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參同会

SANDŌKAI
2
俊隆 鈴木
SHUNRYŪ SUZUKI

CORRENTES QUE FLUEM


NA ESCURIDÃO

O 參同会 SANDŌKAI
À LUZ DO BUDISMO

Tradução da edição espanhola


Ediciones Oniro, S.A.
Barcelona – 2004

3
4
ÍNDICE

Agradecimentos................................................................. 07
Introdução de Mel Weitsman............................................. 11
石頭 希遷 SEKITŌ KISEN e o 參同会 SANDŌKAI........... 21
Notas para o leitor...................................................... ....... 31

O 參同会 SANDŌKAI
Tradução do poema.......................................................... 37
Versão original em chinês................................................. 41
Versão da 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ em Japonês...................... 43

PRIMEIRA PRELEÇÃO
“As coisas tal qual é”......................................................... 51

SEGUNDA PRELEÇÃO
“De uma mão cálida para outra”........................................ 63

TERCEIRA PRELEÇÃO
“Buddha sempre está aqui”.............................................. 77

QUARTA PRELEÇÃO
“A pega penetrará diretamente em seu coração”............. 91

QUINTA PRELEÇÃO
“Mesmo que hoje sejamos muito felizes,
não sabemos o que amanhã nos ocorrerá”....................103

SEXTA PRELEÇÃO
“A barca está sempre se movendo”............................... 111

SÉTIMA PRELEÇÃO
“Sem abraçar idéia alguma sobre a
realização, nossa via é simplesmente
sentar-se em 座禅 ZAZEN”............................................ 125

5
OITAVA PRELEÇÃO
“Na luz há a maior escuridão”........................................ 139

NONA PRELEÇÃO
“A neve não pode quebrar o salgueiro”......................... 153

DÉCIMA PRELEÇÃO
“O sofrimento é valioso”................................................ 169

Breve preleção durante uma sessão de 座禅 ZAZEN... 183

DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÃO


“Não devemos nos apegar às palavras
ou às regras”................................................................. 187

DÉCIMA SEGUNDA PRELEÇÃO


“Não passem os dias e as noites em vão!”................... 197

Preleção oferecida a um grupo de estudantes ............. 215

O 參同会 SANDŌKAI
Tradução compilada por 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.... 229

Tabela das linhas de transmissão dos mestres


citados no texto............................................................. 231

APÊNCICES
Fac-símile da edição digitalizada do 參同会 SANDŌKAI..237
A história de 桃太郎 MOMOTARŌ................................... 239

6
AGRADECIMENTOS

O canto que diariamente entoamos antes das refeições1 no


Centro Zen de São Francisco começa com as seguintes palavras:

1
Trata-se do 五 観 の 偈 GOKAN NO GE, o Verso das Cinco
Contemplações:

一には功の多少を計り、彼の来処を量る。
HITOTSU NI WA KŌ NO TA SHŌ O HAKA RI, KA NO RAI SHO O HAKA RU.
Primeiro: refletimos sobre o esforço que nos trouxe esta comida
e como ela veio até nós.

二には己が徳行の、全欠を忖って供に応ず。
FUTATSU NI WA ONOREGA TOKU GYŌ NO, ZEN KE TO HAKATTE KU NI ŌZU.
Segundo: refletimos sobre nossa virtude e prática
e se somos dignos desta oferta.

三には心を防ぎ過を離るることは、貪等を宗とす。
MITSU NI WA SHIN NO FUSEGI TOGA O HANARURU KOTO WA,
TON TŌ O SHŪ TO SU.
Terceiro: como desejamos a condição natural da mente,
para estar livre de apegos precisamos estar livres da cobiça.

四には正に良薬を事とするは、形枯を療ぜんが為なり。
YOTSU NIWA MASANI RYO YAKU O KOTO TO SURU WA,
GYŌ KO O RYŌ ZEN GA TAME NARI.
Quarto: como um bom remédio,
aceitamos esta refeição para sustentar nossas vidas.

五には成道の為の故に、今此の食を受く。
ITSUTSU NI WA JŌ DŌ NO TAME NO YUE NI, IMA KO NO JIKI O UKU.
Quinto: para nos tornarmos o Caminho, agora comemos esta refeição.
(N.T.)

7
"Esta refeição é possível graças a inumeráveis esforços.
Devemos conhecer como chegou até nós".
O mesmo pode ser dito deste livro, ainda que seja certo que
ao manifestar nosso agradecimento às numerosas pessoas que
colaboraram nele, talvez tenhamos esquecido de alguém.
Começamos manifestando nosso agradecimento a
石 頭 希 遷 SEKITŌ KISEN, o grande patriarca chinês que
escreveu o texto original. E às numerosas pessoas que
conservaram e transmitiram este texto de cerca de 1200 anos de
antiguidade.
Também desejamos expressar nosso profundo
agradecimento a 鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI, que com suas
preleções criou este comentário sobre o poema, e a todos os que
o ensinaram e nele influíram.
A todas as pessoas que o ajudaram a construir e financiar
Tassajara, o primeiro centro fora da Ásia onde se leva a cabo
uma intensiva aprendizagem do 禅 ZEN, e que constituiu o
ambiente destas palestras.
Aos numerosos estudantes que formulavam perguntas e
responderam às conversas.
Aos que transcreveram as palestras gravadas nos cassetes:
Marian Derby, Jane Schneider, Peter Schneider e Bill Redican.
Às pessoas que fizeram a revisão preliminar do manuscrito:
Richard Baker, Lew Richmond e Peter Schneider.
A Michael Katz, nosso exigente e rigoroso agente literário. A
Bernd Bender, Linda Grotelueschen, Jane Hirshfield, Basya
Petnick, Bill Redican, Jeffrey Schneider e Sybille Scholz por sua
ajuda técnica e sugestões.
A Carl Bielefeldt, Andy Ferguson, Richard Jaffe, Kaz
Tanahashi e Steve Tipton por seu decisivo apoio. A Kaz
Tanahashi por sua ajuda com o texto chinês e por transcrever os
caracteres japoneses. A Bill Redican por suas exigentes
perguntas.
A Linda Hesse e Carolyn Bond por sua cuidadosa edição.

8
A nosso editor Reed Malcolm por seu apoio entusiástico.
A Jim Clark, Scott Norton e a equipe da editora Universidade
da Califórnia.
E por último, a você, leitor. Que possa apreciar os
ensinamentos deste livro, encarná-los e mantê-los vivos.

Mel Weitsman
Michael Wenger

8 de Abril de 1999
Aniversário de Buda

9
10
INTRODUÇÃO

Mel Weitsman

No verão de 1970 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI deu estas


palestras sobre o 參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ
KISEN. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI havia chegado à América em
1959, deixando RINSO-IN, seu templo em 焼津 YAIZU (Japão),
para servir como sacerdote da congregação americano-japonesa
no templo SOKOJI situado no Numero 1881 da Bush Street, em
São Francisco. Durante aqueles anos um grande
numero de pessoas afluíam para praticar com ele e nasceu o
Centro Zen de São Francisco. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI estava
rodeado por tantos estudantes americanos entusiasmados com o
禅 ZEN que em 1969 ele e seus estudantes tiveram que se mudar
para um edifício maior situado no numero 300 da Page Street e
fundaram lá o templo da Mente de Principiante. Dois anos
antes o Centro Zen havia adquirido a colônia de férias de
Tassajara com suas fontes termais, que se encontrava ao final de
uma poeirenta estrada de 22 quilômetros que serpenteava pelas
escarpadas montanhas do Parque Nacional de Los Padres perto
da costa central da Califórnia. Ali ele e seus estudantes criaram
禅心 時 ZENSHIN-JI (Mente Zen/ Templo do Coração), o primeiro
monastério 禅 ZEN budista da América. Começamos do
zero sob a orientação de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.
Todos os anos no Zen Mountain Center de Tassajara há
duas temporadas de retiro nas quais se realiza uma prática
intensiva: de outubro a dezembro e de janeiro a março. Estas
duas temporadas de prática incluem diariamente muitas horas de
座 禅 ZAZEN (meditar sentado com as pernas cruzadas),
11
preleções, estudo e trabalho físico. Durante este período de retiro
os estudantes residem no centro durante todo o tempo. Nos
meses de primavera e verão (de maio a agosto) Tassajara está
aberto aos visitantes que desejam desfrutar das águas termais e
do tranqüilo ambiente que lá se respira. Desta forma, nos meses
dos visitantes se arrecadam os fundos necessários para
sustentar Tassajara e os estudantes. Durante a temporada estival
os estudantes se sentam em 座禅 ZAZEN pela manhã e à tarde e
o resto do dia se dedicam à prática do trabalho.
Durante o verão de 1970, quando ocorreram estas preleções,
os estudantes apareciam para as cerimônias e as sessões de
座禅 ZAZEN várias vezes ao dia, e além disso preparavam a
comida e trabalhavam nas numerosas tarefas que o edifício e a
conservação do mesmo requeriam. Durante o dia
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI, de corpo pequeno e frágil na
aparência, dedicava-se a posicionar corretamente enormes
pedras nas margens de um córrego para evitar a erosão. E à
noite nos dava as preleções. Aos que tiveram a sorte de trabalhar
com ele, sempre era surpreendente a energia e destreza que
manifestava, mesmo na fase em que já era um ancião e se
encontrava doente. Passava o dia todo trabalhando sob um calor
de quase 40º. Através de seu trabalho nos transmitia sua enorme
energia. Podíamos passar o dia inteiro posicionando uma enorme
pedra num lugar que julgávamos adequado, mas se por acaso
não ficasse bem posicionada, voltávamos a retirá-la no dia
seguinte e a posicionávamos de novo.
Naquela época eu era assistente pessoal de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. No início de nossa prática diária de
座禅 ZAZEN e das cerimônias, eu o seguia até o 禅堂 ZENDŌ
levando uma oferenda de incenso. Em meio ao calor que às
vezes vazia, cobria sua cabeça com uma toalhinha molhada para
refrescá-lo. Naquele verão de 1970 MITSU-SAN, sua esposa,
chegou de São Francisco e estava muito preocupada com ele.
Sabia que apesar de estar muito enfermo, seu esposo prosseguia
12
trabalhando em tarefas que requeriam um esforço excessivo. Às
vezes, quando ela passava próximo de onde ele estava
trabalhando, ele fingia estar descansando e quando ela se
afastava recomeçava a tarefa de mover pedras. Numa ocasião
ela o repreendeu dirigindo-se a ele com o familiar nome
reservado a um abade: “HOJO-SAN! Está a encurtar sua vida!”,
ao que ele respondeu: “Se não a encurtasse, meus estudantes
não cresceriam”.
Ainda que houvesse muitas coisas a fazer, ele nunca se
apressava. Era uma pessoa centrada tanto no equilíbrio como no
tempo. Sempre me dava a impressão de que se entregava por
completo à atividade que realizava. E encontrava sempre o
tempo para realizá-la com profundidade. Um dia, mostrou-me
como se lavava um 着物 KIMONO, movendo-se lentamente por
todo o perímetro da peça usando a parte que segurava com uma
das mãos para esfregar a parte que estava na outra até lavá-lo
por completo. Numa ocasião me disse: “Vocês têm o ditado
‘matar dois pássaros com um só tiro’, mas nossa forma de agir é
matar só um pássaro com cada tiro”.
Em 1969 os estudantes, com muito cuidado, haviam
construído a cozinha de pedra. Em Tassajara havia por todos os
cantos rochas e pedras de todos as formas e tamanhos.
Cortamos o teto de um automóvel velho e o usamos como trenó
para transportar as enormes pedras. Convertemo-nos em experts
na construção de muros e escadarias de pedra. Nossa equipe de
carpintaria era dirigida por um jovem carpinteiro chamado Paul
Discoe, que mais tarde foi estudar no Japão e se converteu em
expert na carpintaria japonesa. As obras de Edward Espe Brown,
“O livro do pão de Tassajara” e “Cozinha Zen”, também foram
escritos nesta época, assim como os livros clássicos de Bill
Shurtleff sobre o 豆腐 TŌFU, o 味噌 MISO e o TEMPEH2. Havia

2
O TEMPEH é uma comida originária da Indonésia, feita a partir de uma
massa de soja parcialmente cozida, parcialmente fermentada e que é
usada como ingrediente principal de várias receitas. (N.T.)
13
no ar uma maravilhosa sensação de pioneirismo. O 禅 ZEN era a
meditação sentada, as cerimônias e o trabalho. Esta combinação
fez com que a prática proporcionasse uma sensação de
integridade. Encontrávamos-nos nas montanhas construindo um
monastério apenas com nossas mãos. Sentíamos-nos
imensamente agradecidos por este lugar, por cada um de nós,
por nosso mestre e por todas as pessoas que apoiavam nosso
esforço. Também sentíamos que não só estávamos fazendo algo
por nós, mas também para os demais.
Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI tenha estudado inglês
durante muitos anos no Japão, demorou vários anos até que
conseguisse se comunicar com fluência na América. Durante os
doze anos em que esteve neste país, foi dominando cada vez
melhor o idioma, ainda que freqüentemente tivesse que ficar
procurando a expressão que justamente correspondesse a seu
pensamento, até que finalmente a encontrasse. Mas inclusive
enquanto a procurava, era sempre eloqüente. Na verdade, houve
um caso em que uma pessoa que o ouviu dar uma palestra em
japonês e outra em inglês no mesmo dia, achou que a preleção
em inglês havia sido mais inovadora e convincente, talvez até
pelo fato do inglês não ser sua língua materna.
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI deu centenas de palestras.
Falando mais formalmente, uma palestra era uma espécie de
apresentação informativa, ao passo que um 提唱 TEISHŌ oferece
o próprio Dharma do mestre ou sua compreensão direta, usando
freqüentemente um 公案 KOAN ou um texto. 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI raramente utilizava um texto, apesar de que com
freqüência citasse algum. As preleções de um mestre 曹洞 SŌTŌ
podem ser uma mescla na qual o mestre dá a palestra e também
expressa sua própria interpretação de determinado texto, como é
o caso de 鈴木 老 師 SUZUKI RŌSHI nesta obra. Durante a
preleção os estudantes estão sentados com as pernas cruzadas
na postura de 座禅 ZAZEN sem apoiar as costas em nada, com a
14
coluna alinhada e a mente aberta. É costume que o mestre dê
uma preleção toda a semana e às vezes até com maior
freqüência. Durante os compridos retiros, chamados
攝心 SESSHIN, 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI falou diariamente, e
em algumas ocasiões, mais de uma vez no mesmo dia.
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI pertencia a linha de transmissão
do mestre 禅 ZEN 道 元 DŌGEN (1200-1253) e se havia
comprometido a introduzir a forma de praticar de 道元 DŌGEN no
Ocidente. Ainda que recomendasse o estudo dos numerosos
textos de 道 元 DŌGEN (naquela época apenas uns poucos
haviam sido traduzidos), o que para ele era mais importante era o
espírito de 道元 DŌGEN. Da mesma forma que 道元 DŌGEN,
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não considerava que o 禅 ZEN fosse
um ensinamento ou uma prática distinta do Buddhadharma3 ou
que a escola 曹洞 SŌTŌ do 禅 ZEN fosse superior ou inferior a
qualquer outra. Descreveu nossa Via como o Hīnayāna,
(o Pequeno Veículo), praticado com uma mente Mahāyanā
(o Grande Veículo).
Em meados dos anos sessenta começamos a gravar as
preleções de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. Naquela época, ele ia
visitar os pequenos grupos 禅 ZEN afiliados ao Centro Zen que
havia em Mill Valley e Los Altos. Estava decidido a converter
algumas palestras que havia dado em Los Altos na base de um
livro, para que um número maior de pessoas pudesse conhecer
seus ensinamentos. Estas preleções se converteram no material
bruto utilizado para escrever a famosa obra “Zen Mind,

3
Os termos em sânscrito foram grafados em itálico, com os sinais
diacríticos mais comuns, que ajudam a obter uma compreensão melhorada
de sua pronúncia. (N.T.)

15
Beginner’s Mind” 4 , traduzida para vários idiomas e que na
atualidade está a ponto de chegar a sua quadragésima edição
em inglês. Nestas espontâneas palestras tratou de muitos temas.
Mas fundamentalmente sua mensagem foi a de como podemos
nos desprender de nosso egocentrismo e nos estabelecer na
大心 DAISHIN ( a Grande Mente ou grande eu), como praticar
de uma maneira formal e como aplicar e encontrar nossa prática
na informalidade de nossa vida cotidiana. A parte do título “Mente
de Principiante”, refere-se à singela atitude de simplesmente
estar presente a cada momento, aceitando a realidade não dual
de cada momento com uma mente clara e aberta, procurando
não cair em opiniões dualistas nem em idéias falsas e
permanecendo aberto a qualquer possibilidade.
As palestras foram gravadas por Marian Derby, que dirigia o
grupo 禅 ZEN de Los Altos e que teve a idéia de escrever este
livro. As transcrições foram revisadas por Trudy Dixon, uma
discípula muito próxima, e Richard Baker, que sucedeu a
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI convertendo-se no segundo abade do
Centro 禅 ZEN. Os editores de “Mente Zen, Mente de
principiante” recolheram as partes mais interessantes e únicas
das palestras de Los Altos e as publicaram em capítulos curtos.
Cada capítulo constitui uma jóia de sabedoria.
As preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI, apresentam, ao
contrário, um contexto dos ensinamentos totalmente distinto e
portanto emanam uma sensação muito diferente. Nesta ocasião,
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI dedicou-se a falar sobre um antigo
poema chinês, linha por linha, palavra por palavra, durante umas
seis semanas (de 27 de maio a 06 de julho de 1970). O
參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN é cantado na
liturgia do Centro 禅 ZEN e também nos monastérios japoneses

4
Editada em português como “Mente Zen, Mente de Principiante”, Editora
Palas Athena, 1994. (4ª edição – 2002) (N.T.)
16
da tradição 曹洞 SŌTŌ. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI quis que o
compreendêssemos com clareza. Para ele foi uma tarefa
prazerosa. Colocou uma placa de ardósia junto a seu assento e
no decorrer das preleções foi escrevendo e explicando os
ideogramas chineses. (Para que a leitura ficasse mais amena
foram eliminadas quase todas as detalhadas explicações de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI sobre cada ideograma chinês).5 As
preleções vespertinas se davam no 禅堂 ZENDŌ. À noite fazia
tanto calor que quando nos levantávamos, o 坐蒲 ZAFU estava
empapado de suor.
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI deu no total doze preleções
sobre o 參同会 SANDŌKAI aos estudantes de Tassajara. Nesta
obra foi incluída uma preleção a mais que corresponde a que foi
dirigida a um grupo de estudantes de filosofia que foram visitar o
Centro, a qual adota uma forma de resumo ou perspectiva geral.
Também foi incluída uma pequena preleção que foi dada uma
manhã durante uma sessão de 座禅 ZAZEN.
Como estas preleções foram dadas em seqüência, foram
mais difíceis de publicar do que as de “Mente Zen, Mente de
Principiante”. A voz das preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI
nem sempre soa como a voz de “Mente Zen, Mente de
Principiante”, em parte porque 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fala
aqui sobre um texto, mas também pelo enfoque que os editores
deram ao apresentá-lo. A princípio queríamos que o texto fosse o
mais fiel possível ao original, mas a medida em que íamos
trabalhando com as preleções nos dávamos conta que às vezes
o relato textual devia ser modificado para que fosse coerente.

5
O que certamente constitui um empobrecimento da obra, e que na
medida do possível procurei desfazer nesta tradução, colocando a maioria
dos termos chineses e japoneses também em ideogramas, o que não foi
feito no original. (N.T.)
17
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI de vez em quando apresentava os
mesmos temas durante uma série de preleções, mas nem
sempre o fazia com o mesmo enfoque. Por isso os editores
tiveram que escolher dentre as diferentes formas em que
começou uma frase em distintas ocasiões. Às vezes tiveram que
preencher os vazios que apareciam entre frases vagas ou
expressas com pouca clareza. E com certa freqüência também
tiveram que decidir se deixavam sem correção uma frase
expressa com a forma de falar peculiar de 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI ou se a corrigiam para que a frase fosse mais clara e
coerente.
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI também inventava suas próprias
frases para se expressar de uma forma menos dualista. Por
exemplo, podia usar a frase “As coisas tal como é” para
expressar a natureza fundamental da realidade, algo que está
além das palavras. Mas também usava a frase “As coisas tal
como são” para se referir à nossa habitual forma diferenciadora e
dualista de pensar e perceber (bom/mau, correto/incorreto). Em
“As coisas tal como é”, ao usar o singular e o plural na mesma
frase, fazia que nossa corriqueira forma de pensar se ampliasse.
Também foi inventada a palavra “independency”, que foi
utilizada para expressar a natureza dependente, e ao mesmo
independente de nossa vida. Quando em certa ocasião perguntei
a ele sobre isso e lhe disse que em inglês havia as palavras
“independent” (independente), “dependent” (dependente) e
“interdependent” (interdependente), mas que nunca havia
ouvido a palavra “independency”, ele se pôs a rir e me disse que
somos totalmente independentes e, ao mesmo tempo, totalmente
dependentes. Se alguém crê ser totalmente independente,
incorre num erro. E se crê ser totalmente dependente, também se
equivoca. Aparentemente a palavra adequada neste caso seria
“interdependent” (interdependente), mas 鈴 木 老 師 SUZUKI
RŌSHI usou “independency” para expressar esta qualidade

18
ambivalente. Disse que o segredo do 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN era:
“Sim, mas...”
Procuramos fazer a edição de forma que a linguagem de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fosse a mais clara e fluida possível
sem modificar ou trair sua forma pessoal de se expressar. Numa
preleção 禅 ZEN - um 提唱 TEISHŌ - a presença do orador influi
poderosamente na experiência do estudante. Os editores ao
trabalhar somente com as palavras devem tentar acima de tudo
não passar por cima desta qualidade ambivalente quando ela
ocorre e não eliminá-la em favor de uma apresentação
gramaticalmente perfeita. Com freqüência, as expressões pouco
convencionais de 鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI exercem mais
impacto do que se ele houvesse se expressado de forma
“correta”.6
Em vários casos conservou-se o uso que 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI fazia dos pronomes masculinos. Ainda que procedesse
de uma cultura que tradicionalmente favorecia os homens, ele era
inusitado no sentido de que se esforçava muito em respeitar
igualmente a prática dos homens e das mulheres sem discriminá-
las em absoluto. Também respeitava os valores de longa tradição
e a relação que existe entre as mulheres e os homens. Ainda que
em suas preleções normalmente usasse o “ele” ao se referir a um
estudante, fazia-o assim simplesmente porque naqueles tempos
era costume, já que freqüentemente dizia que ainda que
fossemos um homem ou uma mulher, deveríamos ser totalmente
nós mesmos, e que quando cada um é o que é, o 禅 ZEN é o
禅 ZEN.

6
Esta tradução procurou manter este espírito, principalmente tentando
manter ao máximo o clima coloquial que “tempera” estas preleções. (N.T.)
19
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI faleceu em 04 de dezembro de
1971 de um câncer, um ano e meio depois de oferecer seus
ensinamentos sobre o 參同会 SANDŌKAI. Tinha sessenta e sete
anos. Quando disse que os mestres da tradição 曹洞 禅 SŌTŌ
ZEN davam as preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI no ocaso de
suas vidas, devia pressentir que ia morrer proximamente.

20
石頭 希遷 SEKITŌ KISEN
e o 參同会 SANDŌKAI

石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (em chinês, Shitou Xiqian, 700-790),


autor do 參 同 会 SANDŌKAI, nasceu na província de
广东 7 Guangdong, no sul da China, no princípio do século VIII.
Aquela foi uma época de formação na qual o 禅 ZEN se fez mais
popular e na qual se expressou, a princípio, como uma escola e
uma linguagem únicos. As questões sobre a natureza e as
origens do 禅 ZEN e os relatos que se conservaram sobre
Bodhidharma,8 o Primeiro Patriarca chinês do 禅 ZEN (470-543),
remontam a esta época.

7
Em chinês tradicional, 廣東. (N.T.)

8
Em japonês, 菩提達摩 BODAIDARUMA, Putidamo em chinês.
(N.T.)
21
Foi também durante este período que o 禅 ZEN ficou conhecido
por destacar a experiência direta da realidade e a prática da
meditação sentada. Mas surgiram disputas sectárias entre a
Escola 禅 ZEN do Norte, que ensinava a doutrina de uma prática
gradual e paulatina, e a Escola 禅 ZEN do Sul, que ensinava que
a obtenção da Iluminação é súbita e imediata. Cresceram os
debates acerca de qual linhagem era superior. Do ponto de vista
atual, as diferenças entre as duas escolas parecem exageradas,
já que ambas enfatizavam tanto uma realização abrupta como
uma constante cultivação, sobretudo através da meditação
sentada. Na realidade, a Escola do Norte originalmente foi muito
popular e influente, mas ao cabo de várias gerações sua
influência e identidade como escola distinta foram decaindo.
Não se sabe grande coisa da vida de 石 頭 SEKITŌ. O
primeiro evento registrado é um encontro que teve, com a idade
de doze anos, com 大鑑 慧能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian
Huineng, 638-713), o Sexto Patriarca. Quando este precoce
jovenzinho se aproximou de 慧 能 ENŌ, o mestre lhe disse
zombeteiro: “Se você se converter em meu discípulo, ficará [tão
feio] como eu”. 石頭 SEKITŌ sorriu e respondeu: “De acordo”. Ao
cabo de dois anos era um dos discípulos presentes no leito de
morte de 慧能 ENŌ.
Aparentemente, 石頭 SEKITŌ se dedicou basicamente a
praticar sozinho nos quinze anos seguintes e depois deste
período decidiu estudar com 青 原 行 思 SEIGEN GYŌSHI
(Quingyuan Xingsi, 660-740), um dos principais discípulos de
慧能 ENŌ. Depois de entabular seu primeiro diálogo com ele,
青原 SEIGEN disse de seu novo discípulo: ”No meu grupo já
tenho muitos animais de dois cornos, mas tudo o que eu
precisava era de um unicórnio”.
No ano 742, 石頭 SEKITŌ construiu uma choça sobre uma
grande saliência rochosa do Monte 衡山 Hengshan, na província

22
de 湖南 Hunan. O nome de 石頭 SEKITŌ, que significa “cabeça
de pedra”, vem de ficar sentado em 座禅 ZAZEN na saliência
rochosa. 永 平 道 元 EIHEI DŌGEN, que introduziu o
曹洞 禅 SŌTŌ ZEN no Japão cinco séculos mais tarde, escreveu
o seguinte sobre 石頭 SEKITŌ:

“O grande mestre Shitou ( 石 頭 SEKITŌ) praticou


座禅 ZAZEN numa saliência rochosa sobre a qual construiu uma
choça de palha. Permaneceu dia e noite sentado em 座禅 ZAZEN
sem dormir. Ainda que não tenha se esquecido de trabalhar, ao
longo do dia não deixou de fazer 座禅 ZAZEN um só momento.
Agora os descendentes de seu mestre Qingyuan
(青原 SEIGEN) disseminaram-se por toda a China beneficiando
tanto os humanos como os devas 9 . Isto foi possível graças a
sólida e contínua prática e a grande determinação de Shitou
(石頭 SEKITŌ).”

Conservaram-se vários intercâmbios dialéticos entre


石 頭 SEKITŌ e seus discípulos. Em um destes encontros,
天 皇 道 悟 TENNŌ DŌGO (Tian Huang Daowu, 748-827),
discípulo de 石頭 SEKITŌ, perguntou a seu mestre quem era o
herdeiro adequado do Sexto Patriarca:

“Quem alcançou o ensinamento essencial do Sexto


Patriarca?”, perguntou 道悟 DŌGO.
“Aquele que compreende o Buddhadharma”, respondeu
石頭 SEKITŌ.

9
Deuses dos paraísos celestiais. (N.T.)

23
“Você logrou alcançá-lo?”, inquiriu 道悟 DŌGO.
“Eu não compreendo o Buddhadharma”, respondeu
石頭 SEKITŌ.

Em outra ocasião, um monge perguntou a 石頭 SEKITŌ:


“Como se alcança a emancipação?”
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te aprisionou?”
O monge perguntou:
“O que é a Terra Pura?”10
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te submergiu na ignorância?”
O monge perguntou:
“O que é o Nirvāna?”
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te embrulhou no nascimento e na morte?”

10
Terra Pura: 浄土 JŌDO. Nos séculos I e II d. C., a especulação
Mahāyāna desenvolveu uma cosmologia que era muito mais extensa
do que qualquer outro tema discutido nos primeiros tempos do
Budismo. Os Mahāyanistas propunham a existência de mundos sem
fim, cada um dos quais albergava Buddhas e Bodhisattvas. Estes
“territórios de Buddha” são reinos paradisíacos e cada um deles é
presidido por um Buddha, sendo o mais célebre o paraíso ocidental
conhecido por Sukhavati (極楽 GOKURAKU), a terra “feliz” ou “pura”.
Esta é a morada do Buddha Amitabha 阿弥陀仏 AMIDA-BUTSU ou
無量光仏 MURYŌKŌBUTSU. Trata-se de um paraíso onde “não há
dores físicas nem mentais, cheio de deuses e de homens que nunca
renascem exceto como Bodhisattvas.” (N.T.)

24
Falava-se na época que um monge seguiria sendo um
ignorante a não ser que visitasse o Sul do Lago, o lugar onde
vivia mestre 石頭 SEKITŌ, e o Oeste do Rio, o lugar onde vivia
mestre 馬 祖 BASO (em chinês, Mazu, 709-788). As cinco
escolas do 禅 ZEN 11 se desenvolveram a partir destes dois

11
Retornando um pouco no tempo, dentre os sucessores do Sexto
Patriarca, 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ e 青原行思 SEIGEN GYŌSHI são de
especial importância para a história subseqüente do 禅 ZEN, pois a partir
de suas linhagens foram produzidas todas as posteriores tradições da
corrente chinesa, conhecidas coletivamente como “As Cinco Casas”. Estas
por sua vez são assim conhecidas:
1) 臨 濟 RINZAI (Linji), fundada por 臨 濟 義 玄 RINZAI GIGEN
(f. 866), descendente de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ; existe até
hoje.
2) 潙仰 IGYŌ (Guiyan), fundada por 潙山 靈祐 ISAN REIYU (711-
853) e seu discípulo 仰 山 慧 寂 KYŌZAN EJAKU (807-883),
também descendentes de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ. Declinou e
desapareceu após cerca de 150 anos;
3) 曹 洞 SŌTŌ (Caodong), fundada pelos descendentes de
青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN,
洞 山 良 价 TŌZAN RYŌKAI (807-869) e seu discípulo
曹山 本寂 SŌZAN HONJAKU (840-901). Desapareceu na China
durante a dinastia Ming (1368–1644), permanecendo ativa no
Japão até hoje;
4) 雲 門 UNMON (Yunmen), fundada por 雲 門 文 偃 UNMON
BUN’EM (864-949), também descendente de 青原 行思 SEIGEN
GYŌSHI. Depois de florescer durante séculos principalmente
entre membros da elite educada, passou por um lento processo
de decadência, desaparecendo na era Yuan (1280-1368);
5) 法眼 HŌGEN (Fayan), fundada também por um descendente de
青原 行思 SEIGEN GYŌSHI, 法眼 文益 HŌGEN MON’EKI (885-
958). Devido a tendências sincréticas, após alguns séculos
desapareceu como escola distinta, tendo sido absorvida pelas
demais.

25
grandes mestres que, em sua época, encarnaram realmente a
Via do 禅 ZEN. Ainda que não haja qualquer informação
registrada de que tenham chegado a se conhecer pessoalmente,
cada um deles enviava seus discípulos a estudar com o outro.
O seguinte exemplo mostra como se relacionavam com
藥山惟儼 YAKUSAN IGEN (em chinês, Yueshan Weiyan, 745-
828), que mais tarde se converteu num dos sucessores de
石頭 SEKITŌ. 藥山 YAKUSAN foi visitar 石頭 SEKITŌ e lhe
pediu:
“Compreendo os ensinamentos das escrituras budistas, mas
ouvi dizer que no sul [os praticantes do 禅 ZEN] se concentram
diretamente na mente humana. Percebem sua natureza e se
convertem em Buddhas. Mas não terminei de compreender. Peço
humildemente que me explique”.
石頭 SEKITŌ respondeu-lhe:
“Este método não serve e o outro tampouco adianta. Não
servem ambos e nem um só. Que tal lhe parece?”
藥山 YAKUSAN não soube o que responder.
石頭 SEKITŌ disse-lhe:
“Vá ver 馬祖 BASO.”
藥山 YAKUSAN, depois de apresentar seus respeitos a
馬祖 BASO, formulou a mesma pergunta.
馬祖 BASO respondeu-lhe:
“Às vezes consigo que “ele” arqueie as sobrancelhas e
pestaneje, e outras vezes, não. Que te parece?”
Ao ouvir estas palavras, 藥山 YAKUSAN experimentou o
Grande Despertar e se prosternou.

A escola 臨濟 RINZAI (Linji) posteriormente dividiu-se nas linhagens


de 楊岐 方會 YOGI HŌE - (992-1049) e 横龍 慧南 ORYŌ E'NAN
(1002-1069), as quais, conjuntamente com As Cinco Casas,
perfazem As Sete Escolas. (N.T.)

26
馬祖 BASO perguntou-lhe:
“Que verdade que você viu que te impulsionou a se
prosternar?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe:
“Quando eu estava com 石 頭 SEKITŌ, era como um
mosquito se lançando contra um boi de ferro.”
馬祖 BASO disse-lhe:
“Já que você alcançou a Verdade, guarde-a bem dentro de ti.
Mas seu mestre é 石頭 SEKITŌ.”

Outro intercâmbio dialético entre 石 頭 SEKITŌ e


藥山 YAKUSAN mostra um verdadeiro encontro entre mestre e
discípulo. Um dia, ao ver que 藥山 YAKUSAN estava sentado em
座禅 ZAZEN, 石頭 SEKITŌ lhe perguntou:
“O que você está fazendo aqui?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe;
“Não estou fazendo nada.”
石頭 SEKITŌ disse-lhe:
“Neste caso, está sentado ociosamente.”
藥山 YAKUSAN argumentou:
“Se estivesse sentado ociosamente estaria fazendo algo.”
Ao que 石頭 SEKITŌ replicou:
“Você diz que não está fazendo nada. Em que consiste este
‘Não fazer’?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe;
“Nem sequer os dez mil sábios o sabem.”

O 參同会 SANDŌKAI (em chinês, Cantongqi) trata sobre a


divisão que surgiu entre a Escola do Norte e a Escola do Sul, e
sobre outras dicotomias como a unidade e multiplicidade, a luz e
a escuridão, a identidade e a diferença. (No clima científico atual,

27
石頭 SEKITŌ poderia ter escrito sobre ondas e partículas). O
poema, composto de quarenta e quatro versos pareados dois a
dois, segue freqüentemente a pauta de distinguir primeiro a
descontinuidade, depois a continuidade e, por último, a
complementaridade.
Um texto anterior taoista sobre o 易經 Yi Jing (I Ching) se
chamava 參同会 SANDŌKAI e o poema de 石頭 SEKITŌ faz
alusão aos temas taoistas referentes à natureza e à mudança.
Também mostra a influência da escola 華嚴 KEGON (a escola de
budismo japonês correspondente à escola chinesa Huayan, ou a
Escola do Ornamento Floral) que ensina a igualdade e a
interdependência de todas as coisas.
É evidente que para a linhagem 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN o
參 同 会 SANDŌKAI é fundamental. O poema é cantado
diariamente nos templos da escola 曹洞 SŌTŌ de todo o mundo
e quase sempre que se celebra a cerimônia para comemorar o
aniversário da morte do fundador de um templo. Três gerações
depois de 石頭 SEKITŌ, 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI (em chinês
Dongshan Liangjie, 807-869), escreveu o 寶 鏡 三 昧 HOKYŌ
ZANMAI (em chinês Baojing Sanmei)12, que desenvolve idéias do
參同会 SANDŌKAI. O ensinamento dos Cinco Estágios13 também
procede do 參同会 SANDŌKAI.

12 O título completo do poema é 寶 鏡 三 昧 歌 HŌKYŌ ZANMAI KA


(Baojìng Sanmei Ge), e se encontra no T48n2004-p0279a12. Veja também
a nota nº 18. (N.T.)

13
Em japonês, 五位 GO I. Correspondem aos princípios fundamentais da
lógica 禅 ZEN, articulando os silogismos em cinco etapas sendo A o
primeiro termo, relacionado com os fenômenos (色 SHIKI), a noção de

28
obliqüidade ou de diferença; e B o segundo termo: a essência ou o vazio
(空 KŪ), a noção de retidão ou de igualdade.

Temos assim, sucessivamente:


I. A entra em B.
II. B entra em A.
III. B é B.
IV. A é A.
V. A e B se interpenetram.

Em japonês, teríamos:
I. 正中偏 SHŌ CHŪ HEN.
II. 偏中正 HEN CHŪ SHŌ.
III. 正中來 SHŌ CHŪ RAI.
IV. 兼中至 KEN CHŪ RAI.
VI. 兼中到 KEN CHŪ TŌ.

正 SHŌ significa substância do cosmos, o Poder Cósmico


fundamental, o reto, o justo, a essência. Corresponde a 空 KŪ, a
Vacuidade. 偏 HEN designa os fenômenos, o curvo, o oblíquo, o parcial.
É 色 SHIKI, os fenômenos.

Podem ser estabelecidas assim as seguintes similaridades:

29
Gostaria de concluir este texto com o último par de versos
do 參同会 SANDŌKAI, cuja mensagem pode estar escrita no
板 HAN, a tábua de madeira com a qual se anuncia - ao ser
percutida ritmicamente - o inicio e o fim da sessão de meditação
nos templos e monastérios 禅 ZEN:

偏 HEN 中 CHŪ 正 SHŌ


O oblíquo, a diferença. entra em o reto, a igualdade.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
Os fenômenos são em si a essência.
正 SHŌ 中 CHŪ 偏 HEN
O reto, a igualdade entra em o oblíquo, a diferença.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
A essência é em si o fenômeno.
兼 KEN 中 CHŪ 至 RAI
O oblíquo, a diferença. entra em (é) o oblíquo, a diferença.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
Os fenômenos são os fenômenos.
正 SHŌ 中 CHŪ 來 RAI
O reto, a igualdade entra em (é) o reto, a igualdade.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
A essência é a essência.

兼 KEN 中 CHŪ 到 TŌ

A CHEGADA DE AMBOS À UNIDADE.

Este quinto princípio resume, sintetiza e supera os quatro anteriores .


(N.T.)

30
謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

Vocês que estudam o mistério,


respeitosamente e com urgência eu os exorto:

光陰虚しく度ることなかれ。
KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Não passem os dias e as noites em vão!

NOTAS PARA O LEITOR

31
Como 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI usava várias traduções do
參同会 SANDŌKAI disponíveis naquela época - principalmente a
de R.H. Blyth e a de Reiho Matsunaga - e também traduzia
diretamente do original em caracteres chineses, seu comentário
não corresponde a nenhuma tradução existente e nem se ajusta
por completo a qualquer uma destas enumeradas. No texto que
apresentamos a seguir foi utilizada como fonte a tradução inglesa
da 曹 洞 宗 SŌTŌ SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference
oferecida em Green Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em
1997, ainda que com algumas pequenas correções. Tão pouco
encontramos um título que traduzisse perfeitamente o significado
de 參同会 SANDŌKAI. O título proposto pela 曹洞 宗 SŌTŌ SHU
Liturgy Conference é “A harmonia entre o diferente e o igual”14.
Os problemas inerentes a qualquer tradução de um texto tão
profundo recordam uma linha do 寶鏡三昧 HOKYŌ ZANMAI15: “O
significado não se acha nas palavras, mas elas encorajam àquele
que procura”.
Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não tenha feito por
completo sua própria tradução do 參同会 SANDŌKAI, em suas

14
Outras traduções possíveis:
“Harmonia entre a diferença e a igualdade”.
“Fusão da diferença e da igualdade”. (Thomas Cleary)
“Identidade do relativo e do absoluto”. (Dennis Genpo Merzel)
“Ode à identidade”. (D.T. Suzuki).
15
A citação em questão corresponde a seguinte passagem:

意不在言 來機亦赴

意言にあらざれば、來機またおもむく。
KOKORO KOTO NI ARAZAREBA, RAIKI MATA OMOMUKU.

A mente não se expressa em palavras,


mas elas encorajam àquele que procura. (N.T.)
32
preleções foi-nos traduzindo passo a passo cada um dos
caracteres do poema. Depois de depurar estas preleções e
outras fontes que não foram incluídas na obra (por exemplo,
discussões privadas que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI manteve com
os estudantes), criamos uma outra versão do 參同会 SANDŌKAI
que foi incluída no final deste livro. Como 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI traduziu os mesmo caracteres e frases de formas
distintas, dependendo do contexto de sua preleção, a versão que
compusemos é apenas uma aproximação daquela que poderia
ter sido escrita por ele.
Os mestres chineses citados no livro foram apresentados
com o nome equivalente em japonês 16 acompanhado do nome
original chinês entre parênteses. Para tanto, os nomes chineses
receberam sua transliteração no sistema 拼音 Pinyin. Segundo
este sistema, 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN, o autor do poema, é
Shitou Xiqian. Mas no sistema Wade-Giles, mais antigo, seria
Shih-T’ou Hsi -Ch’ien17. Para ajudar o leitor a seguir os diversos

16
Sempre que possível, os termos em japonês foram grafados em
ideogramas (漢字 KANJI) ou nos silabários auxiliares (平仮名 HIRAGANA e
片仮名 KATAKANA), seguidos da transliteração fonética ou romanização
(ローマ字 RŌMAJI) no Sistema Hepburn (ヘボン式 HEBON SHIKI), um
dos principais sistemas de romanização do japonês, desenvolvido pelo
reverendo James Curtis Hepburn para seu Japanese-English Dictionary,
editado em 1867. Este sistema foi subseqüentemente revisado e chamado
修正ヘボン式 SHŪSEI HEBON-SHIKI 修正ヘボン式. Esta versão revisada
às vezes também é chamada de 標準式 HYŌJUN-SHIKI, “estilo padrão”. A
versão original e as variantes revisadas deste sistema permanecem sendo
o mais popular método de transcrição do japonês, permitindo uma
compreensão mais exata da pronúncia do idioma. (N.T.)
17
拼 音 Pinyin significa literalmente, “colocar sons juntos”. Em chinês
geralmente se refere ao 汉 语 拼音 Hànyǔ Pīnyīn, que é o sistema de
romanização do mandarin, aprovado em 1958 e adotado a partir de 1979
33
mestres e linhagens mencionados na obra, incluímos ao final do
livro uma tabela das linhas de transmissão.
A transcrição dos caracteres do 參 同 会 SANDŌKAI em
japonês, tão habilmente realizada foi-nos brindada amavelmente
por KAZUAKI TANAHASHI. A versão chinesa do
參同会 SANDŌKAI, foi reproduzida do 大正新脩大蔵経 TAISHŌ
SHINSHŪ DAIZŌKYŌ, uma edição do cânone completo sino-
japonês publicada por 順次郎 高楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU e
海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE.18

pela Republica Popular da China. Este sistema substituiu outros sistemas


mais antigos, entre eles o Wade-Giles. (N.T.)
18
Entre os anos de 1924 e 1934 um consórcio de eruditos japoneses sob
a direção de 順 次 郎 高 楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU (1866-1945),
海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE (1872-1932) e 亦妙小野 GEMMYŌ
ONO (1884-1939) produziu uma edição crítica do cânone budista Sino-
Japonês que desde então tem servido como edição padrão para as
citações de textos budistas. Seu nome completo,
大正 新脩 大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ ( Grande Coletânea de
Escrituras Recentemente Compiladas Durante a Era TAISHŌ, [1912-1925])
é freqüentemente abreviado para 大正 TAISHŌ ou “T.” Compreende um
total de 100 grossos volumes que contém um total de 3360 obras,
compiladas a partir das edições anteriores dos cânones chineses,
coreanos e japoneses, além de obras que não constavam nestas versões,
como obras compostas no Japão e excluídas de versões mais antigas do
cânone japonês, textos ilustrados das tradições esotéricas japonesas e
reimpressões de setenta e sete catálogos de cânones anteriores. O
參同会 SANDŌKAI está relacionado no Volume 48 obra 2006, e recebe a
identificação T48n2006p0327a14-b07. Uma reprodução do
參同会 SANDŌKAI no formato digitalizado do 大正 TAISHŌ se encontra
reproduzida no APÊNDICE 01, ao final do livro. (N.T.)

34
35
參同会
SANDŌKAI

36
A HARMONIA ENTRE
O DIFERENTE E O IGUAL

37
A mente do grande sábio da Índia,
tem sido transmitida intimamente
de Oeste para Leste.

Apesar de que as faculdades humanas possam ser


inteligentes ou tontas,
na Via não há Patriarcas do Norte ou
Patriarcas do Sul.

A fonte espiritual brilha claramente na luz,


os afluentes fluem na escuridão.

Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão,


aceitar a identidade não é a Iluminação.

Os objetos dos sentidos interagem


e ao mesmo tempo não interagem.

A intenção produz implicação.


e, sem embargo, cada fenômeno
mantém-se em seu próprio lugar.

38
As imagens variam em qualidade e forma,
os sons podem ser prazerosos ou
desagradáveis.

As palavras refinadas e as ordinárias


não se diferenciam na escuridão,
as frases claras e as obscuras
distinguem- se na luz.

Os quatro elementos regressam à sua natureza,


tal como uma criança regressa à sua mãe.

O fogo aquece, o vento move,


a água molha, a terra é sólida.

Olhos e imagens, ouvidos e sons,


nariz e odores, língua e sabores.

Cada um e todos os fenômenos


dependem destas raízes,
são como as folhas de uma árvore.

O tronco e os ramos compartilham

39
a mesma essência,
o venerado e o vulgar se expressam
de sua própria maneira.

Na luz há obscuridade,
mas não a veja só como obscuridade.

Na obscuridade há luz,
mas não a veja só como luz.

A luz e a escuridão se opõem uma a outra,


como o pé direito e o esquerdo ao caminhar.

Cada um das miríades de fenômenos


tem seu próprio mérito,
expresso de acordo com sua função e lugar.

Os fenômenos existem como uma caixa que


perfeitamente se ajusta à sua tampa,
princípio igual a quando duas flechas se
encontram em pleno vôo, ponta com ponta.

40
Ao ouvir estas palavras, você deve
compreender seu significado;
não estabeleça suas próprias normas.

Se não for capaz de compreender


a via que tem diante de si,
como poderá reconhecê-la
ao caminhar por ela?

A prática nada tem a ver com longe ou perto,


mas se você se confundir,
montanhas e rios obstruirão seu passo.

Vocês que estudam o mistério,


respeitosamente e com urgência eu os exorto:
não passem os dias e as noites em vão!

Traduzido a partir da versão em inglês da 曹洞 宗 SŌTŌ


SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference oferecida em Green
Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em 1997; foram feitas
algumas pequenas correções
VERSÃO ORIGINAL EM CHINÊS

41
參同会
竺土大仙心 東西密相付
人根有利鈍 道無南北祖
霊源明皎潔 枝派暗流注
執事元是迷 契理亦非悟
門門一切境 迴互不迴互
迴而更相渉 不爾依位住
色本殊質象 聲元異樂苦
暗合上中言 明明清濁句
四大性自復 如子得其母
火熱風動搖 水濕地堅固
眼色耳音聲 鼻香舌鹹醋

42
然依一一法 依根葉分布
本末須歸宗 尊卑用其語
當明中有暗 勿以暗相遇
當暗中有明 勿以明相覩
明暗各相對 比如前後歩
萬物自有功 當言用及處
事存函蓋合 理應箭鋒哘
承言須會宗 勿自立規矩
觸目不會道 運足焉知路
進歩非近遠 迷隔山河固
謹白參玄人 光陰莫虚度

43
VERSÃO DA 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ EM JAPONÊS,
COM A CORRESPONDENTE
TRANSLITERAÇÃO FONÉTICA EM RŌMAJI

參同会
SANDŌKAI

竺土大仙の心、
CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

東西密に相附す、
TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU,

人根に利鈍あり、
NIN KON NI RIDON ARI,

道に南北の祖なし、
DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI,

霊源明に皓潔たり、
REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI

44
支派暗に流注す、
SHIHA NA NI RUCHŪ SU,

事を執するも元これ迷い、
JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI,

理に契うも亦悟にあらず、
RI NI KANAU MO MATA SATORI NI ARAZU,

門門一切の境、
MON MON ISSAI NO KYŌ,

回互と不回互と、
EGO TO FU EGO TO,

回してさらに相渉る、
ESHITE SARANI AI WATARU,

しからざれば位によって住す、
SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU,

45
色もと質像を殊にし、
SHIKI MOTO SHITSU ZŌ O KOTONI SHI,

声もと楽苦を異にす、
SHŌ MOTO RAKKU O KOTO NI SU,

暗は上中の言に合い、
AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,

明は清濁の句を分つ、
MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU,

四大の性おのずから復す、
SHIDAI NO SHŌ ONOZU KARA FUKUSU,

子の其の母を得るがごとし、
KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI,

火は熱し、風は動揺、
HI WA NESSHI, KAZE WA DŌYŌ,

水は湿い、地は堅固、
MIZU WA URUOI, CHI WA KENGO,

46
眼は色、耳は音声、
MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

鼻は香、舌は鹹酢、
HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

しかも一一の法において、
SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

根によって葉分布す、
NE NI YOTTE HABUNPU SU,

本末すべからく宗に帰すべし、
HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

尊卑其の語を用ゆ、
SONPI SONO GO O MOCHI YU,

明中に当って暗あり、
MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI,

暗相をもって遇うことなかれ、
AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE,

47
暗中に当って明あり、
AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI,

明相をもって覩ることなかれ、
MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE,

明暗おのおの相対して、
MEI AN ONO-ONO AITAI SHITE,

比するに前後の歩みのごとし、
HISU RUNI ZENGO NO AYUMI NO GOTOSHI,

万物おのずから功あり、
BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,

当に用と処とを言うべし、
MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,

事存すれば函蓋合し、
JI SON SUREBA KANGAI GASSHI,

理応ずれば箭鋒さそう、
RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ,

48
言を承てはすべからく宗を会すべし、
KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI,

みずから規矩を立することなかれ、
MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE,

触目道を会せずんば、
SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA,

足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、
ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN,

歩をすすむれば近遠にあらず、
AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU,

迷て山河の固をへだつ、
MAYŌTE SEN GA NO KO O HEDATSU,

謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

光陰虚しく度ることなかれ。
KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.
49
Como esta versão corresponde à utilizada nas
liturgias da 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ, está acompanhada
das marcações dos sinos que são percutidos
durante a leitura.

GATSU
KESU
KORIN

50
51
PRIMEIRA PRELEÇÃO

“AS COISAS TAL QUAL É”

52
53
竺土大仙心
竺土大仙の心、
CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

A mente do grande sábio da Índia,

東西密相付
東西密に相附す。
TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.

é transmitida intimamente de Oeste a Leste.

Sinto-me muito grato por ter a oportunidade de falar sobre o


參同会 SANDŌKAI, um dos ensinamentos mais importantes. O
poema foi expresso com tanta fluidez que talvez vocês não sejam
capazes de captar seu profundo significado ao lê-lo. Seu autor,
石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (ou SEKITŌ MUSAI DAISHIN, seu
nome póstumo) foi o neto no Dharma do Sexto Patriarca chinês
大 鑑 慧 能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian Huineng) e
descendente direto de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI (em chinês,
Quingyuan Xingsi), considerado o Sétimo Patriarca. Entre os

54
numerosos discípulos do Sexto Patriarca, os mais destacados
foram 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ.
Mais tarde, o mestre 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI continuou a
linhagem de 青原 SEIGEN como escola 曹洞 SŌTŌ e o mestre
臨濟 義玄 RINZAI GIGEN (em chinês, Linji Yixuan), continuou a
linhagem de 南 嶽 NANGAKU como escola 臨 濟 RINZAI. As
escolas 曹洞 SŌTŌ e 臨濟 RINZAI acabaram sendo as escolas
mais influente do 禅 ZEN.
As formas de agir de 青原 SEIGEN e de 石頭 SEKITŌ foram
mais suaves que a de 南嶽 NANGAKU. No Japão a chamamos
de forma de atuar própria do irmão maior. A de 南嶽 NANGAKU é
mais parecida com a forma de agir do segundo ou terceiro filho,
que podem ser mais travessos. O irmão maior talvez não seja tão
hábil ou brilhante, mas é muito doce. Ao falar das escolas,
曹洞 SŌTŌ ou 臨濟 RINZAI, consideramos-nas deste modo. Às
vezes, o 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN é denominado NENMITSU NO
KAFU, “um estilo muito cuidadoso e de consideração”. O método
de 青原 SEIGEN consiste em encontrar tudo quanto existe no
interior de alguém. Em realizar a grande mente que tudo inclui e
praticar de acordo com tudo isso.
Nosso esforço no 禅 ZEN se baseia em observar tudo tal
qual é. E, sem embargo, ainda que digamos que devemos fazê-lo,
não significa forçosamente que observemos tudo tal como é.
Dizemos “Aqui está meu amigo, ali está a montanha e no alto do
céu, a lua”. Mas seu amigo não é apenas seu amigo, a montanha
não é só a montanha e a lua não é só a lua. Se pensarmos “eu
estou aqui e a montanha esta ali”, estamos observando as coisas
de uma maneira dualista. Para ir a São Francisco temos que
cruzar as montanhas de Tassajara. Assim é como normalmente
compreendemos. Mas no Budismo as coisas não são observadas
assim, pois encontramos a montanha, a lua, nosso amigo ou São
Francisco em nosso interior. Aqui mesmo. Esta é a grande mente
que tudo contém.

55
Analisemos agora o título 參 同 会 SANDŌKAI. 參 SAN
significa literalmente “três”, mas aqui quer dizer “fenômenos”.
同 DŌ é a identidade. Identificar uma coisa com outra é 同 DŌ.
Também se refere à unidade, ou a “um único Ser”, que aqui
significa “mente maravilhosa” ou “grande mente”. Ou seja, que se
interpreta que há um único Ser que inclui tudo e que a
multiplicidade de fenômenos está incluída nele. Ainda que
digamos “muitos seres”, estes são na realidade as numerosas
partes que compõe este único Ser que tudo inclui. Se dizemos
“muitos”, são muitos, e se dizemos “um”, é um. “Muitos” e “um”
são duas formas distintas de descrever o único Ser. 会 KAI
significa “dar a mão”. Uma sensação de amizade. Sentir que dois
amigos são uma só pessoa. Do mesmo modo, este único e
grande Ser e a multiplicidade de fenômenos são bons amigos,
porque originalmente são um só. 会 KAI é como dar a mão a
alguém, como dizer “Ola! Como Vai?” O título do poema significa
isto. O que é muitos? O que é um? E o que é a unidade do
múltiplo e do um.
Originalmente, 參同会 SANDŌKAI foi o título de um livro
taoista. 石頭 SEKITŌ pôs o mesmo título em seu poema, que
descreve o ensinamento de Buddha. Que diferença há entre os
ensinamentos taoistas e os ensinamentos budistas? Ambos
guardam muitas similitudes. Quando um budista os lê, é um texto
budista, e quando um taoista os lê, é um texto taoista. Mas na
realidade são o mesmo. Quando um budista come uma verdura,
é uma comida budista e quando um vegetariano come a mesma
classe de verdura, é uma comida vegetariana. Mas a verdura
continua sendo apenas comida.
Em nossa qualidade de budistas, não comemos uma
determinada verdura por que ela tenha alguma propriedade
nutritiva especial nem a escolhemos porque seja 陰 yin ou
陽 yang, ácida ou alcalina, mas pelo fato de que comer é
simplesmente nossa prática. Não comemos apenas para subsistir.
Como dizemos na invocação que entoamos antes das refeições:

56
“Tomamos esta comida para praticar a Via”. Assim é como
incluímos a grande mente em nossa prática. Temos que tratar as
coisas como uma parte de nós que está contida em nossa prática
e na grande mente. A pequena mente é a mente limitada pelos
desejos ou coberta por alguma determinada emoção ou pela
diferenciação entre o bem e o mal. Para a maioria, ainda que
acreditemos estar observando “as coisas tal como é” na realidade
não é assim. Por que? Por culpa de nossas diferenciações, de
nossos desejos. A senda budista consiste em tentar se
desprender desta classe de diferenciação emocional do bem e do
mal, de nossos preconceitos, e em ver “as coisas tal como é”.
Quando digo “ver as coisas tal como é”, quero dizer que
temos de praticar com empenho com nossos desejos, não para
nos libertarmos deles, mas para podermos reconhecê-los. Se
temos um computador devemos introduzir nele todas as
informações: esta quantidade de desejos, esta quantidade de
alimentos, esta classe de cores, esta quantidade de peso. Para
vermos “as coisas tal como é” temos que incluir, entre muitas
outras coisas, nossos próprios desejos. Nem sempre refletimos
sobre eles, quanto menos nos detemos para refletir sobre nossos
juízos de valor egoístas. Dizemos: “Ele é bom” ou “Ele é mau”.
Mesmo que eu considere que esta pessoa é má, não significa
que esta pessoa tenha que ser sempre má. Para outra pessoa
talvez seja uma boa pessoa. Ao refletir deste modo podemos ver
“as coisas tal como é”. A mente de Buddha é isto.
O poema se inicia com 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN
NO SHIN, que significa “A mente do grande sábio da Índia”.
Trata-se da grande mente de Buddha que tudo inclui. A mente
que se manifesta em nós quando praticamos 座禅 ZAZEN é a
grande mente: naquele momento não tentamos perceber nada,
detemos qualquer pensamento conceitual, detemos a atividade
emocional e nos limitamos a sentar-se em 座禅 ZAZEN. Aconteça
o que acontecer, não nos afeta. Simplesmente nos sentamos em
座禅 ZAZEN. É como algo que acontece no grande céu. Seja

57
qual for a classe de ave que voe por ele, o céu não se importa.
Esta é a mente que Buddha nos transmitiu.
Enquanto estamos sentados em 座禅 ZAZEN podem ocorrer
muitas coisas. Talvez possamos ouvir o murmúrio de um córrego.
Talvez pensemos em algo, mas para nossa mente não importa.
Nossa grande mente limita-se a permanecer sentada. Ainda que
não sejamos conscientes de ver, ouvir ou pensar algo, na nossa
grande mente está sucedendo algo. Observamos as coisas. Sem
dizer isso é “bom” ou isto é “mau” permanecemos sentados, sem
mais. Desfrutamos das coisas mas sem nos apegarmos a
nenhuma delas em especial. Naquele momento simplesmente as
apreciamos por completo, isso é tudo. Depois de fazer
座禅 ZAZEN dizemos: “Oh! Bom dia!” Desta forma as coisas irão
nos ocorrendo, uma após a outra, e poderemos apreciá-las por
completo. Esta é a mente que Buddha nos transmitiu. E esta é a
forma de praticar 座禅 ZAZEN.
Se vocês praticarem 座禅 ZAZEN deste modo, não tenderão
tanto a ter algum problema quando vivenciarem algum
acontecimento. Compreenderam? Na melhor das hipóteses terão
uma experiência especial e pensarão: “É isso, assim é como
deve ser!”, mas se alguém se opõe a vocês, vão se enraivecer e
pensar: “Não, não é assim, tem que ser dessa outra maneira, um
centro 禅 ZEN tem que ser desta maneira!”. Talvez vocês tenham
razão. Mas nem sempre é assim. Se os tempos mudam e
perdemos Tassajara e nos mudamos para outra montanha, ali
não poderemos seguir agindo da mesma forma que estamos
fazendo aqui. De modo que, sem nos apegarmos a qualquer
forma de agir em especial, abrimos nossa mente para observar
as coisas “tal como é”, e aceitá-las. Sem esta base, quando
vocês disserem “Esta é a montanha”, ou “Este é meu amigo”,
“Esta é a lua”, a montanha não será montanha, meu amigo não
será meu amigo e a lua não será a lua. Esta é a diferença entre
apegar-se a algo e a Via de Buddha.
A Via de Buddha consiste em estudar e compreender a
natureza humana, o que inclui ver o quão estúpidos somos, que
58
classes de desejos temos e nossas preferências e inclinações.
Sem me apegar a nada, eu tento recordar que hei de aplicar em
minha vida a expressão “sou propenso”, já que todos somos
propensos ou nos sentimos inclinados a fazer algo. Este é o meu
lema.
Quando estava preparando esta preleção, alguém me
perguntou: “O que é a integridade e como posso obtê-la?” A
integridade não é algo que vocês podem sentir que têm. Quando
pensam “Sou integro”, deixam de sê-lo. Mas quando vocês são
simplesmente vocês mesmos, sem pensar ou tentar dizer algo
em especial, e dizem simplesmente o que pensam e como se
sentem, então têm naturalmente integridade. Quando me
relaciono estreitamente com vocês e com tudo, sou uma parte de
um grande e único Ser. Sem embargo, quando sinto algo, sou
parte dele, mas não por completo. Quando vocês fazem algo sem
pensar que fizeram algo, então estão sendo vocês mesmos.
Estão com todos os demais por completo, sem parar para pensar
nisso. Isso é ser integro.
Quando pensarem que são alguém, deverão praticar
座禅 ZAZEN com mais afinco. Como vocês já sabem, é difícil
sentar em 座禅 ZAZEN sem pensar ou sentir. Quando vocês não
pensam nem sentem algo, normalmente é porque acabaram
dormindo. Mas nossa prática consiste em ser um só, sem
adormecer ou pensar. Quando vocês conseguirem fazê-lo, serão
capazes de falar sem pensar demasiado e sem perseguir
nenhum propósito em especial. Quando falarem ou agirem será
simplesmente para se expressarem. Isto é ser totalmente íntegro.
Praticar 座 禅 ZAZEN é alcançar esta classe de integridade.
Vocês deverão ser rigorosos consigo mesmos e em especial com
suas inclinações. Mas se enquanto fazemos 座 禅 ZAZEN
tentamos nos livrar delas, ou tentamos não pensar ou não ouvir o
murmúrio do córrego, será impossível. Deixem que seus ouvidos
ouçam sem tentar ouvir. Deixem que sua mente pense sem tentar
pensar nem não pensar. A prática consiste nisto.

59
E a cada vez vocês irão adquirindo mais este ritmo ou esta
força interior que constitui o poder da prática. Se vocês
praticarem com empenho serão como uma criança. Enquanto
estávamos falando sobre a integridade, um pássaro cantava lá
fora. Pip, pip, pip, pip. Isto é a integridade. Pip, pip, pip. Não
significa qualquer coisa. Ou melhor, só estava cantando. Talvez o
fizesse sem tentar pensar que estava simplesmente cantando,
pip, pip, pip. Ao ouvi-lo, não podemos evitar de sorrir. Não
podemos dizer que não é nada mais que um pássaro, já que
controla a montanha inteira, o mundo inteiro. Isto é a integridade.
Para poder realizar esta prática cotidiana, estudamos com
afinco. Quando alcançamos este lugar, já não necessitamos dizer
“um único ser” ou “um pássaro” ou “muitos fenômenos que estão
contidos em um único ser”. Poderia ser apenas um pássaro, uma
montanha ou o 參同会 SANDŌKAI. Se vocês compreenderem
isso, não há necessidade de recitar o 參同会 SANDŌKAI. Ainda
que o recitemos nesta forma sino-japonesa, não é uma questão
de que seja chinês ou japonês, mas que não é mais que um
poema, ou um pássaro, e esta preleção que vocês estão ouvindo
não é nada mais que uma preleção. Não significa grande coisa.
Em nossa tradição dizemos que o 禅 ZEN não é algo que se
possa falar, mas aquilo que cada um experimenta no verdadeiro
sentido da palavra. Sei que é difícil. Mas de todo modo vivemos
em um mundo difícil, ou seja, não se preocupem. Onde quer que
vocês forem encontrarão problemas. Deverão enfrentá-los.
Talvez seja muito melhor ter este tipo de problemas relacionados
com a prática do que outra classe de problemas, aqueles que nos
enredam.

60
DIÁLOGO
ESTUDANTE: Outro dia, enquanto golpeava o
19
木魚 MOKUGYO , uma aranha se encarapitou nele. Nada pude
fazer para evitá-lo. Enquanto tangia o 木魚 MOKUGYO tentei
afugentá-la, mas ela foi diretamente para onde a baqueta o
percutia. Não pôde escapar de sua poderosa vibração.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não a matou.

ESTUDANTE: Mas algo a matou! [risos]

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Foi um acidente. Ocorreu deste


modo.

ESTUDANTE: Sim. Mas não pude me deter.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Foi inevitável. Buddha a


matou! [mais risos]. Pode ser que agora a aranha esteja muito
feliz.
Viver neste mundo não é fácil. Quando vemos algumas
crianças brincando junto a um rio ou sobre uma ponte, pode ser
que nos preocupemos de verdade e que pensemos: “Os
automóveis estão passando, zás, zás, zás, pela estrada ao lado.
E se houver um acidente?” Se algo ocorre, simplesmente ocorre.
Se nos imobilizarmos e nos pusermos a pensar nisso, ficaremos
aterrorizados em face das coisas que podem chegar a acontecer.
Já ouviram falar do ancião de 165 anos que tem no total mais de

19
木魚 MOKUGYO : tambor de madeira que se tange com uma
baqueta cuja extremidade é almofadada e é utilizado para
acompanhar com seu ritmo a recitação dos Sūtras.

61
duzentos filhos, netos e bisnetos? Se pensasse no que pudesse
acontecer com cada um deles, viveria aterrorizado com medo de
perder algum deles.
Nossa prática pode ser uma prática muito rigorosa.
Devemos estar preparados, caso acidentalmente causemos a
morte de algum ser, mesmo sendo budistas. Sendo bom ou mau,
algumas vezes acontecerá. É impossível sobreviver sem matar
nenhum ser. Não podemos viver somente de nossos sentimentos.
Nossa prática é muito mais profunda que isso. Este é o aspecto
rigoroso de nossa prática. Por outro lado, no caso que seja
absolutamente necessário, você deverá deixar de tanger o
木魚 MOKUGYO, mesmo provocando uma grande confusão, o
que também não é nada fácil.

ESTUDANTE: Poderia nos explicar com mais detalhe ao que


se refere ao dizer “uma prática rigorosa”?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Uma prática rigorosa? As coisas


já estão acontecendo de uma forma muito rigorosa. Sem
nenhuma exceção. Onde quer que exista algo, estará sendo
governado por alguma regra ou verdade que sempre o estará
controlando de uma forma rigorosa, sem exceção. Acreditamos
que desejamos ardentemente a liberdade, mas a liberdade é uma
regra rigorosa. Na regra rigorosa há uma absoluta liberdade. A
liberdade e a regra rigorosa não são duas coisas distintas. No
fundo são as regras rigorosas ou as verdades que nos sustentam.
Este é o outro aspecto de uma absoluta liberdade.

ESTUDANTE: poderia dar mais exemplos que sejam


aplicáveis à nossa vida?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: quando se levantarem pela


manhã, levantem-se sem delongas. Quando todo mundo estiver
dormindo, durmam. Este é o meu exemplo.

62
ESTUDANTE: ao exercer um cargo de responsabilidade,
para mim é muito mais fácil ser rigoroso, porque minha posição o
facilita. Outras pessoas têm, ao contrário, distintas
responsabilidades. Algumas vezes, como tendo a ser rigoroso,
temos nossas pequenas diferenças e, outras vezes, opino que
tudo bem que pensem de uma forma distinta da minha. Minha
atitude é correta?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Às vezes você tem que


fazer vista grossa [risos]. Em algumas ocasiões é melhor não ver
algo, já que se for visto, algo deverá ser dito, ou seja, talvez
resulte útil praticar sem olhar ao redor. Na realidade, é a melhor
forma de fazê-lo, já que se você olhar ao redor, verá apenas as
pessoas que estão deste lado do 禅堂 ZENDŌ, mas as que estão
no outro lado estarão dormindo. Assim, é melhor nada ver! [risos].
Não sabendo o que você está fazendo, pensarão: “Como não sei
se ele está dormindo ou não, vou ficar é bem acordado”. Se você
vê algo, não verá o resto. Mas se nada ver, nada ignorará. Esta é
a grande mente que tudo inclui. Se alguém então se move, você
vai se precaver disso. Mesmo que não queira ouvi-lo, se surge
algum som você vai captá-lo. Se centrar sua atenção em uma
pessoa só, o resto se sentirá muito feliz [risos]. Mas se não
centrar a atenção em alguém em particular, então ninguém
poderá se mover.

63
SEGUNDA PRELEÇÃO

DE UMA MÃO CÁLIDA


PARA OUTRA

64
65
竺土大仙心
竺土大仙の心、
CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

A mente do grande sábio da Índia,

東西密相付
東西密に相附す。
TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.

é transmitida intimamente de Oeste a Leste.

人根有利鈍
人根に利鈍あり、
NIN KON NI RIDON ARI,

Apesar de que as faculdades humanas


possam ser inteligentes ou tolas,
66
道無南北祖
道に南北のなし、
DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI,

na Via não há
Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.

Na minha primeira preleção expliquei o significado do título


參 同 会 SANDŌKAI e a primeira frase que reza:
竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, “A mente do grande
sábio da Índia, 東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.
[é intimamente transmitida de Oeste a Leste.]20” Hoje gostaria de
explicar a origem deste poema e porque 石頭 SEKITŌ MUSAI
DAISHIN, o Oitavo Patriarca da China escreveu-o. Quando
大 満 弘 忍 DAIMAN KŌNIN, o Quinto Patriarca anunciou que
pretendia transmitir o Dharma a alguém, todos os monges
acreditavam que 神秀 JINSHŪ seria o escolhido. 神秀 JINSHŪ
era um grande letrado que mais tarde iria para o norte da China e
se converteria num grande mestre. Mas quem na realidade
recebeu a transmissão e se converteu no Sexto Patriarca foi
慧能 ENŌ, um ajudante de cozinha que se dedicava a moer arroz
num canto do templo. A escola de 神秀 JINSHŪ se chamou
北 禅 HOKU ZEN, ou 禅 ZEN do Norte e a escola de 慧能 ENŌ se
difundiu pelo sul e se chamou 南 禅 NAN ZEN ou 禅 ZEN do Sul.
Mais tarde, depois da morte de 神秀 JINSHŪ, o 禅 ZEN do Norte

20
A oração entre colchetes não consta no original. (N.T.)
67
entrou em decadência e, ao contrário, o 禅 ZEN do Sul foi se
tornando mais forte. Mas no tempo de 石頭 SEKITŌ, a escola
禅 ZEN do Norte era ainda poderosa.
慧 能 ENŌ, o Sexto Patriarca, teve muitos discípulos.
Sabemos com certeza que contou com pelo menos cinqüenta,
mas ele deve ter tido ainda mais. O mais jovem era
荷 澤 神 會 KATAKU JINNE (em chinês, Heze Shenhui), uma
pessoa muito vigilante e ativa que contestou o 禅 ZEN de
神 秀 JINSHŪ. Nós não podemos aceitar por completo seus
ensinamentos. Se estudarmos o Sūtra da Plataforma do Sexto
Patriarca 21 , verificamos que nele os ensinamentos de
神秀 JINSHŪ são duramente contestados. Pode ser que o Sūtra
tenha sido compilado por alguém que estivesse sob a influência
de 荷澤 神會 KATAKU JINNE. De qualquer forma, existia um
conflito entre o 禅 Zen do Sul de 慧能 ENŌ e o 禅 Zen do Norte
de 神秀 JINSHŪ. 石頭 SEKITŌ desejava esclarecer esta disputa
a partir de seu ponto de vista. Por isso escreveu o
參同会 SANDŌKAI.
O poema inicia com 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO
SHIN, “A mente do grande sábio da Índia”,
東西密に相附す 。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “é transmitida
intimamente de Oeste a Leste”. O entendimento de 石頭 SEKITŌ
era que o verdadeiro ensinamento do grande sábio Shākyamuni
Buddha, inclui tanto a Escola do Sul como a Escola do Norte,
sem cair em qualquer contradição. Ainda que os ensinamentos
do grande sábio não sejam compreendidos por completo,
continuam chegando a todas as partes. Se temos olhos para ver
ou uma mente para entender os ensinamentos, veremos que não
é necessário tomar partido nesta disputa. Mas como alguns
descendentes de 慧 能 ENŌ e de 神 秀 JINSHŪ não
compreendiam de todo os ensinamentos, enredaram-se numa

21
Em japonês, 六祖 壇經 ROKUSO DANKYŌ. (N.T.)
68
disputa. Mas, desde o ponto de vista de 石頭 SEKITŌ, esta
discussão não era necessária.
東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “É transmitida
intimamente de Oeste para Leste”. 密 に MITSUNI significa
literalmente, “com exatidão, sem que exista o menor espaço entre
os dois”. O principal objetivo do 參同会 SANDŌKAI é explicar a
realidade a partir dos dois lados. Como já disse, 參 SAN significa
“muitos” e 同 DŌ, “Um”. O que é muitos? O que é um? O múltiplo
é um e o um é múltiplo. Ainda que possamos dizer “muitos”, os
numerosos fenômenos não existem separados uns dos outros.
Estão intimamente relacionados. Até o ponto em que são um só.
Mas ainda que sejam um, aparecem, manifestam-se como muitos.
De forma que dizer “muitos” é correto e dizer “um” também é.
Ainda que digamos “um”, não podemos ignorar os diversos
fenômenos, como são as estrelas e as luas, os animais e os
peixes. Deste ponto de vista dizemos que são interdependentes.
Quando analisamos o significado de cada ser, pode ser que
tenhamos “muitas” entidades para falar a respeito. Mas ao
deduzir que a realidade é de fato a unidade, toda a discussão
terá lugar a partir desta compreensão da singularidade existente
entre a multiplicidade e a unidade.
Outra forma de explicar a realidade é por meio da
diferenciação. A diferenciação é igualdade, e as coisas têm o
mesmo valor porque são diferentes. Se os homens e as mulheres
fossem a mesma coisa, as diferenças que existem entre eles não
teriam qualquer valor. Mas como os homens e as mulheres são
diferentes, os homens são valiosos como homens e as mulheres
são valiosas como mulheres. Ser diferente é ter um valor. Neste
sentido todas as coisas têm o mesmo valor absoluto. Cada um
tem um valor absoluto e portanto é idêntico ao resto.
Normalmente somos regidos por modelos valorativos: um valor
de troca, um valor material, um valor espiritual e um valor moral.
Como somos guiados por certos modelos, podemos dizer “ele é
bom“ ou “ele não é bom”. O modelo moral pelo qual nos regemos

69
define o valor de uma pessoa. Mas este modelo moral está
sempre mudando, já que uma pessoa virtuosa nem sempre é
virtuosa. Se a compararmos com alguém como Buddha, não é
tão boa. O bem e o mal nascem de algum modelo valorativo. Mas
como cada coisa é distinta, cada uma tem seu próprio valor e
esse valor é absoluto. A montanha não é mais valiosa pelo fato
de ter uma grande altura e o rio não é menos valioso pelo fato de
ter pouca altura. Por outro lado, como uma montanha é alta, é
uma montanha e tem um valor absoluto, e como a água escorre a
pouca altura pelo vale, a água é água e tem um valor absoluto. A
qualidade da montanha e a do rio são totalmente distintas, mas
como são distintas têm o mesmo valor, e ter o mesmo valor
significa um valor absoluto.
Segundo o Budismo a igualdade é diferença e a diferença é
igualdade. Normalmente se considera que a diferença é o oposto
da igualdade, mas no Budismo se considera que são a mesma
coisa. A multiplicidade e unidade são o mesmo. Se apenas
vemos desde o ponto de vista que afirma que a unidade é distinta
da multiplicidade, teremos uma compreensão demasiado
materialista e superficial.
A linha seguinte diz “Apesar de que as faculdades humanas
possam ser inteligentes ou tolas”. Resulta difícil traduzir esta
passagem. Ela se refere à disputa que existia entre a Escola do
Norte e a Escola do Sul. Aquele que é inteligente nem sempre
tem uma vantagem para estudar ou aceitar o Budismo, e nem
sempre é a pessoa tola a que tem dificuldades. Uma pessoa tola
é boa porque é tola e uma inteligente é boa porque é inteligente.
Ainda que as comparemos, não podemos dizer qual delas é a
melhor.
Pessoalmente, não sou uma pessoa muito perspicaz, por
isso entendo esta parte muito bem. Meu mestre [GYOKUJUN
SO-ON] sempre se dirigia a mim me chamando de “pepino
torcido”. Eu era seu último discípulo, mas acabei por me
converter no primeiro porque todos os pepinos bons acabaram
fugindo. Talvez fossem espertos demais. De todo modo, como eu

70
não era tão inteligente a ponto de escapar, acabei aprisionado.
Minha lerdeza acabou sendo uma vantagem ao estudar o
Budismo. Quando todos os demais se foram e eu fiquei sozinho
com meu mestre, me senti muito triste. Se tivesse sido inteligente
como meus companheiros, também teria fugido. Mas eu havia
saído de casa por vontade própria. Meus pais haviam-me dito:
“Você é jovem demais. Deveria ficar conosco”. Mas eu tinha de ir.
Depois de abandonar meus pais senti que não poderia regressar
para casa. Poderia tê-lo feito, mas acreditava que não era
possível. Ou seja, acreditava que não tinha para onde ir. Esta foi
uma das razões pelas quais não fugi. Outra foi porque não era
inteligente o bastante. Ser inteligente nem sempre se constitui
numa vantagem e uma pessoa parva é boa porque é parva.
Assim é como nós o entendemos.
Na realidade não existe uma pessoa parva ou uma pessoa
inteligente. A vida não é fácil para nenhuma delas. Tanto o
inteligente quanto o parvo terão dificuldades. Por exemplo, uma
pessoa que não seja demasiado esperta deverá estudar com
empenho e ler um livro várias vezes. E uma pessoa inteligente se
esquecerá das coisas com muita facilidade. Talvez aprenda
rapidamente, mas pode ser que esqueça rapidamente o que
aprendeu. Uma pessoa parva, ao contrario, demorará mais tempo
para memorizar algo, mas se lê uma coisa uma e outra vez e
consegue memorizá-la, não a esquecerá tão cedo. Uma pessoa
inteligente não se diferencia demasiado de uma que seja parva.
人根に利鈍あり、NIN KON NI RIDON ARI, “Apesar de que
as faculdades humanas possam ser inteligentes ou tolas”. No
參同会 SANDŌKAI esta questão não é tão importante, mas é
interessante compreender o que o Budismo entende por potencial
humano, para explicar com mais profundidade como a prática é
compreendida e porque é necessário praticar 座 禅 ZAZEN.
人 NIN significa “humano” e 根 KON, “raiz” ou “potencial”, de
modo que 人根 NINKON significa “potencial humano”. 利 RI neste
contexto significa “alguém que tem uma vantagem” e 鈍 DON,

71
“alguém que tem uma desvantagem”. A raiz do potencial humano
constitui, então, nossa vantagem e ao mesmo tempo, nossa
desvantagem.
A capacidade da mente humana tem três aspectos: o
potencial, a inter-relação e o uso adequado. Todos temos o
potencial de ser um Buddha. Como o arco e a flecha têm um
potencial, se ele não for utilizado, a flecha não voará. Cada um
de nós está preparado para ser um Buddha, mas se vocês não
praticarem 座禅 ZAZEN ou se Buddha não os ajuda, não poderão
sê-lo apesar que sejam dotados do potencial para tanto.
O potencial tem dois significados. Um é o de “possibilidade”.
Do ponto de vista de nossa natureza, temos a possibilidade de
sermos Buddhas. Mas, por outro lado, se me analisarem com
relação ao tempo, ainda que eu tenha o potencial para ser um
Buddha, se alguém não me ajudar não poderei sê-lo. Do ponto de
vista do tempo o potencial significa algo como “uma futura
possibilidade”. Este é o outro significado de potencial.
Quando consideramos o potencial com relação à nossa
natureza, temos que ser muito bondosos e generosos com todo o
mundo porque todos temos de forma inata a possibilidade de
sermos um Budha. Mas quando consideramos com relação
a ”quando”, temos que ser muito rigorosos com nós mesmos.
Compreendem? Por que se desperdiçarem este momento, se
não se esforçarem esta semana ou este ano, se sempre
disserem ”vou fazê-lo amanhã, amanhã, amanhã”, perderão a
oportunidade de obter a Iluminação, ainda que tenham esta
possibilidade.
Com sua prática ocorre o mesmo. Quando vocês não levam
em conta o tempo, podem ser muito generosos com todo o
mundo e tratar todos muito bem. Mas se pensam no tempo - em
hoje ou amanhã - não poderão ser tão generosos porque
estariam perdendo tempo. Dessa forma dizemos “você faz isto
que eu faço aquilo” e “ajude esta pessoa que eu ajudarei aquela
outra”. Temos que ser muito rigorosos com nós mesmos. Por isso
起 KI, o potencial, é interpretado como uma “possibilidade” e

72
como uma “futura possibilidade”. Ao entender o potencial deste
modo, vocês poderão trabalhar e praticar muito bem, às vezes
com grande generosidade e outras, com grande rigor. Nossa
prática e nossa compreensão da palavra 起 KI deve levar em
conta estes dois aspectos. Este é o primeiro significado de 起 KI:
o de potencial.
起 KI também significa “inter-relação”, aqui se referindo a
inter-relação existente entre um Buddha e uma pessoa boa por
natureza, e entre um Buddha e uma pessoa má por natureza.
Sinto ter que dizer “má por natureza”, mas utilizarei estas
palavras provisoriamente. Temos que estimular as pessoas boas
por natureza, oferecendo-lhes a alegria que nos proporciona a
prática. E quando praticamos com alguém que não parece ser tão
bom assim, devemos sofrer com essa pessoa. Assim é como o
Budismo enxerga este problema. 起 KI significa às vezes “a inter-
relação que existe entre o que ajuda e o que é ajudado”. Também
se denomina 慈悲 JIHI. 慈 JI significa aqui estimular alguém.
悲 HI, dar felicidade. 慈悲 JIHI pode ser traduzido como “amor”. O
amor tem dois aspectos: um é o de produzir alegria,
与 楽 YORAKU, e o outro, é o de diminuir o sofrimento,
抜 苦 BAKKU. 22 Para diminuir o sofrimento de uma pessoa,
sofremos com ela, compartilhamos seu sofrimento. Isto é amor.
Se uma pessoa é muito boa, podemos compartilhar com ela
a alegria que a prática nos proporciona oferecendo-lhe um bom

22
Em japonês, 抜 苦 与 楽 BAKKU-YORAKU, significa “remover o
sofrimento e proporcionar alegria e paz”. É a prática da compaixão,
慈 悲 JIHI. A compaixão é interpretada como abarcar duas ações
misericordiosas: salvar os outros seres de seus sofrimentos e
proporcionar-lhes paz e deleite. Com esta intenção o Budismo encoraja
seus seguidores a resgatar outros seres do sofrimento e a dar-lhes paz e
alegria. (N.T.)

73
坐蒲 ZAFU para fazer 座禅 ZAZEN, um bom 禅堂 ZENDŌ ou algo
parecido. Mas, ao contrário, para uma pessoa que esta sofrendo
demasiado um 禅堂 ZENDŌ não significa grande coisa e talvez
não queira aceitar qualquer coisa que lha ofereçamos, seja o que
for. Ou melhor, ela acaba nos dizendo “Não preciso disso! Estou
sofrendo demais. Não sei por quê. Para mim, o mais importante
agora é deixar de sofrer. E nem você nem nada podem me
ajudar.” Ao ouvi-la temos que ser como o Bodhisattva
Avalokiteshvara, temos que nos converter na pessoa que está
sofrendo e sofrer como ela. Por causa de nosso amor inato, de
nosso amor instintivo, compartilhamos seu sofrimento. Isso é
amor no verdadeiro sentido da palavra. 起 KI não só significa
“potencial” ou “possibilidade”, mas também “inter-relação”.
O terceiro significado de 起 KI é o de “meios hábeis” ou “uso
adequado”, é como encontrar uma tampa justa para uma panela.
A banheira tradicional japonesa é de madeira e depois de nos
banharmos nela colocamos uma grande tampa que também é de
madeira. Mas esta tampa não serve para uma panela. É muito
grande. A panela deve ter sua própria tampa. Neste sentido, 起 KI
significa “uso adequado”. Quando vemos que alguém sofre por
culpa da ignorância, como esta pessoa não sabe o que está
fazendo, choramos e sofremos junto. Mas quando vemos que
alguém goza de sua verdadeira natureza, compartilhamos de sua
alegria e a motivamos. Isso é manter uma relação boa e
adequada.
Na linha seguinte o poema diz: 道に南北のなし、DŌ NI
NAN BOKU NO SO NASHI, “Na Via não há Patriarcas do Norte
nem Patriarcas do Sul.” Isso é bem verdade. Os ensinamentos de
神秀 JINSHŪ são corretos e os de 慧能 ENŌ, o Sexto Patriarca,
também são. O método de 神秀 JINSHŪ é bom para alguém que
estude as coisas com lentidão e deliberação, e o método do
Sexto Patriarca é bom para uma pessoa de mente rápida e aguda.
Um mestre pode ser que explique os ensinamentos de Buddha
em detalhe, para que o estudante os compreenda palavra por
74
palavra, mas outro estudante talvez não necessite tantas
palavras para compreendê-los. Depende da pessoa. Um grande
mestre pode ter uma forma única de explicar os ensinamentos.
Mas na verdadeira compreensão não há qualquer diferença.
As pessoas se confundem na sua forma de avaliar as coisas
ao diferenciar o tolo do inteligente, mas do ponto de vista dos
Patriarcas, o tolo e o inteligente são a mesma coisa. Todos os
Patriarcas coincidem neste ponto. De forma que não há
Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul. Assim é o
entendimento de 石頭 SEKITŌ.
A propósito, 石頭 SEKITŌ foi na realidade um discípulo do
Sexto Patriarca, mas depois que este faleceu, foi discípulo de
青原 SEIGEN, o Sétimo Patriarca. Este tipo de coisa acontecia
freqüentemente. Nesta sala estão alguns discípulos meus, mas
se eu morresse, os que não puderam terminar seus estudos
como meus discípulos se converteriam em discípulos de meus
discípulos. Estudar o Budismo não é como estudar qualquer outra
coisa. Pode ser que vocês tenham que deixar passar muito
tempo antes de aceitar os ensinamentos por completo. O mais
importante não é seu mestre, mas vocês mesmos. Quando vocês
estudam com empenho o que recebem de seu mestre é o espírito
do estudo. Este espírito irá se transmitindo de uma mão morna
para outra. Só vocês poderão fazê-lo! Isso é tudo. Não há nada
que eu possa transmitir a vocês. E o que aprenderem pode ser
que provenha de livros ou de outros mestres, por isso temos
outros mestre além do nosso. Alguns de vocês são meus
discípulos. Os discípulos de um mestre chamamos de
弟子 DESHI. E os que não são meus discípulos recebem o nome
de 随身 ZUISHIN. Um 随身 ZUISHIN é um seguidor. Talvez até
possamos focar muito tempo com outro mestre, às vezes mais
tempo do que passamos com nosso próprio mestre. Quando eu
tinha trinta e dois anos meu mestre faleceu, e decidi estudar com
KISHIZAWA RŌSHI e a maior parte de meu jeito de compreender
as coisas devo a ele. Mas meu mestre era GYOKUJUN SO-ON.

75
De toda forma, na Via não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas
do Sul. Só há uma Via autêntica.
Praticar não consiste em reunir coisas e metê-las numa
cesta, mas encontrar algo que estava escondido em sua
manga.23 O único que há é que antes de estudar com empenho
vocês ignoravam o que havia nela. “Eu e Buddha temos a mesma
natureza. Oh! É assombroso!” este é o espírito que deve animá-
los. Apesar do que eu diga, vocês deverão estudar com empenho.
E se não gostarem do que eu digo, não o aceitem. Se disserem
“Não!”, eu responderei “Está bem, mas siga adiante e se esforce
ainda mais!” Eu creio que esta é uma das características do
Budismo. Sua visão é muito ampla e na vossa condição de
budistas vocês gozam de uma enorme liberdade em relação a
vosso estudo. O que quer que digam, está bem. Ou seja, Não há
Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.

DIÁLOGO
ESTUDANTE: RŌSHI, poderíamos trabalhar apenas com o
poema em japonês e esquecermos a versão em inglês?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Estou tentando ao máximo


seguir a ordem dos caracteres. Caso traduzamos o poema em
inglês fluido, talvez resulte difícil explicá-lo. O poema original está
cheio de termos técnicos que não podem ser trocados. Se
tentarmos trocá-los, perderemos parte do significado e o poema
ficará sem sentido. Como desejo que vocês o compreendam por
completo, quero que sigam o texto original fielmente, ainda que
isto seja difícil.

23
Veja nota nº 30. (N.T.)
76
77
TERCEIRA PRELEÇÃO

BUDDHA SEMPRE ESTÁ


AQUI

78
79
霊源明皎潔
霊源明に皓潔たり、
REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI

A fonte espiritual brilha claramente na luz,

枝派暗流注
支派暗に流注す、
SHIHA NA NI RUCHŪ SU,

Os afluentes fluem na escuridão.

執事元是迷
事を執するも元これ迷い、
JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI,

80
Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão,

契理亦非悟
理に契うも亦悟にあらず、
RI NI KANAU MO MATA SATORI NI ARAZU,

Aceitar a identidade não é a Iluminação.

霊 源 明 に 皓 潔 た り 、 REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI,


“A fonte espiritual brilha claramente na luz”. A fonte é algo
maravilhoso, algo que não pode ser descrito nem expresso com
palavras. Buddha falou sobre a fonte do ensinamento, mais além
da diferenciação do correto e do incorreto, o que é muito
importante. Qualquer coisa que suas mente possam conceber,
não é a fonte. A fonte é algo que só um Buddha conhece. Vocês
só a terão quando praticarem 座禅 ZAZEN. Entretanto, mesmo
que praticarem ou não, mesmo que sejam conscientes disso ou
não, existe algo, inclusive antes que nos déssemos conta disso e
isso é a fonte. Não é algo que vocês possam degustar. A
verdadeira fonte não é deliciosa nem é insípida.
No último destes quatro versos, 石 頭 SEKITŌ diz:
理に契うも亦悟にあらず、RI NI KANA UMO MATA SATORI NI
ARAZU, “Aceitar a identidade não é a Iluminação”. Ou seja, que
reconhecer a verdade tampouco o é. Freqüentemente
acreditamos que a verdade é algo que podemos perceber ou
explicar. Mas no Budismo isso não é a verdade. A verdade está
mais além de nossa capacidade descritiva, mais além de nossa

81
capacidade mental. A verdade também pode significar a “fonte
maravilhosa”, maravilhosa e inefável. Esta é a fonte de todos os
seres.
A propósito, quando dizemos “seres”, esta palavra inclui
nossos pensamentos assim como as numerosas coisas que
vemos. Normalmente, quando dizemos “verdade” estamos nos
referindo a algum princípio subjacente, como a verdade que a
terra gira numa determinada direção. Mas no Budismo isso não é
uma verdade suprema, mas um “ser”, um ser contido na grande
mente. Qualquer coisa que exista em nossa mente – seja
importante ou desprezível, correta ou incorreta – é um ser. Se
vocês pensarem algo em termos de correto ou incorreto, poderão
dizer “isso é a verdade eterna”, mas no Budismo esta idéia de
uma verdade eterna é também um aspecto do ser porque só
existe em nossa mente.
Nós não diferenciamos muito as coisas que existem fora das
coisas que existem em nosso interior. Pode ser que vocês
afirmem que algo exista fora de vocês, talvez acreditem que é
assim, mas estão equivocados. Quando dizem : “Há um rio”, o rio
já estava em suas mentes. Uma pessoa pode dizer
precipitadamente: “O rio está ali!”, mas se refletir melhor sobre
isso descobrirá que o rio só se encontra em sua mente como uma
classe de pensamento. Tudo quanto existe fora de nós constitui-
se numa compreensão dualista, primitiva e estreita das coisas.
Os caracteres do primeiro verso, 霊源明に皓潔たり、REI
GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI, referem-se a 理 RI, a fonte inefável
dos ensinamentos. A verdadeira fonte, 理 RI, está mais além de
nossos pensamentos; é pura e imaculada. Quando vocês a
descrevem estão-na limitando. Ou seja, estão maculando a
verdade ou estão-na rotulando. No Sūtra do Coração da Grande

82
Sabedoria Completa 24 se lê: “Sem cor, sem som, sem aroma,
sem sabor, sem tato, sem objetos da mente”25, etc. isso é 理 RI.
O verso seguinte reza: 支 派 暗 に 流 注 す 、 SHIHA NA NI
RUCHŪ SU, “Os afluentes fluem na escuridão”. 支 派 SHIHA
significa afluentes. 石頭 SEKITŌ diz 支派 SHIHA por uma razão
poética, para embelezar estes dois versos do poema e para que
支派 SHIHA contraste com 霊源 REIGEN, “fonte”. 霊源 REIGEN
é uma palavra mais numênica26 e 支派 SHIHA é mais fenomênica.
Dizer “numênico” ou “fenomênico” não é de todo correto, mas
tenho de dizê-lo provisoriamente. Por isso é bom lembrar dos
termos mais técnicos, 理 RI e 事 JI. 事 JI, que aparece no
terceiro verso, refere-se aos fenômenos, a algo que se pode ver,
ouvir, cheirar ou saborear, [tatear]27, e também aos objetos da
mente ou as idéias. Qualquer coisa que possa entrar em nossa
consciência é 事 JI. E aquilo que está mais além de nossa
consciência – o númeno – é 理 RI.
Na escuridão os afluentes correm em todas as direções,
como a água. Ainda que não sejamos conscientes da água, a
água segue sendo água. A água se encontra em nosso corpo
físico e também nas plantas; por toda a parte há água. Do
mesmo modo, a fonte pura está em todos os lugares. Cada ser é
em si mesmo a fonte pura e a fonte pura nada é senão cada um
24
Em sânscrito, Mahā Prajñā Paramitā Hridaya Sūtra. Em japonês,
摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ.
(N.T.)

25
Em japonês, 無色声香味触法、MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ, “Sem
cor, som, cheiro, sabor, tato, fenômeno”. (N.T.)
26
Numênico refere-se a númeno, “essência” ou “a coisa em si” em
oposição ao “fenômeno ou às coisas tais como aparecem e são
conhecidas”. (N.T.)
27
A expressão entre colchetes não consta no original. (N.T.)
83
dos seres. Não são duas coisas distintas. Não há diferença
alguma entre 理 RI e 事 JI, a fonte pura e os afluentes. O
afluente é a fonte pura e a fonte pura é o afluente. A fonte pura
flui por toda parte ainda que o ignoremos. Este “ignorar” é o que
chamamos “escuridão” e é muito importante.
事を 執す るも 元こ れ迷い 、JI O SHŪ SURU MO MOTO
KORE MAYOI, “Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão”.
“Apegar-se aos fenômenos”, significa aferrar-se às numerosas
coisas que vemos. Ao compreender que cada ser é diferente,
vocês os vêem como algo especial e então passam a se aferrar a
algo. Mas mesmo que reconheçam a verdade que tudo é um,
isso não significa que seja a Iluminação. Pode ser que seja a
Iluminação, mas nem sempre é assim. Não é mais que uma
compreensão intelectual. Uma pessoa Iluminada não ignora as
coisas nem se apega a elas, nem sequer à verdade. Não há uma
verdade que seja distinta do que cada ser é. Cada ser é em si
mesmo a verdade. Talvez vocês acreditem que haja alguma
verdade que está controlando cada ser. Esta verdade, vocês
podem pensar, é como a verdade da gravidade. Se uma maçã
contém todos os seres, então por trás da maçã deve haver uma
verdade que atue sobre ela. Compreender as coisas deste modo
não é a Iluminação. Apegar-se aos seres, às idéias, inclusive aos
ensinamentos de Buddha dizendo: “Os ensinamentos de Buddha
são algo como isto”, é se apegar a 事 JI. Esta é a coluna
vertebral do 參同会 SANDŌKAI.
理に契うも亦悟にあらず、RI NI KANA UMO MATA SATORI
NI ARAZU, “Aceitar a identidade não é a Iluminação”. E
reconhecê-la, tampouco. Talvez seja melhor nada dizer. Se
traduzo 理 RI para o inglês, já é 事 JI. A Iluminação na realidade
não é algo que possamos experimentar. Está mais além de nossa
própria experiência. Se alguém diz: “Eu alcancei a Iluminação”,
esta se equivocando. Significa que está se apegando a alguma
explicação da Iluminação. É uma ilusão. Ao mesmo tempo,
mesmo que vocês pensem que a Iluminação esta mais além de

84
nossa experiência, que é algo que não se pode experimentar,
inclusive mesmo que fosse assim, a Iluminação continua estando
ai. Vocês não podem dizer que a Iluminação existe ou que não
existe. A Iluminação não é algo sobre o que possamos afirmar ou
negar a existência. E ao mesmo tempo, algo que vocês possam
experimentar também é a Iluminação.
Em minha última preleção mencionei a grande disputa que
surgiu na época de 石頭 SEKITŌ sobre a Iluminação súbita e a
Iluminação gradual. O Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca
critica o método de 神秀 JINSHŪ como uma Via da Iluminação
gradual, enquanto que declara que a Via do Sexto Patriarca é a
Iluminação súbita. Segundo o Sūtra da Plataforma do Sexto
Patriarca, parece que sentar simplesmente em 座禅 ZAZEN não
constitui a verdadeira prática.
Mas talvez não fosse esta a visão do Sexto Patriarca. Na
realidade o método de 神秀 JINSHŪ não se diferenciava demais
do método do Sexto Patriarca. O Sūtra da Plataforma do Sexto
Patriarca foi compilado logo após sua morte e é possível que,
cinqüenta anos mais tarde, 荷 澤 神 會 KATAKU JINNE – um
discípulo do Sexto Patriarca - ou algum discípulo de
荷澤神會 KATAKU JINNE, tenham acrescentado as críticas à
escola de 神秀 JINSHŪ da Iluminação gradual. 荷澤神會 KATAKU
JINNE foi um grande mestre 禅 ZEN. Era muito ativo e criticava a
pratica de 神 秀 JINSHŪ, mas provavelmente não com tanta
dureza como a que transmitem as palavras do Sūtra.

Pode ser que 荷澤神會 KATAKU JINNE ou seus discípulos


acrescentaram este poema:

85
“Não há árvore Bodhi,
não há espelho.
Não há um suporte para o espelho, nada há.
Como poderia então limpá-lo?”28

28
大満弘忍 DAIMAN KŌNIN, o Quinto Patriarca, queria encontrar seu
sucessor e pediu aos monges que escrevessem um poema no qual
expressassem sua compreensão do 禅 ZEN. 神秀 JINSHŪ, o decano dos
monges, escreveu, no meio da noite, o seguinte poema sobre a parede do
monastério:

身是菩提樹 MI WA KORE BODAIJU


心如明鏡台 SHIN WA MEIKYÕDAI NO GOTOSHI
時時勤拂拭 JIJI NI TSUTOMETE FUSSHIKI SHITE
莫使惹塵埃 JIN'AI O SHITE HIKASHIMURU KOTO NAKARE

“O corpo é a árvore Bodhi,


a mente é um espelho puro.
Há que limpá-lo sem cessar
e não deixar que o pó se acumule”.

Quando no dia seguinte 慧能 ENŌ viu este poema, pediu ao monge


que estava ao seu lado para que o lesse. “Eu também tenho um poema.
Como sou analfabeto, poderia escrevê-lo para mim?”

菩提本無樹 BODAI MOTO JU NASHI


明鏡亦非台 MEIKYÕ MO MATA DAI NI ARAZU
本夾無一物 HONRAI MUICHIMOTSU
何處惹塵埃 DORE NO SHO NI KA JIN'AI O HIKAN

“Não há árvore Bodhi


nem suporte de um espelho puro.
Como tudo é Vacuidade,
onde poderia se depositar a poeira?”

86
Como este não é um poema muito bom, muitas pessoas
criticaram-no e pensaram que o Sexto Patriarca não podia tê-lo
escrito.
Naqueles dias era uma honra possuir uma cópia do Sūtra da
Plataforma do Sexto Patriarca. Existiam muitas versões do
mesmo e a mais antiga não inclui este poema nem qualquer
crítica sobre a escola de 神秀 JINSHŪ.
Um dos objetivos do 參同会 SANDŌKAI é esclarecer esta
falsa idéia sobre 神秀 JINSHŪ, que dá a impressão de que ele se
apegava aos rituais ou à erudição. O estudo intelectual pertence
a 事 JI. 理 RI é algo que se pode experimentar através da
prática. Talvez vocês acreditem que o estudo intelectual é 理 RI,
mas para mim não é assim. Nossa prática consiste em realizar
理 RI ou alcançar uma completa compreensão dele, em aceitá-lo.
Mas mesmo que vocês pratiquem 座禅 ZAZEN e acreditem que é
理 RI, ou a obtenção ou a realização de 理 RI, segundo
石頭 SEKITŌ, nem sempre é assim. Se vocês compreenderem
este ponto, já haverão compreendido todo o 參同会 SANDŌKAI.
Os primeiros versos do poema são a introdução:
竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, “A mente do grande
sábio da Índia”. 東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “É
transmitida intimamente de Oeste pra Leste”. Aqui, 大仙 DAISEN,
“grande sábio”, pode também significar ermitão. No tempo de
石頭 SEKITŌ haviam muitos eremitas taoistas que se orgulhavam
de seus poderes sobrenaturais e buscavam um elixir que lhes

Quando 弘忍 KŌNIN viu este poema, soube que o autor tinha a


compreensão do 禅 ZEN que ele estava buscando e reconheceu
慧能 ENŌ como seu sucessor no Dharma e como Sexto Patriarca.(N.T.)

87
prolongasse a vida. Não estavam muito interessados na prática
budista nem entendiam porque era tão necessário praticar
座禅 ZAZEN. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI 29 também se fazia a
mesma questão. Se temos todos a natureza de Buddha, por que
é preciso praticar? Sofria devido a esta questão. Não podia
resolver este problema através do estudo intelectual.
Quando vocês se conhecerem realmente, compreenderão a
importância de praticar 座禅 ZAZEN. Se não souberem o que
estão fazendo, não poderão saber porque praticamos. Vocês
acreditam que são livres, que o que fazem só diz respeito a vocês
mesmos, mas na realidade estão criando um karma para vocês e
para os demais. Como não sabem o que estão fazendo,
acreditam que não é necessário praticar 座禅 ZAZEN. Mas temos
que pagar nossas próprias dívidas, ninguém pode fazê-lo por nós.
Por isso é necessário praticar. Praticamos para cumprir com
nossas responsabilidades. Temos de fazê-lo. Se não praticarem,
não se sentirão tão bem e além disso criarão problemas para os
demais. Mas se não estiverem conscientes deste fato dirão: “Por
que é necessário praticar 座 禅 ZAZEN?” Ademais, quando
dizem: ”Temos a natureza de Buddha”, talvez acreditem que a
natureza de Buddha é como ter um diamante na dobra da
manga30. Mas a verdadeira natureza de Buddha não é assim. Um

29
禅師 ZENJI é no Budismo japonês um título honorífico que significa
“Mestre ZEN”.
30
Alusão à história de dois amigos que se encontram depois de muito
tempo separados. Um está muito rico e o outro, miserável. Apesar de
querer ajudá-lo, o amigo rico esbarra no orgulho do amigo pobre que se
recusa a receber o que quer que seja. O amigo rico aproveita então
quando o amigo pobre está dormindo e costura no forro de sua remendada
camisa uma pedra preciosa, de valor suficiente para comprar um palácio.
Na manhã seguinte, os amigos se separam. Tempos depois, voltam a se
encontrar e para espanto do amigo rico, o outro permanece miserável, pois
passou todo o tempo ignorando que trazia aquele tesouro costurado em
sua roupa. (N.T.)
88
diamante é 事 JI, mas não é 理 RI. Estamos sempre
comprometidos com o mundo de 事 JI sem realizar 理 RI.
Há outro ponto que me interessa muito. Tradicionalmente os
budistas dizem, como possivelmente vocês já sabem, que o
Budismo não durará para sempre. Os Sūtras assinalam
diferentes espaços de tempo, mas em geral dizem que o Dharma
desaparecerá 1500 anos depois da morte de Buddha.
Segundo a tradição budista, durantes os primeiros
quinhentos anos, na época dos discípulos diretos de Buddha ou
dos discípulos de seus discípulos, haveria grandes sábios como o
Buddha. Trata-se de 正法 SHŌBŌ, a época de Buddha. Nos
quinhentos anos seguintes, as pessoas praticariam 座禅 ZAZEN
e estudariam o Budismo. Refere-se a 像法 ZŌHŌ, a época da
imitação do Dharma. Em 末法 MAPPŌ, o último período, que se
inicia mil anos depois da morte de Buddha, as pessoas não
observarão os preceitos, lerão e cantarão os Sūtras, mas não
estarão interessadas no 座禅 ZAZEN. Serão muito poucos os que
praticarão 座禅 ZAZEN e compreenderão os ensinamentos. Na
realidade, isto é bem verdadeiro. Na atualidade não se observam
os preceitos.
No período 末法 MAPPŌ as pessoas estarão envoltas em
idéias acerca da Vacuidade e do ser, mas sem entender
realmente o que significam. Falamos da Vacuidade e vocês
acreditam que a compreendem, mas mesmo que possam explicá-
la muito bem, trata-se de 事 JI e não de 理 RI. A verdadeira
Vacuidade será experimentada – na verdade não será
experimentada, mas realizada – através de uma boa prática. O
propósito do 參同会 SANDŌKAI é deixar claro no que consiste a
Vacuidade, o ser, a escuridão, a claridade e a verdadeira fonte do
ensinamento, e quem são os diversos seres que são sustentados
pela verdadeira fonte dos ensinamentos.
Pedi emprestado à Masa, a mulher de Gary Snyder, um livro
sobre 山海経 SANGAIKYŌ (em chinês, San Jie), uma pequena
89
escola tântrica do Japão. O livro diz que mil anos depois da morte
de Buddha as pessoas se dividirão em duas classes: os
inocentes e os cínicos. Falando com propriedade, nem os
japoneses nem os norte-americanos observam os preceitos. Em
ambos países as pessoas consomem pescado e se sacrificam
animais. Mas na América as pessoas são muito inocentes.
Quando violam os preceitos, na realidade não sabem o que estão
fazendo. No Japão, ao contrário, somos uns cínicos, porque
sabemos o que estamos fazendo mas continuamos violando os
preceitos. As pessoas inocentes parecem ser umas cínicas, mas
na realidade não é um autêntico cinismo.
Vocês podem perguntar: “Qual é o verdadeiro ensinamento
de Buddha? Se não compreenderem, seguirão perguntando:
“Qual é? Qual é? O que significa?” vocês estão buscando algo
que possam compreender. Mas isto é um erro. Nós não existimos
deste modo. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “Não há pássaro
algum que voe conhecendo os limites do espaço, nenhum peixe
que nade conhecendo os confins do oceano”. Existimos num
universo ilimitado. Os seres são inumeráveis e nossos desejos
são infinitos, mas temos que seguir nos esforçando, da mesma
forma que um peixe segue nadando e um pássaro segue voando.
道元 禅 師 DŌGEN ZENJI disse: “Um pássaro voa como um
pássaro, um peixe nada como um peixe”. Essa é a Via do
Bodhisattva, e assim é que observamos nossa prática.
Quando compreendemos as coisas deste modo, não somos,
segundo 道元 DŌGEN, pessoas vivendo em 末法 MAPPŌ, o
último período; nossa prática não se vê perturbada pelo contexto
do tempo ou do espaço. 道元 DŌGEN disse: “Buddha sempre
está aqui”. De algum modo, o Budismo segue existindo e quando
chegamos a compreender o que Buddha quis nos dizer, estamos
vivendo na época de Buddha.

90
91
QUARTA PRELEÇÃO

31
A PEGA PENETRARÁ
DIRETAMENTE EM
SEU CORAÇÃO

31
A pega é uma barulhenta ave do hemisfério norte, da família dos corvos.
(N.T.)
92
93
門門一切境
門門一切の境、
MON MON ISSAI NO KYŌ,

Os objetos dos sentidos,

迴互不迴互
回互と不回互と、
EGO TO FU EGO TO,

Interagem e ao mesmo tempo não interagem.

迴而更相渉
回してさらに相渉る、
94
ESHITE SARANI AI WATARU,

A interação produz implicação,

不爾依位住
しからざれば位によって住す、
SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU,

E, sem embargo, cada fenômeno se mantém em


seu próprio lugar.

Na última preleção expliquei como as pessoas se apegam a


事 JI, “os fenômenos”. Isto é algo corriqueiro. A característica dos
ensinamentos de Buddha é ir mais além dos fenômenos; mais
além dos diversos seres, idéias e coisas materiais. Quando
dizemos “a verdade”, normalmente nos referimos a algo que
podemos entender. A verdade que podemos entender ou a
verdade sobre a qual podemos pensar é 事 JI. Quando vamos
mais além do mundo subjetivo e do mundo objetivo, chegamos a
compreender a unidade de tudo, a unidade da subjetividade e da
objetividade, a unidade do interno e do externo.
Por exemplo, quando vocês se sentam em 座禅 ZAZEN não
pensam nem observam o que quer que seja. O centro de atenção
se acha frente a vocês a um metro e meio de distância, mas
vocês nada contemplam. Mesmo que surjam em nossa mente
muitas idéias, não pensamos nelas; elas chegam e vão, isso é
tudo. Não damos entretenimento às diversas idéias: não as
95
convidamos a ficar nem oferecemos comida nem qualquer outra
coisa. Caso apareçam, tudo bem, e se vão embora, também. Isso
é tudo. Isso é 座禅 ZAZEN. Quando praticamos deste modo,
nossa mente inclui tudo, mesmo que não tentemos fazê-lo. Não
nos preocupamos com algo inalcançável nem desejamos obtê-lo.
Qualquer coisa que digamos em qualquer momento se
encontra em nossa mente. Mas normalmente acreditamos que
existem muitas coisas: que há isto e isso e aquele outro. No
cosmos há muitas estrelas, mas por enquanto só chegamos à lua.
Ao cabo de alguns anos pode ser que cheguemos a outros
planetas e ao final, talvez até a outro sistema solar. No Budismo,
a mente e o ser são um só, não são distintos. Como os seres
cósmicos são infinitos, nossa mente é ilimitada, chega a qualquer
lugar. Como finalmente inclui as estrelas, nossa mente é apenas
nossa mente, mas é algo maior que a pequena mente que
acreditamos que é.
Nossa mente e os fenômenos são um. De modo que se
vocês pensarem “tudo isso é minha mente”, está certo. E se
pensarem “ali há outros seres”, também está certo. Mas indo
diretamente ao assunto, quando os budistas dizem “isto” ou
“aquilo” ou “eu”, esses “isto” ou “aquilo” ou “eu” incluem tudo.
Escutem o tom de voz em vez de só as palavras.
O som é distinto do ruído. O som é algo que surge de sua
prática. O ruído é algo mais objetivo, algo que pode incomodá-los.
Se tangerem um tambor, o som que fizerem é o som de sua
prática subjetiva e também o som que nos anima. O som é tanto
subjetivo como objetivo.
No Japão dizemos 響 HIBIKI. 響 HIBIKI significa “algo que
vai e vem como um eco”. Se você diz algo, receberá a resposta
daquilo que provocou: vai e vem. Isso é o som. Os budistas
interpretam o som como uma criação da mente. Eu posso
pensar ”o pássaro está cantando ali”. Mas quando estou ouvindo,
eu já sou o pássaro. Na realidade, não o estou escutando. O
pássaro já está aqui, na minha mente, e eu estou cantando com
ele: Pip, pip, pip. Se enquanto vocês estudarem pensarem “a

96
pega está cantando no telhado, mas não o está fazendo assim
tão bem”, este pensamento é um ruído. Em contrapartida, quando
as pegas não estiverem perturbando-os, elas penetrarão
diretamente em seus corações e vocês serão uma pega e a pega
estará lendo algo, e não perturbará sua leitura. Quando
pensamos “esta pega não deveria estar sobre o telhado”, esse
pensamento é uma compreensão mais primitiva do ser. Por
causa de nossa falta de prática, compreendemos as coisas deste
modo.
Quanto mais vocês praticarem 座禅 ZAZEN, mais poderão
aceitar que qualquer coisa nada mais é senão vocês mesmos,
seja o que for. Estes são os ensinamentos de 事事 無礙 JIJI
MUGE da escola 華嚴 KEGON32 (em chinês, Huayen). 事事 JIJI
significa “ser sem barreira, imperturbável”. Como as coisas estão
inter-relacionadas, é difícil dizer “isto é um pássaro e isto sou eu”.
É difícil separar a pega de mim. Isso é 事事 無礙 JIJI MUGE.
O texto diz: 門門一切の境, MON MON ISSAI NO KYŌ,
“Os objetos dos sentidos”, 回互と不回互と、EGO TO FU EGO
TO, “Interagem e ao mesmo tempo não interagem”. Mesmo que
as coisas estejam inter-relacionadas, todo mundo – qualquer ser
– pode ser o chefe. Cada um de nós pode ser o chefe porque
32
Trata-se de 四 法 界 SHI HŌKAI, os quatro Dharnadhātu, reinos da
realidade, assim como são explicados pelos mestres da escola
華嚴 KEGON:
事 法 界 JI HŌKAI, “Reino dos fenômenos individuais”, reino dos
fenômenos, com diferenciação;
理 法界 RI HŌKAI, “Reino do princípio uno”, Shūnyatā (Vacuidade),
reino numênico da unidade;
理事 無礙 法界 RIJI MUGE HŌKAI, “Reino da não obstrução entre
principio e fenômeno”, onde essência e fenômeno são interdependentes.
事事 無礙 法界 JIJI MUGE HŌKAI, “Reino da não obstrução entre
fenômenos”, onde os fenômenos são também entre si interdependentes.
(N.T.)
97
estamos intimamente relacionados. Se eu digo “Mel”, Mel deixa
de ser só Mel. É um dos estudantes do centro 禅 ZEN. Se vocês
vêem Mel compreendem o que é o Centro 禅 ZEN. Mas se
pensarem “Oh! É apenas Mel!”, não terão uma compreensão boa
o bastante. Significa que vocês não sabem quem é Mel. Se
tiverem uma boa compreensão das coisas em si mesmas,
compreenderão o mundo através delas. Cada um de nós é o
chefe do mundo inteiro. E ao ter esta compreensão, vocês
descobrirão que as coisas estão inter-relacionadas e que, sem
embargo, também são independentes. Não há nada com que
vocês possam comparar. São simplesmente vocês mesmos.
Temos de compreender as coisas de duas formas. Uma delas é
compreender que estão inter-relacionadas. E a outra,
compreender que cada um é independente de todos os demais.
Quando incluímos tudo em nós mesmos, somos totalmente
independentes, porque não há qualquer coisa com que possamos
comparar. Se só há uma coisa, como poderia ser comparada com
outra? Como nada há com que vocês possam comparar, vocês
têm uma absoluta independência, não estão inter-relacionados,
são absolutamente independentes.
Continuando, o texto diz: 門門一切の境, MON MON ISSAI
NO KYŌ, “Os objetos dos sentidos”. Os sentidos - os olhos, os
ouvidos, o nariz, a língua e o corpo - são portas33, e os objetos
dos sentidos entram por elas. Estão inter-relacionados e, ao
mesmo tempo, são independentes. Para os olhos há algo que se
ver, para os ouvidos há algo que se ouvir, para o nariz há algo
que se cheirar, para a língua há algo que saborear, para o corpo
há algo que tocar. Existem cinco classes de objetos sensoriais
para os cinco órgãos sensoriais. Este é o sentido comum budista.
O poema ao citá-los está se referindo simplesmente a “tudo”. É
como dizer “as flores e as árvores, os pássaros e as estrelas, os

33
Em japonês, 門 MON significa porta, portão. (N.T.)
98
riachos e as montanhas”, mas em seu lugar falamos “cada um
dos sentidos e seus objetos”.
Os diversos seres que vemos e ouvimos estão inter-
relacionados mas ao mesmo tempo, cada ser é absolutamente
independente e tem seu próprio valor. A este valor chamamos
理 RI. 理 RI é aquilo que outorga significado a algo, não é apenas
algo teórico. Mesmo que não alcancemos a Iluminação, dizemos
que já a temos. A esta Iluminação chamamos 理 RI. O fato de
que algo exista aqui significa que há alguma razão para tanto. Eu
não a conheço. Ninguém a conhece. Cada coisa tem o seu
próprio valor. É muito curioso que não haja duas coisas que
sejam iguais. Como nada há com que vocês possam compará-lo,
vocês têm seu próprio valor. Este valor não é um valor
comparativo nem um valor de intercâmbio, é mais do que isso.
Quando vocês permanecerem simplesmente em 座 禅 ZAZEN
sobre o 坐蒲 ZAFU, terão seu próprio valor. Apesar de que este
valor esteja relacionado com todos os demais, também é
absoluto. Talvez seja melhor não falar demasiado disso.
回 し て さ ら に 相 渉 る 、 ESHITE SARANI AI WATARU,
“A interação produz implicação”. Um pássaro chega do sul na
primavera e regressa no outono ao sul cruzando várias
montanhas, rios e oceanos. As coisas se relacionam da mesma
forma sem cessar, por todos os lugares.
しからざれば位によって住す、SHIKARA ZAREBA KURAI
NI YOTTE JŪ SU, “E, sem embargo, cada fenômeno se
mantém em seu próprio lugar.” Este verso significa que ainda que
o pássaro esteja em algum lugar, em um lago, por exemplo, seu
lar não é só o lago mas o mundo inteiro. Assim é como um
pássaro vive.
No 禅 ZEN dizemos que cada um de nós é tão íngreme
como um abismo. Ninguém pode nos escalar. Somos
completamente independentes. Mas, quando me ouvirem dizer
isso, também devem compreender o outro lado, o de que

99
estamos nos inter-relacionando sem cessar. Se apenas
compreenderem um lado da verdade, não poderão ouvir o que eu
estou lhes dizendo. Se não compreenderem as palavras 禅 ZEN,
não estarão compreendendo o 禅 ZEN e não serão ainda
estudantes do 禅 ZEN. As palavras 禅 ZEN são distintas das
palavras normais. São como uma espada de fio duplo, cortam em
ambos os lados. Talvez vocês estejam pensando que só estou
cortando para frente, mas não é assim, na realidade também
estou cortando para trás. Vigiem minha cutilada! Compreendem?
Às vezes repreendo um discípulo dizendo-lhe: “Não!”. Um outro
estudante pensa: “Oh! Ele o repreendeu!” Mas na realidade não é
assim. Como não posso repreender o estudante que está mais
distante, hei de repreender o que tenho próximo de mim. Mas a
maioria pensa: “Oh! Coitadinho, está sendo repreendido!” Se
pensarem desta forma não são estudantes 禅 ZEN. Quando
repreendo alguém vocês deverão escutar, deverão prestar
suficiente atenção para saber a quem estou repreendendo. Assim
é como nós ensinamos.
Quando eu era um discípulo muito jovem, meus irmãos no
Dharma e eu fomos a um determinado lugar com nosso mestre e
voltamos para casa bastante tarde. No Japão há muitas
serpentes venenosas. Meu mestre nos disse: como vocês estão
usando 足 袋 TABI [coturnos brancos que se usam com as
sandálias] e eu não, uma serpente poderia me morder, portanto
é melhor que vocês fiquem na minha frente. Nós concordamos e
assim o fizemos. Mas quando chegamos ao templo, ele nos
disse rispidamente: “Sentem-se todos!” Não sabíamos o que
havia ocorrido, mas nos sentamos frente a ele. “Vocês são uns
rapazes bem sem consideração!”, disse-nos. “Se eu não estava
usando o 足 袋 TABI, por que vocês continuaram usando os
seus?” “Eu os avisei: Não estou usando 足 袋 TABI. Vocês
deveriam ter compreendido e tirado os 足袋 TABI, mas não o

100
fizeram e seguiram andando à minha frente. Vocês são uns
rapazes muito estúpidos!”
Temos que estar atentos o suficiente para ouvir o significado
que há por detrás das palavras. Isso é tudo. Devemos captar
mais do que simplesmente o que é dito.

Uma noite, quando eu era estudante no monastério de


永平 寺 EIHEI JI34, abri a porta de correr do 障子 SHŌJI35 pela
parte da direita – porque é costume abri-la deste lado – mas fui
repreendido: “Não abra a porta por este lado!”, cutucou-me um
dos monges mais antigos. Na manhã seguinte, abri a porta pelo
lado esquerdo e voltaram a me repreender: “Por que você está
abrindo a porta deste lado?” Eu já não sabia o que fazer. Quando
a abria pelo lado direito me repreendiam, e quando a abria pelo
lado esquerdo, também. Não consegui averiguar porque. Mas no
final observei que da primeira vez, havia uma visita na parte
direita da porta de correr, e na segunda, uma na parte esquerda.
Ou seja, que nas duas vezes que havia aberto a porta o visitante
havia ficado a descoberto. Essa era a razão da repreensão. Em
永 平 寺 EIHEI JI nunca nos diziam porque nos repreendiam,
simplesmente o faziam. As palavras tinham duplo sentido.
As palavras do 參同会 SANDŌKAI também são uma espada
de fio duplo. Um lado é a interdependência 回互 EGO e o outro a
absoluta independência 不回互 FUEGO. Esta interdependência
sucede sem cessar por todos os lugares e, sem embargo, as
coisas se mantém em seu próprio lugar. Este é o ponto principal
do 參同会 SANDŌKAI.

34
永平 寺 EIHEI JI , fundado no século XIII por 永平道元 EIHEI DŌGEN, é
um dos principais templos da escola 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN.

35
障子 SHŌJI é a divisória ou porta de correr tradicional dos cômodos
japoneses, feita de uma treliça de madeira recoberta com papel de arroz
translúcido. (N.T.)
101
DIÁLOGO

ESTUDANTE: a interdependência significa que o pássaro é


o mundo inteiro e a independência, que o pássaro não é mais
que um pássaro?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. No Sūtra do Coração da


Grande Sabedoria Completa36 se diz que “A forma é Vazio e o
Vazio é forma” 37 . “A forma é vazio”: 回互 EGO. E “O vazio é
forma”: 不 回 互 FUEGO. [Dá uma pancada na mesa.] Isto é
不回互 FUEGO. Sabe que nada pode ser dito. É difícil dizer o
que é. [Volta a dar uma pancada na mesa.]

ESTUDANTE: Existe alguma razão em particular pela qual


tocamos o sino quando cantamos a primeira sílaba do verso
門門一切の境, MON MON ISSAI NO KYŌ?
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Tocar o sino significa produzir
um Buddha independente, um Buddha após o outro. Gong. Um
Buddha. Aparece um Buddha independente. Gong. Aparece outro
36
Em sânscrito, Mahā Prajñā Paramitā Hridaya Sūtra. Em japonês,
摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ.
(N.T.)

37
Em japonês, 色不異空 、空不異色 、SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI.
“Forma não é mais que vazio, vazio não é mais que forma”. (N.T.)

102
Buddha independente. Quando o Buddha seguinte aparece, o
anterior desaparece. Ao tocar o sino uma e outra vez, você vai
produzindo um a um, um Buddha após o outro. Esta é a nossa
prática.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, hoje alguém disse: “Sem


estudantes não há mestre, sem mestre não há estudantes”. Outro
perguntou: “O que faz com que o 老 師 RŌSHI seja um
老 師 RŌSHI?” e alguém respondeu: “Os estudantes”. Sem
estudantes você não poderia ser um 老師 RŌSHI. E sem um
老 師 RŌSHI não poderia haver estudantes. Ambos são
independentes porque seguem unidos.

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Sim, seguem unidos. Sem


estudantes, não há mestre. E os estudantes animam o mestre.
Assim é. Se eu não tivesse estudantes, talvez descansasse o dia
todo. Mas como tenho tantos olhos me observando, tenho de
fazer algo: devo estudar e dar uma preleção. Se não tivesse que
a dar, não estudaria. Mas, ao mesmo tempo, deveria me
envergonhar de mim mesmo se estudasse apenas para preparar
a preleção. Em geral, quando estudo para a preleção me ponho a
pensar em outra direção e sigo algo interessante, e a maior parte
das vezes acabo não estudando para a preleção. Mas de todo o
modo, se não estudo para a preleção não me sinto muito bem.
Como penso que necessito me preparar para ela, ponho-me a
estudar. Mas quando começo, deixo-me levar e estudo pelo mero
fato de estudar, não só para dar a preleção. As coisas estão
ocorrendo sem cessar deste modo. E como vocês já sabem, é
bom que seja assim.
Algum dia o que estudo ajudará os estudantes. Não sei
quando acontecerá. Estudamos para nos sentir bem e praticamos
座禅 ZAZEN para nos sentirmos melhor. Ninguém sabe o que
103
nos ocorrerá depois de havermos sentado em 座 禅 ZAZEN
durante um, dois, ou dez anos. Ninguém sabe e tudo bem que
seja assim. Na realidade, sentamos-nos em 座禅 ZAZEN apenas
para nos sentirmos bem. No fundo, essa classe de prática sem
objetivos os ajudará.

QUINTA PRELEÇÃO

MESMO QUE HOJE


SEJAMOS MUITO FELIZES,
NÃO SABEMOS O QUE
AMANHÃ NOS OCORRERÁ

104
105
色本殊質象
色もと質像を殊にし、
SHIKI MOTO SHITSU ZŌ O KOTONI SHI,

As imagens variam em qualidade e forma,

聲元異樂苦
声もと楽苦を異にす、
SHŌ MOTO RAKKU O KOTO NI SU,

Os sons podem ser prazerosos ou desagradáveis.

106
暗合上中言
暗は上中の言に合い、
AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,

As palavras refinadas e as ordinárias não diferem


na escuridão,

明明清濁句
明は清濁の句を分つ、
MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU,

As frases claras e as obscuras se distinguem na luz.

Cada coisa tem sua própria natureza e forma e quando


vocês escutam uma voz ela pode ser prazerosa ou desagradável.
O 參同会 SANDŌKAI esta falando aqui das imagens e dos sons,
mas ocorre o mesmo com os outros sentidos e também com a
mente. Há sabores deliciosos ou repugnantes, sentimentos bons
ou maus, idéias agradáveis ou desagradáveis. É nosso apego a
isso o que nos faz sofrer. Quando vocês ouvem algo bom,
aproveitam disso. E quando ouvem algo ruim, zangam-se ou
ficam alterados. Mas se vocês entendessem a realidade por
completo, as coisas não os perturbariam. O verso seguinte
confirma este fato: 暗は上中の言に合い、AN WA JŌ CHŪ NO

107
KOTO NI KANAI, “As palavras refinadas e as ordinárias não
diferem na escuridão”.
Nós compreendemos as coisas de duas formas: Na
escuridão, 暗 AN, e na luz da forma, 色 SHIKI, donde vemos as
coisas como boas ou como más. Sabemos que as coisas em si
mesmas não são boas ou más. Somos nós que as distinguimos
como boas e más, criando com isso algo bom ou algo mau. Se
reconhecermos este fato, não sofreremos tanto. “Oh! É isso o que
estou fazendo!”, pensaremos.
As coisas por si mesmas não são por natureza boas nem
más. Compreender isso é compreender as coisas em meio à
escuridão. Neste caso, vocês não se enredarão numa
compreensão dualista das coisas, vendo-as como boas ou más.
石頭 SEKITŌ diz: 暗は上中の言に合い、AN WA JŌ CHŪ NO
KOTO NI KANAI,“As palavras refinadas e as ordinárias não
diferem na escuridão”. A escuridão inclui tanto o bom quanto o
mau. Na maior escuridão, as palavras boas e as palavras más
não vão perturbá-los.
明 は 清 濁 の 句 を 分 つ 、 MEI WA SEI DAKU NO KU O
WAKATSU, “As frases claras e as obscuras se distinguem na
luz”. Há palavras puras e palavras turvas. Em meio à luz, as
palavras se tornam dualistas, há a dualidade do puro e do impuro.
Mesmo que estivermos com raiva de alguém, podemos
prosseguir aceitando esta pessoa. Como um mestre conhece seu
discípulo muito bem, às vezes se aborrece muito com ele. O
mestre sabe que o seu discípulo é muito bom, mas algumas
vezes este é muito preguiçoso. Então o mestre o espanca. Outras
vezes, o mestre o elogia ou o anima. Mas isto não significa que
adote métodos ou atitudes distintos. A compreensão do mestre é
a mesma, mas sua expressão é distinta. Os discípulos
pessimistas, que vêem as coisas de uma maneira muito negativa,
devem ser animados. Mas se são demasiado bons ou brilhantes,
o mestre deverá repreendê-los. Assim é como agimos.

108
Nós dizemos “a forma positiva” e a “forma negativa”. A
forma positiva consiste em reconhecer as coisas em termos de
bom ou mau, de belo ou feio. Se vocês se esforçarem a fundo,
serão bons estudantes. Reconhecer o esforço que o estudante
tem feito é a forma positiva. A forma negativa, ao contrário,
consiste em nada aceitar. Qualquer coisa que disserem,
receberão trinta varadas. Positiva e negativa... às vezes se usa a
primeira, e outras, a segunda. Em geral nos apegamos muito ao
lado claro ou ao lado escuro das coisas.
Vocês conhecem este famoso 公 案 KOAN? Um monge
pergunta a seu mestre: “Está fazendo muito calor. Como poderia
me livrar dele?” E o mestre responde: “Por que você não vai para
um lugar onde não faça calor nem frio?” O discípulo disse: “Acaso
existe um lugar onde não faça calor nem frio?” E o mestre
respondeu: “Quando faz frio, você há de ser um Buddha frio.
Quando faz calor, há de ser um Buddha quente.” Talvez vocês
acreditem que se praticarem 座禅 ZAZEN alcançarão um estado
no qual não faça calor nem frio, em que não haja felicidade nem
dor. Pode ser que perguntem: “Se pratico 座禅 ZAZEN, posso
alcançar este tipo de ganho?” Um verdadeiro mestre responderá:
“Quando sofrer, sofra. Quando se sentir bem, sinta-se bem”.
Algumas vezes deveremos ser um Buddha que sofre. Outras, um
Buddha que chora. E outras, um Buddha muito feliz.
Esta felicidade não é exatamente a mesma felicidade que a
gente costuma experimentar. Há entre ambas uma pequena
diferença e esta pequena diferença é importante. Como os
Buddhas conhecem os dois aspectos da realidade, têm esta
classe de serenidade. Não se alteram quando lhes ocorre algo
mau nem se extasiam quando lhes ocorre algo bom. Têm uma
autêntica alegria que nunca perderão. Para eles, o tom básico da
vida segue sendo o mesmo e nele há algumas melodias felizes e
algumas melodias tristes. Esta é a sensação que tem uma
pessoa Iluminada. Significa que quando vocês tiverem calor ou
quando se sentirem tristes, deverão se entregar por completo ao
calor ou à tristeza, sem se importarem com a felicidade. E
109
quando forem felizes, deverão desfrutar completamente desta
felicidade. E podemos fazê-lo porque mentalmente estamos
preparados para qualquer coisa. Mesmo que as circunstâncias
mudem de repente, não nos importa. Ainda que hoje sejamos
muito felizes, não sabemos o que amanhã nos ocorrerá. Quando
estamos preparados para o que possa nos ocorrer amanhã,
podemos desfrutar do dia de hoje por completo. E isto não se
consegue estudando uma preleção, mas através da prática.
Esta são as palavras de 石頭 SEKITŌ. Mais tarde, na época
de 洞山 TŌZAN (três gerações depois de 石頭 SEKITŌ), as
pessoas começaram a se apegar aos jogos de palavras a cerca
da claridade e da escuridão. Gostavam de falar do lado claro, do
lado escuro e do Caminho do Meio, mas perderam a chave de
como alcançar a verdadeira liberdade.
道元禅師 DŌGEN ZENJI, que viveu mais tarde ainda, não só
não ficou aprisionado nestes jogos de palavras, como destacou a
forma de sair deles apreciando as coisas a cada momento.
Estava mais interessado num 公 案 KOAN como aquele de:
“Quando fizer frio, deve-se ser um Buddha frio; quando fizer calor,
deve-se ser uma Buddha quente”. Isso é tudo. A via de
道元 DŌGEN é se entregar por completo ao que cada um está
fazendo sem pensar em várias coisas ao mesmo tempo. E este
tipo de sucesso não é alcançado através de palavras, mas da
prática.
As palavras podem nos ajudar a compreender as coisas.
Quando vocês são muito dualistas, quando estão confusos, elas
podem ajudá-los. Mas se vocês têm demasiado interesse em
falar delas, vão se perder. Há que se interessar pelo 座禅 ZAZEN
em si mesmo e não pelas palavras, e praticar um verdadeiro
座禅 ZAZEN.
A Via de 道元禅師 DŌGEN ZENJI consiste em encontrar o
significado em cada ser, como num grão de arroz ou num pote
d’água. Vocês podem dizer que um pote d’água ou um grão de
arroz é algo que é visto na brilhante luz. Mas quando vocês

110
manifestarem um profundo respeito pelo grão de arroz, significa
na realidade que o estão respeitando como se ele fosse o próprio
Buddha, e compreenderão então que um grão de arroz é
absoluto. Quando viverem entregando-se por completo no mundo
dualista, possuirão o mundo absoluto em seu verdadeiro sentido.
Quando praticarem 座禅 ZAZEN sem perseguir a Iluminação ou
qualquer outra coisa, a verdadeira Iluminação estará presente.

DIÁLOGO

ESTUDANTE: Quando estou desperto, talvez tenha um


pouco de controle sobre meus desejos, mas de manhã...

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: De manhã você tem problemas.


Eu sei. Por isso digo: “Levantem-se”. [Dá um golpe na mesa.]

ESTUDANTE: E como posso consegui-lo?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Faça-o sem delongas. Caso


contrário virá alguém e lhe dará uma varada! [Faz uma espécie
de gracioso grunhido.]

ESTUDANTE: Consegui me levantar um par de vezes e


saltei da cama. Mas foi uma façanha!

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Uma verdadeira façanha.


Quando puder se levantar sem qualquer problema, creio que sua
prática será quase boa. É uma oportunidade ideal para praticar
nossa Via. Levantar-se imediatamente! De acordo? Isso é o mais
importante.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, estudar um livro o que ocasiona?

111
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Para você talvez não seja
importante, mas eu devo ter uma idéia clara do que estou falando
ou, se não, é melhor nada dizer. Por isso estudo antes de dar
uma preleção. Meu mestre sempre me dizia: “Mesmo que não te
sirva de ajuda, antes de uma preleção você deve estudar”. [risos]

SEXTA PRELEÇÃO

A BARCA ESTÁ SEMPRE


SE MOVENDO

112
113
四大性自復
四大の性おのずから復す、
SHIDAI NO SHŌ ONOZU KARA FUKUSU,

Os quatro elementos regressam à sua natureza,

如子得其母
子の其の母を得るがごとし、
KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI,

Tal qual uma criança retorna à sua mãe.

火熱風動搖
114
火は熱し、風は動揺、
HI WA NESSHI, KAZE WA DŌYŌ,

O fogo queima, o vento move,

水濕地堅固
水は湿い、地は堅固、
MIZU WA URUOI, CHI WA KENGO,

A água molha, a terra é sólida

Segundo o pensamento budista, os quatro elementos são o


fogo, o vento, a água e a terra. Mesmo que não seja uma
descrição perfeita, dizemos que cada um destes quatro
elementos tem sua própria natureza. A natureza do fogo é
purificar. O vento faz as coisas amadurecerem. Não sei porque,
mas a natureza do vento faz as coisas amadurecerem mais
depressa. O vento tem uma atividade mais orgânica. Ao contrário,
a atividade do fogo é mais química. A natureza da água é a de
conter as coisas. Onde quer que vocês vão, haverá água; a água
contém tudo. Em geral, a água é compreendida da forma
contrária. Mas nós em vez de dizer que no tronco de uma árvore
há água, dizemos que a água contém o tronco e também as
folhas e os ramos. A água é portanto, algo imenso e no qual tudo
– inclusive nós mesmos – está incluído. A natureza da terra é a

115
solidez. Aqui, “terra” não significa um terreno, mas a natureza
sólida da matéria.
Segundo o Budismo, ao decompormos um objeto na sua
menor unidade que se possa imaginar, esta unidade se chama
極 微 GOKUMI 38 . Mesmo que às vezes se defina isto como
“átomo”, não o é, porque um átomo não é a menor unidade. Eu
não conheço os termos adequados, mas segundo minha
compreensão da física moderna, a última unidade do ser carece
de peso ou de tamanho. Não é mais que energia elétrica.
Curiosamente, o Budismo tem uma idéia parecida. Apesar
de que um 極微 GOKUMI contenha os quatro elementos – fogo,
vento, água e terra – não é algo sólido. Quando chegamos a este
ponto vemos que sua natureza é simplesmente a Vacuidade. Os
quatro elementos não são só materiais. São também energia,
potencial ou disposição. Isto é o 極微 GOKUMI. A estes quatro
elementos acrescentamos a qualidade da Vacuidade. O fogo, o
vento, a água e a terra são portanto vazio. Entretanto, ainda que
sejam vazio, é desta Vacuidade que se manifestam os quatro
elementos. E enquanto se manifestam, aparece a última unidade,
o 極微 GOKUMI. É assim como o Budismo compreende o ser.
Parece que estamos falando de matéria, mas estes elementos
não são apenas matéria, já que são tanto espírito como matéria.
E neles também está incluída a mente racional. A Vacuidade
inclui tanto a matéria como o espírito, tanto a mente como o
objeto, tanto o mundo subjetivo como o mundo objetivo. A
Vacuidade é o ser último que nossa mente racional não pode
compreender.
Cada um destes quatro elementos regressa à sua própria
natureza, ou seja, para a Vacuidade. 子の其の母を得るがごとし、
KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI, “Tal qual uma
criança retorna à sua mãe”. Sem a mãe o filho não existiria. O

38
Em sânscrito, Paramānu. (N.T.)
116
menino existe porque a mãe existe. A existência da Vacuidade
significa a existência dos quatro elementos. E mesmo que os
quatro elementos existam, não são mais que uma formação
momentânea da Vacuidade suprema.
Neste quatro versos e nos seis seguintes, 石頭 SEKITŌ está
explicando a realidade de duas formas: uma é a independência e
a outra, a dependência. Em primeiro lugar fala da verdade da
independência. Apesar de que haja quatro elementos, cada um
deles regressa naturalmente para sua natureza original. Mesmo
que haja muitos fenômenos, cada um deles é independente. O
fogo é independente em sua natureza calorífica, o vento é
independente em sua natureza de movimento, a água é
independente em sua natureza umectante e a terra é
independente em sua natureza de solidez. Cada fenômeno é
independente.
Gostaria de ler os versos que comentarei na próxima
preleção para que vocês possam compreender melhor o
conteúdo da presente:

眼色耳音聲
眼は色、耳は音声、
MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

Olhos e imagens, ouvido e sons,

鼻香舌鹹醋

117
鼻は香、舌は鹹酢、
HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

Nariz e odores, língua e sabores,

然依一一法
しかも一一の法において、
SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

Cada um e todos os fenômenos dependem destas


raízes,

依根葉分布
根によって葉分布す、
NE NI YOTTE HABUNPU SU,

São como as folhas de uma árvore.

118
本末須歸宗
本末すべからく宗に帰すべし、
HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

O tronco e os ramos compartilham a mesma


essência,

尊卑用其語
尊卑其の語を用ゆ、
SONPI SONO GO O MOCHI YU,

O venerado e o vulgar se expressam de sua própria


maneira.

Estes versos expressam a compreensão do que eu chamo


de “independência”. Cada um de vocês é independente e, sem
embargo, estão relacionados entre si. E mesmo estando
relacionados entre si, são independentes. Pode-se dizer de
ambas maneiras. Compreenderam? Normalmente, quando se diz
que algo é “independente”, não se pensa que ao mesmo tempo
também é “dependente”. Mas o Budismo não compreende assim
a realidade. Nós sempre tentamos compreender as coisas por
completo para não nos confundir. Tanto a “dependência” como a
“independência” não devem nos confundir. Se alguém nos disse
“Tudo é independente”, dizemos “Sim, está certo.” E se outra

119
pessoa afirma “As coisas estão inter-relacionadas”, dizemos “Sim,
também está certo”. Compreendemos ambos aspectos. Seja o
que for que respondemos, está correto. Mas se alguém só tem
em conta a idéia de independência, diremos “Não, você está
equivocado”. Há muitos 公案 KOAN sobre isso, como o seguinte:
“Se o fogo kármico final queimasse tudo, existiria naquele
momento a natureza de Buddha?” Algumas vezes o mestre
responde: “Sim, existiria”. Mas outras vezes diz: “Não, não
existiria”. Ambas respostas são certas. Um discípulo poderia lhe
perguntar: “Por que disse então que existiria?” E receberia no ato
um grande bofetão. “Mas, em que está pensando?”, responderia
o mestre. “Não compreende o que eu quero dizer? Afirmar que a
natureza de Buddha não existiria é correto, e afirmar que existiria,
também é”.
Do ponto de vista da independência, tudo quanto existe tem
a natureza de Buddha, aconteça o que acontecer neste mundo.
Mas mesmo que seja assim, se enxergamos desde o ponto de
vista da maior escuridão ou do absoluto, nada existe. Aquilo que
existe é o nada, a escuridão, na qual as miríades de fenômenos
existem como um. Existem muitos fenômenos, mas não há nada
que se possa ver ou que se possa falar. As coisas não podem ser
compreendidas se são explicadas individualmente. Isso não seria
mais que uma descrição intelectual. Temos, além disso, de
percebê-las de verdade. Se vocês conseguirem apreciar cada
coisa, uma a uma, sentirão uma grande gratidão. Mesmo se
observarem apenas uma flor, esta flor inclui tudo. Não é só uma
flor, mas o absoluto, o próprio Buddha. Assim nós o vemos. Mas
ao mesmo tempo, aquilo que existe não é mais que uma flor, e
não há alguém que a esteja vendo nem algo que possa ser visto.
Esta é a sensação que devemos ter em nossa prática e em nossa
atividade cotidiana. Nesse caso, fazendo o trabalho que fizerem,
vocês sentirão uma contínua e pura gratidão.
Quando pensamos em algo de uma forma dual, estamos
observando-o e compreendendo-o intelectualmente. Mesmo
sendo assim, é importante que não nos apeguemos às nossas

120
idéias. Esta compreensão devemos ir melhorando dia a dia
através de um puro pensamento não dual. Nós dizemos: “Não se
pode pescar duas vezes no mesmo local”. Hoje, podemos ter tido
a sorte de pescar um grande peixe num determinado lugar, mas
amanhã deveremos ir pescar em outro lugar. Também temos o
dito de que “Há uma mosca no parapeito do barco para lembrar
o lugar”. A barca está se movendo continuamente, mas quando
vocês pensam: “Oh, que lindo foi o que me aconteceu! Vou
lembrá-lo para sempre!”, estarão marcando o parapeito para
lembrar o lugar. Mas marcá-lo de nada serve, porque a barca
está sempre se movendo. Entretanto, fazemos precisamente isso.
É um bom exemplo da mente racional. Mostra-nos nossa
estupidez e nos sugere o que é a vida budista. Vocês conhecem
o antigo conto chinês do caçador que vê um coelho se
escondendo no oco de uma arvore? No dia seguinte, ele volta ao
mesmo lugar e espera que outro coelho faça o mesmo. Mas isso
é uma estupidez. Se aparece um coelho, tivemos sorte. E se não
aparece, não temos do que nos queixar. Temos de apreciar o que
estamos vendo agora mesmo, neste momento. “Oh! Que flor
mais bonita!” Devemos apreciá-la por completo, mas sem fazer
uma marca no parapeito do barco.

DIÁLOGO

ESTUDANTE: Em uma preleção anterior você disse que se


compreendemos a proximidade que mantemos com tudo, que
dependemos de tudo o mais, seremos independentes. Somos
independentes mesmo que não o compreendamos?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Na realidade, assim é, mas a


questão é que você não se sente desse modo, ou seja, não
compreende dessa forma. Mas mesmo que não se sinta
realmente próximo dos demais, como conhece este fato
121
intelectualmente, não cometerá um erro demasiado grande. Ou
ao menos não terá em conta só um aspecto da realidade, ou não
será tão arrogante.
Nesta questão há algo muito importante. Quando digo desse
modo, estou falando das coisas como se eu fosse uma pessoa
plenamente iluminada. Para uma pessoa que alcançou a
Iluminação isto é muito certo, mas para outra que não a alcançou,
são só palavras. Quando nossa prática segue esta compreensão,
constitui o verdadeiro Budismo. Nossa prática não deve ser só
intelectual. Mesmo que vocês praticarem com empenho, se não
tiverem esta compreensão, sua prática não servirá para grande
coisa, já que seguirá condicionada à idéia de algo.

ESTUDANTE: Você acaba de dizer que para uma pessoa


que tenha alcançado a Iluminação isto é muito certo e que para
outra que não a alcançou, são apenas palavras.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: E o que é que falta à segunda?


A prática. Só é certo quando vocês praticarem 座禅 ZAZEN com
empenho. Ao mesmo tempo, mesmo que praticarem com
empenho, sua prática nem sempre será completa. Pode ser que
haja um abismo entre a verdade e sua compreensão ou sua
experiência real. Vocês podem ter uma elevada compreensão
intelectual, mas um baixo nível de prática. Ter uma compreensão
intelectual é fácil, mas praticar com as emoções é difícil porque
facilmente ficamos apegados emocionalmente a algo. Desta
forma, dizemos: “É fácil compreender o nada.” e “É fácil destruir
uma compreensão intelectual”. Mas resolver um problema
emocional é tão difícil como partir uma flor de lótus pela metade.
Vocês não conseguem se desfazer dos compridos filamentos que
se formarão. Ficarão os filamentos. Resolver um problema
intelectual, ao contrário, é tão fácil como partir uma pedra pela
metade. Ela se partirá sem que fique o menor resíduo.

122
ESTUDANTE: Ver uma situação na qual uma pessoa parece
estar fazendo mal a outra me altera muito emocionalmente. Fico
alterado porque não estou vendo a situação como ele é na
realidade? Se eu a visse tal qual ela é não me alteraria?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Esta é uma pergunta muito difícil.


É difícil saber se uma pessoa está ajudando outra ou não. Se não
está procedendo corretamente, a pessoa se desgosta com ela.
Ou pelo menos se preocupa. Mas mesmo que uma pessoa esteja
ajudando outra corretamente, a pessoa também pode se alterar.
Como vocês bem sabem, é algo que pode ocorrer. Se alguém
ajuda sua namorada ou seu namorado corretamente, pode ser
que você se desgoste de qualquer maneira. Este tipo de coisa
acontece freqüentemente.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, minha pergunta esta


relacionada mais ao seguinte: Se alguém vê as coisas com
claridade, não haverá situação alguma que o afete
emocionalmente?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Que o afete emocionalmente?


Creio que não. Mas é claro que o afetará. Há uma grande
diferença entre ambas as coisas. Um Buddha pode se desgostar
facilmente, no sentido de estar profundamente afetado por algo.
Mas quando está desgostoso não é devido aos seus apegos. Às
vezes ficará com muita raiva. A cólera é permitida quando se
trata da cólera de um Buddha. Mas esta cólera não é a mesma
cólera que nós costumamos experimentar. Se um Buddha não se
desgosta quando tem de desgostar-se, está violando os preceitos.
Quando ele necessita se enraivecer, haverá de se enraivecer.
Esta é a forma característica do Mahāyanā, observar os preceitos.
Nós dizemos: “Às vezes a ira é como um por do sol”. Ainda que
pareça ira, na verdade é um belo por do sol. Se a ira brota de
uma mente pura, de uma pureza como a do lótus, então é boa.
123
ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, você observou que nossas
emoções parecem ser independentes de nossa compreensão
intelectual e têm uma vida própria que nada tem a ver com o que
conhecemos ou compreendemos. Qual é a fonte das emoções:
nosso corpo ou nossa mente? De onde surgem?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: A maior parte das vezes têm


uma origem física. Talvez sejam algo fisiológico. A mente racional
é como um rio. Quando pensamos o fazemos de forma universal,
como um rio, ignorando as condições físicas e fisiológicas.
Mas se nos centramos nas diversas condições que poderiam
acontecer – cinco, dez, cem ou mais – resultaria impossível
pensar. Uma característica da mente racional é ignorar todas as
condições e seguir seu próprio caminho, tendemos a apenas
pensar e agir. Aconteça o que acontecer, não importa. “Do que
você está falando? Nós temos que fazer isto!” Esta forma de
pensar seria típica de um homem. Uma mulher, por outro lado,
talvez levasse em conta as diversas condições, observaria-as
cuidadosamente averiguando pouco a pouco o que deveria ser
feito.
Há uma similitude entre a mente racional e a prática
emocional. Como um praticante não se interessa tanto pelas
coisas a nível emocional ou intelectual, fica mais fácil vê-las tal
qual são.

ESTUDANTE: Tenho alguma dificuldade ao escutar esta


preleção. Quando somente cantava o 參同会 SANDŌKAI sem
conhecer em absoluto seu significado, podia me concentrar
somente na respiração e na minha voz surgindo do 腹 HARA39.
Mas agora me ponho a pensar no significado do
參同会 SANDŌKAI e me esqueço do que estou fazendo. Apego-

39
Centro vital do corpo, situado logo abaixo do umbigo.
124
me às palavras e à idéia de que há um lado escuro, ou 理 RI,
convertendo-me então no lado de 事 JI. Agora quando canto o
參同会 SANDŌKAI, o lado intelectual, o lado claro, é mais forte e
não aproveito quando o estou cantando. Talvez você possa me
aconselhar algo que me ajude a vencer esta dificuldade.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não pode evitá-lo. Por isso


dou estas preleções, para que você possa ir polindo a sua
compreensão.

ESTUDANTE: Outro dia você disse que pela manhã


devemos levantar sem demora. Normalmente me levanto
facilmente, mas esta manhã ao despertar não me levantei
imediatamente da cama. Esperei até que escutei o sino pela
segunda vez e então comecei a pensar no que você havia dito
nas preleções.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: As preleções não têm culpa.


Não foi por minha culpa! [risos]

ESTUDANTE: Minha pergunta é a seguinte: Podemos


compreender subjetivamente nossa prática sem ter nenhuma
classe de compreensão objetiva ou correta, ou temos de
compreendê-la de ambos os modos e equilibrá-los? Podemos
praticar a Via de Buddha sem conhecê-la intelectualmente?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Se você conseguir fazê-lo,


haverá tido muito sorte. Mas, por desgraça, não se pode praticar
sem ter alguma compreensão intelectual dela.

ESTUDANTE: Quando nos sentamos em 座禅 ZAZEN e


mantemos uma boa postura e seguimos a respiração, temos que

125
ter em conta esses conceitos sobre o Budismo ou sobre os
quatro elementos?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, neste momento temos que


nos esquecer deles.

ESTUDANTE: Quero dizer, para praticar, preciso


compreender a idéia do Budismo?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Deverá compreendê-la porque


tendemos a ver as coisas do modo que descrevi. Tanto o estudo
como a prática são importantes. Temos de ir polindo nossa
compreensão para não nos confundirmos intelectualmente. É
importante fazê-lo.

SÉTIMA PRELEÇÃO

SEM ABRAÇAR IDÉIA


ALGUMA SOBRE
A REALIZAÇÃO,

126
NOSSA VIA É
SIMPLESMENTE
SENTAR-SE EM
座禅 ZAZEN

127
眼色耳音聲
眼は色、耳は音声、
MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

Olhos e imagens, ouvido e sons,

鼻香舌鹹醋

128
鼻は香、舌は鹹酢、
HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

Nariz e odores, língua e sabores.

然依一一法
しかも一一の法において、
SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

Cada um e todos os fenômenos dependem destas


raízes,

依根葉分布
根によって葉分布す、
NE NI YOTTE HABUNPU SU,

São como as folhas de uma árvore.

本末須歸宗

129
本末すべからく宗に帰すべし、
HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

O tronco e os ramos compartilham a mesma


essência,

尊卑用其語
尊卑其の語を用ゆ、
SONPI SONO GO O MOCHI YU,

O venerado e o vulgar se expressam de sua própria


maneira.
Em minha última preleção expliquei o que significa tudo ser
independente. Mesmo que as coisas sejam interdependentes
umas das outras, ao mesmo tempo, cada ser é independente.
Quando cada ser inclui o mundo inteiro, então cada ser é na
realidade independente.
石頭 SEKITŌ estava falando sobre a natureza da realidade
em uma época em que a maioria das pessoas se esquecia desta
questão e julgava qual escola 禅 ZEN era correta ou incorreta.
Por isso, 石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI escreveu este poema. Aqui
ele está falando da realidade desde o ponto de vista da
independência. A Escola do Sul é independente e a Escola do
Norte também é, e não há razão para termos que decidir qual é a
correta. Ambas escolas expressam à sua própria maneira o
Budismo em seu conjunto: a Escola 臨濟 RINZAI tem sua própria

130
forma de abordar a realidade, da mesma forma que a Escola
曹洞 SŌTŌ. 石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI está assinalando este fato.
Ainda que se refira à disputa entre a Escola do Norte e a Escola
do Sul, ao mesmo tempo está falando sobre a natureza da
realidade e sobre o que são os ensinamentos de Buddha em seu
verdadeiro sentido.
Agora gostaria de explicar a vocês os seguintes versos, que
descrevem a realidade desde o ponto de vista da independência:
眼 は 色 、 耳 は 音 声 、 MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,
“Olhos e imagens, ouvido e sons,” 鼻は香、舌は鹹酢、HANA
WA KA, SHITA WA KANSO, “Nariz e odores, língua e sabores.”
Parece que 石頭 SEKITŌ está falando de uma forma dual sobre a
dependência dos olhos com seus objetos. Mas quando vocês
vêem em seu verdadeiro sentido, não há nada que ver nem
alguém que esteja vendo. Isto só acontece quando vocês
analisam que há um observador e um objeto observado. É uma
atividade que pode ser compreendida de duas formas: eu estou
vendo algo, mas na realidade ninguém está vendo o que quer
que seja. Aqui 石頭 SEKITŌ está falando sobre a unidade que há
entre os olhos e a forma. Assim é como o Budismo percebe as
coisas. Compreendemos as coisas de uma forma dualista. “Eu
estou vendo algo”, ou “Alguém ou algo está sendo visto por
alguém”, não são mais que interpretações sobre o sujeito e o
objeto que nossa mente racional cria. O sujeito e o objeto são um,
mas também são dois.
石頭 SEKITŌ está dizendo aqui que para os olhos há a
forma. Quando vocês dizem “olhos”, os olhos incluem a forma.
Quando dizem “forma”, a forma inclui os olhos. Se não há uma
forma nem algo para ser visto, os olhos deixam de ser olhos. Mas
como há algo para ser visto, os olhos se tornam olhos. O mesmo
ocorre com os ouvidos, o nariz e a língua.
道元禅師 DŌGEN ZENJI disse: “Se não há um rio, não há
uma barca”, já que mesmo que haja uma barca, não será uma
barca. Mas como há um rio, uma barca pode ser uma barca. A

131
gente costuma apegar-se ao mundo objetivo, ou a algo que vê,
porque compreende as coisas somente de uma forma. Acredita
que existe independentemente de cada um. Esta é a forma
habitual de compreendê-las. “Aqui há algo muito doce para
comer”. Mas um bolinho se converte num bolinho porque nós
desejamos comê-lo. De modo que fritamos o bolinho. Mas sem
nós, o bolinho não existiria. Quando compreendemos as coisas
deste modo, estamos vendo o bolinho e, ao mesmo tempo, não o
estamos vendo. E ter esta compreensão é observar os preceitos.
Talvez possamos matar acidentalmente algum animal ou
algum inseto. Mas quando vocês pensam “Como aqui há muitas
saúvas, e estas são insetos daninhos, vou matá-las”, estarão
compreendendo as coisas só de uma maneira dualista. Na
realidade, as saúvas e os seres humanos são um. Não são
diferentes. É impossível matar qualquer saúva. Mesmo que vocês
a esmaguem, seguirá com vida. Aquela forma momentânea pode
ser que desapareça, mas enquanto o mundo inteiro - incluindo
nós mesmos - seguir existindo, não poderemos matar uma única
saúva. Quando adquirimos esta compreensão podemos manter
os preceitos por completo.
Mas ainda que seja assim, não devemos matar qualquer ser
sem uma razão, nem matá-lo inventando uma boa razão para
fazê-lo: “Como as saúvas comem as verduras da horta, devo
matá-las”, ou “Como matar animais é aceitável, dedico-me a
matar saúvas”. Matar um animal, justificando a ação com algum
argumento, não é nossa forma de agir. Na realidade, quando
matamos um animal não nos sentimos bem. Esta possibilidade
também deve ser levada em conta em nossa compreensão:
“Apesar de não gostar da idéia, haverei de matar algum animal”.
Deste modo, seguimos adiante pelo vasto mundo.
Apegar-se a alguma idéia sobre matar ou não matar, ou a
alguma razão de por que matar ou não matar, não é observar os
preceitos. A forma de observar os preceitos é compreender a
realidade por completo. É dessa forma que não matamos ser
algum. Compreendem? O modo como vocês compreendem

132
minha preleção, o modo que vocês praticam 座禅 ZAZEN, é o
modo como vocês não matam. Ou seja, vocês não devem viver
apenas no mundo da dualidade. Vocês podem contemplar o
mundo desde o ponto de vista dualista e desde o ponto de vista
do absoluto. “Matar não é bom” é o ponto de vista da dualidade.
“Ainda que você acredite haver matado um ser, não o matou”, é o
ponto de vista do absoluto. Mesmo que vocês tenham violado os
preceitos, se depois de fazê-lo sentirem uma profundo pena e
disserem para a saúva: “Eu sinto muito”, isso constitui a Via de
Buddha. Assim seguiremos praticando continuamente. Talvez
vocês acreditem que como há preceitos, deverão segui-los ao pé
da letra porque, se não o fizerem, não poderão ser budistas. Mas
sentir-se bem só porque estão observando algum preceito, isso
tampouco é a Via. Sentir pena quando matamos um animal está
incluído em nossos preceitos. Todo mundo participa neste tipo de
atividade. Mas a forma de fazê-lo e o sentimento que cada um
experimenta não é o mesmo para todos. Uma pessoa pode não
ter nem idéia dos preceitos ou da realização e, ao contrário, outra
pessoa pode estar procurando se sentir bem com a atividade
religiosa ou com a observância dos preceitos. Mas isso não é a
Via budista.
A via budista é em uma palavra, 慈 悲 JIHI, compaixão.
慈悲 JIHI significa estimular os demais quando estes se sentem
bem e também ajudá-los quando estão sofrendo. Isso é o
verdadeiro amor. A Via não se pratica apenas dando algo,
recebendo algo ou observando os preceitos, mas a vamos
praticando a medida em que as coisas vão ocorrendo de forma
natural, apoiando os demais, sofrendo com eles, ajudando-os a
aliviar seu sofrimento e animando-os a seguir e seguir. Assim é
como se observam os preceitos. Vemos algo, mas ao mesmo
tempo, não o estamos vendo. Vivemos sentindo sempre a
unidade que existe entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo,
entre os olhos e a forma, entre a língua e o sabor. Sem nos
apegarmos a nada em especial e sem nos sentirmos
especialmente satisfeitos por causa de nossa prática budista. Ao
133
praticar deste modo, somos independentes. É sobre isso que
石頭 SEKITŌ está falando.
しかも一一の法において、SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI
OITE, “Cada um e todos os fenômenos dependem destas raízes”,
根によって葉分布す、NE NI YOTTE HABUNPU SU, “São como
as folhas de uma árvore”. Os olhos, o nariz, a língua, os ouvidos,
o visto, o olfato, o paladar e o ouvido, tudo são dharmas, e cada
dharma se arraiga no absoluto, que é a natureza de Buddha. Ao
observar os múltiplos fenômenos, temos que vê-los mais além de
seu aspecto e conhecer como existe cada um deles. Existimos
por causa da raiz, da natureza de Buddha absoluta. Ao
compreender os fenômenos desse modo, somos uma unidade
com tudo.
本 末 す べ か ら く 宗 に 帰 す べ し 、 HON MATSU SUBE
KARAKU SHŪ NI KISU BESHI, “O tronco e os ramos
compartilham a mesma essência”, 尊卑其の語を用ゆ、SONPI
SONO GO O MOCHI YU, “O venerado e o vulgar se expressam
de sua própria maneira”. Empregamos distintas palavras –
palavras boas e palavras más, palavras respeitosas e palavras
cruéis – mas através delas temos de compreender o ser absoluto
ou a fonte do ensinamento. É a isso que 石頭 SEKITŌ está se
referindo aqui.
No 梵網 經 BONMŌ KYŌ40, uma importante escritura sobre
os preceitos, aparece o seguinte trecho: “Ver é não ver, e não ver

40
Fanwang Jing, em chinês. Brahmajāla-sūtra em sânscrito.
T 1484.24.997a-1010a. Acredita-se que se trata da tradução do décimo
capítulo de um texto sânscrito muito mais extenso, em 120 fascículos,
Bodhisattva-śīla-sūtra. Consiste de dois fascículos: o primeiro trata de
tópicos relacionados aos estágios do Bodhisattva e o segundo enumera os
Dez Preceitos Maiores e os Quarenta e Oito Preceitos Secundários. Este
segundo fascículo começou a circular na China por volta do século V d.C.
como um texto independente, conhecido como o “Capítulo” ou o “Livro dos
Preceitos de Bodhisattva”. Na tradição Budista do Oeste asiático passou a
ser altamente reputado como o texto canônico fundamental para a
definição dos Preceitos Mahāyāna. (N.T.)
134
é ver”. Comer carne é não comer carne, não comer carne é
comer carne. Vocês compreendem os preceitos só de uma forma.
Observam-nos não comendo carne. Mas não comer carne é
comer carne. Na realidade, estão comendo carne.
Compreenderam? Assim é como se observam os preceitos. “Não
cometer atos impuros”. Ver uma mulher é não ver uma mulher.
Não ver uma mulher é ver uma mulher.
Havia uma vez dois monges que viajavam juntos.
Chegaram a um grande rio no qual não se via qualquer ponte por
onde cruzá-lo. Enquanto permaneciam na margem, viram uma
bela mulher se aproximar. Um deles a ajudou a cruzar o rio
carregando-a nos ombros. Mais tarde, o outro monge espetou-o
furioso: “Você é um monge! Acaba de violar o preceito de não
tocar em qualquer mulher! Por que fez isto?” O monge que havia
ajudado a mulher respondeu: “Depois de ajudá-la, eu a esqueci.
Você ainda a está levando nas costas. É você que está violando
os preceitos”. Talvez não tenha sido de todo correto que um
monge levasse uma mulher nas costas. Mas ainda assim, como
todos os seres são nossos amigos, temos de ajudá-los ainda que
isso signifique violar um preceito budista. Se vocês considerarem
os preceitos somente de uma forma limitada ou literal, isso é na
realidade violar os preceitos. Ver a mulher era portanto não ver a
mulher. Quando o monge cruzou o rio com ela nas costas, na
realidade não a estava ajudando. Compreendem? Não ajudá-la
era ajudá-la no verdadeiro sentido da palavra.
Quando vocês compreendem os preceitos de uma forma
dualista – como homem e mulher, monge e laico – isto é violar os
preceitos e ter uma pobre compreensão dos ensinamentos de
Buddha. Nossa Via consiste em sentar-se em 座禅 ZAZEN sem
abrigar nenhum propósito, sem manter idéia alguma de estar
fazendo algo, sem idéia alguma de estar fazendo uma prática
importante. 41 Nosso 座禅 ZAZEN consiste em se entregar por

41
O que corresponde ao conceito 只 管 打 座 無 所 得 SHIKANTAZA
MUSHOTOKU, “apenas sentar-se sem espírito de proveito”. (N.T.)
135
completo à meditação sentada. E assim é como se observam os
preceitos. Algumas vezes ficaremos enraivecidos, e outras,
sorriremos. Às vezes nos enfadaremos com nossos amigos e
outras, ao contrário, falaremos a eles com espírito puro, mas na
realidade, o que estaremos fazendo é observarmos nossa Via.
Não posso explicá-lo demasiado bem, mas creio que vocês
entenderam o que quero dizer.

DIÁLOGO

ESTUDANTE: Não sinto que falar sobre o Budismo ou o


參同会 SANDŌKAI seja o mesmo que falar sobre minha vida ou
minha prática. Sinto que há como uma separação. Me dá a
impressão de que se está falando de outra coisa, de algo distinto
de mim.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Eu também tive esta sensação


durante muito tempo. É difícil comunicar um sentimento através
de uma preleção. Por isso, os antigos mestres torciam os narizes
de seus discípulos ou lhes davam um safanão. “Esteja aqui
mesmo! Em que está pensando?”, diziam-lhes. Em resumo, esta
é a questão. Eu estou dando voltas e mais voltas para explicar
este ponto por meio de palavras. Mas é como se estivéssemos
falando de coçar o pé que nos coça com o sapato no pé. Não
serve de grande coisa, mas ainda assim tenho que falar disso
com vocês.

ESTUDANTE: Você disse que quando matamos uma saúva


ou qualquer outro inseto, na realidade é impossível matá-los pois
tudo segue existindo. Quer dizer que cada coisa seguirá sendo
sempre cada coisa, que esta preleção seguirá sendo esta
preleção.

136
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Quando você vê “as coisas tal
qual elas é”, assim é.

ESTUDANTE: Se o corpo da saúva morre, o que ocorre com


o karma da saúva? Para onde ele vai?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: As saúvas vão para a fonte da


realidade. Sabem para onde ir. Ao manter esta conversa comigo
talvez você sinta que não são mais que palavras. Mas quando
alguém está sofrendo muito, é um grande alívio sabê-lo.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, qual é a diferença entre você e


eu?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Há e não há, ao mesmo tempo,


uma diferença, por isso praticamos juntos. Como somos
diferentes, praticamos juntos, e como não somos diferentes,
praticamos juntos. Se você fosse completamente distinto de mim,
não haveria qualquer razão para que praticássemos juntos. Mas
como somos diferentes, praticamos a Via, e como em essência
somos o mesmo, também a praticamos. Não somos diferentes e,
ao mesmo tempo o somos. Estes tipos de coisas não são fáceis
de ver. A prática tradicional emana da fonte do ensinamento, que
é o nada, o absoluto, a não dualidade. Normalmente algo nos
atrai através dos olhos ou do nariz, da visão ou do olfato, ou de
alguma outra forma, mas não através da fonte original do
ensinamento. Como a fonte original é indescritível, dizemos que
só pode ser expressa “pelo silêncio”. Estou falando sobre algo
que é impossível falar. Um 提唱 TEISHŌ na realidade não é “uma
preleção”. Não se pode explicar com palavras, mas como estou
explicando aquilo que é vazio, chamamos estas palavras de “O
dedo apontado para a lua”. Se você compreende o que é a lua, o
dedo já não é necessário. Não são as minhas palavras aquilo que

137
você deve compreender, mas realizar através de sua verdadeira
experiência o que estou tentando descrever. Como até aqui você
tem estado cego, acredita que estou falando de maneira
sofisticada de algo que se parece à chamada Via budista. Mas a
Via budista não são estas palavras, mas o significado que existe
por trás delas.

ESTUDANTE: Ao matar a saúva, não há palavras nem


recordações nem nada. Só a experiência de matá-la. Este é o
mestre que te conduz à fonte? O Mestre é a experiência de
matar a saúva, e não a conversa que mantivemos acerca disso?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Nesse momento você não


necessita sentir que é um bom budista ou um monge pecador,
nem pensar que está violando os preceitos. Quando trabalhar no
jardim com algum propósito, deve se entregar à esta atividade
por completo. Algumas vezes, talvez fique irritado com as saúvas,
mas na realidade ninguém pode criticá-lo por isto. Se te expulsam
de Tassajara por haver matado um montão de saúvas, deve ir
embora. “Está bem, vou-me embora.” Você deverá ter esta
grande confiança em você mesmo - na realidade não é confiança
- mas algo muito maior. Você não deve se confrontar com
ninguém. Se você tiver esta compreensão do que está fazendo,
significa que está seguindo a Via.

ESTUDANTE: Quando falamos que não devemos fazer mal


aos seres sensíveis, às saúvas ou a qualquer outro ser, é porque
é impossível fazer-lhes mal, porque é incorreto fazê-lo, ou por
ambas as coisas?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Por ambas as razões. E


ademais, temos que saber que é impossível fazer-lhes mal. É
impossível porque não são mais que palavras. E as palavras não
podem chegar a esse lugar [o absoluto]. Somente quando você é

138
cativo das palavras que pode dizer “é possível” ou “é impossível”.
Na realidade, a cada dia estamos matando, sacrificando algum
ser. Aplicar os ensinamentos de Buddha apenas para se justificar,
mesmo que te ajude a se sentir melhor, é ter uma compreensão
muito superficial do Budismo. Mas isso não significa que você
esteja fazendo algo errado, porque na realidade não está
matando qualquer ser. As duas coisas são certas. Mas se você
diz: “Como na realidade não estou matando qualquer ser, é
correto matar”, isso tambem é errado, já que você está se
aferrando a uma idéia ou a um preceito que em si mesmo não é
mais que palavras. Não é o verdadeiro coração, o verdadeiro
sentimento de Buddha.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, cada animal tem uma forma de


viver, de comer, de criar suas crias e de se relacionar com o
mundo que está em harmonia com o Dharma particular ou o
道 Tao de seu ser. Também nós, seres humanos, temos nossa
forma particular de viver, de comer e de criar nossos filhos que
esteja em harmonia com nosso Dharma ou 道 Tao?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Absolutamente. Mas temos que


nos esforçar ao máximo para manter o Dharma, que é sobre o
que estas palavras tratam. As palavras são necessárias, mas
ainda que sejam necessárias, não devemos acreditar que são
completas. Temos de nos esforçar constantemente para produzir
um novo Dharma, novos preceitos. Dizemos: “Isto é a vida
humana”. Mas esta vida humana é a de hoje e não a de amanhã.
Amanhã temos que vivê-la melhor que agora. Este tipo de
esforço deve ser contínuo. Quando nos sentimos mal significa
que temos de melhorar nossa Via. Mas não esperem um Dharma
perfeito que lhes diga claramente se “devem” ou “não devem”
fazer algo. Ninguém pode insistir que seu próprio caminho é o
melhor, mas temos de apreciar o esforço que essa pessoa faz
para melhorar o Dharma. Compreende?

139
ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, você disse que devemos ir
melhorando sempre, dia a dia, nossa forma de agir, fazer tudo
quanto possamos. Ouvi dizer que “Para que o verdadeiro
ensinamento siga sendo transmitido, o discípulo há de superar o
mestre”. Podemos seguir transmitindo o Dharma mesmo que não
superemos o mestre?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Como “superar” é também


uma palavra dualista, não devemos nos apegar a ela. Não há
razão alguma para que você se sinta bem ou mal se me superar.
Falar sobre o que é melhor são apenas palavras. Inclusive criar
uma nova página na história do Dharma é muito difícil. Mesmo
que você acredite que inventou algo novo, Buddha sempre estará
te esperando ali e te dirá: “Oh, venha! Você fez muito bem!
Chegue mais perto, tenho algumas coisas a mais para você”. É
muito difícil superar seus ensinamentos.

OITAVA PRELEÇÃO

140
NA LUZ HÁ A MAIOR
ESCURIDÃO

141
當明中有暗
明中に当って暗あり、
MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI,

142
Em meio à luz há escuridão,

勿以暗相遇
暗相をもって遇うことなかれ、
AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE,

Mas não a veja só como escuridão.

當暗中有明
暗中に当って明あり、
AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI,

Em meio à escuridão há luz,

勿以明相覩
明相をもって覩ることなかれ、
MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE,

143
Mas não a veja só como luz.

Em primeiro lugar, falarei sobre os dois termos, 明 MEI e


暗 AN, “luz” e “escuridão”. A luz significa o relativo, o mundo
dualista das palavras, o mundo mental, o mundo visível no qual
vivemos. A escuridão se refere ao absoluto, onde não há um
valor de troca ou um valor materialista, ou nem sequer um valor
espiritual: é o mundo no qual nossas palavras e nossa mente
racional não podem chegar. Por vivermos no reino da dualidade,
precisamos ter uma boa compreensão do absoluto; talvez vocês
acreditem que se trata de uma deidade, mas no Budismo não há
qualquer idéia em particular sobre uma deidade. O absoluto é o
absoluto porque transcende nosso pensamento intelectual ou
dualista. Não podemos negar o mundo do absoluto. Muita gente
diz que o Budismo é ateísta porque nele não há qualquer idéia
em particular de Deus. No Budismo sabemos que existe o
absoluto, mas como também sabemos que ele está mais além do
limite da mente racional, não falamos demasiado dele. Isso é o
que significa 暗 AN, “escuridão”.
明中に当って暗あり、MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI, “Em
meio à luz há escuridão”, Esta é uma tradução literal, mas a
tradução literal não tem demasiado sentido. Temos de
compreender o verdadeiro sentido de あり ARI, “há”. Em japonês
há dois caracteres que significam “há”: 有 ARI e 在 ZAI. Quando
dizemos em japonês que há algo sobre a mesa, ou sobre a terra,
ou em Tassajara – algo que está sobre ou dentro de alguma
coisa – usamos o caractere 在 ZAI, e quando dizemos: “Tenho
duas mãos”, ou “Em você há duas mãos”, usamos 有 ARI42. Na
realidade, estamos dizendo: ”Há duas mãos”, ou “Em você há
42
Atualmente, não se usa mais o 漢字 KANJI 有 ARI, mas a transcrição no
silabário 平仮名 HIRAGANA, あり ARI. Para uma melhor compreensão, no
comentário foi mantido o caractere 有 ARI . (N.T.)
144
duas mãos”. Uma parte do caractere 有 ARI significa “carne”, ou
“pele”, o que mostra uma relação muito íntima entre a luz e a
escuridão, como a relação que há entre minha pele e eu. Mas ao
traduzir a frase em seu idioma: “Em meio à luz há escuridão”, soa
mais dualista. Na sua língua vocês dizem: “Eu tenho uma pele”,
ou “Eu tenho mãos”. Mas as mãos e a pele são uma parte de
vocês, na realidade não é para ser algo dualista. A pele faz parte
de cada um de nós. As mãos são suas mãos. Em sua língua
vocês dizem: “Tenho duas mãos”. Mas para suas mãos, quando
elas ouvem vocês dizerem isto soará um tanto extraordinário:
“Oh! Somos uma parte de você e, sem embargo, você diz que
tem duas mãos”, elas pensarão. “O que isso quer dizer? Que
parte de você é que tem duas mãos?” Se fosse possível, creio
que deveria haver outra maneira de expressar isso em sua língua.
Nesta linhas, 有 ARI significa que há uma relação muito
íntima entre a luz e a escuridão. E na realidade a própria
escuridão é luz. A escuridão ou a claridade se encontram na
mente de cada um. Nela vocês têm um modelo ou medida do
quão clara ou escura é esta sala. Se ela é excepcionalmente
clara, vocês dirão que é clara; e se for excepcionalmente escura,
dirão que é escura. Mas alguém poderá dizer: “Esta sala é clara”,
e, ao mesmo tempo, outra pessoa afirmar: “Esta sala é muito
escura”. Alguém que chegue de São Francisco à noite pode
dizer: “Oh, Tassajara é muito escuro!” e, ao contrário, alguém que
acabe de sair de uma caverna ira assegurar: “Tassajara está
muito iluminada, parece uma capital”. A idéia de luz ou escuridão
está em nossa própria mente. Como temos algum modelo disso,
dizemos luz ou escuridão, mas na realidade a luz é escuridão e a
escuridão é luz.
Ainda que digamos “escuridão”, não significa que haja
nada. Quando há luz, vocês podem ver muitas coisas, como os
caucasianos e os japoneses, os homens e as mulheres, as
pedras e as árvores. Estas coisas aparecem na luz. Quando
dizemos “escuridão” ou “mundo do absoluto”, que transcende
nosso pensamento, talvez vocês acreditem que este mundo é

145
muito distinto de nosso mundo humano, mas isso também é um
erro. Se vocês compreenderem a escuridão desta maneira, não
se tratará da escuridão a que se refere o poema.
Alguns de vocês estão preparando a comida para o
casamento de Ed e Meg. Serão servidos vários pratos, que serão
colocados em distintos lugares. Isto é a sopa, isto é a salada, isto
é a sobremesa. A luz é isso. Mas quando vocês comerem, os
diferentes pratos vão se misturar nas suas barrigas. Então não
haverá mais sopa, nem pão, nem sobremesa. Naquele momento
os alimentos estarão sendo assimilados juntos. Quando os
diversos alimentos estão nos pratos, como ainda não estão
sendo digeridos, na realidade ainda não são comidas, mas luz. E
quando estão em suas barrigas, são escuridão; mas inclusive na
escuridão, continua havendo alface, sopa e tudo mais. A comida
é a mesma, mas só começa a ser assimilada quando muda de
forma. Na maior escuridão as coisas ocorrem deste modo. Na luz
vocês sentem bem isso, sentem como se tivessem um prato
especial diante de si, mas a comida ainda não está
desempenhando sua função.
Quando vocês não sabem o que estão fazendo, na realidade
estão agindo plenamente, com toda a mente. Quando vocês
estão pensando, ao contrário, ainda não estão agindo. Quando
se inicia a ação, estão presentes tanto o lado escuro como o lado
claro. Quando vocês praticarem plenamente a Via budista,
existirá o lado claro e a escuridão, e a relação entre a luz e a
escuridão é esta relação de 有 ARI, é como a relação que existe
entre a pele e o corpo. É impossível dizer o que é a pele e o que
é o corpo.
暗相をもって遇うことなかれ、AN SŌ O MOTTE AU KOTO
NAKARE, “Mas não a veja só como escuridão”.
(勿れ) なかれ NAKARE significa “não” e (以て) もって MOTTE,
significa “com”. 暗相 AN SŌ, “lado escuro”, ou ponto de vista
obscurecido”. O caractere 遇う AU 43 significa “encontrar-se”, e

43 No original “O”. (N.T.)


146
implica que se trata a pessoa com a qual se encontra como a um
amigo. Encontrar-se ou reunir-se como as nuvens se encontram
com a montanha Tassajara. Aqui está a montanha Tassajara, e
ali, as nuvens, e as nuvens do oceano se encontram com a
montanha. Esta classe de relação é 遇う AU. Vocês não devem
se encontrar com alguém somente compreendendo a escuridão.
Se vocês se encontrarem com um amigo sem abrir os olhos,
ignorando sua idade ou se está receptivo, não estarão se
encontrando de fato com ele. Seria como compreender apenas
um lado, porque na escuridão há luz. Ainda que a relação que
vocês mantenham com seu amigo seja muito íntima, ele segue
sendo quem é e vocês seguem sendo quem são. Talvez a
relação seja como a de um marido e sua esposa. O marido é o
marido e a esposa é a esposa; isso é uma relação real. Não se
encontrem com seu amigo sem compreender a luz ou a
dualidade. Uma relação íntima é a escuridão porque, se a relação
é muito íntima, você é um com a outra pessoa, ainda que você
continue sendo você e seu amigo siga sendo quem é.
O terceiro e quarto versos são similares ao primeiro e
segundo. Dizem o mesmo que o primeiro e o segundo, mas de
uma forma distinta. 暗中に当って明あり、AN CHŪ NI ATATTE
MEI ARI, “Em meio à escuridão há luz”,
明相をもって覩ることなかれ、MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO
NAKARE, “Mas não a veja só como luz”. Na escuridão, ainda que
mantenhamos uma relação íntima, continua havendo a dualidade
de “homem” e “mulher”. Esta dualidade é a luz. Mas vocês não
devem ver os demais apenas com os olhos da luz, porque o outro
lado da luz é a escuridão. A escuridão e a luz são como as duas
faces de uma moeda.
Tendemos a ficarmos aprisionados nas idéias
preconcebidas. Se vocês têm uma experiência negativa com
alguém podem pensar: ”Oh, é uma pessoa má, sempre se porta
mal comigo!” Mas pode ser que não seja assim. Vocês a estão
vendo apenas com os olhos da luz. Devem saber porque ela se
porta mal com vocês. Como sua relação é tão próxima, tão íntima,
147
é mais que uma relação entre duas pessoas. Vocês são um só.
Ou seja, quando ela se enraivece, vocês também se enraivecem.
Vocês precisam compreender o outro lado da luz, que é a
escuridão. Neste caso, mesmo que se irritem com esta pessoa,
não se sentirão mal. “Oh, ficou tão irritado comigo porque temos
uma relação muito íntima”, pensarão. Mas quando vocês pensam
que a pessoa é má, resulta difícil mudar a idéia que têm dela. Ou
melhor, é certo que às vezes a pessoa é má, mas neste momento
vocês não sabem se é boa ou é má. Precisam averiguar.
Não há que se apegar à idéia de escuridão ou luz, nem à de
igualdade ou diferença. A maioria das pessoas, quando guarda
rancor de alguém fica quase impossibilitada de mudar seus
sentimentos. Mas se somos budistas temos de ser capazes de
mudar nossa mente de mau para bom e de bom para mau. Se o
conseguirem, “mau” deixará de significar mau e “bom” deixará de
significar bom. Mas ao mesmo tempo, bom é bom e mau é mau.
Compreendem? Assim é como temos que compreender a relação
que mantemos entre nós. Há um poema que diz:

A mãe é a montanha azul


e as filhas são as nuvens brancas.
Não se separam durante todo o dia e,
sem embargo,
não sabem quem é a mãe e quem são as filhas.

A montanha é a montanha e as nuvens são as nuvens


brancas flutuando ao redor da montanha como filhas, mas não
sabem que são nuvens brancas ou montanhas azuis. E ainda que
o ignorem, sabem-no muito bem, tão bem que não o sabem.
Esta é a experiência que vocês terão em sua prática de
座禅 ZAZEN. Ouvirão o som dos insetos e do córrego. Enquanto
estiverem sentados em 座禅 ZAZEN, o córrego flui e vocês o
ouvem. Mas ainda que o ouçam, em suas mentes não surge
qualquer idéia sobre o córrego nem sobre o 座禅 ZAZEN. Vocês

148
estão simplesmente sentados sobre um 坐蒲 ZAFU negro. Estão
aí como se fossem uma montanha azul rodeada de nuvens
brancas. Este tipo de relação é explicada totalmente nestes
quatro versos do 參同会 SANDŌKAI.

DIÁLOGO

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, qual tradução está utilizando?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Estamos utilizando várias. Uma


tradução não pode ser perfeita. É difícil, quase impossível,
traduzir o poema porque inexistem alguns termos equivalentes
exatos. 有 ARI pode aqui significar “nada”, já que “há” significa
“não há”. “Luz” significa “escuridão”. Mas “luz” não significa nada
se também significa “escuridão”. Por isso disse em outra preleção
que as palavras do poema eram como uma espada com fio duplo.
Luz? Escuridão? Qual das duas opções é a correta? Que
significado têm? Mas de todo modo continua havendo tanto luz
como escuridão.
Você não deveria ter qualquer pergunta sobre esta questão,
mas se a tem, por favor, pode me fazê-la... se quiser levar uma
varada! [risos]

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, o que dizer sobre a


concentração? Você disse que as nuvens não sabem que são as
filhas da montanha e vice-versa, mas quando rumamos para as
refeições e descobrimos nossas tigelas de madeira e as
dispomos sobre a mesa, concentramo-nos nisso sem escutar o
córrego. É uma atividade distinta.

149
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É a mesma atividade.

ESTUDANTE: Para mim é distinta.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Por isso você recebe as varadas.


[risos] Quando você realmente se concentra, a luz e escuridão
são uma só coisa, mas quando você pensa nisso há dois lados.
Neste momento você está me fazendo uma pergunta. E como
quando a está fazendo está pensando, para mim fica difícil
respondê-la. Talvez tenha de me irritar muito contigo. É a única
maneira que você compreenderá. Se receber uma varada
provavelmente deixará de pensar nisso.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, por que raspamos a cabeça?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSH: Para que suas mentes racionais


possam ser tão naturais e suaves como isto [coça a cabeça
raspada com a mão]. Claro... escuro... muito natural. E também
para nos desfazermos dos adornos. Não devemos conservar
nada supérfluo.

ESTUDANTE: : O Sūtra do Diamante44 diz que nesta vida


sofremos desgraças por culpa dos pecados ou erros cometidos
em vidas passadas e que, ao sofrê-las agora, remediamos esses
erros ou os quitamos, expiando-os e preparando o terreno para a
Iluminação. Parece uma carga muito pesada. Acrescente uma
nova dimensão a este meu questionamento.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Vou ajudá-lo. O fato de que


agora você esteja sofrendo não significa que alguém esteja

44
Em sânscrito, Vajracchedikā-prajñāpāramitā-sūtra. 金剛經 KONGŌ
KYŌ em japonês. (N.T.)
150
fazendo você sofrer, mas que você mesmo causou seu
sofrimento. Se compreender isto, não se queixará. Mas ao
mesmo tempo, se compreender sua vida apenas do ponto de
vista do karma, da explicação dualista de porque sofremos, ficará
aprisionado na idéia de karma. Não devemos ver as coisas a
partir de um só lado. Ainda que no Budismo se fale de “karma”, o
karma não existe. Mas se o karma não existe, você pode dizer:
“Faça o que fizer, estará tudo bem!” o que significa que ficará
aprisionado à idéia da escuridão. Outro dia, estivemos falando de
porque matamos as saúvas. Vimo-nos obrigados a matá-las, mas
isto não significa que seja correto fazê-lo. Não o é. Devemos
compreender nossas ações levando em conta ambos os lados.
Se você não se sente bem ao matá-las, deverá se esforçar mais,
descobrir como proteger as verduras da horta sem prejudicar as
saúvas. Mas sem perder demasiado tempo com isso, se não sua
prática seria prejudicada. De qualquer maneira, você deverá
seguir encontrando algumas boas idéias, uma após a outra.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, qual é a diferença entre


compreender as coisas e as atividades desde ambos os lados e
não compreendê-las em absoluto?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Oh! Não é necessário falar de


não compreendê-las em absoluto! [risos] Se você tiver a
oportunidade de escutar uma preleção ou de ler um livro, já terá
compreendido algo.
A verdade é a verdade. Não há duas verdades, mas uma só.
Quando você compreende a verdade só com a mente, pode
acreditar que é a verdade. Mas comparada com sua atividade,
sentimento ou vida reais, a verdade que você compreende com a
mente não é a verdade autêntica. Como nossa própria vida não é
tão fácil como nossos pensamentos, é fácil se convencer de que
a idéia que temos é a perfeita verdade. Mas em nosso caso não é,

151
porque esta classe de pensamento não coincide com nossa
própria vida.
Existem duas formas de compreender a verdade. Uma é
compreendê-la intelectualmente. “Compreendo-a”, dizemos, mas
esta compreensão não é mais que uma compreensão intelectual.
Compreendendo-a ou não, a verdade seguirá sendo a verdade,
mesmo que o Buddha tenha aparecido ou não neste mundo. A
outra forma de compreendê-la é saber que algo pode ser certo
para um Buddha ou para uma pessoa iluminada, mas para nós
não o ser. Como não podemos aceitar a verdade fundamental tal
como ela é, para nós parece que ela não é certa. Esta é a
verdade com a qual trabalhamos em nossa prática, a verdade
não é sempre certa.

ESTUDANTE: Ainda que muitos praticantes da época de


Buddha tenham alcançado o Samādhi 45 , Buddha não aceitava
este Samādhi até que este se estabelecia acompanhado da
equanimidade. É isso o que você acaba de dizer?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Nossa Via não é enfatizar


alguma concepção. Nós mantemos posturas intransigentes em
nossa própria vida. Por isso temos de praticar. É certo que todos
temos a natureza de Bhuddha, tendo Buddha dito isto ou não.
Mas, por desgraça, a maioria de nós não se dá conta de que a
temos. Não sei porque.

ESTUDANTE: Quando se chega a perceber a escuridão na


luz e a luz na escuridão, elas se convertem por fim no mesmo ou
permanecem separadas como luz e escuridão?

45
Samādhi, 三昧 ZANMAI em japonês. Na designação budista, significa
uma meditação profunda, um estado de consciência não dualista no qual
sujeito e objeto se fazem um, ou a unidirecionalidade da mente.
(N. ed. Esp.)
152
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim, são o mesmo, mas nossa
mente preguiçosa separa a escuridão da luz. Nossa Via consiste
em submergirmos na luz, para encontrarmos a escuridão na luz,
para encontrarmos a natureza de Buddha no perfeito
座 禅 ZAZEN. Tendo sonhos ou não, sendo bons ou maus
estudantes, vocês deverão se sentar em 座禅 ZAZEN. É a única
forma para que a escuridão esteja presente em sua clara prática
dualista.

153
NONA PRELEÇÃO

154
A NEVE NÃO PODE
QUEBRAR O SALGUEIRO

155
明暗各相對

156
明暗おのおの相対して、
MEI AN ONO-ONO AITAI SHITE,

Luz e escuridão se opõem uma a outra,

比如前後歩
比するに前後の歩みのごとし、
HISU RUNI ZENGO NO AYUMI NO GOTOSHI,

Como o pé direito e o esquerdo ao caminhar.

Ainda estamos falando sobre a realidade desde o ponto de


vista da independência. A dependência e a independência são na
realidade as duas faces de uma moeda.
As pessoas costumam dizer que os japoneses são muito
duros. Mas isto não é mais que um lado da personalidade
japonesa. O outro é a suavidade. Por causa de seu passado
budista foram educados desse modo durante muito tempo, mas
os japoneses são muito amáveis.
Temos uma canção infantil que descreve um herói chamado
桃太郎 MOMOTARŌ, o Menino Pêssego 46 . Era uma vez um
casal idoso que vivia junto à margem de um rio. Um dia a anciã
viu um pêssego boiando na correnteza e o pegou. Ao regressar a

46
A história completa de 桃太郎 MOMOTARŌ e uma versão da letra da
música se encontram no APÊNDICE 02, ao final do livro. (N.T.)
157
sua casa saiu 桃太郎 MOMOTARŌ do pêssego. As crianças
japonesas cantam uma canção sobre ele que diz: “É muito forte,
mas muito amável e doce”. É o ideal do caráter japonês. Como se
diz na sua língua? Vocês devem ter uma expressão para isso.

ESTUDANTE: Um herói popular?

Sim, um herói popular. Sem uma mente doce, não se pode


ser realmente forte. Se 桃太郎 MOMOTARŌ não tivesse este
aspecto em seu caráter, se não fosse muito compreensivo, não
poderia ser forte de verdade. Uma pessoa que é forte só para si
mesma na realidade não o é, mas uma pessoa forte e que além
disso é amável ajudará os demais e será completamente um
herói popular. Quando temos tanto um lado suave quanto um
lado forte, podemos ser verdadeiramente fortes.
É mais fácil lutar e vencer do que suportar uma derrota sem
chorar. Vocês deverão ser capazes de permitir que seus inimigos
os vençam. Estamos de acordo? Mesmo que seja muito difícil.
Mas enquanto vocês não sejam capazes de suportar a derrota,
não poderão ser realmente fortes. A disposição para a debilidade
pode ser um sinal de força. Nós dizemos: “A neve não pode
quebrar o salgueiro”. O peso da neve talvez possa quebrar os
ramos das árvores, mas não poderá quebrar os ramos de um
salgueiro, mesmo que sejam dobrados e retorcidos, mesmo que
caia tanta neve como caiu no ano passado. O bambu também se
dobra facilmente. A uma simples vista parece débil, mas a neve
não consegue quebrá-lo.

比 す るに 前後 の歩 み の ご とし 、HISU RUNI ZENGO NO


AYUMI NO GOTOSHI, “Como o pé direito e o esquerdo ao
caminhar”. A escuridão e a claridade – o absoluto e o relativo –
são um par de opostos como o pé direito e o esquerdo ao
caminhar. É uma forma muito boa de explicar a unidade ou a
verdadeira função de um par de opostos. Expressa como
utilizamos pares de opostos como a ilusão ou a iluminação, a
158
realidade e a idéia, o bom e o mau, a debilidade e a força, em
nossa prática diária. Para aqueles que acreditam serem muito
fortes, talvez seja difícil serem débeis. E aqueles que acreditam
que são débeis, talvez nunca tentem ser fortes. É algo que pode
ocorrer. Mas algumas vezes temos que ser fortes e, outras,
débeis. Se vocês sempre forem débeis ou sempre pretenderem
serem fortes, não poderão sê-lo no verdadeiro sentido da palavra.
Quando vocês aprenderem algo, deverão ser capazes de
ensinar o que aprenderam aos demais. Deverão se esforçar tanto
em ensinar como para aprender. E se desejarem ensinar,
deverão ser suficientemente humildes, como para aprender algo.
Então poderão ensinar. Se pretenderem ensinar algo só porque
sabem de algo, não poderão ensinar o que quer que seja.
Quando vocês estiverem dispostos a aprender algo de alguém,
então, se necessário, poderão ensinar algo aos demais no
verdadeiro sentido da palavra. Aprender é ensinar e ensinar é
aprender. Se vocês acreditam que serão sempre estudantes,
nada poderão aprender. A razão pela qual vocês aprendem algo
é para ensinar aos demais o que tiverem aprendido.
Não existem normas de conduta estabelecidas, mas vocês
bem que descobrirão suas próprias normas quando tentarem
ensinar algo aos demais. Antes que o Japão perdesse a guerra e
se rendesse incondicionalmente, os japoneses acreditavam ter
ensinamentos morais que eram totalmente corretos. Acreditavam
que se só se observassem aquele código, não cometeriam erro
algum. Mas desgraçadamente o código moral foi criado no
principio da era 明治 MEIJI (1868-1912). Depois de perder a
guerra deixaram de confiar em sua moralidade e não sabiam
mais que tipo de conduta moral deveriam observar. Não sabiam o
que deveriam fazer. Mas na realidade não deveria ser tão difícil
encontrar um código moral. Naquela época eu disse a alguns
japoneses: “Vocês têm filhos. A medida em que os forem criando
irão conhecendo espontaneamente seu próprio código moral”.
Quando vocês acreditam que o código moral é só para vocês
mesmos, estão compreendendo só um lado, já que um código

159
moral é para ajudar os demais. O código moral que vocês
descobrirão quando desejarem ajudar os demais e serem
bondosos com eles, será também bom para vocês.
Temos um dito que diz: “Afastar-se cem quilômetros para o
leste é afastar-se cem quilômetros para o oeste”. Quando a lua
esta no alto do céu, a lua estará na profundidade da água. Mas
normalmente a gente observa a lua que há sobre a água sem vê-
la nela. Que a lua esteja na profundidade da água significa que a
lua esta no alto do céu. A lua que há no céu é independente e a
lua que sobre a água, também o é, mas a lua sobre a água é ao
mesmo tempo a lua que está dentro da água. Devemos
compreender isto. Quando vocês são fortes, deverão ser fortes.
Deverão ser muito duros. Mas esta dureza surge de sua doce
amabilidade. E quando são amáveis deverão ser amáveis. Mas
isso não significa que não sejam fortes.
Talvez as mulheres não sejam fisicamente tão fortes como
os homens. Por isso costumam ser mais forte do que eles. Na
realidade, não se sabe quem é mais forte. Quando possuímos
por completo nossa própria natureza independente, nossa força é
a mesma que os demais. Se vocês se dedicarem a comparar
quem é mais forte, se vocês ou eu, não serão verdadeiramente
fortes. Mas quando são totalmente independentes, quando são
um com sua própria natureza, vocês são um poder absoluto em
uma situação relativa. Quando distintas classes de pessoas
competem entre si, significa que não são demasiado fortes. Mas
quando se convertem todas nelas mesmas, então cada um tem
um poder absoluto. Compreenderam?
A luz e a escuridão, ainda que sejam um par de opostos
são idênticas, igual ao pé direito e o esquerdo ao caminhar.
Quando vocês andam, o pé que se movimenta adiante se
converte imediatamente no pé que fica para trás. É o passo dado
com o pé direito que move o pé adiante ou que o deixa para trás?
Qual deles é? Qual deles é luz e qual é a escuridão? É difícil de
dizer.

160
Quando vocês andam, não há um pé que está adiante nem
outro que esteja atrás. Se pararem e refletirem sobre isso, às
vezes o pé direito ficará adiante e o esquerdo, atrás. Mas
quando os seus pés estão andando, quando vocês estão
realmente praticando a Via, não há luz nem escuridão, nem um
pé adiante ou um pé atrás. Se eu dissesse que vocês deveriam
sentar-se simplesmente em 座 禅 ZAZEN sem pensar, vocês
poderiam acreditar que é para não ter pensamento algum. E
então cairiam aprisionados na idéia que o pé direito esta adiante
e o esquerdo, atrás. E não poderiam mais andar. Quando vocês
andam, fazem-no sem hospedar nenhuma idéia sobre o pé
esquerdo ou pé direito. Mas se tentarem se fixar no pé direito ou
esquerdo, não poderão andar nem correr.
Como já disse em outra preleção, antes de mastigar a
comida, há arroz, pepininhos em conserva e sopa. Mas quando
vocês mastigarem não há mais arroz nem pepininhos nem sopa.
Depois de mastigarem a comida em suas bocas ela será digerida
dentro de sua barriga e cumprirá seu fim. Mas ainda que seja
assim, temos que servir um prato após o outro e a sobremesa
deverá ser oferecida no final. Há uma ordem. Mas apesar de
haver uma ordem, vocês haverão de mastigar a comida e
misturá-la, senão ela não cumprirá sua finalidade. É necessário
pensar nela, e ter uma receita, mas também é necessário
mastigá-la e misturá-la. Isto constitui uma interpretação muito boa
da realidade e uma boa ilustração de como praticamos a Via e da
classe de atividade que tem lugar em nossa vida cotidiana. Com
estas linhas se completa a interpretação de 石頭 SEKITŌ sobre a
realidade à luz da “independency”.47

DIÁLOGO

47
Este trocadilho é intraduzível. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI sabe que em
inglês “dependência” é “dependence” ou “dependency”, e que
independência é, por sua vez, “independence”, mas decide inventar a
palavra “independency”. (N.T. ed. Esp.)
161
PRIMEIRO ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, em inglês há a
palavra “independent” e “independence” mas não existe a
palavra “independency”.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Oh! Perdão! “independence”.


Ainda que o substantivo seja “independence”, para mim essa
palavra não convém.

OUTRO ESTUDANTE: Em inglês temos o substantivo


“dependence”, então bem que poderíamos ter também
“independency”.

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Mas vocês têm a palavra


“independency”?

PRIMEIRO ESTUDANTE: Agora sim temos “independency”.

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: É que “independent” soa


demasiado rotundo. Se vocês são independentes [golpeia a mesa
com sua vara]. Isso é tudo! Já não importa mais nada. Mas no
budismo não é assim. Quando alguém é independente, está
numa situação muito vulnerável ou perigosa.

ESTUDANTE: A gente pensa que é independente. É uma


ilusão?
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Quando você pensa “sou
independente”, não está certo. Cada um depende de tudo.

ESTUDANTE: Não entendo como pode se conhecer a


diferença entre o que se supõe que uma mulher ou um homem
devem ser. Se uma mulher compete com um homem, alguém

162
poderia dizer que ela é fraca, mas para começar, como pode
alguém saber o que uma mulher ou um homem deve ser?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Eu não estou dizendo que seja


fraca. Se um homem e uma mulher competem e são comparados
entre si, ao estabelecer algum tipo de modelo ou de categoria,
algumas vezes, o homem será mais forte e, outras, a mulher.
Mas quando você se converte em si mesmo, totalmente numa
mulher ou num homem, sempre terá um valor absoluto e será
insubstituível.

ESTUDANTE:Tenho alguns problemas com esta importante


preleção. Gostaria que você me dissesse mais sobre ela, mas
não sei exatamente o que. Não percebo onde vai dar. Mas
quando você fala dos pares de opostos ou de coisas parecidas,
compreendo.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Isto que estou dizendo é para


lhes oferecer outra compreensão da realidade. Vocês estão
vendo as coisas desde um lado ou desde outro, e se apegam a
uma compreensão que só leva em conta um lado. Por isso estou
falando desse modo. É necessário.
Falando com propriedade, nós budistas não temos
ensinamentos. Não temos Deus nem deidades. Nada temos. O
único que temos é o nada, isso é tudo. Assim, como é possível
para os budistas serem religiosos? Que classe de serenidade
temos? Esta é a questão. A resposta não é que há que adquirir
alguma idéia especial sobre Deus ou sobre uma deidade, mas
compreender a realidade com a qual estamos sempre nos
confrontando. Onde estamos? O que estamos fazendo? Quem é
ele? Quem é ela? Ao observar assim as coisas, não
necessitamos qualquer ensinamento especial sobre Deus, porque
para nós tudo é Deus. A cada momento estamos vendo Deus.e
cada um de nós é também Deus ou Buddha. Não necessitamos

163
hospedar qualquer idéia especial sobre Ele. Pode ser que essa
seja a questão.

ESTUDANTE: RŌSHI, para mim isto soa muito bem, mas


então por que fazemos os votos? Por exemplo, quando Ed e Meg
se casaram, você disse que eles deveriam tomar refúgio nos Três
Tesouros (Buddha, Dharma e Sangha) e observar os dez
preceitos fundamentais.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Nós fazemos votos, observamos


os preceitos e lemos os Sūtras. Mas ainda que vocês leiam as
escrituras e observem os preceitos, se não compreenderem
corretamente os preceitos, estes serão luz ou então escuridão, e
quando vocês estiverem aprisionados desse modo ou
dependendo demasiadamente dos preceitos ou das escrituras,
estes deixam de ser preceitos os escrituras budistas.

ESTUDANTE: Suponhamos que eu me comprometa a


seguir o preceito de não falar mal dos outros. Se não sigo, parece
como se não servisse para nada, e se eu o sigo, parece que
ficaria aprisionado nele. Não entendo. Se os preceitos não são
umas regras rígidas, é como se não servissem para nada, e se
são, parecem estar em desacordo com o 參同会 SANDŌKAI.
Sempre me intrigou a parte do canto que cantamos na hora
de comer que diz: “... para não fazer o mal e praticar o bem” 48.

48
Durante a invocação das refeições, temos o 擊鉢之偈 KEIHATSU NO
GE:

上分三寶 、JŌBUN SANBŌ,


A parte superior para os Três Tesouros,
164
Em outra ocasião, perguntei-lhe o que isto queria dizer e você me
respondeu que significava que deveríamos prestar atenção ao
que estávamos fazendo. Se assim é, porque não o dizemos com
essas palavras? Se assim é, por que não dizemos: “Prometo
praticar 座 禅 ZAZEN em minha vida cotidiana sem ficar
aprisionado nas regras”? Por que temos de recitar esta
embromação sobre o “bem e o mal”? Soa tão falso!

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Não! Você está tentando


argumentar comigo, isso é tudo [risos]. Você necessita dos
preceitos, mas na realidade é impossível violá-los. Você não
pode fazê-lo. Mas acredita que sim. Se assim acredita, deverá
aceitar seus sentimentos, e se os aceita, então deverá dizer:
“Perdão!” ou “Sinto muito”, ou algo parecido. Isso também é algo
muito natural. “Não matar” é um preceito que segue funcionando,

中分四恩、CHŪBUN SHI ON,


A parte do meio para o Quatro Veneráveis,

下及六道、 GEKYŪ ROKU DŌ,


A parte inferior para os Seis Mundos,

皆同供養。 KAI DŌ KUYŌ.


Assim comemos com todos.

一口、為段斷一切惡 。IKKU I DAN ISSAI AKU,


Primeiro, para extinguir o mal.

二口、為修一切善。 NIKU I SHU ISSAI ZEN,


Segundo, para praticar o bem.

三口、為度諸衆生。 SAN KU I DO SHO SHU JŌ,


Terceiro, para salvar todos os seres.

皆具共成佛道 KAI GU JŌ BUTSU DŌ.


E nos tornarmos o Caminho de Buddha. (N.T.)
165
não é nem o pé de trás nem o pé da frente. Compreende? Se
você lê os preceitos e diz: “De acordo, vou cumpri-los” isso são
os preceitos. E quando eventualmente violar algum deles, poderá
dizer: “Oh, sinto muito!”. É algo muito natural.

ESTUDANTE: Alguns dos preceitos me parecem naturais,


como por exemplo, o de que não devemos dizer coisas cruéis
sobre os outros. Mas o preceito de não tomar drogas nem
bebidas alcoólicas não me parece natural. Para mim faria muito
mais sentido se todos os preceitos fossem naturais, já que então
desejaria segui-los de maneira natural.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se esse é o seu sentimento,


deveria também dizer: “Para mim é muito natural nascer e viver
neste mundo”. Mas é natural? Você já supôs algo que não
deveria ter suposto. Por que você veio a este mundo? Pode ser
que isso já seja um grande erro. [risos]

ESTUDANTE: Quando eu vim aqui ninguém me falou nada


de preceitos. Só queriam saber se eu tinha os dois dólares e
meio que tinha que pagar diariamente por estar aqui.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Pobrezinho! Mas pode ser que


tudo não seja tão simples. De todo modo, você deveria dizer: “Oh,
sinto muito!”, já que ao nascer não podia dizê-lo. Mas agora pode.
Deveria dizer: “Lamento ser seu filho ou sua filha. Perdoe-me,
tenho causado muitos problemas”. Isto é na realidade seguir os
preceitos.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, às vezes ao escutar alguma de


suas preleções me sinto como quando uma vez estava
caminhando e alguém se aproximou e me disse: “Você já se deu
conta de que quando você está caminhando um pé está na frente

166
e o outro está atrás?” Não me havia dado conta! Esta pergunta
me assombrou durante muito tempo. Perguntava-me por que me
haviam feito uma pergunta tão extraordinária e pensei muito nela.
Para mim ela era muito curiosa e me chamou muito a atenção.
Depois de muito tempo descobri que voltara a andar sem pensar
demasiado nisso. Mas um dia, enquanto estava andando,
aproximou-se outra pessoa e me disse: “Você já se deu conta de
que quando andamos um pé esta na frente e o outro está atrás?”
E neste momento voltei a me sentir igual. Continuo seguindo
apesar de não entender, mas hei de enfrentar a situação de
qualquer modo. Metade de mim diz: ”Que importância isso tem?”,
porque já não me preocupa mais, e a outra metade diz: “Sim,
mas continua acontecendo a cada passo que dou”.

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Se você considera sua vida


como uma prática pessoal, para você esta observação não terá
demasiado sentido. Mas se estiver consciente do que os outros
seres humanos estamos fazendo, verá que é exatamente assim
que criamos nossos problemas. Pé direito ou pé esquerdo,
臨濟 RINZAI ou 曹洞 SŌTŌ, América ou União Soviética, paz ou
guerra... Se você compreende as coisas deste modo, terá um
grande problema. A forma de resolvê-lo é seguir seu caminho,
seguir e seguir.

ESTUDANTE: Se não entendi mal, você está dizendo que o


problema reside em como ser consciente destas polaridades e
preceitos sem ser consciente de o estar sendo? Esta espécie de
presença mental de certo modo fixa as coisas e isso tampouco é
o real. Fecha a corrente.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim, e quando a corrente se


fecha, não pode se mover. Mas cada um de nós deve se mover.

167
Como o tempo não espera por você49, você terá que avançar e
continuar avançando seguindo a realidade. Se refletir sobre este
ponto, já começará a andar. Mas se pensar senão naquilo, não
funcionará nem estará na realidade avançando. Se você pensar:
“O dia de hoje não voltará a se repetir e amanhã terei que ir para
algum outro lugar”, já terá começado a andar. Você não pode
pensar sempre sobre a mesma coisa, não pode sempre parar e
refletir. Deve avançar e prosseguir avançando, tentando fazê-lo o
melhor possível. E quando procurar fazê-lo o melhor possível, na
realidade já estará andando. Algumas vezes pode ser que um pé
esteja atrás e o outro, adiante. Outras vezes, pode ser que
sentirá que estão fazendo algo bom ou algo mau. Mas você
deverá aceitar que estará avançando incessantemente desse
modo. Como haverá de aceitá-lo e viver cada momento, estará
vivendo na realidade cada momento. E então terá de fazer algo.
Os mestres 臨濟 RINZAI gritam: “Diga algo!, Diga algo agora!”
[bate na mesa com sua vara]. O que você tem a dizer? Esta é a
questão.

49
Em alguns 板 HAN (Placa de madeira retangular mantida na entrada do
禅堂 ZENDŌ e que é percutida com um martelo, sinalizando o início ou o
final das sessões de 座禅 ZAZEN), é escrito o seguinte poema chinês:

生死事大、 SHŌ SHI JI DAI,


Vida e morte são assuntos de suprema importância,

光陰可惜、 KŌIN KA SEKI,


Cada momento deve ser bem utilizado,

無常迅速、 MUJŌ JIN SOKU,


A impermanência tudo modifica,

時不待人。JI FUTAI JIN.


O tempo não espera por ninguém. (N,T.)

168
169
DÉCIMA PRELEÇÃO

170
O SOFRIMENTO É
VALIOSO

171
172
萬物自有功
万物おのずから功あり、
BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,

Cada um das miríades de fenômenos


tem seu próprio mérito,

當言用及處
当に用と処とを言うべし、
MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,

Expresso de acordo com sua função e lugar.

事存函蓋合
事存すれば函蓋合し、
173
JI SON SUREBA KANGAI GASSHI,

Os fenômenos existem como uma caixa que se


ajusta perfeitamente à sua tampa,

理應箭鋒哘
理応ずれば箭鋒さそう、
RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ,

Igual a quando duas flechas se encontram em pleno


vôo, ponta com ponta.

Agora gostaria de falar sobre como vocês devem observar


as coisas, como devem tratá-las e compreender seu valor.
万 物お のず か ら功 あり 、 BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,
“Cada um das miríades de fenômenos tem seu próprio mérito”,
当に用と処とを言うべし、MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,
“Expresso de acordo com sua função e lugar”. As miríades de
fenômenos, 万物 BANMOTSU, incluem os seres humanos, as
montanhas e os rios, as estrelas e os planetas. Cada um tem sua
própria função, virtude ou valor. Quando dizemos “valor”,
normalmente estamos nos referindo a um valor de intercâmbio.
Mas aqui “valor” tem um significado mais amplo, refletido na
palavra 功 KŌ. 功 KŌ não significa “função” ou “utilidade” no
sentido habitual, mas se aplica melhor à virtude ou ao mérito: a
alguém levando uma vida meritória ou fazendo algo para a

174
sociedade ou a comunidade. Esta função terá uma virtude para
nós. Mas quando dizemos “função” talvez nos perguntemos:
“Uma função de que?”
Aqui terei de usar alguns termos técnicos. Por exemplo, se
vocês enxergarem algo, [neste momento o volume do
equipamento de som aumenta repentinamente e
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI ouve sua própria voz pelos alto-
falantes] Oh! [risos] Agora vocês estão escutando minha voz.
Acreditam que a estão escutando. Pode ser que seja minha voz,
mas na realidade o que estão escutando é a função de uma
entidade universal chamada eletricidade que está presente no
mundo todo, no universo inteiro. Esta é uma forma de
compreender. A outra seria que estão escutando minha natureza
e, ao mesmo tempo, a natureza da eletricidade. Quando vocês
estão vendo ou escutando algo, o universo inteiro está presente.
A esta forma de compreender as coisas chamamos de
compreensão de 体 TAI.
体 TAI significa “corpo”. Mas é um corpo imenso, ontológico,
que a tudo inclui. E no Budismo a natureza deste corpo se
denomina 正 SHŌ, que não é o 処 SHO que aparece nestes
versos do poema, mas o 正 SHŌ que significa “a natureza básica
de tudo”. Quando captamos aquilo que está mais além das
palavras, esta compreensão se chama 理 RI, ou verdade. 理 RI é
algo mais além de nossas idéias de bom e de mau, de comprido
e curto, de correto ou incorreto.
No verso seguinte aparece 用 YŌ, que significa “utilidade” ou
“uso”. 功 KŌ e 用 YŌ podem significar a mesma coisa, mas aqui –
quando se usam como termos técnicos budistas - 功 KŌ se
refere à função das coisas ou 事 JI, e por sua vez 用 YŌ se refere
à função da verdade absoluta ou 理 RI. Nestes dois versos
石頭 SEKITŌ está falando da unidade existente entre 功 KŌ e
用 YŌ. 功 KŌ e 用 YŌ se aplicam a cada ocasião e a cada coisa.
À medida que vocês forem enfrentando as situações da vida,

175
deverão saber que naquele mesmo momento e lugar estão se
revelando os verdadeiros ensinamentos. Vocês deverão
conhecer este lugar. Às vezes 功 KŌ e 用 YŌ são usados juntos.
功用 KŌYŌ significa que compreendemos não só cada coisa tal
como a vemos, mas além disso a origem de cada coisa, que é
理 RI. Temos que saber usar as coisas. Saber usá-las é conhecer
os ensinamentos ou o funcionamento das coisas. Compreender
as coisas significa compreender a origem; e compreender o valor
das coisas significa compreender como devemos usá-las
corretamente de acordo com o lugar e a natureza de cada uma.
Isso é ver “as coisas tal como é”. Normalmente, mesmo que
vocês digam: “Vejo as coisas tal como é”, não é bem assim.
Somente estão vendo um lado da realidade, sem ver o outro. Não
estão vendo a origem, que é 理 RI, mas apenas as coisas em
termos de 事 JI, o aspecto fenomênico de cada acontecimento, e
acreditam que cada uma delas somente existe deste modo, mas
isso não é correto. Todas as coisas estão mudando
continuamente e estão relacionadas umas às outras, e cada uma
tem sua própria origem. Há uma razão pela qual estão aqui. Ver
“as coisas tal como é” significa compreender que 事 JI e 理 RI são
um, que a distinção e a igualdade são uma, e que a aplicação da
verdade e o valor das coisas são um.
Por exemplo, acreditamos que o universo existe apenas
para os seres humanos. Na atualidade nossa mente é mais
ampla e vemos as coisas com maior liberalidade, mas ainda
assim, como a compreensão que temos das coisas se centra
sobretudo nos seres humanos, não vemos ou apreciamos o
verdadeiro valor das mesmas. Vocês têm muitas perguntas a me
fazer, mas se compreenderem esta questão com clareza, quase
nada necessitarão me perguntar. A maioria das perguntas e dos
problemas surge de nossas idéias egoístas e egocêntricas. “O
que é o nascimento e a morte?” é uma idéia muito egocêntrica.
Como é natural, o nascimento e a morte são nossa virtude ou
nosso mérito. Morrer é nossa virtude e vir a este mundo também

176
o é. Vemos como as coisas funcionam, como tudo está
aparecendo e desaparecendo sem cessar, envelhecendo ou
crescendo dia a dia. Se tudo existe desse modo, por que nós
seres humanos deveríamos ter um tratamento especial? Ao falar
“do nascimento e da morte” se costuma compreender como o
nascimento e a morte dos seres humanos, mas quando vocês o
compreenderem como o nascimento e a morte de tudo o quanto
existe – das plantas, dos animais e das árvores – isso já deixa de
ser um problema, constitui-se num problema para todos, incluindo
nós mesmos. E um problema para todos deixa de ser um
problema. Quase todas estas perguntas surgem da compreensão
das coisas com uma mentalidade estreita. Há que ter uma
compreensão mais ampla e clara. Talvez vocês acreditem que
falar sobre estas coisas não os ajudará em nada, mas não é fácil
ajudar a um ser humano egoísta.
O Budismo não trata os seres humanos como se fosse parte
de uma categoria especial. Acreditar que os seres humanos
somos uma categoria especial é uma visão ilusória e egoísta. E,
sem embargo, é normal para nós humanos sermos vistos assim:
não refletir a verdade que há em nosso interior e buscá-la fora.
Quando vocês a buscam no exterior, significa que não se
conhecem os suficiente, necessitando confiar mais em si próprios.
O 參同会 SANDŌKAI diz nestes versos que todos os seres
têm sua própria virtude ou mérito. Como seres humanos, temos
nossa própria natureza. No fundo, só seguimos a verdade
quando vivemos como seres humanos que têm uma natureza
humana egoísta, porque então estamos levando em conta nossa
natureza. Temos que viver neste mundo como seres humanos,
em vez de tentar viver como gatos e cães, que são mais livres e
menos egoístas do que nós. Os seres humanos devem ser
metidos numa jaula, numa imensa jaula invisível como a religião
ou a moralidade. Os cães e os gatos não têm esta jaula especial.
Não necessitam qualquer ensinamento ou religião. Mas nós,
seres humanos, necessitamos da religião. Nós devemos dizer:
“Sinto muito”, mas os gatos e os cães não. Os seres humanos

177
temos que nos comportar da forma que corresponde aos
humanos, e os cães e os gatos deverão se comportar da forma
que lhes corresponde. Assim é como a verdade se aplica a tudo
quanto existe.
Se nos comportamos da forma que corresponde aos
humanos e os cães e os gatos se comportam da forma que
corresponde a deles, parece como se os seres humanos e os
animais tivessem naturezas distintas. Mas ainda que sejam
naturezas distintas, sua origem é a mesma. Como o lugar onde
vivemos e nossa forma de agir é distinta da dos animais, a
verdade haverá de se aplicar de modo distinto. É como o uso que
se dá a eletricidade. Algumas vezes a usamos para iluminar e
outras, para acionar um alto-falante. Os seres humanos têm sua
própria natureza e os animais, também. Mas mesmo que nós a
expressemos de uma forma distinta da deles, a natureza dos
seres humanos e a natureza dos animais têm a mesma base.
Assim é como se aplica a verdade. Na realidade, 石頭 SEKITŌ
está falando disso. Não devemos nos apegar aos distintos usos,
porque estamos utilizando a mesma natureza verdadeira ou
natureza de Buddha. Mas dependendo da situação, usaremos a
natureza de Buddha de maneiras distintas. É assim que
encontraremos na vida cotidiana a verdadeira natureza em nosso
interior.
Os dois versos seguintes, 事存すれば函蓋合し、JI SON
SUREBA KANGAI GASSHI, “Os fenômenos existem como uma
caixa que se ajusta perfeitamente à sua tampa”,
理応ずれば箭鋒さそう、RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ, “Igual a
quando duas flechas se encontram em pleno vôo, ponta com
ponta”. O relativo, 事 JI se encaixa à perfeição no absoluto, 理 RI,
como uma caixa se ajusta à sua tampa. O absoluto e o relativo
são como duas flechas que se encontram em pleno vôo. Como já
disse antes, 事 JI significa diversas coisas e eventos, incluindo as
coisas sobre as quais vocês pensam. 理 RI em contrapartida está
mais além do pensamento, mais além de nossa compreensão ou

178
percepção. O relativo e o absoluto são o mesmo, mas temos de
compreendê-los de duas formas.
Onde houver 事 JI, haverá 理 RI. É como uma caixa e sua
tampa, encaixam-se à perfeição. E que eu esteja aqui significa
que a verdadeira natureza de Buddha está aqui. Não sou só eu,
mas algo mais, mas estou expressando a verdadeira natureza da
minha própria maneira. Que eu esteja aqui significa que o
universo inteiro está aqui, da mesma forma que onde há uma
lâmpada de querosene haverá óleo.
A forma na qual 理 RI coincide com 事 JI é a mesma de
quando duas flechas se encontram em pleno vôo. Há uma antiga
historia sobre isso. Na China, durante o período dos Estados
Beligerantes (战国时代 Zhànguó Shídài, 430 a.C.-221 d.C.), havia
um famoso mestre da arte da espada chamado HIEI (em chinês,
Feiwei). Seu discípulo KISHO (em chinês, Jichang), um excelente
arqueiro, tornou-se ambicioso e quis competir com HIEI. Um dia,
esperou a chegada de HIEI com seu arco e flechas. Este, ao ver
que KISHO se aproximava, pegou seu arco e disparou uma
flecha. Tentou dispará-la antes que KISHO percebesse, mas os
dois eram tão bons e tão rápidos que o fizeram simultaneamente
e as flechas se encontraram em pleno ar: Sssssssst! Depois
deste incidente tornaram-se inseparáveis.
Há uma razão, por exemplo, para que eu seja um ancião.
Sem uma razão, neste momento eu não o seria. E sem uma
razão eu tampouco teria sido jovem. Como por alguma razão
envelheci, não posso me queixar. A origem de meu
envelhecimento é a mesma de eu ter crescido como uma linda
criança. [risos] Há uma origem que tem me sustentado e que
seguirá me sustentando mesmo depois que eu morra. Esta é a
compreensão budista.
Aceitar “as coisas tal como é” parece muito difícil, mas é
muito fácil. Se não lhes parece fácil, pensem porque lhes parece
difícil. “Talvez”, vocês podem dizer, “seja por culpa da estreita e
egoísta compreensão que tenho de mim mesmo”. E então vocês

179
poderão se perguntar: “Por que compreendo as coisas de uma
forma egoísta?” Mas compreender as coisas de uma forma
egoísta também é necessário. Como somos egoístas,
trabalhamos duramente. Se não compreendêssemos as coisas
se uma forma egoísta não poderíamos trabalhar. Sempre
necessitamos receber alguma guloseima, e uma compreensão
egoísta é uma espécie de guloseima. Não é algo que vocês
devam rechaçar, mas algo que os ajuda. Vocês deverão se sentir
agradecidos pela maneira egoísta que têm de compreender as
coisas, pois ela propõe a vocês muitas perguntas. Mas estas não
são mais que perguntas e não significam grande coisa. Vocês
podem desfrutar de suas perguntas e respostas e fazer todo o
tipo de julgamentos com elas; não têm por que levá-las a sério. É
assim que o Caminho do Meio50 compreende.
O Caminho do Meio pode ser compreendido como 理 RI,
Vacuidade, e como 事 JI, algo. As duas formas de compreender
são necessárias. Como somos seres humanos e nosso destino é
viver provavelmente oitenta ou noventa anos, temos que viver a
vida de maneira egoísta. E ao vivê-la de maneira egoísta,
teremos uma serie de dificuldades que deveremos aceitar. E
quando as aceitamos, isso em si é o Caminho do Meio. Sem
rechaçar sua forma egoísta de viver, vocês deverão aceitá-la,
mas sem se apegar a ela! Limitem-se a aproveitar suas vidas
humanas enquanto as vivem. Isso é o Caminho do Meio, é
compreender 理 RI e 事 JI. Onde haja 理 RI, haverá 事 JI.
Compreender as dificuldades desta forma é aproveitar a vida sem
rechaçar os problemas nem o sofrimento.
Descobri algo muito importante que nunca havia enfatizado
tanto: o sofrimento é valioso. Eu o compreendi hoje, enquanto
falava com alguém. Nossa prática poderia ser a prática do

50
中道 CHŪDŌ em japonês, madhyama-pratipad em sânscrito. Doutrina
budista que evita os extremos do eternalismo e do nihilismo. Na literatura
budista mais antiga refere-se ao Caminho que evita os extremos da auto-
indulgência e do ascetismo. (N.T.)
180
sofrimento e consistir em como sofremos. De grande ajuda nos
seria. Eu acredito que a maioria de vocês conheceu o sofrimento,
porque suas pernas doem ao sentarem em 座禅 ZAZEN. Além
disso, na vida cotidiana vocês também sofrem. Quando o abade
山田 YAMADA51 dirigiu alguns 攝心 SESSHIN no Centro 禅 ZEN,
fez questão do UNSHU, uma prática que 白 隠 禅 師 HAKUIN
ZENJI52 . 白隠 HAKUIN em sua juventude contraiu tuberculose e
conseguiu superar esta enfermidade com a prática de UNSHU,
que significa pôr a ênfase respiratória na exalação: “Mmmmmm”.
Como vocês chamam este som?

ESTUDANTE: Gemer?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Gemer? Quando alguém sofre e


faz “mmmmmmm”, como se chama este som?

ESTUDANTE: Suspirar?
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, não é suspirar.

ESTUDANTE: Lamuriar-se?

51
霊林 山 田 REIRIN YAMADA (1889-1979), foi um abade do
曹洞 禅 SŌTŌ ZEN nos Estados Unidos de 1960 a 1965.
(N. ed. Esp.)
52
白隠 慧鶴 HAKUIN EKAKU (1689-1769) foi um importante mestre
禅 ZEN japonês que revitalizou e sistematizou a escola 臨濟 RINZAI. Suas
práticas respiratórias são descritas no ensaio autobiográfico
夜 船 閑 話 YASENKANNA, reimpresso na obra de Trevor Legget “The
Tiger’s Cave” – Rider and Company, London, 1964 pag. 142-156.
(N. ed. Esp.)

181
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, não é lamuriar-se. É mais
forte que isso, é como a dor de um tigre.

ESTUDANTE: Grunhir?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Grunhir? [risos] Eu falava que


temos que respirar como quando se sofre. Temos que utilizar a
parte inferior do abdômen e alargar a expiração. Temos que
praticar o som “mmmmmm” em silêncio, do contrário não será o
UNSHU. Quando vocês repetirem este UNSHU como se
estivessem sofrendo por algum problema físico ou mental, e
dirigirem a prática apenas para o sofrimento que estiverem
sentindo, então será uma boa prática. Não é distinta de
只管打座 SHIKANTAZA53 .
Em contrapartida, quando seu sofrimento lhe aflige o peito e
a respiração é superficial, isso é sofrer de forma angustiante.
Para sofrer por completo é preciso sofrer desde a parte inferior do
abdômen. “Mmm-mmm.” Ao fazê-lo, vocês se sentirão bem. É
muito melhor que nada dizer ou deixar-se ficar na cama.
O abade 山田 YAMADA teve dificuldades até pouco tempo.
Agora se encontra, talvez, “acima das nuvens” 54 . Mas quando
vivia em Los Angeles, sofreu muito. Naquela época eu não tinha
tanta experiência com enfermidades e não podia compreendê-lo.
Não podia aceitar sua prática de UNSHU como uma pessoa
enferma poderia ter feito. “Mmmm-mmmm, que prática é esta?”,
pensei. Mas acabei descobrindo porquê o fazia e vi que era de
grande ajuda. Naturalmente, ele havia compreendido o que era o
sofrimento. Ninguém gosta de sofrer, mas nosso destino humano
é sofrer. A questão é como sofremos. Devemos saber aceitar o

53
只管打座 SHIKANTAZA significa “simplesmente sentar-se”. (N. ed. Esp.)
54
Ou seja, acima do sofrimento. (N. ed. Esp.)
182
sofrimento humano, mas sem nos deixar aprisionar nele. Em
suma, a prática do abade 山田 YAMADA se fundamenta nisto.
Nossa prática consiste em encontrar a unidade de 理 RI e
事 JI, a unidade da alegria e do sofrimento, a unidade da alegria
da Iluminação nas dificuldades. O chamado Caminho do Meio é
isto. Compreenderam? Onde haja sofrimento, haverá a alegria do
sofrimento ou o Nirvāna. Nem sequer o Nirvāna poderá livrá-los
do sofrimento. Dizemos que o Nirvāna é a completa extinção dos
desejos, mas o que isso na realidade significa é que temos de
obter esta completa compreensão e vivermos de acordo com ela.
Isso é 座禅 ZAZEN. Estar sentado com a espinha alinhada . Sem
inclinar-se para o lado do Nirvāna nem para o lado contrário do
sofrimento. Manter-se justamente no meio. Qualquer um pode se
sentar com a espinha alinhada e praticar 座禅 ZAZEN.
Estou seguindo o poema de 石頭 SEKITŌ verso por verso,
mas na realidade deve-se lê-lo de cabo a rabo, já que se é
explicado linha por linha não tem muito sentido. 石頭 SEKITŌ é
muito rigoroso na conclusão. Vocês não poderão escapar dele.
Não poderão dizer o que quer que seja, do contrário sentirão o
golpe de seu grande bastão. Como em sua época o mundo do
禅 ZEN era muito ruidoso, ele ficava muito bravo: “Cale-se!”, é o
que na realidade ele dizia. Ou seja, que eu não deveria falar tanto.
Talvez até tenha falado demais. Sinto muito!

183
184
BREVE PRELEÇÃO DURANTE
UMA SESSÃO DE 座禅 ZAZEN

ESTA PRELEÇÃO FOI DADA DURANTE UMA SESSÃO DE


座禅 ZAZEN NA MANHÃ DE 28 DE JUNHO DE 1970, ENTRE A
DÉCIMA E A DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÕES.

Vocês devem se sentar com todo o corpo: com a coluna, a


boca, os dedões do pé e o Mudrā55 . Enquanto estiverem fazendo
座禅 ZAZEN deverão conferir sua postura. Cada parte de seu
corpo deverá praticar 座 禅 ZAZEN independentemente ou
separadamente: os dedões do pé deverão praticar 座禅 ZAZEN
de forma independente, seu Mudrā deverá praticar 座禅 ZAZEN
de forma independente e a coluna e a boca deverão praticar
座禅 ZAZEN de maneira independente. Vocês deverão sentir que
cada parte de seu corpo está fazendo 座 禅 ZAZEN
independentemente. Cada parte do corpo deverá participar por
completo no 座禅 ZAZEN. Confiram que cada parte do corpo está
fazendo 座禅 ZAZEN de maneira independente, o que também se
conhece como 只 管 打 座 SHIKANTAZA. Pensar: “Eu estou
fazendo 座禅 ZAZEN” ou “meu corpo está fazendo 座禅 ZAZEN”
é uma compreensão equivocada, já que constitui uma idéia
egocêntrica.
O Mudrā é especialmente importante. Vocês não devem
sentir que para sua comodidade o Mudrā descansa sobre a sola
do pé. O Mudrā deve adotar sua própria posição.

55
No 座禅 ZAZEN, o Mudrā (印相 INSŌ em japonês) se refere à posição
das mãos, que formam uma elipse chamada Mudrā Cósmico. (Dhyani
Mudrā, em sânscrito). (N.ed. Esp.)
185
Não movam as pernas para ficarem mais confortáveis. As
pernas praticam seu próprio 座 禅 ZAZEN de maneira
independente e estão completamente entregues à sua própria dor.
Estão fazendo 座禅 ZAZEN através da dor. Vocês devem deixá-
las praticar seu próprio 座禅 ZAZEN. Se pensarem que estão
praticando 座禅 ZAZEN, estarão envoltos numa idéia egoísta e
de afirmação da própria personalidade.
Se vocês acreditarem estar tendo alguma dificuldade em
alguma parte do corpo, o resto do corpo deverá ajudar a parte
que está tendo dificuldade. Não são vocês que estão tendo
problemas com uma parte de seu corpo, mas esta parte do corpo
que está tendo. Por exemplo, se seu Mudrā está tendo
dificuldade, é o corpo inteiro que deverá ajudar seu Mudrā a fazer
座禅 ZAZEN.
O universo inteiro está fazendo 座 禅 ZAZEN da mesma
forma que seu corpo está fazendo. Quando todas as partes do
corpo estão praticando 座 禅 ZAZEN, o universo inteiro está
praticando 座禅 ZAZEN. Cada montanha se eleva e cada rio flui
independentemente. Todas as partes do universo estão
participando de sua prática. A montanha pratica de maneira
independente. O rio pratica de maneira independente. E assim é
como o universo inteiro pratica de maneira independente.
Quando vocês vêem algo, talvez acreditem estar
contemplando algo fora de vocês mesmos, mas na realidade
estão contemplando seu Mudrā ou o dedão do seu pé. Por isso o
座禅 ZAZEN representa o universo inteiro. Temos que praticar
座禅 ZAZEN com esta sensação. Vocês não devem dizer: “Eu
pratico 座禅 ZAZEN com meu corpo”, por que não é assim.
道元禅師 DŌGEN ZENJI disse; “Não é a água que flui, é a
ponte”. Vocês podem dizer que sua mente está praticando
座禅 ZAZEN e estar ignorando a prática de seu corpo. Às vezes
quando vocês acreditam estar fazendo 座禅 ZAZEN com uma
mente imperturbável estão ignorando o corpo. Mas vocês

186
também devem compreender isso da forma contrária ao mesmo
tempo: seu corpo está praticando 座 禅 ZAZEN de forma
imperturbável enquanto a mente está se movendo. Suas pernas
estão praticando 座禅 ZAZEN com a dor. A água está praticando
座 禅 ZAZEN com o movimento, entretanto, enquanto flui
permanece quieta porque o fluir é sua quietude ou sua natureza.
A ponte está fazendo 座禅 ZAZEN sem se mover.
Deixem que a água flua, já que esta é a prática da água.
Deixem que a ponte permaneça e se encastele aí, já que esta é a
prática da ponte. A ponte está praticando 座 禅 ZAZEN, o
imperturbável 座禅 ZAZEN está praticando 座禅 ZAZEN. Isto é a
nossa prática.

187
188
DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÃO

NÃO DEVEMOS NOS


APEGAR ÀS PALAVRAS
OU ÀS REGRAS

189
190
承言須會宗
言を承てはすべからく宗を会すべし、
KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI,

Ao ouvir estas palavras,


você deve compreender seu significado

勿自立規矩
みずから規矩を立することなかれ、
MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE,

Não estabeleça suas próprias regras.

觸目不會道
触目道を会せずんば、
SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA,

Se não for capaz de compreender


a Via que tem diante de si,
191
運足焉知路
足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、
ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN,

Como poderá reconhecê-la ao caminhar por ela?

言を承てはすべからく宗を会すべし、KOTO O UKETE WA
SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI, “Ao ouvir estas palavras,
você deve compreender seu significado”. 言 KOTO significa
“palavras”. 言 KOTO também inclui tudo: as palavras, as coisas e
as idéias que vemos ou ouvimos. 承て UKETE significa “receber”
ou “escutar”. 宗 SHŪ é “a fonte do ensinamento”, que está mais
além das palavras. Quando vocês escutarem as palavras
deverão compreender a fonte dos ensinamentos. Como
costumamos nos apegar às palavras, é difícil ver o verdadeiro
significado dos ensinamentos. Mas nós dizemos que as palavras
ou os ensinamentos são o dedo apontado para a lua. As palavras
apenas sugerem o verdadeiro significado da verdade. Se vocês
se apegarem ao dedo que aponta para a lua, não verão a lua.
Não devemos nos apegar às palavras, mas conhecer seu
verdadeiro significado.
Na época de 石頭 SEKITŌ cada mestre tinha sua própria
forma de apresentar o verdadeiro ensinamento a seus discípulos.
À medida que os discípulos foram se apegando às palavras ou à
forma particular que um mestre tinha de expressar a verdade, o
禅 ZEN começou a se dividir em numerosas escolas e então ficou
difícil para os discípulos saber em qual delas estava a autêntica
Via. Na realidade perguntar-se qual delas era a autêntica Via já
era um equivoco, posto que cada mestre estava sugerindo, à sua

192
própria maneira, o verdadeiro ensinamento, da mesma fonte da
qual Buddha nos transmitiu. Apegar-se às palavras sem conhecer
a fonte do ensinamento é um erro, e isso era o que muitos
mestres e discípulos da época de 石頭 SEKITŌ estavam fazendo.
Por isso 石頭 SEKITŌ diz aqui: “Se vocês receberem as palavras,
deverão compreender a fonte dos ensinamentos transmitidos por
Buddha, que está mais além da forma particular de cada mestre
expressar ou sugerir a verdade”.
O verso seguinte diz: みずから規矩を立することなかれ、
MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE, “Não estabeleça
suas próprias normas”. Vocês não devem estabelecer qualquer
regra, nem devem se apegar ou se atar a alguma. A maioria das
pessoas o faz. Quando dizem: “Isto é o correto!” ou “Isto é
incorreto!”, estão estabelecendo algumas regras. E ao dizê-lo,
apegam-se e atam-se naturalmente a elas. Por isso o zen se
dividiu em tantas escolas ou vias distintas: 曹洞 SŌTŌ, 臨濟 RINZAI,
法眼 HŌGEN, 雲門 UNMON e 潙仰 IGYŌ 56. A princípio havia um só
ensinamento, mas mais tarde cada mestre ou seus discípulos
estabeleceram uma escola e se apegaram à Via de sua “família”
e a ela se ataram. Compreenderam os ensinamentos de Buddha
à sua própria maneira e logo se apegaram a sua forma pessoal
de compreendê-los e acreditaram que eram os ensinamentos de
Bhuddha. Ou seja, apegaram-se ao dedo apontado para a lua. Se
três mestres estivessem apontando para a lua, cada um o faria
com seu próprio dedo, ou seja, já haveria três escolas. Mas
somente há uma lua. Por isso 石 頭 SEKITŌ disse que não
devemos nos fixar em regras.
Isto é muito importante para nossa prática. Tendemos a
estabelecer nossas próprias regras. Vocês podem dizer: “Esta é a
regra de Tassajara”. Mas as regras não são mais que dedos
apontando como fazer uma boa prática em Tassajara, segundo
determinadas circunstâncias. As regras são importantes, mas
vocês não devem pensar: “É a única forma de fazê-lo”, ou

56
Veja nota nº 11. (N.T.)
193
“Nossas regras são os verdadeiros ensinamentos permanentes”,
ou “Suas regras não são apropriadas”. Vocês não deverão se
apegar à sua própria forma de compreender as coisas. Algo que
é bom para uma pessoa não significa que também o seja para
outra. Vocês não devem estabelecer regras para todo mundo. As
regras são importantes, mas não se apeguem a elas nem as
imponham aos demais.
Quando entrarem num monastério vocês não deverão dizer:
“Eu tenho a minha própria maneira de me comportar”. Se vierem
para Tassajara, deverão obedecer as regras de Tassajara. Não
deverão estabelecer suas próprias regras. Ver a verdadeira lua
através das regras de Tassajara é a forma de praticar em
Tassajara. O mais importante não são as regras, mas o
ensinamento que as regras captam. Ao observar as regras vocês
compreenderão espontaneamente os verdadeiros ensinamentos.
Pode ser que não levemos em conta esta questão desde o
princípio. A maioria das pessoas começa a estudar o 禅 ZEN
para saber do que se trata, e esta atitude já é em si um erro,
porque com ela estamos sempre tentando adquirir alguma
compreensão do 禅 ZEN ou ditar alguma regra.
A forma de estudar o 禅 ZEN deve ser como o modo pelo
qual um peixe consegue alimento. Um peixe não deseja ir atrás
de uma presa, apenas se dedica a nadar na água. E se algo
apetitoso lhe passa pela frente, zás! Ainda que faça muito calor,
vocês observam as regras de Tassajara e comem no calorento
禅堂 ZENDŌ como um peixe nadando na água, e quando algo
apetitoso lhes passa pela frente, zás! E enquanto assim o fazem,
obtém algo. Não sei se vocês já se deram conta ou não, mas
enquanto estiverem seguindo as regras, obterão algo. Mesmo
que nada tenham nem estudem o que quer que seja, na realidade
estarão estudando, serão como um peixe que não parece estar
se alimentando. Isso é tudo. Vocês deverão estudar o 禅 ZEN
desse modo. Compreender algo não significa compreendê-lo com
a cabeça.

194
Se vocês perguntassem a 石頭 SEKITŌ “O que é bom para
um estudante 禅 ZEN?”, ele poderia responder-lhes: “Algo que
vocês devem fazer é bom e algo que vocês não devem fazer é
mau”. Isso é tudo. Nós não cismamos demais sobre o bem ou o
mal.
道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “O poder do ‘não se deve’ é
bom.” É algo intuitivo, nossa função mais importante, nossa
natureza inata. Nossa natureza inata tem sua própria função,
antes que vocês digam “bom” ou “mau”. Algumas vezes algo
parece ser bom e outras, mau. É assim que nós compreendemos.
Mas nossa natureza inata está mais além da idéia do bem e do
mal. Perguntar-se por que praticamos 座禅 ZAZEN se faz tanto
calor provoca confusão. Temos de ser como um peixe, sempre
nadando pelo rio. Um estudante 禅 ZEN age assim.
道 元 禅 師 DŌGEN ZENJI disse: “O pássaro não necessita
conhecer os limites do céu antes de voar por ele.“ Os pássaros
se limitam a voar pelo grande céu. É assim que praticamos
座禅 ZAZEN.
Vocês não devem tentar se atar a qualquer regra. Já sei que
são palavras muito rigorosas. Talvez vocês acreditem que não
significam grande coisa, mas na realidade quando
石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI as diz ele está esperando vocês com
um grande bastão. E se vocês disserem algo a ele, ele
responderá: “Não se engesse em regras! Não tente compreender
as coisas com a cabeça.” Estará esperando-os assim
[鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI levanta a vara e se prepara para
ministrar um golpe]. Ou seja, não podemos dizer nada. Só: “Ai”!
Sim, isso é tudo. E vocês nem sequer precisam dizer “ai!” Vocês
devem fazer as coisas como se fossem mulas ou burros.
Talvez vocês acreditem que isto é uma entrega absoluta,
mas não é. É a única forma de compreender a fonte do
ensinamento. Nós tendemos a nos perguntar o que é a fonte.
Não é algo que se possa compreender através de palavras, mas
algo que vocês têm quando fazem as coisas com naturalidade e
195
de forma intuitiva sem dizer “bom” ou “mau”. O tempo avança
sem cessar e nós não temos tempo de dizer “bom” ou “mau”.
Temos que prosseguir a cada momento no passo do tempo.
Devemos avançar com ele. Quando vocês se cansarem de fazer
algo, para matar o tempo, pode ser que falem sobre esta ou
aquela forma de agir. Mas quando virem que as verduras da
horta estão a ponto de murchar por culpa do calor, não terão
muito tempo para discutir sobre o que é adequado fazer hoje.
Enquanto estiverem discutindo sobre isso, irão ficar cada vez
mais irritados. Mas os que trabalham na cozinha haverão de
voltar a ela para começar a preparar a comida. Isto é o mais
importante.
O que não significa que pensar sobre as coisas seja perda
de tempo. É bom falar sobre elas, mas não devemos nos apegar
às palavras nem às regras. É uma questão muito delicada. Sem
ignorar as regras e sem nos apegarmos a elas, devemos seguir a
prática que fazemos em Tassajara. Isto é o que 石頭 SEKITŌ
está nos sugerindo.
E em seguida ele diz: 触目道を会せずんば、SOKU MOKU
DŌ O ESSE ZUNBA, “Se não for capaz de compreender a Via
que tem diante de si”, 足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、ASHI
O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN, ” Como poderá
reconhecê-la ao caminhar por ela?” A única forma de fazê-lo é
usar os cinco órgãos dos sentidos onde quer que você vá,
compreendendo ao mesmo tempo a fonte dos ensinamentos. Se
não o fizer, mesmo que mova os pés ou pratique, não poderá
reconhecer o verdadeiro Caminho.
O mais importante não são as regras, mas irem encontrando
com seus olhos e ouvidos a verdadeira fonte do ensinamento
onde quer que vocês estejam. É a única forma direta para
conhecer a fonte do ensinamento, sem pretender estabelecer um
caminho especial para vocês.
Se vocês se aferrarem às palavras, se não virem o
verdadeiro caminho com seus próprios olhos, ouvidos, nariz e
língua, se ficarem apegados às regras e ignorarem a direta
196
experiência da vida cotidiana, mesmo que praticarem
座 禅 ZAZEN de nada lhes servirá. O mais importante é ter
alguma experiência direta da vida cotidiana sem pensar
“臨濟 RINZAI “ ou “曹洞 SŌTŌ”, “esta Via” ou “aquela outra”. É
assim como se compreende a verdadeira fonte do ensinamento
transmitido pó Buddha.
A verdadeira Via poderia ser uma vara. A Via original de
Buddha poderia ser uma pedra. Como disse o mestre
雲門 UNMON, poderia ser papel higiênico. Qual é a verdadeira
Via? O que é Buddha? Buddha é algo que está mais além de
nossa compreensão. Buddha pode ser qualquer coisa. Em vez da
palavra “Buddha”, poderíamos dizer “Papel Higiênico” ou “Três
libras de cânhamo 57 ”, como disse 洞 山 TŌZAN. Se alguém
pergunta a vocês: “Quem é Buddha?”, podem responder: “Você
também é Buddha.” Se alguém perguntar: “O que é a montanha?”,
podem responder: “A montanha também é Buddha.” Em japonês
dizemos も又 ( も亦) MO MATA: também. Vocês não devem
responder apenas: “Isto é Buddha”, porque esta frase pode criar
um mal entendido. Mas se disserem: “Isto também é Buddha”,
tudo bem. Se alguém perguntar: “Onde está Buddha?”, podem
responder: “Buddha também está aqui.” A palavra “também”
deixa outras opções. Buddha também pode estar em outro lugar.
O segredo de uma perfeita sentença 禅 ZEN é “Nem sempre
é assim”. Enquanto vocês estiverem em Tassajara, será nossa
norma, mas nem sempre é assim. Não se esqueçam deste ponto.
Também é a regra de Buddha. Se a levarem em consideração,
não correrão perigo algum nem propiciarão a ocorrência de
qualquer mal entendido. É assim que vocês conseguirão se
libertar de uma prática egoísta. Mesmo que acreditem estar
praticando a Via de Buddha, tenderão a se enredar numa prática
57
Alusão à resposta que 洞山 TŌZAN deu a pergunta “O que é Buddha”,
feita por um monge: 麻 三 斤 MASAGIN “Três libras de cânhamo”.
Caso nº 18 do 無門關 MUMONKAN de 無門慧開 MUMON EKAI (1183-
1260). (N.T.)
197
egoísta quando disserem: “Deve ser praticado assim”. Sem
dúvida vocês têm que dizer: “Esta é a forma de praticar em
Tassajara”, mas também devem estar dispostos a aceitar outras
formas de praticar.
Confiar de uma maneira rigorosa e firme em sua prática e
ser suficientemente flexível para aceitar outras formas de praticar
não é fácil. Talvez vocês acreditem que estar disposto a aceitar
os ensinamentos do outro não é ser rigoroso. Mas enquanto
vocês não estiverem dispostos a aceitar a prática do outro, não
poderão ser rigorosos o bastante com a vossa. O rigor pode se
converter em intransigência. Apenas quando vocês estiverem
dispostos a aceitar a opinião dos outros poderão dizer: “Deveria
fazê-lo assim!” Quando chegam outras pessoas a Tassajara,
podemos observar sua forma de praticar. Do contrário, vocês não
poderão ser tão rigorosos consigo mesmos.
Normalmente o rigor significa ser rígido, ser cativo da própria
compreensão e não deixar espaço para os demais. Se alguém
perguntava a meu mestre que opinião ele tinha sobre algum tema,
ele sempre respondia: “Se você pede a minha opinião, penso
isto” [鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI golpeia a mesa com a vara].
Quando o dizia, respondia rotundamente. E podia ser assim tão
rotundo porque dizia: “Se você pede minha opinião...” Ser você
mesmo é estar disposto a aceitar também a opinião de outra
pessoa. A cada momento vocês devem saber intuitivamente o
que é que devem fazer, mas isto não significa que devem
rechaçar a opinião dos demais.
Na vida cotidiana existe o 道 Tao, o Caminho, e se vocês
não o praticarem em meio à atividade cotidiana, não poderão
acessar o verdadeiro Caminho. É isso que 石頭 SEKITŌ quer
dizer. Não se apeguem às palavras. Não estabeleçam regras
para si próprios nem as imponham aos demais, porque cada
pessoa tem e deve ter sua própria forma de praticar.

198
DÉCIMA SEGUNDA PRELEÇÃO

NÃO PASSEM OS DIAS E


AS NOITES EM VÃO!

199
200
進歩非近遠
歩をすすむれば近遠にあらず、
AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU,

A prática nada tem a ver com longe ou perto,

迷隔山河固
迷て山河の固をへだつ、
MAYŌTE SEN GA NO KO O HEDATSU,

Mas se você se confundir, montanhas e rios


obstruirão o seu caminho.

201
謹白參玄人
謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

Vocês que estudam o mistério, respeitosamente e


com urgência eu os exorto:

光陰莫虚度
光陰虚しく度ることなかれ。
KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Não passem os dias e as noites em vão!

歩をすすむれば近遠にあらず、AYUMI O SUSU MUREBA


GON NON NI ARAZU, “A prática nada tem a ver com longe ou
perto”. Isto é muito importante. Quando vocês se envolvem numa
prática egoísta, fazem-no com a idéia de alcançar algo. Quando
se esforçam para alcançar um objetivo ou a Iluminação, abrigam
sem dúvida a idéia de: “Estou longe de meu objetivo”, ou “Estou
quase o alcançando”. Mas se estiverem realmente praticando a
Via, a Iluminação se encontra no lugar em que vocês estão, ainda
que talvez isto resulte difícil de ser aceito. Quando vocês
praticam 座 禅 ZAZEN sem uma idéia de alcançar algo, a
Iluminação estará presente.

202
道 元 禅 師 DŌGEN ZENJI explicava que numa prática
egocêntrica, há Iluminação e há prática: a prática e a Iluminação
são eventos que encontraremos em nossa vida. Mas quando
compreendemos que a prática e a Iluminação são eventos que
aparecem no reino do grande mundo do Dharma, então a
Iluminação é um evento que expressa o mundo do Dharma e a
prática também é um evento que expressa o mundo do Dharma.
Se ambas expressam o grande mundo do Dharma, então neste
caso não temos por que nos desanimar se não alcançamos a
Iluminação. Nem tampouco temos de nos sentir extremamente
felizes se a alcançamos, porque não há diferença alguma entre
uma coisa e a outra. A prática e a Iluminação têm o mesmo valor.
Se a Iluminação é importante, a prática também é. Quando
compreendemos isto em cada passo que damos a Iluminação
está presente. Mas não há por que se excitar com isso. Passo a
passo seguimos levando a cabo nossa interminável prática,
apreciando o gozo do mundo do Dharma. A prática baseada na
Iluminação, a prática mais além de nossa experiência do bom e
do mau, mais além da prática egocêntrica, consiste nisto.
Em minha última preleção falei sobre os versos de
石頭 SEKITŌ: 触目道を会せずんば、SOKU MOKU DŌ O ESSE
ZUNBA, “Se não for capaz de compreender a Via que tem diante
de si”, 足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、ASHI O HAKOBU MO
IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN, ” Como poderá reconhecê-la ao
caminhar por ela?” O que quer que vocês vejam, é o 道 Tao.
Mesmo que vocês pratiquem, vossa prática não funcionará.
Agora 石 頭 SEKITŌ diz que se praticarem a Via em seu
verdadeiro sentido, não haverá problema algum sobre estar longe
da meta ou do ponto de chegada. A prática de um principiante e a
de um grande mestre 禅 ZEN não são distintas. Mas se vocês se
estabelecerem numa prática egocêntrica, isso é viver num estado
de ilusão.
No verso seguinte 石頭 SEKITŌ disse que se praticarem a
Via com uma sensação dualista a respeito da prática e da

203
Iluminação, os obstáculos que se interporão em vosso caminho
os afastarão do 道 Tao e serão tão enormes como se vocês
tivessem que transpor montanhas e cruzar rios.
Em seguida, 石頭 SEKITŌ diz: 謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU, “Vocês que
estudam o mistério, respeitosamente e com urgência eu os
exorto:” 光 陰 虚 し く 度 る こ と な か れ 。 KŌ IN MUNA SHIKU
WATARU KOTO NAKARE. “Não passem os dias e as noites em
vão!” 光 KŌ significa neste contexto “raio de sol” e 陰 IN significa
“sombra”; 光陰 KŌIN significa portanto “dia e noite” ou “tempo”. 度
る WATARU significa “dedicar”ou “passar”. な か れ NAKARE
significa “não” e 虚しく MUNASHIKU significa “em vão”. “Não
passem os dias e as noites em vão” quer dizer “Não
vagabundeiem”.
Ainda que às vezes vocês trabalhem duramente, podem
estar desperdiçando seu valioso tempo sem fazer realmente algo.
Se vocês não sabem o que estão fazendo, um mestre 禅 ZEN
poderia lhes dizer:”Oh, vocês estão desperdiçando o tempo!” E
vocês poderiam responder: “Não é verdade, estou me
esforçando para acumular dez mil dólares na minha caderneta de
poupança”, mas para um mestre 禅 ZEN talvez esta atividade
careça de sentido. Mesmo que vocês trabalhem arduamente em
Tassajara durante o período de trabalho, nem sempre significa
que estejam fazendo o adequado. Se vagabundearem estarão
perdendo tempo, e mesmo que estiverem trabalhando
arduamente, pode ser que também o estejam desperdiçando. Isto
é para vocês uma espécie de 公案 KŌAN.
“Cada dia é um bom dia.”58 Este famoso 公案 KŌAN não
significa que vocês não devem se queixar se tiverem algum
problema, mas que “Não deixem que o tempo passe em vão”. Eu
58
日日 是好日 NICHI NICHI KORE KOJITSU, caso nº 6 do
碧巖錄 HEKIGANROKU. (N.T.)

204
acredito que a maioria das pessoas está deixando o tempo
passar em vão . Alguém poderia dizer: “Não é bem assim, pois
estou sempre me ocupando com algo”, mas esta resposta é sem
dúvida um sinal de que a pessoa está desperdiçando o tempo. A
maioria das pessoas age com algum propósito, como se
soubesse o que está fazendo. Mas mesmo que seja assim, não
creio que compreendam adequadamente a atividade a que se
dedicam.
Quando vocês realizam algo com um propósito baseado em
alguma avaliação daquilo que é útil ou inútil, bom ou mau, mais
ou menos valioso, não estão compreendendo perfeitamente
nossa atividade. Mas quando realizam as coisas que necessitam
fazer sem se importarem se os resultados serão bons ou maus,
se serão bem sucedidos ou fracassarão, essa é uma verdadeira
prática. Se fizerem as coisas não pelo Buddha, nem pela verdade,
nem por vocês mesmos, nem pelos demais, mas pelo simples
fato de fazê-las, isso constitui a verdadeira Via.
Não posso explicá-lo muito bem. Talvez seja até melhor não
falar tanto. Vocês não devem fazer as coisas porque se sentem
bem ao fazê-las nem deixar de fazê-las porque ao fazê-las
sintam-se mal. Tanto se sentindo bem como mal, há algo que
vocês devem fazer. Se vocês não tiverem esta sensação ao fazer
algo, não terão começado a seguir a Via no verdadeiro sentido da
palavra.
Ignoro por que estou em Tassajara: não estou aqui por
vocês, nem por mim e nem sequer por Buddha ou pelo Budismo.
Simplesmente estou aqui. Mas quando penso que vou embora de
Tassajara daqui a três semanas, não me sinto bem. Não sei
porque. Não creio que seja só por ter que deixá-los, vocês que
são meus alunos. Não há uma pessoa em especial a qual eu
estime muito. Não sei porque tenho de estar aqui. E não é porque
me sinta apegado a Tassajara. Para o futuro não tenho
expectativas sobre se Tassajara se transformará num grande
monastério ou sobre o que será do Budismo. Mas não quero

205
passar minha vida no ar. Quero estar aqui mesmo. Ir com meus
próprios pés.
A única forma de ir com meus pés quando estou em
Tassajara é sentar-me em 座禅 ZAZEN. Por isso estou aqui. Para
mim, ir com meus pés e me sentar em meu 坐蒲 ZAFU negro é o
mais importante. Apenas confio em meus pés e em meu
坐蒲 ZAFU negro. São meus amigos, sempre. Meus pés são
sempre meus amigos. Quando estou na cama, a cama é minha
amiga; não há Buddha, nem Budismo, nem 座禅 ZAZEN. Se me
perguntarem: “O que é o 座 禅 ZAZEN para você?”, eu
responderia: “Sentar-me sobre meu 坐蒲 ZAFU negro” ou “Andar
com meus pés”. Meu 座禅 ZAZEN é estar neste momento neste
lugar. Para mim não há outro 座禅 ZAZEN. Quando realmente
vou com meus próprios pés não estou perdido. Para mim o
Nirvāna é isto. Não é necessário viajar nem cruzar montanhas ou
rios. Como estou aqui mesmo, no mundo do Dharma, não tenho
de cruzar montanhas nem rios. É dessa forma que
desperdiçamos o tempo. Temos de viver cada momento, sem
sacrificar este momento pensando no futuro.
Na China, na época de 石頭 SEKITŌ, o Budismo 禅 ZEN
era muito polêmico. Sempre havia alguma controvérsia
relacionada com os ensinamentos. Havia muitas escolas do
禅 ZEN e elas freqüentemente costumavam se engalfinhar em
disputas. E como davam morada à idéias sobre o ensinamento
correto e o incorreto, ou sobre o ensinamento tradicional e o
herético, esqueciam-se do mais importante: da prática. Por isso
石 頭 SEKITŌ disse: “Não passem o tempo em vão.” Não
sacrifiquem a prática real por uma prática idealista, almejando
alcançar algum tipo de perfeição ou de adquirir a compreensão
tradicional ensinada pelo Sexto Patriarca.
Os discípulos do Sexto Patriarca compilaram o Sūtra da
Plataforma do Sexto Patriarca em distintas versões e cada uma
delas asseverava: “Esta versão é a Via do Sexto Patriarca. Os
206
que não têm esta obra não são descendentes do Sexto
Patriarca.” Naquela época prevalecia esta compreensão do
禅 ZEN. Por esta razão 石 頭 SEKITŌ disse:
謹んで参玄さの人にもうす、TSUTSUSHIN DE SANGEN NO
HITO NI MŌSU, “Vocês que estudam o mistério, respeitosamente
e com urgência eu os exorto:” 光陰虚しく度ることなかれ。KŌ IN
MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE. “Não passem os dias e
as noites em vão!” Não cair aprisionado em alguma idéia, em
alguma compreensão egoísta da prática ou dos ensinamentos é
seguir a prática corretamente.
Às vezes isto se chama “A prática de polir telhas”.
Normalmente são os espelhos que devem ser polidos. Mas
quando alguém se põe a polir uma telha talvez vocês sintam que
a pessoa está caçoando de vocês. Mas uma telha ao ser polida
brilha. Alguém poderia dizer: “Oh, não é mais que uma telha.
Nunca será um espelho!” Esta é a prática dos que se rendem
facilmente pensando: “Como não consigo ser um bom estudante
禅 ZEN, deixarei de me sentar em 座禅 ZAZEN”. Não se dão
conta que uma telha é valiosa, às vezes até mais valiosa que um
espelho. As telhas são muito boas para se construir telhados, da
mesma forma que um espelho é importante para podermos nos
contemplar nele. A prática de polir telhas é isto.
Como vocês já devem saber há uma famosa história sobre
南 嶽 NANGAKU, um discípulo do Sexto Patriarca, e seu
discípulo 馬 祖 BASO. Um dia, enquanto 馬 祖 BASO estava
praticando 座 禅 ZAZEN, 南 嶽 NANGAKU passou por ali e
perguntou-lhe:
“O que você está fazendo?”
“Estou praticando 座禅 ZAZEN.”
“E por que o está fazendo?”
“Para me converter num Buddha.”
“Ah! Muito bom que você deseje se converter num Buddha”,
disse 南 嶽 NANGAKU, que em seguida pegou uma telha e
começou a poli-la, raspando-a contra uma pedra.

207
Movido pela curiosidade, 馬祖 BASO perguntou:
“O que você está fazendo?”
“Estou polindo a telha, pois quero fazer dela um espelho.”
馬 祖 BASO perguntou-lhe se isso era possível e
南嶽 NANGAKU respondeu:
“Você disse que está praticando 座 禅 ZAZEN para se
converter num Buddha, mas um Buddha nem sempre é alguém
que alcança a Iluminação. Todo mundo é um Buddha, tenha
alcançado ou não a Iluminação.”
馬祖 BASO então lhe disse:
“Quero me converter num Buddha através da prática de se
sentar”.
南嶽 NANGAKU lhe respondeu:
“Você fala da prática de se sentar, mas sentar-se nem
sempre é praticar 座 禅 ZAZEN. Faça o que fizer, será
座禅 ZAZEN.”
馬祖 BASO sentiu-se confuso:
“Qual é então a prática adequada?”
南嶽 NANGAKU respondeu:
“Se uma charrete não anda, qual é a melhor maneira de
fazê-la avançar, segurar a charrete ou o cavalo?”
馬 祖 BASO não soube o que responder porque ainda
seguia praticando com a idéia de obter algo.
南嶽 NANGAKU continuou com sua explicação. Não posso
me estender aos detalhes, mas em resumo foi isto o que disse:
“Pretender averiguar o que é o mais adequado – segurar o
cavalo ou a charrete – é um erro, porque a charrete e o cavalo
não são duas coisas distintas, mas uma só.”

A prática e a Iluminação são uma só coisa, da mesma forma


que o cavalo e a charrete. Na realidade se vocês fizerem uma
verdadeira prática física, ela também é a Iluminação. Em nossa
tradição a prática baseada na Iluminação chama-se “a prática
real sem fim” e a Iluminação que se inicia com a prática e é uma
208
com ela se denomina “a Iluminação sem início”. Se alguém
começa a praticar, a Iluminação está presente, e onde haja
Iluminação haverá também a prática. Sem prática não há
Iluminação. Se no lugar onde agora vocês estão vocês não
estiverem conscientes de sua postura, não estarão praticando a
Via. Se vocês sacrificarem esta prática presente por alguma
recompensa futura, estarão perdendo tempo. Não será a
verdadeira prática.
石 頭 SEKITŌ foi também um discípulo direto do Sexto
Patriarca e conhecia muito bem a prática deste. Quando
荷 澤 神 會 KATAKU JINNE e seus discípulos começaram a
criticar a Escola do Norte de 神秀 JINSHŪ, 石頭 SEKITŌ não
gostou que se apegassem à uma idéia sem compreender na
realidade o que era a prática. Cinco séculos mais tarde,
道元 禅師 DŌGEN ZENJI continuaria difundindo a compreensão
de 石頭 SEKITŌ no Japão. Não só a desenvolveu de maneira
lógica, mas além disso o fez de uma forma mais ampla e poética,
e com mais sentimento, com sua tenaz mente racional.
Há quem diga que o 參同会 SANDŌKAI não é um bom
poema porque é filosófico demais. Talvez seja assim quando não
se compreende as entrelinhas dos ensinamentos de
石 頭 SEKITŌ ou quando sua mente não penetra em suas
palavras. Na nossa tradição dizemos que: “Devemos ler o reverso
do papel”, não só os caracteres impressos, mas o outro lado da
página. É importante compreender o 參 同 会 SANDŌKAI de
石頭 SEKITŌ deste modo.

209
DIÁLOGO

ESTUDANTE: Tendo em vista o que foi dito, não consigo


compreender os votos. Se não existem seres, por que
prometemos salvá-los59 ? Parece uma grande zombaria.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Parece uma zombaria para você


porque sua prática está sempre confinada no reino do: “Por que
praticamos 座禅 ZAZEN? Que significado isso tem?” Na realidade,
sua prática é muito boa. E por que é tão boa? Não consigo
entender. [risos]

ESTUDANTE: Para mim não me parece tão boa.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: De todo o modo, você a está


fazendo bem. Minha preleção pode ser que sirva como um
incentivo [risos]. Talvez seja melhor para você não escutar
minhas preleções e limitar-se a praticar 座禅 ZAZEN.

ESTUDANTE: Fazer 座禅 ZAZEN não me incomoda, mas


não gosto de prometer coisas que não entendo.

59
No Budismo japonês, os três votos fundamentais, 戒 KAI, estão
limitados a três:
1. 攝 律儀 戒 SHŌ RITSUGI KAI (samvara-shīla, em sânscrito), o
preceito que recomenda evitar as más ações;
2. 攝 善法 戒 SHŌ ZENHŌ KAI (kushala-dharma-samgrāhaka-
shīla): praticar as boas ações;
3. 攝 衆生 戒 SHŌ SHUJŌ KAI (sattvârtha-kriyā-shīla): ajudar todos
os seres. (N.T.)

210
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se existem inumeráveis seres
ou se os desejos são infinitos, você não pode dizer: “Faço o voto
de salvá-los”, porque nossa promessa seria muito estúpida. Não
teria sentido algum. Estou de acordo contigo. Mas de qualquer
forma, continuamos fazendo este voto. Por que? Porque se não
trabalharmos pelos demais, não nos sentiríamos bem. Mesmo
que façamos os quatro votos 60 , na realidade eles significam
muito mais que isso. Fazemos quatro porque fica mais prático.
Mas eu me sinto realmente afortunado que existam infinitos
desejos e inumeráveis seres para serem salvos, e também que
seja quase impossível salvar cada um deles no sentido de dizer:
“Eu te salvo”. Ninguém pode ser salvo desta maneira. A questão
não é se é possível salvá-los ou não, ou se é um budista, um
Bodhisattva, o Hīnayāna ou o Mahāyanā aquele que vai fazê-lo,
mas sim que o nosso voto é: “Vou fazê-lo de qualquer forma”.

ESTUDANTE: Quando prometo algo, isso tem de ter algum


significado. Se não tem não posso prometer.

60
Trata-se do 四弘 誓願 文 SHIGU SEIGAN MON, Os Quatro Votos:

衆 生 無 邊 誓 願 度、
SHU JŌ MU HEN SEI GAN DO,
Seres são inumeráveis. Faço o voto de salvá-los;

煩悩無儘誓願斷、
BONNŌ MU JIN SEI GAN DAN,
Desejos são inexauríveis. Faço o voto de extingui-los;

法門無量誓願學、
HŌ MON MU RYŌ SEI GAN GAKU,
Portais do Dharma são ilimitados. Faço o voto de apreendê-los;

佛道無上誓願成。
BUTSU DŌ MU JŌ SEI GAN JŌ.
O Caminho de Buddha é o mais elevado. Faço o voto de realizá-lo. (N.T.)
211
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Não pode por culpa de sua
arrogância.

ESTUDANTE: Não sei, talvez você tenha razão, mas...

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Agora você está chorando. Mas


mesmo que esteja chorando, este pranto não tem sentido, porque
o esforço que você está fazendo continua se baseando numa
prática egoísta. Não se separe de você mesmo. Você deve sofrer
e lutar mais consigo. Na realidade não há alguém com quem lutar
nem algo a ser enfrentado. Lute com sua prática egoísta até
abandoná-la. Para um verdadeiro estudante isto é o mais
importante. Um verdadeiro estudante não se engana. Não deseja
se enganar com os ensinamentos, com o 座禅 ZAZEN, nem com
qualquer outra coisa. É assim que deve ser. Não se engane com
o que quer que seja.

ESTUDANTE: E o que eu vou fazer no final das preleções,


quando cantarmos os Quatro Votos? Todos os cantarão e eu
seguirei sem acreditar neles.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não deve acreditar neles


ao pé da letra. Como vários mestres e numerosos discípulos os
recitam, você também deve fazê-lo. Se eles estão se enganando,
você também deve se enganar, deve se enganar junto com todos
os seres. Que não possa fazê-lo significa que você quer ser
especial. E isso é bom. É o espírito que deve nos animar, mas a
Via não é isso. Minha resposta é muito fria. Não posso ser
complacente com sua prática. Talvez algum grande mestre te dê
uma guloseima. Caso seja isso o que você deseja, vá buscá-la.

212
ESTUDANTE: Não é isso, 老 師 RŌSHI. Talvez seja em
parte, mas continuo sem entender. Não me sinto bem ao recitar
os votos. Mesmo que o mundo inteiro esteja se enganando, se há
algo que não entendo ou em que não acredito...

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não entende. Vê várias


cores, mas quantas cores você pode ver com seus olhos?
Quantas coisas você pode compreender com sua pequena mente?
Você tem que conhecer os limites de sua mente racional. Sua
mente racional só funciona de uma forma dualista. E esta classe
de realidade não pode ser explicada com palavras. Mas quando
você se apega às minhas palavras, ou às escrituras, você
acredita que as escrituras deveriam ser não só perfeitas, mas
convincentes. Você acredita dessa forma, mas tenho que
confessar a você que o que eu digo nem sempre é correto, nem
sempre é certo. Estou sugerindo algo mais que isto. Não só
Buddha, mas Confúcio também disse: “Se alguém quiser enganá-
los, vocês devem se deixar enganar”. Isto é muito importante.

ESTUDANTE: Ainda que a prática seja muito mais que as


palavras, no pequeno mundo das palavras não me sinto forte o
bastante para ser incoerente. Se eu lhe digo: “Não estou vendo
esta lâmpada, 老師 RŌSHI”, sinto algo extraordinário em meu
interior e às vezes, ao recitar os Votos tenho a mesma sensação.
Penso: “De acordo, prometo salvar todos os seres”, mas então
sinto uma dúvida em meu interior...

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Sim, compreendo. Nós,


sacerdotes 禅 ZEN, quando encontramos outro sacerdote sempre
unimos as palmas das mãos e nos saudamos com uma
reverência. Em Tassajara, quantas vezes você uniu as palmas
das mãos? Quando eu era jovem, não gostava de fazê-lo. Sentia
como se estivesse fingindo e não gostava. Mas como tinha que

213
fazê-lo, eu o fazia, isso é tudo. Mas agora eu compreendo o
estúpido que sou. Já não tenho a mesma energia como antes. A
verdade é a verdade, e agora não posso estar de acordo contigo.
Na verdade, se eu tivesse a mesma idade que você pensaria
igual e poderíamos ser grandes amigos, mas agora eu não sou
seu amigo.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, você acredita que temos alguma


escolha? Por exemplo, estou em Tassajara porque escolhi estar
aqui ou apenas estou em Tassajara e só?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sua natureza de Buddha levou-o


a Tassajara. Não acredito que tenha podido escolher por
completo vir aqui. Talvez o tenha feito em vinte ou trinta por cento.
Mas a razão principal pela qual você está aqui está mais além de
sua própria escolha. Se agora estamos ouvindo os ensinamentos
de Buddha é porque no passado já os havíamos estudado. A
sabedoria busca a sabedoria e agora estamos escutando os
ensinamentos que escutamos de mestres em nossas existências
passadas. 道元 DŌGEN já o dizia. Mesmo que você sinta que
todo o seu corpo está lhe dizendo: “Acredito que tenha escolhido
com cem por cento de certeza”, esta parte que agora parece
responder por todo o seu ser é tão somente uma pequena, uma
pequeníssima parte de você. Na verdade, não deveria explicá-lo
a você da maneira tradicional.

ESTUDANTE: Então, se hei de me converter num Buddha,


até que ponto posso influir nisso?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Em primeiro lugar, trate de se


esquecer de você mesmo e confie em sua verdadeira voz, em
sua voz silenciosa, em sua voz não verbal. Em nossa tradição
dizemos: “Escute o ensinamento mudo”, não escute minhas
palavras. Pense nisso.
214
ESTUDANTE: De quem é a voz que escutamos?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É a sua voz e a voz de Buddha.


É isso que o 參同会 SANDŌKAI está falando. Às vezes você
acredita que é a sua voz, mas é a voz de Buddha. Acredita que
vem de um sentimento que só leva em conta um lado da
realidade. Acredita estar aqui, ser Joe ou Mary, mas na realidade
não é assim, em absoluto. Eu creio ser 鈴木 SUZUKI, mas se
alguém me chama pelo meu nome, eu me sinto esquisito. “Oh,
este é 鈴木 SUZUKI?” Minha primeira reação seria dizer: “Não,
não sou 鈴木 SUZUKI.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, posso unir as mãos em


合掌 GASSHŌ e alguém ao ver meu gesto dizer: “Oh, isso é um
bom 合掌 GASSHŌ!”, mas na verdade eu o estou fazendo com
um coração frio.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: A questão não é fazê-lo com um


coração frio ou um coração caloroso.

ESTUDANTE: Mesmo assim continuaria a ser um bom


合掌 GASSHŌ?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Seria perfeito!

215
216
PRELEÇÃO OFERECIDA
A UM GRUPO DE VISITANTES

Não somos mais que uma diminuta partícula do grande Ser.

Preleção adicional sobre o espírito geral do


參同会 SANDŌKAI oferecida aos estudantes de Tassajara e a um
grupo de visitantes composto de estudantes de filosofia.

O objetivo do estudo do Budismo é obter uma perfeita


compreensão das coisas, compreender a nós mesmos e o que
estamos fazendo em nossa vida cotidiana. Também é necessário
compreender por que sofremos e por que temos tantos conflitos
com nossa família, com a sociedade e com nós mesmos, ou seja,
compreender o que está ocorrendo no reino objetivo e no reino
subjetivo. Quando vemos “as coisas tal como é”, se somos
conscientes do que estamos fazendo e temos uma boa
compreensão delas, sabemos o que é que temos de fazer. O
estudo intelectual do Budismo - que inclui tanto o estudo dualista
como o não dualista - fundamenta-se nisto. Também é
necessário ter alguma experiência real da Via Budista. O estudo

217
e a prática são distintos um do outro; ainda que vocês tenham
uma boa compreensão, se não a colocarem em prática, ela não
lhes servirá para o que quer que seja.
Agora estamos estudando o poema 參同会 SANDŌKAI –
uma espécie de escritura – composto por um grande mestre
chinês do 禅 ZEN. Numa de minhas preleções anteriores,
expliquei-lhes o significado de escuridão e luz. A escuridão
significa algo que não podemos ver ou sobre o que não podemos
pensar, algo mais além de nossa compreensão intelectual. Na
maior escuridão ignoramos o que está ocorrendo. Quando vocês
se encontram num lugar escuro, podem ter medo. Esta sala
agora está bastante escura, mas vocês ainda podem distinguir as
coisas. Se não houvesse luz, nada veriam, mas isto não significa
que nela nada houvesse. Continuaria havendo muitas coisas,
apenas vocês não poderiam vê-las, isso é tudo. A “escuridão”
significa portanto algo que está além de nossa compreensão. E a
“claridade” significa algo que se pode compreender em termos de
bom e de mau, de quadrado ou redondo, de vermelho ou branco.
A “claridade” significa os múltiplos fenômenos e a “escuridão”, o
único Ser no qual os múltiplos fenômenos existem. Ainda que
existam muitos fenômenos, incluindo a lua e as estrelas, tudo é
tão imenso que não somos mais que uma diminuta partícula do
grande Ser.
A “escuridão” significa algo que contém tudo. Vocês não
podem sair dela. Onde quer que vocês se dirijam, a escuridão
abarcará este lugar. A maior escuridão é um Ser imenso,
descomunal, onde cada fenômeno pode ser reconhecido, porque
comparado com este grande Ser tudo o mais é sumamente
pequeno. Isto não significa que nada exista, mas que os múltiplos
fenômenos existem em um único e grande Ser. Entretanto,
qualquer estudo que levemos a cabo sempre tem lugar no reino
da claridade. Diferenciamos as coisas dizendo “isto é bom ou
mau, agradável ou desagradável, correto ou incorreto, grande ou
pequeno, redondo ou quadrado”. Qualquer coisa que vocês
relacionem aparece na claridade do mundo dualista. Mas para

218
nós é necessário conhecer a escuridão, onde nada há para se
ver, nada há para se pensar. E a única maneira de experimentá-
la é com a prática de 座禅 ZAZEN. Enquanto escutamos as
preleções ou refletimos sobre elas, ou enquanto falamos sobre os
ensinamentos, não podemos estudar o que a escuridão é
realmente. Eu não posso falar dela, mas posso falar de algo que
possamos compreender, de algo que possa animá-los a praticar
座禅 ZAZEN e os leve a experimentar a escuridão.
A escuridão às vezes é chamada de “nada” ou “vacuidade”,
em contraposição a “algo”. Em nossa tradição às vezes dizemos
“não-mente”61. Quando vocês estão na maior escuridão, em nada
pensam.
Creio que acabei indo longe demais [risos], é melhor que
volte para algum lugar, uma sala iluminada. Aqui é escuro demais
para ver o rosto de cada um de vocês e o tipo de problema que
cada um tem. Creio que devo retornar a nossos problemas
cotidianos.
Ainda há pouco estava falando com um estudante sobre a
relação que mantenho com minha mulher. Ainda que me queixe
freqüentemente, não creio que pudesse viver sem ela. Se posso
ser sincero, isso é o que na verdade sinto. Aqui em Tassajara
aprendi uma expressão muito interessante: “Um marido
dominado por sua mulher”. Este tipo de marido não pode nem
sequer levanta a cabeça, porque sua mulher sempre está lhe
fazendo baixar a crista. Mesmo assim, ele precisa dela. Algumas
vezes sente que é impossível viver com ela e seria melhor se
divorciar. Mas outras vezes pensa “Oh! Mas eu não posso viver
sem ela. O que devo fazer?”
É um problema que temos no mundo da claridade. Quando
a lâmpada está acesa posso ver-me e à minha mulher, e quando
não há lâmpada alguma não há problema algum. Mas nós não
pensamos sobre a escuridão. Sempre estamos sofrendo por
causa da vida que podemos ver com os olhos e ouvir com os

61
無心 MUSHIN, em japonês. (N. T.)
219
ouvidos. Isso é o que fazemos. No mundo da claridade é difícil
viver sem os demais e também o é viver com eles. Este é o
problema que temos. O que devemos fazer? Mas se vocês
tiverem a mais ligeira compreensão da escuridão, que é a outra
face da claridade, descobrirão como viver na claridade do mundo.
Na claridade vocês verão algo bom ou mau, ou correto e
incorreto. Neste mundo da diferenciação, as coisas existem com
formas distintas e cores, e, ao mesmo tempo, podemos perceber
a igualdade de tudo. A única oportunidade que temos para
sermos iguais é sermos conscientes do mundo da forma e da cor
e respeitá-lo. Apenas quando vocês se respeitarem como as
pessoas cultas ou ignorantes que são, é que descobrirão a
autêntica igualdade.
Acreditamos que a igualdade significa compartilhar algo
eqüitativamente com todo o mundo. Mas isso é impossível. Não é
mais que um sonho. Por exemplo, se compartilhamos
eqüitativamente nossa comida com os demais, alguns ficariam
satisfeitos e outros, não; é impossível compartilhar as coisas
eqüitativamente. Da mesma forma, nem todo mundo tem a
mesma responsabilidade, o mesmo saber ou o mesmo
compromisso. Somente quando compreendemos e respeitamos
nossa própria capacidade, nossa própria força física, nossa
natureza como homem ou como mulher e nosso próprio caráter
ou natureza, é que podemos ser cada um de nós igual aos
demais.
Esta igualdade se diferencia um pouco do que se costuma
compreender por igualdade. Aqui há uma taça com água. A água
e a taça não são iguais: a água é água e a taça é uma taça.
Mesmo que a água queira ser uma taça, não o pode , e o mesmo
se passa com a taça. A taça deve ser uma taça e a água deve
ser água. Quando a água está numa taça ela cumpre sua
finalidade e a taça, também. Uma taça sem água ou a água sem
uma taça não têm sentido algum para nós. Quando a água é
água e a taça, é taça, e a taça e a água mantém uma relação,
tornam-se interdependentes; a água terá seu próprio valor e a

220
taça, também. É neste sentido que dizemos que a taça e a água
são iguais.
Se vocês acreditam que a liberdade é ignorar as regras e
agir como lhes aprouver, não será mais que um sonho, uma
ilusão. Na realidade a liberdade não existe deste modo e não
devemos nos esforçar inutilmente tentando agarrar uma nuvem.
A forma de resolver uma dificuldade é compreendermos bem a
nós mesmos. Temos que saber o que estamos fazendo, o que é
possível e o que não o é. E além disso, temos que ser muito
realistas, pois se não, nada do que fizermos funcionará. Já o fato
de que vocês gostem de sonhar acordados é outra coisa muito
distinta. Às vezes é bom pensar em algo impossível, sonhar com
algo maravilhoso. O importante é aproveitar como se fosse um
filme. Vocês se sentem como se fossem estrelas do cinema. Isso
é bom, mas não pode ser nossa última meta na vida. Temos de
reconhecer o que é uma ilusão e o que é a realidade. Quando
estamos fazendo sinceramente uma boa prática, não temos que
sonhar com algo impossível, mas trabalhar por algo que se possa
alcançar.
A outra face da diferenciação é a igualdade. Como as coisas
são diferentes, existe a igualdade. Quando vocês compreendem
a igualdade dos homens e mulheres no verdadeiro sentido da
palavra, já não terão mais problemas. Poderão dizer “Não posso
viver sem ela”. Quando se sentirem desta forma, não saberão
quem é ela nem quem são vocês. Mas quando compreenderem
que ela é importante porque ela é quem é, estarão
compreendendo sua natureza. Se um marido é mais idealista que
realista e pensa fazer algo que parece impossível ignorando o
que pode vir a lhe ocorrer, sua mulher pode lhe dizer “Oh! Não
faça isso! É cedo demais. Espera, espera um pouco” [risos]. Se
ela diz isto, ele pode pensar “Oh! Tenho que fazê-lo agora
mesmo!” E então se queixará dizendo “Não posso viver com ela”
[risos]. Mas esta é a natureza de sua mulher. Um homem
precipitado e despreocupado pode se beneficiar muito tendo uma
mulher cuidadosa e mais conservadora. Às vezes pode ser que

221
ela fique brava com ele, mas essa é também sua natureza.
Quando ele disse “Não posso viver com ela”, há algo que ele não
está compreendendo completamente.
Outro dia disse que o caractere chinês “humano” se
compunha de dois traços apoiando-se entre si (人). Um homem e
uma mulher, ou o mestre e o discípulo, são assim. Sem um
mestre, não há discípulo, e sem um discípulo, não há mestre.
Quando o mestre e o discípulo existem como os dois traços deste
caractere, apoiando-se entre si, há um monastério. Tudo existe
desse modo. “Eu não posso existir sem ela ou sem ele” é o
correto. Quando vocês não compreendem a outra face de cada
evento ou coisa isto lhes cria muitas dificuldades. A outra face do
mau será o bom; esta é a realidade.
A outra cara da escuridão é a claridade. Vocês podem dizer
que esta sala está escura, mas nela há mais luz do que no sótão.
E inclusive no sótão há mais luz do que numa gruta da montanha.
Na realidade não se pode dizer que a sala está iluminada ou
escura. A luz ou a escuridão somente estão em suas mentes, de
fato não há luz nem escuridão. No entanto, como precisamos de
modelos, de regras ou de meios para nos comunicar, dizemos
que algo é bom ou mau, agradável ou desagradável. Mas não
são mais que palavras. Não devemos cair prisioneiros delas.
Quando suas namoradas lhes dizem “Você não me quer”, vocês
podem tomar estas palavras ao pé da letra. Mas na verdade ela
está dizendo o contrário. Como ela os quer tanto, às vezes pensa
“Eu te odeio”, mas na verdade, não é assim. Se vocês se
aferrarem às palavras sem observar as coisas de ambos os lados,
não saberão o que deverão fazer.
Temos somente os olhos abertos para o exterior e não
podemos ver nosso interior. Por isso, tendemos a nos interessar
pela prática ou pela vida de outra pessoa e a sermos muito
críticos com relação a ela. Ainda que pensemos na prática que
deveríamos realizar, não podemos encontrar nosso próprio
caminho porque nossos olhos apenas percebem o exterior.
Quando vocês dizem “Qual o caminho que eu devo tomar?”, o

222
“eu” está aqui e o “caminho” está ali, e além disso, vocês não
compreendem a natureza desse seu “eu”. E como não conhecem
esse “eu”, são uns desconhecidos para vocês mesmos. Assim é
que criticam a vocês mesmos e aos demais. E isso é terrível!
Vocês não podem existir neste mundo por culpa de suas duras
críticas. Criticar os demais é muito fácil. Criticar-se já custa um
pouco mais, por que ao fazê-lo a pessoa se sente mal, mas de
todos os modos vocês o continuam fazendo e sofrem por isso.
Estamos o fazendo diariamente. Vocês sofrem porque não
compreendem de todo o que estão fazendo.
Segundo a compreensão budista, as coisas que parecem
existir fora, na realidade existem dentro de nós. Quando vocês
pensam “Ele não é bom”, de fato estão criticando algo de seu
interior. “Ele” é uma imagem de vocês mesmos. Esta é a
compreensão da grande Mente que a tudo inclui. As coisas
apenas estão acontecendo em seu interior, são atividades da
vida que estão dentro de vocês, são como seus estômagos
digerindo as coisas. Sua mente pode pensar “Aqui está meu
coração e aqui, minha barriga”, sem ser consciente da relação
que existe entre ambos. Talvez vocês acreditem que com uma
operação se pode abrir a barriga sem se afetar o coração. Mas
na realidade não é assim. O coração e a barriga estão
intimamente relacionados e, se a barriga se fortalece, o coração
pode melhorar. Nem sempre é necessário se proceder a uma
importante cirurgia cardíaca. Quando vocês compreenderem que
as coisas estão intimamente ligadas, já não será necessário dizer
“barriga” ou “coração”. O fato de se gozar de boa saúde não
significa necessariamente que vocês sabem o que está
acontecendo com seu corpo físico. Do mesmo modo, quando sua
vida é saudável e boa, não é necessário falar sobre ele, sobre ela,
ou sobre si mesmo.
Este tipo de harmoniosa vida interior se obtém através da
prática. Falar sobre as coisas é como dispor a comida num prato.
A cada manhã nossos estudantes colocam maravilhosamente a
comida em cada prato. Mas por sorte ou por desgraça, quando

223
eu mastigo a comida ela se mistura na minha boca e apenas
sinto o seu sabor, já não há cor, nem beleza, nem sal de gergelim
ou arroz integral. E quando ela chega a barriga, fica ainda mais
misturada. Já nem sequer a reconheceria. Quando as coisas
estão em plena atividade, não há qualquer idéia de bom ou mau,
de isto ou aquilo. É bom ver a comida colocada em vários pratos.
É bom pensar sobre a comida, a vida, ou a natureza do homem e
da mulher. Mas, ainda que vocês pensem nessas coisas, se não
as provarem em suas vidas, não significará muito. Se não as
mastigarem, misturarem e engolirem-nas, suas vidas não terão
grande sentido.
Estudamos o Budismo desta maneira, da mesma forma que
colocamos a comida em diversos pratos e apreciamos suas
formas e cores. Mas no final temos de comê-las e então não
haverá ensinamento algum. Quando realmente a comemos, não
há mestre nem discípulo, não há Buddha nem Cristo.
Nossa prática consiste em como comer. Somos afortunados,
por que ainda que mastiguemos as coisas e as misturemos,
também sabemos analisá-las de varias formas e sabemos o que
estamos fazendo. Analisar sua psicologia ou sua prática é
importante, mas isso não é mais que a sombra de sua prática e
não a prática em si mesma.
Temos que seguir praticando desse modo, colocando os
distintos elementos cuidadosamente no prato, misturando-os,
mastigando-os e analisando-os para vermos o que está
ocorrendo. “O que estou fazendo?” Assim, ao analisarmos na
claridade e ao misturarmos tudo numa sala às escuras, uma e
outra vez, iremos realizando nossa prática, interminavelmente.
No final do 參 同 会 SANDŌKAI, 石 頭 SEKITŌ diz que se
avançarmos desta forma, passo a passo, não se tratará mais de
uma questão de se estamos empreendendo uma viagem de um
ou de mil quilômetros. Neste caso, não há Iluminação nem há
ignorância, porque avançamos, e avançamos e seguimos
avançando, seguindo sempre o Caminho de Buddha. Mas se
vocês deixarem de trabalhar e se apegarem à idéia de bom ou de

224
mau, terão problemas, será como ter de cruzar um grande rio ou
uma elevada montanha. E serão vocês que criarão o rio e a
montanha, já que na realidade estes não existem. Quando vocês
se analisarem, quando se criticarem, estarão hospedando
alguma idéia em especial sobre vocês mesmos e com relação a
se são bons ou maus e então acreditarão ser aquilo. Na realidade
isso não é certo, mas é assim que vocês criam os problemas.
Estamos fazendo isso continuamente.
DIÁLOGO

ESTUDANTE: Você disse que o 座禅 ZAZEN pertence à


escuridão e escutar uma preleção, à claridade. Se alguém escuta
uma preleção com uma boa compreensão, estará então fazendo
座禅 ZAZEN, não está certo?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: O 參同会 SANDŌKAI diz que


ainda que alguém reconheça a verdade, isso não é a Iluminação.
Mas as preleções infundirão em vocês alento e saberão então por
que praticar 座禅 ZAZEN. Vocês colocam as coisas de acordo
com a minha receita budista e estão cozinhando algo em
Tassajara. Como estão sentados frente a seus pratos devem
comer aquilo que cozinharam. O “como comem” é a prática do
座禅 ZAZEN. Como esta comida foi preparada por praticantes do
座禅 ZAZEN, quando for ingerida irá ajudá-los em sua prática.

ESTUDANTE: Você disse que o 座禅 ZAZEN pertence à


escuridão e as preleções, à claridade, e também que 理 RI é o
escuro e 事 JI, o claro, mas gostaria de saber se realmente eles
podem ser separados assim.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É uma boa pergunta. A propósito,


estamos separando coisas que são inseparáveis. São como as

225
duas faces de uma moeda: esta face é a claridade e a outra, a
escuridão. Eu estou falando da parte clara e vocês enxergarão
através de sua prática a outra face. Então poderão fazer uma
idéia completa do 參同会 SANDŌKAI; isso é a realidade. Pensar
que através da vossa prática poderão compreender algo que é
totalmente distinto desta parte clara é um grande erro.

ESTUDANTE: Eu me pergunto por que falar de uma face ou


da outra. Por acaso é impossível falar das duas faces ao mesmo
tempo?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: É impossível falar das duas


faces ao mesmo tempo porque sempre que alguém falar de algo,
estará falando da face clara. Não é possível falar da outra face.
Mas como tenho alguma experiência ou compreensão da outra
face, posso falar sobre a parte clara. Se não tivesse experiência
alguma da outra face, o que eu estou dizendo a vocês não teria
sentido algum. Por mais bela que fosse minha descrição, esta
parte clara não seria mais que um veneno para vocês. Esta face
é muito distinta da outra e é impossível misturá-las ou uni-las.
Mas algo que não esteja de acordo com a outra face é pernicioso.
Um ensinamento pode parecer muito bonito, mas se não está de
acordo com a outra face, se a ignora, será como o ópio.

ESTUDANTE: antes das preleções entoamos “Um Dharma


insuperável, penetrante e perfeito... ” 62 . Eu me pergunto como
uma preleção pode penetrar na escuridão. Como uma preleção

62
Antes da leitura ou do ensinamento formal do Dharma, entoa-se o seguinte:

“O Dharma, incomparavelmente profundo e infinitamente sutil,


raramente é revelado, mesmo em centenas de milhões de anos.
Agora podemos vê-lo, ouvi-lo, compreendê-lo.
Que possamos completamente clarificar o verdadeiro significado
dos ensinamentos do Tathāgata”. (N.T.)
226
nos ensina? Como pode ser algo separado da claridade? Como
pode ser 座禅 ZAZEN e o que é um 提唱 TEISHŌ?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Um 提唱 TEISHŌ infunde alento


a vocês, não é só para falar de algo, mas para lhes fazer algumas
sugestões e para ajudá-los a ter uma boa compreensão de vossa
prática. As palavras de um 提唱 TEISHŌ devem proceder de uma
experiência verdadeira... – não deveria me atrever a dizê-lo – de
uma verdadeira experiência da Iluminação. São palavras maiores.
A verdadeira experiência da realidade é um 提唱 TEISHŌ. As
palavras de um 提 唱 TEISHŌ não devem estar mortas, não
devem ser algo que estudamos ou lemos num livro. Esta é a
diferença que há entre um 提唱 TEISHŌ e uma simples preleção.
Falando com propriedade, as preleções oferecem um certo
conhecimento sobre algo, em contrapartida, um 提唱 TEISHŌ
ajuda vocês na prática verdadeira e Iluminação. Um 提唱 TEISHŌ
impele vocês a realizar uma verdadeira prática. “Aqui há algo que
vocês devem ter como budistas. Contemplem-no!”. Isto é um
提唱 TEISHŌ. Nele deve haver algo real para ser dito. Ler este
livro [eleva um livro sobre a cabeça], inclusive memorizá-lo, não é
um 提唱 TEISHŌ. Um 提唱 TEISHŌ é algo que surge do interior,
do fundo do coração. Como devo usar palavras, devo seguir a
lógica e usar alguns termos filosóficos técnicos e especiais. Mas
às vezes se pode falar sobre a realidade diretamente, ignorando
estes termos. E às vezes pode-se inclusive falar dela sem
palavras [dá um golpe na mesa]. Isto é um 提唱 TEISHŌ. Falar
de algo sobre o que é impossível se falar é um 提唱 TEISHŌ.
Perdoe-me. Não posso explicá-lo muito bem.

ESTUDANTE: Você disse que suas preleções sobre o


參 同 会 SANDŌKAI nos darão alguma compreensão. Mas
também disse que é impossível compreender a face clara a não
ser que se compreenda a face escura, a não ser que pratiquemos

227
um bom 座禅 ZAZEN. Suas preleções não são mais que meios
hábeis?

鈴木 老 師 SUZUKI RŌSHI: como sei que vocês vão se


apegar às minhas palavras, depois da palestra eu as esqueço.
Não são mais do que algo intelectual. Vocês devem se esquecer
do que eu disse e captar o verdadeiro significado das minhas
palavras.

ESTUDANTE: As preleções dadas aos estudantes são um


meio hábil de Buddha?

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Assim deveria ser, sejamos


budistas ou não. Mas nós budistas sabemos que se nos
apegarmos às palavras estas nos escravizarão e apenas
compreenderemos uma pequena parte do que foi falado. Quando
vocês ficam interessados por algo que eu tenha apontado com
este dedo, seria melhor eu cortá-lo fora para vocês deixarem de
se apegar a ele. Nós [os mestres] explicamos como cozinhar num
livro de receitas, mas na realidade o que fazemos é cortar as
verduras, salgá-las e fervê-las. Enquanto vocês estiverem
dependentes do que está escrito no livro de receitas, pode ser
que seja necessário muito tempo antes que consigam realmente
cozinhar! Vocês apenas serão bons cozinheiros quando puderem
se esquecer do livro de receitas. É sempre melhor estudar vendo
como alguém cozinha. É a melhor maneira.
Um 提唱 TEISHŌ é dar algo diretamente. Normalmente
vocês escutam um 提唱 TEISHŌ com a atitude de pensar se é
bom ou mau. Perguntam-se “Do que é que ele está falando? Se
for bom eu o aceitarei e se for mau não o farei”. Mas este
pensamento é supérfluo. Vocês não devem ser tão meticulosos.
Se vocês se limitarem apenas a escutá-lo, nem sequer
necessitarão compreendê-lo. Se não o compreenderem, tudo
bem; e se o compreenderem, melhor ainda, isso é tudo. Não
228
deve haver qualquer intenção especial ao escutá-lo. Um
提唱 TEISHŌ se recebe simplesmente escutando. É diferente de
estudar algo.
Como vossa mente funciona logicamente, devo ser lógico.
Se vocês não fossem assim tão lógicos, poderia dizer o que
quisesse. Poderia inclusive cantar uma canção para vocês.

參同会
SANDŌKAI
229
230
A UNIDADE DO UNO E DO MÚLTIPLO
A mente do grande sábio da Índia,
foi intimamente transmitida de Oeste para Leste.
Ainda que as pessoas distingam o tolo do inteligente,
No fundo não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.
A verdadeira fonte é pura e imaculada,
Os afluentes fluem na escuridão.
Aferrar-se aos fenômenos é uma ilusão.
Reconhecer a verdade nem sempre é a Iluminação.
As cinco portas dos sentidos e os cinco objetos sensoriais
são interdependentes
e ao mesmo tempo absolutamente independentes;
ainda que estejam se relacionando sem cessar,
cada fenômeno se mantém em seu próprio lugar.
Os fenômenos têm diversas naturezas, diversas formas.
Os sabores, sons e sensações podem ser
prazerosos ou desagradáveis.
O superior e o inferior não se diferenciam na escuridão,
A dualidade do puro e do impuro é aparente sob a luz.
Os quatro elementos reassumem sua natureza
da mesma fora que uma criança vai ter com sua mãe.

Compilação procedente das preleções e de conversas privadas mantidas com
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.

231
O fogo aquece, o vento sopra,
a água molha, a terra é sólida.
Para os olhos há cores e formas, para os ouvidos, sons,
para o nariz há odores, para a língua, sabores.
Todos os seres surgem da mesma raiz,
são como os ramos e folhas de um mesmo tronco.
Mas tanto a raiz como a copa deverão regressar
à sua natureza original.

As palavras que usamos são diferentes – boas e más –


mas através delas temos que compreender
o Ser absoluto ou fonte do ensinamento.

Na claridade há na realidade a maior escuridão,


mas não devemos nos encontrar com alguém só na escuridão.
Na escuridão há claridade, mas não devemos ver aos demais
somente com os olhos da claridade.
A escuridão e a claridade se relacionam mutuamente,
como o pé da frente e o pé de trás ao caminhar.
Tudo – todos os seres – têm sua própria virtude.
Devemos saber como aplicar esta verdade.
Os fenômenos e a vacuidade
são como um recipiente e sua tampa:
ajustam-se perfeitamente, como quando duas flechas se
encontram em pleno vôo, ponta com ponta.
Ao escutar estas palavras,
vocês devem compreender a fonte dos ensinamentos.
Não estabeleçam regras próprias.
Se não praticarem na vida cotidiana, enquanto avançarem, como
poderão reconhecer o Caminho?
A meta não está longe nem perto.
Se vocês se apegarem à idéia do bom e do mau,
elevadas montanhas e grandes rios
vão se interpor no seu caminho.

232
Buscadores da Verdade: Não passem o tempo em vão!

TABELA DAS LINHAS DE TRANSMISSÃO


DOS MESTRES CITADOS NO TEXTO

Shākyamuni Buddha
釋迦牟尼 仏
SHAKAMUNI BUTSU
(566-486 a.C.)
I
(27 gerações)
I
Primeiro Patriarca Chinês
Bodhidharma
菩提達摩
BODAIDARUMA
(Putidamo)
(470-543 d.C.)
I
(3 gerações)
I
Quinto Patriarca Chinês
大満弘忍
DAIMAN KŌNIN
(Daman Hongren)
(601-674)

233
--------------------------I---------------------------
I I
I I
Sexto Patriarca Chinês
大鑑慧能 大通神秀
DAIKAN ENŌ DAITSŪ JINSHŪ
(Dajian Huineng) (Datong Shenxiu)
(638-713) (605-706)
I
I
I
I
Sexto Patriarca Chinês
大鑑慧能
DAIKAN ENŌ
(Dajian Huineng)
(638-713)
I
------------------------------------------------------------------
I I I
青原行思 荷澤神會 南嶽懷讓
SEIGEN GYŌSHI KATAKU JINNE NANGAKU EJŌ
(Quingyuan Xingsi) (Heze Shenhui) (Nanwe Shenxiu)
(660-740) (670-762) (605-706)
I I
I I
石頭希遷 馬祖道一
SEKITŌ KISEN BASO DŌITSU
(Shitou Xiqian) (Mazu Daoyi)
(700-790) (709-788)
I I
I ------------------------------ I
I I I
藥山惟儼 天皇道悟 I

234
YAKUSAN IGEN TENNŌ DŌGO (2 gerações)
(Yueshan Weiyan) (Tian Huang Daowu) I
(745-828) (748-827) I
I I
I I
雲巖曇晟 臨濟義玄
UNGAN DONJŌ RINZAI GIGEN
(Yunyan Tansheng) (Linji Yixuan)
(781-841) ( ? -866)
I
I

I
I
雲巖曇晟
UNGAN DONJŌ
(Yunyan Tansheng)
(781-841)
I
I
洞山良价
TŌZAN RYŌKAI
(Dongshan Liangjie)
(807-869)
I
I
I
13 gerações
I
I
永平道元
EIHEI DŌGEN
道元禅師
(DŌGEN ZENJI)
(1200-1253)
235
I
I
38 gerações
I
I
俊隆 鈴木
SHUNRYŪ SUZUKI
(鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI)
(1904-1971)

236
APÊNDICES

237
238
APÊNDICE 01

FAC-SÍMILE DA EDIÇÃO DIGITALIZADA DO


大正 新脩 大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ
COREESPONDENTE AO 參同会 SANDŌKAI

T48n2006_p0327a14(00) ║ 石 頭 參 同 契 ( 雪 竇 著 語 新 添 )
T48n2006_p0327a15(00) ║ 竺土大仙心(誰是能舉) 東西密相付(惜取眉毛)
T48n2006_p0327a16(00) ║ 人根有利鈍(作麼生) 道無南北祖(且款款)
T48n2006_p0327a17(00) ║ 靈源明皎潔(撫掌呵呵) 枝派暗流注(亦未相許)
T48n2006_p0327a18(00) ║ 執事元是迷(展開兩手) 契理亦非悟(拈卻了也)
T48n2006_p0327a19(00) ║ 門門一切境(捨短從長) 迴互不迴互(以頭換尾)
T48n2006_p0327a20(00)║ 迴而更相涉(者箇是拄杖子) 不爾依位住(莫錯認定盤星)
T48n2006_p0327a21(00) ║ 色 本 殊 質 像 ( 豈 便 開 眸 ) 聲元異樂苦(還同掩耳)
T48n2006_p0327a22(00) ║ 闇 合 上 中 言 ( 心 不 負 人 ) 明明清濁句(口宜掛壁)
T48n2006_p0327a23(00) ║ 四大性自復(隨所依) 如子得其母(可知也)
T48n2006_p0327a24(00) ║ 火 熱 風 動 搖 ( 春 冰 自 消 ) 水濕地堅固(從旦至暮)
T48n2006_p0327a25(00) ║ 眼 色 耳 音 聲 ( 海 晏 河 清 ) 鼻香舌鹹醋(可憑可據)
T48n2006_p0327a26(00) ║ 然於一一法(重報君) 依根葉分布(好明取)
T48n2006_p0327a27(00) ║ 本 末 須 歸 宗 ( 唯 我 能 知 ) 尊卑用其語(不犯之令)
T48n2006_p0327a28(00) ║ 當 明 中 有 暗 ( 暗 必 可 明 ) 勿以暗相遇(明還非睹)
T48n2006_p0327a29(00) ║ 當暗中有明(一見三) 勿以明相睹(無異說)

239
T48n2006_p0327b01(00) ║ 明暗各相對(若為分) 比如前後步(不如此)
T48n2006_p0327b02(00) ║ 萬物自有功(旨爾寧止) 當言用及處(縱橫十字)
T48n2006_p0327b03(00) ║ 事存函蓋合(仔細看) 理應箭鋒拄(莫教錯)
T48n2006_p0327b04(00) ║ 承言須會宗(未兆非明) 勿自立規矩(突出難辯)
T48n2006_p0327b05(00) ║ 觸目不會道(又何妨) 運足焉知路(出不惡)
T48n2006_p0327b06(00) ║ 進步非近遠(唱彌高) 迷隔山河故(和彌寡)
T48n2006_p0327b07(00)║ 謹白參玄人(聞必同歸) 光陰莫虛度(誠哉是言也)

240
APÊNCICE 02

A HISTÓRIA DE 桃太郎 MOMOTARŌ


Há muito tempo atrás, numa cidade remota, vivia um casal
de velhinhos... Eles nunca haviam tido filhos e isso deixava um
grande vazio em seus corações... Todos os dias o homem
juntava lenha nas montanhas e sua esposa lavava roupas na
correnteza do rio...
Um dia, a mulher lavando roupas, viu um pêssego enorme
boiando no rio... Então pegou aquela fruta que parecia muito
saborosa e levou para casa para servir ao marido assim que ele
voltasse das montanhas.
Ao final do dia, o marido chegou e ficou muito contente ao
ver aquele pêssego apetitoso. Ela pegou um facão para o cortar e
ouviu seu marido, já com água na boca, dizer: Hum, deve estar
suculento e saboroso!!!
Ao partirem o pêssego ficaram assustados com o que
encontraram: Um menino muito forte, porém doce e meigo.
Achando ser um presente dos céus, o casal decidiu adotar o lindo
garoto e seu nome seria: 桃太郎 MOMOTARŌ (Menino Pêssego).
桃 太 郎 MOMOTARŌ cresceu forte e poderoso e era
considerado o mais forte na aldeia em que vivia.

241
Um dia, 桃太郎 MOMOTARŌ ouviu falar sobre os monstros
de 鬼 が 島 ONIGASHIMA (Ilha do Demônio) que espalhavam
medo entre a população e roubavam tudo que tinham. Então
pediu autorização aos pais para que pudesse ir a
鬼が島 ONIGASHIMA e afastar os monstros. A princípio seus pais
ficaram assustados e não permitiram, mas de tanto
桃太郎 MOMOTARŌ insistir, os pais acabaram cedendo. Seus
pais então fizeram uma trouxinha e colocaram deliciosos
きびだんご KIBIDANGO (bolinhos) para que ele pudesse comer
na viagem. E 桃 太 郎 MOMOTARŌ partiu em busca dos
monstros...
Na margem da aldeia, ele encontrou um cãozinho, que lhe
perguntou: Para onde você está indo 桃 太 郎 MOMOTARŌ?
O que você carrega nesse saco? Eu estou indo para
鬼 が島 ONIGASHIMA! E aqui nessa trouxinha tem deliciosos
きびだんご KIBIDANGO... Os melhores da região! Olha, se você
me ajudar a afastar os monstros da ilha, eu te dou um, que tal? O
cãozinho estava com muita fome, aceitou a oferta e acompanhou
桃太郎 MOMOTARŌ... Mais à frente, encontraram um papagaio
que também aceitou acompanhar 桃太郎 MOMOTARŌ em troca
de um きびだんご KIBIDANGO. Em seguida, encontraram um
macaco que também aceitou unir-se a 桃太郎 MOMOTARŌ em
troca do melhor きびだんご KIBIDANGO da região.
桃太郎 MOMOTARŌ, o cachorro, o macaco e o papagaio
pegaram um barco para ir à 鬼が島 ONIGASHIMA...
Mas eles não conseguiam avistar a ilha, foi então que o
papagaio voou até o céu e indicou a direção. Quando finalmente
chegaram a 鬼 が 島 ONIGASHIMA, encontraram um castelo
enorme, protegido por um grande portão... Só que estava
trancado, bloqueando o caminho... O macaco então, deu um salto,
pulou para seu interior e abriu o portão. Eles entraram e foram
caminhando... Encontraram os monstros festejando, suas
fisionomias eram estranhas e estavam todos bêbados.

242
桃 太 郎 MOMOTARŌ aproximou-se e disse: Eu sou
桃太郎 MOMOTARŌ e nós estamos aqui para punir vocês por
amedrontar a população de nossa cidade! Os monstros então,
achando graça, partiram para a luta...
桃太郎 MOMOTARŌ lutava com sua espada, o papagaio
bicava os monstros por toda a parte, o macaco pulava em cima e
o cãozinho mordia suas pernas e braços. Como haviam comido o
melhor きびだんご KIBIDANGO do Japão, os animais tiveram
suas forças multiplicadas e apesar de serem apenas quatro,
lutaram por mil. Finalmente, os monstros se renderam e o líder,
sentindo-se derrotado, caiu de joelhos diante de
桃太郎 MOMOTARŌ...
Chorando e com a cabeça baixa, o monstro falou: Eu
prometo que nunca mais iremos amedrontar a população e
vamos devolver tudo que roubamos, mas por favor... eu imploro:
Não nos Matem! 桃太郎 MOMOTARŌ decidiu poupar a vida dos
monstros. Carregou todos os pertences da população até o
barco e voltaram para casa festejando, devolvendo assim, a Paz
as pessoas da aldeia!

243
桃太郎さんの歌 MOMOTARŌ-SAN NO UTA

A CANÇÃO DE 桃太郎 MOMOTARŌ

桃太郎さん、桃太郎さん
MOMOTARŌ-SAN, MOMOTARŌ-SAN
Momotarō, Momotarō,

お腰につけたきびだんご
OKOSHINI TSUKETA KIBIDANGO
Estes bolinhos que você trás aí..

一つ私に下さいな!
HITOTSU WATASHI NI KUDASAI NA!
Você não quer me dar um?

あげましょう、あげましょう
AGEMASHŌ, AGEMASHŌ
Eu te dou, eu te dou.

今から鬼の征伐に
244
IMA KARA ONI NO SEIBATSU NI
Estou indo derrotar os demônios,

ついてくるならあげましょう
TSUITE KURU NARA AGEMASHŌ
se você vier comigo, eu te um...

245

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