uma fuga
para um lugar onde "tudo é paz e rigor/ luxo, beleza e langor". Enfim, uma proposta de
sonho e fuga que hoje não tem nada de maldito. Até lembra o clima da canção de Gilberto
Gil: "Vamos fugir/ Pr'outro lugar, baby/ (...) outro lugar ao sol/ Outro lugar ao sul/ Céu
azul, céu azul/ Onde haja só meu corpo nu/ Junto ao seu corpo nu".

•••o•••

No Brasil, destacam-se dois tradutores d'As Flores do Mal. Um é o paulista Guilherme de


Almeida (1890-1969), que verteu 21 dos poemas, reunidos no livro Flores das "Flores do
Mal" de Baudelaire (Edições de Ouro). O outro é o carioca Ivan Junqueira (1934-), que
cometeu a monumental proeza de passar ao português todos os 167 poemas do volume.
Eles estão em: Charles Baudelaire, As Flores do Mal, edição bilíngüe, tradução,
introdução e notas de Ivan Junqueira (Nova Fronteira, 1985).

As flores do mal Charles Baudelaire

A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE


Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos


Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores


De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema


De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,


Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza


Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,


Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,


Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,


Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

EMBRIAGUEM-SE

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo
horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna
do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à
vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo
que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o
relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do
Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a
escolher.

O CONVITE À VIAGEM
Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,


Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,

Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,


Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
— Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,


Luxo, beleza e langor.
Charles Baudelaire
• "A Que Está Sempre Alegre" e "O Convite à
Viagem"
In As Flores do Mal
Nova Fronteira, 1985, 2a. ed.
Trad., introd. e notas: Ivan Junqueira
• "Embriaguem-se"
In Pequenos Poemas em Prosa
Tradutor não identificado

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