Era madrugada do dia 15 de fevereiro de 1984. A lua cheia iluminava o
caminho que eu fazia de casa ao hospital. Meu pensamento era um só: como participar do concurso de seleção para professor de português do Colégio de Aplicação da UFPE? Após ler o edital no jornal, planejara tudo: inscrição em fevereiro, provas em março, bebê em abril. Era isso. Eu estava grávida e pensara em realizar as provas do concurso antes do parto. Mas, naquela madrugada iluminada pela lua, Rachel resolveu chegar, prematura, apressada. Lembro-me, até hoje, daquela lua cheia enorme no céu daquela madrugada. Lembro-me das minhas apreensões: o que aconteceria daquele momento para frente? Será que eu poderia segurar nos braços meu bebê, vivo e com saúde? Será que poderia prestar o concurso para o Aplicação? Bom, Rachel chegou: pequenininha, frágil, chorando a plenos pulmões. Acalmei meu coração de mãe desesperada. E a rotina de bebê recém-nascido instalou-se em casa. E pior, de bebê prematuro: ela chorava por tudo; não dormia; não mamava; tinha cólicas, frio, fome. Meus horários eram os mais loucos. E, para piorar, os pontos do parto infeccionaram e, obrigada a tomar antibióticos, o leite secara. Meus Deus, que período difícil da minha vida. E o concurso? No meio desse caos, resolvi fazer a inscrição. Nos últimos dias de fevereiro, pedi a uma vizinha que ficasse com a Rachel e dirigi-me ao Aplicação. Lembro até hoje. Depois de muito perguntar - o prédio mais parecia um labirinto a dizer-me “decifra-me ou devoro-te” - consegui chegar à secretaria do colégio, que ficava, naquela época, no primeiro andar. Lá, muito bem recebida pela Secretária Maria Clara, fiz minha inscrição. No caminho de volta, meu único pensamento era: como arranjar tempo e disposição para estudar? Quando Rachel estava dormindo, eu adiantava o serviço doméstico, ou dormia também para recarregar as energias. Mas, a sorte estava lançada. Nesse meio tempo, em um dos telefonemas para meus pais, que moravam no Rio, desabafei minhas preocupações em relação ao concurso: eram mais de trinta candidatos para uma vaga. Lembro-me perfeitamente das palavras do meu pai: filha, e para que você quer mais de uma vaga? Enfim, chegou o momento da seleção. Evidentemente, eu pouco estudara e estava contando com a experiência profissional que acumulara durante anos de magistério somada a cursos realizados - tudo isso potencializado graças ao apoio da minha família. Prova escrita, leitura da prova escrita, prova de aula e análise de currículo. Primeiro dia: prova escrita. Pontos sorteados: concordância verbal e barroco. Confesso que quase segui o exemplo de alguns candidatos que abandonaram o concurso após o sorteio. Mas como desistir se a meu lado, dentro do bebê-conforto, Rachel dormia como um anjinho? Que exemplo eu estaria dando a minha filha? Fiquei. Insisti. E assim fiz também na leitura da prova escrita: no momento em que comecei a fazer minha leitura, Rachel - que estava no colo da mãe de uma outra candidata - começou a chorar. E, justiça seja feita: tive, em todos os momentos do concurso, apoio integral das pessoas que compunham a banca - professores Mirta Carvalho, Antonio Netto e Alvaro Negromonte - bem como dos demais candidatos e das pessoas que administravam o concurso. Todos tinham um olhar carinhoso em forma de estímulo `a minha coragem de prestar concurso com um bebê tão pequenininho como aquele que media cerca de 42cm e pesava 2kg. Provas realizadas. Alívio passageiro. Expectativa do resultado. Não tenho escrúpulos em dizer que nem senti os dias passarem. Eram tantos os afazeres domésticos; era enorme a preocupação com a sobrevivência da Rachel. Mas chegou o dia. Compareci à secretaria do colégio. Lá, Maria Clara, assim que cheguei, disse: Você não foi aprovada não. Imaginem o susto. Mas, imediatamente, justifiquei para mim mesma e para ela o resultado dizendo em voz alta: Tudo bem, sabe como é bebê pequeno. Eu nem tive tempo para estudar. Daí, percebendo que eu acreditara no que ela dissera, Maria Clara acrescentou: Você tirou zero em tudo. Bom, ao ouvir isso, reagi: Zero? Ah, isso eu sei que não tirei. Fiz boas provas. O que aconteceu? Ao ouvir dela que tudo aquilo era uma brincadeira e que a vaga era minha, não tive outra reação: comecei a desmaiar. Foi tudo ficando escuro na minha frente. Lembro que estavam presentes nessa sala a outra funcionária - Darci - e o professor Sebastião Barbalho, coordenador do colégio naquela época. Todos correram com cafezinho, água, ventilador, cadeira. Estamos em 1997. Muitas coisas se passaram nesses treze anos de Colégio de Aplicação. Mas, posso afirmar que tudo isso ficou marcado profundamente na memória das minhas retinas. Cada vez que me lembro, é como se rebobinasse um filme... Momentos bons? Com certeza. Ruins? Também. Mas é a emoção vivida durante todos esses anos que me dá a certeza de que continuo viva. Continuo acreditando na educação como a única maneira de transformar esse mundo que aí está. Continuo acreditando no amor como o combustível mais poderoso e mais acessível para a concretização dessas mudanças.