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MARX ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO* MICHAEL LOWY Muito jé se escreveu sobre acritica marxista da alienagdo religiosa ou sobre a Juta do atefsmo materialista contra o idealismo cristao. Mas 0 que nos interessa neste texto é a contribuicaio de Marx e Engels & sociologia dos fatos religiosos. Uma excursao atenta neste campo pode nos surpreender. Adeptos ¢ inimigos do marxismo esto aparentemente de acor- do quanto a uma questio: a célebre frase “a religido € 0 6pio do povo” re- presenta a quintesséncia da concepgao marxista do fendmeno religioso. Entretanto, esta férmula nada tem, em especial, de marxista. Com des- preziveis gradagées, podemos encontré-la, antes de Marx, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros. Vejamos dois exemplos de autores préximos de Marx. Em livro de 1840 sobre Ludwig Bore, Heine refere-se, de modo bem positivo — com uma pitada de ironia —, ao papel narcético da religiao: “Bendita seja uma religido que deposita no amargo célice da humanidade sofredora doces e soporiferas gotas de 6pio espiritual, gotas de amor, fé esperanga.” Moses Hess, em ensaios publicados na Sufga em 1843, assume uma posi¢ao mais critica, embora nao isenta de ambigiiidade: “A religifio pode tornar suportavel {...] a consciéncia infeliz da servidao [...] assim como © 6pio € muito util nas enfermidades dolorosas.”! * Traduzido por Frank Roy Cintra Ferreira de Archives de Sciences Sociales des Religions, 89, 1995, pp. 41-52. 1 Estas referéncias e outras semelhantes so citadas por Helmut Gollwitz, no artigo Marxis- tische Religionskritik und christlicher Glaube, Vierte Folge, 5. C. B. Mohr, Tubingen, 1962, p. 15-16. 158 LUA NOVA N° 43 — 98 A expresso aparece pouco depois (1844) no artigo Introdugaio a critica da filosofia do direito de Hegel, de Marx. A leitura atenta do pardgrafo inteiro mostra que seu pensamentoé mais complexo do que se costuma imagi- nar. Na verdade, ao repelira religido, Marx ndoesquece seu duplocardter: “A angistia religiosa €,.a0 mesmo tempo, a expresso da verdadeira anguistia e o protesto contra esta verdadeira angdstia. A religiao € 0 suspiro da criatura oprimida, 0 coragdo de um mundo sem corago, assim como € 0 espfrito de uma situagao sem espiritualidade. E 0 6pio do povo.”2 A leitura completa do ensaio esclarece que 0 ponto de vista de Marx, em 1844, depende mais do neo-hegelianismo de esquerda, que na religiao vé a alienagdo da esséncia humana, do que do iluminismo (a filo- sofia das luzes), que simplesmente a acusa de ser uma conspiragao clerical (0 “modelo egipcio”). De fato, quando Marx escreveu a passagem acima, ainda era um discfpulo de Feuerbach, um neo-hegeliano. Sua andlise da re- ligio, portanto, era “pré-marxista”, sem referéncia as classes sociais e um tanto a-hist6rica — no menos dialética, contudo, pois apreendia o caréter contraditério da “angdstia” religiosa: as vezes, legitimagao da sociedade existente, as vezes protesto contra tal sociedade. S6 mais tarde — em A ideologia alema, de 1846 — comegou 0 estudo propriamente marxista da religido como realidade social e hist6rica. elemento central deste novo método de andlise dos fatos religiosos é considerd-los — em conjunto com o direito, a moral, a metafisica, as idéias politicas, etc. — uma das miltiplas formas da ideologia, ou seja, da producio espiritual de um povo, a produgdo de idéias, representagdes & formas de consciéncia, necessariamente condicionadas pela produgdo ma- terial e pelas relagdes sociais correspondentes. Se ele chega a falar em “reflexo” — um termo que iria conduzir varias geracdes de marxistas a um admirdvel impasse —, a idéia central do texto € mais a necessidade de explicar a génese das diversas formas da consciéncia (religiao, filosofia, moral, etc.) a partir das relagdes sociais, “o que possibilita entdo, naturalmente, representar a coisa em sua totalidade (e também examinar a aco reciproca desses diferentes aspectos)".3 Toda 2 Karl Marx, Friedrich Engels, Sur la religion (SR), Paris, Editions Sociales, 1960, p. 42. 3 SR, p. 77 etpassim. Ver o original, Die deutsche Ideologie, Berlin, Dietz Verlag, 1960, .22,35. A versio francesatraduz_geistige Produkiion por “production intellectuelle”, o que inexato. MARX EENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO 159 uma escola “dissident” de sociologia marxista da cultura iria privilegiar, desde Lukécs, a categoria dialética da totalidade, em detrimento do re- flexo. Segundo Lucien Goldmann, por exemplo, o grande principio de mé: todo da sociologia marxista 0 do “cardter total da atividade humana e 0 vinculo indissolivel entre a hist6ria dos fatos econdmicos e sociais e a historia das idéias” 4 Pode-se resumir aquela atitude por meio de uma passagem “pro- gramética” que consta de um texto redigido anos mais tarde: “E claro que toda desorganizagao histérica das condigdes sociais acarreta, a0 mesmo tempo, a desorganizagao dos conceitos e das representagdes dos homens e, por conseguinte, de suas representagdes religiosas.”> Este método de andlise macrossocial teria uma influéncia duradoura sobre a sociologia das religides, até mesmo fora da érbita marxista. A partir de 1846, Marx nao dedicou mais do que uma ligeira tengo & religido como tal, como universo cultural/ideol6gico especifico. Nao encontramos em sua obra quase nenhum estudo mais desenvolvido sobre qualquer fendmeno religioso. Convicto de que, como afirmava des- de 0 artigo de 1844, a critica da religido devia se transformar na critica deste vale de lagrimas ¢ a critica da teologia em critica da politica, parece que ele desviou sua atencao do dominio religioso. No primeiro volume de O Capital (1867), entretanto, encontra- mos uma série de notas muito interessantes do ponto de vista meto- dolégico, ainda que se refiram 3 religiao de passagem, a propésito de algo diferente. Numa famosa nota de rodapé, Marx responde desta maneira ao argumento daqueles que véem na importancia da politica na Antiguidade e da religido na Idade Média a prova da inadequagao da explicag4o materia- lista da histéria: “Nem a Idade Média podia viver do catolicismo, nem a Antiguidade da politica. Pelo contrario, as condigdes econdmicas de entao explicam por que naquela 0 catolicismo ¢ nesta a politica desempenhavam © papel principal."6 Marx nunca apresentaria a demonstragdo das causas econdmicas da importancia da religido medieval, mas esta observagao é interessante no que se refere a0 método, pois reconhece que, em determi- nadas condigSes, a religido pode realmente desempenhar © papel principal na vida de uma sociedade. 4L. Goldmann, Sciences humaines et philosophie, Paris, Editions Gonthier, 1966, p. 63. 5K, Marx, F. Engels, “Compte rendu du livre de G. F, Daumer, ‘La religion de '&ze nou- velle...”", 1850, SR, p. 94. ©K. Marx, Le Capital, Paris, Gamier-Flammarion, 1969, vol. I, p. $90. 160 LUA NOVA N43 — 98, O Ginico fenémeno religioso que talvez o interesse em O Capital (e em outros escritos econémicos) é o protestantismo, do ponto de vista de sua relagio com a ascensao do capitalismo. Contudo, ao contratio do que se poderia supor, esta conexo é examinada a partir de méltiplos angulos, sem que possamos deduzir um s6 modelo de causalidade. A abordagem mais “cléssica”, evidentemente, é a que faria da reforma protestante 0 reflexo da sociedade burguesa. Por exemplo, na se- guinte passagem: “O mundo religioso nao passa de reflexo do mundo real Uma sociedade em que 0 produto do trabalho toma a forma da mercadoria [...] tal sociedade encontra no cristianismo, com seu culto ao homem abstrato, e sobretudo em seus tipos burgueses, protestantismo, defsmo, etc., 0 complemento religioso mais conveniente.”? Todavia, mesmo neste pardgrafo observa-se uma certa flexibilidade: a complementaridade nao significa 0 mesmo que reflexo. Marx parece hesitar entre duas modali- dades de relagdo sécio-histérica muito diferentes. Marx, as vezes, sugere uma relagao de causalidade em que a re- ligido seria um fator ativo na formago do capitalismo. Por exemplo: para sustentar a afirmagao de que “o protestantismo é essencialmente uma reli- gidio burguesa”, menciona o papel da Reforma na Inglaterra na espoliagdo dos bens da Igreja e das terras comunais: ao dar “um novo e terrivel impul- so & expropriagdo violenta do povo no século XVI”, a nova religiao favo- receu a acumulagdo primitiva do capital. Em outra passagem, ele afirma, de modo ainda mais explicito: “Jé na transformago que faz de quase to- dos os dias feriados em dias dteis, 0 protestantismo desempenha, um im- portante papel na génese do capital."8 Mais interessante que a validade empirica de tais andlises histo- riogréficas € seu significado metodolégico: o reconhecimento da religido como uma das causas importantes das transformagées econdmicas que conduzem ao estabelecimento do sistema capitalista moderno. Qual a conclusiio — reflexo ou causa? Parece que Marx nao se preocupou muito com esta questo: para ele, o essencial € evidenciar a intima e eficaz conexao entre os dois fendmenos. Neste contexto, é de par- ticular interesse voltar a uma passagem dos Grundrisse (1857-58) que su- 7 idem, ibidem, p.74. 8 id,,ib., p. 533, 621. A expropriagdo de claustros ¢ terras cultivadas pelos camponeses favo- receu também o empobrecimento ¢ a proletatizagdio das massas rurais: “S6 com o sr. Rogers, antigo professor de economia politica na Universidade de Oxford, sé da ortodoxia protes- tante, revela-se [...] 0 fato de que o pauperismo inglés vem da Reforma” (p. 689). MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO_ 161 gere um vinculo intrinseco entre a ética protestante e o capitalismo: “O culto do ouro tem seu ascetismo, suas rentincias e seus sacrificios: a pou- panga, a frugalidade, o desprezo aos gozos terrestres, temporais e passa- geiros; é a caga ao tesouro eterno. Dessa maneira, ganhar dinheiro esté em conexiio (Zusammenhang) com 0 puritanismo inglés e o protestantismo holandés.”® O paralelo (mas nao a identidade) com as teses de Weber & surpreendente, até porque Weber nao poderia ter lido esse manuscrito de Marx, publicado pela primeira vez em 1940. Além destas observagdes que ficaram fragmentérias e pouco ex- pandidas, pode-se considerar que a principal contribuigdo de Marx & socio- logia da religido foi a de que esta, a religido, era simplesmente uma das formas da “produgao espiritual”, cuja histéria ndo pode ser desvinculada do desenvolvimento econémico e social global da sociedade. Para saber mais sobre as modalidades concretas e histéricas deste vinculo, desta Zu- sammenhang, precisamos examinar de preferéncia a obra de seu amigo € companheiro de luta Friedrich Engels. Talvez por causa de sua educacdo pietista, Friedrich Engels mostrou um interesse bem mais contide do que Marx pelos fendmenos re- ligiosos e seu papel histérico — sempre compartilhando, é dbvio, as opgbes decididamente materialistas e atéias de seu amigo. Sua principal contribui¢ao & sociologia marxista das religides, sem dtivida, é sua andlise da relacdo entre as representag6es religiosas e as classes sociais. O cristia- nismo, por exemplo, no aparece em seus escritos (assim como nos de Feuerbach) como “esséncia” a-hist6rica, mas como forma cultural (“ideolégica”), que se transforma no curso da histéria, e como espago simbélico, cacife de forcas sociais antagénicas. Engels nem sempre resiste 4 tentacdo de interpretar os movi- mentos religiosos em termos estreitamente utilitérios e instrumentais, como, por exemplo, nesta passagem bem conhecida do ensaio Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia cldssica alemd, de 1886: “Note-se que cada uma das diferentes classes utiliza a religido que se Ihe conforma [...] ¢ néo faz a menor diferenga o fato de que estes senhores acreditem ou nao em suas respectivas religides.”!0 De acordo com a mesma légica, muitas vezes ele reduz as diver- sas crengas a um simples “disfarce religioso” dos interesses de classe. Nao 9K. Marx, Fondements de la critique de I’économie politique (Grundrisse), Paris, Anthro- pes, 1967, p, 174. 0 SR, p. 260. 162 LUA NOVA N° 43 — 98 obstante, por seu método de andlise, baseado na relagdo com a luta de classes, contribui com uma nova luz sociolégica sobre o estudo das reli- gides, gracas A qual ele pode tomar as instituigdes religiosas nao mais como um todo homogeneo (visto herdada da critica enciclopedista do compi6 clerical), mas como uma campo de forgas cruzado pelos conflitos sociais. Engels, permanente e irreconcilidvel adversdrio da religido, ndo deixa de reconhecer, como o jovem Marx, a paradoxal dualidade do fendmeno: seu papel na sacralizacdo da ordem estabelecida, mas também, conforme 0 caso, seu papel critico, contestatério e até revolucionério. De resto, é exatamente este segundo aspecto que mais o interessa e em que se concentra a maior parte de seus estudos concretos, do cristianismo original a0 puritanismo revoluciondrio inglés do século XVII, passando pelas here- sias medievais e a guerra dos camponeses alemaes do século XVI. Nao podemos, no Ambito deste artigo, examinar em detalhe os escritos histéricos de Engels. Remetemos os interessados aos notaveis tra- balhos de Henri Desroche ¢ ttil sintese de David McLellan, mais re- cente.!! Vamos nos limitar a algumas observagées de método. Engels chegou a fazer varias retomadas da hist6ria do cristianis- mo primitivo. Na primeira tentativa — o artigo Bruno Bauer e o cristianis- mo primitivo, de 1882 — ele sugeriu que o movimento recrutara a maioria de seus primeiros adeptos entre os escravos do Império Romano. Ao subs- tituir as diversas religides nacionais, locais tribais dos escravos, de- strufdas pelo império, o cristianismo foi “a primeira religiao universal possfvel”. Anos mais tarde, em sua Contribuigdo a histéria do cristianis- ‘mo primitivo (1894-95), propde uma anélise sociolégica mais matizada dos primeiros cristdos: homens livres expulsos das cidades, ex-escravos privados de direitos, camponeses esmagados pelas dfvidas e esctavos. Como nao existia uma forma comum de emancipagao para tantos elemen- tos diferentes, sé a religido podia thes oferecer uma perspectiva comum, um sonho comum.!2 O interesse de Engels pelo cristianismo primitive nao € pura- mente arqueolégico: sustenta-se em duas constatagdes politicas atuais. Por um lado, a lembranca do primeiro cristianismo est presente em todos os 11 Henri Desroche, Socialismes er sociologie religieuse, Paris, Ed. Cujas, 1965; David McLellan, Marxism and Religion, New York, Harper & Row, 1987. 12 SR, p. 199, 327-328. MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO 163 movimenios populares ¢ revolucionérios, das heresias medievais ao comu- nismo operario do século XIX, passando pelos taboritas de Jan Zizka (“de gloriosa meméria”)!3 e pela guerra dos camponeses alemies. Mesmo de- pois de 1830, o cristianismo primitivo continua a servir de inspiragao para os primeiros comunistas operérios alemaes (Wilhelm Weitling), bem como aos comunistas revoluciondtios franceses. Por outro lado, Engels constata um paralelismo estrutural entre o cristianismo original e o socialismo moderno: nos dois casos, trata-se de movimentos de massas oprimidas, cujos membros eram banidos e perse- guidos pelos poderes piiblicos e que pregavam uma iminente libertagao da escravidao e do desespero. Para adornar sua comparagao, Engels pilheria- vacom a citagdo de uma frase de Ernest Renan: “Se quereis ter uma idéia das primeiras comunidades cristas, observai uma se¢ao local da Associagao Internacional dos Trabaihadores.” A diferenca essencial entre os dois movimentos estava em que 0s cristéos empurravam a libertago para o Além, enquanto o socialismo a colocava neste mundo." Mas a diferenga € assim tao nftida como parece & primeira vis- ta? No estudo de Engels sobre um segundo grande movimento contes- tat6rio cristo — a guerra dos camponeses —, a nitidez parece perder-se: Thomas Munzer, o tedlogo e dirigente dos camponeses ¢ plebeus revolu- cionérios do século XVI, ndo queria o estabelecimento do reinado de Deus na terra? O levante dos camponeses ¢ a personagem de Miinzer, em par- ticular, exercem um verdadeiro fascfnio sobre Engels. Este Ihes dedicaria um de seus principais — se nao o mais importante — estudos histéricos: 0 livro intitulado A guerra dos camponeses, de 1850. E provavel que este in- teresse resultasse do fato de que aquela rebelido era a tnica tradigao pro- priamente revolucionéria da historia alema. Ao analisar em termos de luta de classes a Reforma protestante e a crise religiosa da virada do século na Alemanha, Engels distingue trés campos que se enfrentavam na arena politico-religiosa: 0 campo conservador catélico, composto pelo poder do 13 Jan Zizka (13602-1424) foi um general tcheco lider dos hussitas (N. do T.). 14 F. Engels, “Contribution a Phistoire du christianisme primitif”, SR, p. 311-312. 164 LUA NOVA N°43—98 Império, pelos prelados e por uma parte dos principes, pela nobreza rica e pelo patticiado das cidades; o partido da Reforma luterana burguesa mode- rada, que agrupava os elementos proprietérios de oposiciio, a massa da pe- quena nobreza, a burguesia ¢ até um partido de principes, que esperavam enriquecer com o confisco dos bens da Igreja; por fim, os camponeses € os plebeus constitufam um partido revoluciondrio, “cujas reivindicagdes e doutrinas foram expressas da maneira mais clara por Thomas Miinzer”.!5 Se esta andlise dos enfrentamentos religiosos através da matriz das classes sociais antagnicas € sociologicamente esclarecedor, Engels nem sempre evita o atalho reducionista. Com muita freqiiéncia, ele parece considerar que a religifo nao passa de uma “mascara” ou uma “cobertura” (Decke) por trés da qual se escondem “os interesses, as necessidades e as reivindicagdes das diferentes classes”. No caso de Miinzer, ele afirma que este “dissimulava” suas conviccOes revoluciondrias sob uma “frascologia crista” ou sob uma “mascara biblica”; se falava ao povo “na linguagem do profetismo religioso”, era porque esta era “a nica que [o povo] era capaz de compreender na época”. Parece que Ihe escaparam a dimenso especi- ficamente religiosa do milenarismo miinzeriano, sua forga espiritual e mo- ral, sua profundidade mistica autenticamente vivida.16 ‘Ao mesmo tempo, ele no esconde sua admiracao pela figura do profeta quiliasta, cujas idéias descreve como “quase-comunistas” e “reli- giosas revoluciondrias”: “Sua doutrina politica correspondia exatamente a esta concepgdo religiosa revoluciondria e superava as relagdes sociais e politicas vigentes, assim como sua teologia superava as concepgées religiosas da €poca [...] Este programa — que era menos a sintese das reivindicagdes do plebeus da época e mais uma genial antecipagdo das condigdes de emancipacdo dos elementos proletirios que se encontravam em estado rudimentar entre estes plebeus — exigia a instauracdo imediata na terra do Reino de Deus, do reinado milenar dos profetas, mediante o retorno da Igreja A sua origem e a supressdo de todas as instituigdes que estivessem cm contradigaéo com esta Igreja, supostamente primitiva, mas, na realidade, completamente 'S SR, p. 105. 16 SR, p. 99, 114, MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO 165 nova. Para Miinzer, o reinado de Deus nada mais era que uma sociedade na qual nao haveria mais nenhuma diferenga de classes, nenhuma propriedade privada ou nenhum poder de Estado estrangeiro, auténomo, em oposigdo aos membros da sociedade."!7 Este impressionante pardgrafo sugere no apenas a fungao con- testat6ria e até revoluciondria de um movimento religioso, mas também sua dimensio presciente, sua fungao ut6pica. Aqui, estamos nos antfpodas da teoria do “reflexo”: longe de ser a simples “expresso” das condigdes vigentes, a doutrina politico-religiosa de Milnzer surge como uma “anteci- pacdo genial” das futuras aspiragdes comunistas. Hi neste texto uma nova pista, que nao é explorada por Engels, mas que, depois, seria magnifica- mente trabalhada por Ernst Bloch, desde seu ensaio de juventude sobre Thomas Miinzer até O Principio Esperanga, sua obra maior. Para fazer um balango s6brio e imparcial da contribui¢do de En- gels ao estudo sécio-hist6rico da Reforma, podemos nos reportar a0 prefacio de Leonard Krieger & edigao inglesa do livro (1967): “A conexio entre as seitas radicais e as classes ‘plebeu-camponesas’ — a conexdo que possibilitou a Engels suas andlises hist6ricas mais penetrantes — continua a set a tnica relagdo precisa que foi aceita pelos historiadotes situados de ambos os lados da linha divis6ria marxista. Entretanto, ainda que a priori- dade que Engels atribui aos interesses sociais e & sua correlagdo unfvoca entre as outras confiss6es religiosas e as classes sociais nao tenha granjea- do tal aceitagao, € indiscutfvel a importancia da dimensio social para os conflitos religiosos da era da Reforma, e a descoberta do modo como esta relagdo pdde funcionar continua a ser uma das questdes vivas da historio- grafia européia.”!® Se Marx preocupava-se com a Zusammenhang entre protestantis- mo e capitalismo, Engels debruga-se sobre os vinculos entre o calvinismo ea burguesia: “Com um rigor bem francés, Calvino trouxe ao primeiro plano 0 cardter burgués da Reforma, republicanizou e democratizou a Igreja.” Na re- volugo inglesa do século XVII, “o calvinismo confirma-se como o verda- deiro disfarce religioso dos interesses da burguesia da época”.!9 17 SR, p. 114. ISL. Krieger, em F. Engels, The German Revolutions, Chicago, 1967, p. XLL 19 F. Engels, “Ludwig Feuerbach et la fin de la philosophic classique allemande”, SR, p. 259. 166 LUA NOVA N°43— 98 Todavia, esta metéfora teatral (ou carnavalesca?) — que parece reduzir a complexa, intima e “dialética” relagao entre religiao e classes so- ciais a um simples e mecdnico encobrimento da face sob uma mascara — no € a tinica andlise do calvinismo proposta por Engels. Também encon- tramos em seus escritos hipéteses mais fecundas que conectam a religido e a condigo existencial da burguesia. “Onde Lutero fracassou, Calvino venceu. O dogma calvinista satisfazia as necessidades da burguesia mais avancada da €poca. Sua doutrina da predestinagio era a expressdo religiosa do fato de que, no mundo comercial da concorréncia, 0 sucesso e 0 insucesso ndo dependem nem da atividade, nem da habilidade do homem, mas de circunstdncias alheias ao seu controle. Estas circunstdncias nao dependem nem de quem quer, nem de quem trabalha;. esto & mercé de poderes econdmicos superiores ¢ desconhecidos...”% A analogia entre esta andlise e a de Weber nao escapou ao olhar minucioso de Gydrgy Lukécs, que combinaria os dois para sustentar sua teoria da reificagao capitalista: “Nao foi por acaso que a religiosidade re- voluciondria das seitas forneceu a ideologia as formas mais puras do capi- talismo (Inglaterra, Estados Unidos) [...] Pode-se até dizer que a jungao calvinista — e igualmente revolucionéria — de uma ética da provagao (as- cese intramundana) com a transcendéncia completa dos poderes objetivos que movem o mundo e moldam em seu contetido o destino humano (Deus absconditus & predestinagao) representa, de maneira mitificadora mas em estado puro, a estrutura burguesa e a consciéncia reificada.” Em nota de rodapé, Lukécs remete, 20 mesmo tempo, ao texto de Engels reproduzido logo acima e aos “ensaios de Max Weber no primeiro volume de sua Sociologia da religido”. Nao se importa em saber se so compatfveis a in- terpretagdo marxista de Engels e a de Weber — considerada (justa ou in- justamente) nao materialista, mas “idealista” —: “Para avaliar os fatos, é absolutamente indiferente que aceitemos ou nao sua [de Weber] interpre- tago causal.”2! 20 F, Engels, “Introduction a I’édition anglaise de Socialisme utopique et socialisme scienti- figue”, 1892, SR, p. 294, 21 Gydrgy Lucdks, Histoire et conscience de classe, Paris, Minuit, 1960, p. 237. MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO 167 Ao examinar a revolucdo inglesa do século XVII sob a ética da sociologia das religides, Engels observa: “O segundo grande levante da burguesia encontrou no calvinismo uma doutrina que Ihe cafa como uma roupa sob medida.” Se foi a religido, e nao o materialismo, o que propor- cionou a doutrina a este combate revolucionario, isto se deve & natureza politicamente reaciondria dessa filosofia na Inglaterra de entéo: “Com Hobbes, o materialismo entrou em cena como defensor da onipoténcia e das prerrogativas reais; apelava 4 monarquia absoluta para manter subju- gado esse puer robustus sed malitiosus que era 0 povo. Foi assim com os sucessores de Hobbes, com Bolingbroke, Shaftesbury, etc.; a nova forma defsta ou materialista manteve-se, como no passado, uma doutrina aris- tocrdtica, esotérica e, em conseqiiéncia, odiosa para a burguesia [...] Por conseguinte, em oposicao a este materialismo e a este defsmo aris- tocrdticos, as seitas protestantes, que haviam fornecido bandeira e comba- tentes & guerra contra os Stuart, continuaram a constituir a principal forga da classe média progressista." Esta observagao € significativa: rompendo com uma viséo linear da hist6ria herdada do [uminismo, Engels reconhece aqui que a luta enfre materialismo € religiéo néo corresponde necessariamente aquela entre re- volugdo e contra-revolugdo, entre progresso e regressio, liberdade e des- potismo, classes dominadas e classes dominantes — ao contrério do que pretenderia, mais tarde, o marxismo oficial de feitio soviético.23 Neste caso em particular, a relagdo é exatamente a inversa: religiéo revolu- ciondria contra materialismo absolutista... E curioso que, apesar de sua permanéncia de 40 anos na Ingla- terra, Engels nunca tenha se interessado pelos movimentos politico religiosos da revolugdo inglesa e, em especial, pelas correntes radicais, igualitérias e comunistas (levelers, diggers), que se manifestaram nessa grande insurreicdio. Ao contrério da Reforma alema do século XVI, 0 mo- vimento inglés & analisado, quase que exclusivamente, em sua dimensio burguesa. Engels-estava convencido de que a revolugao puritana do século XVIL foi a titima em que a religido pudera desempenhar o papel de ideo- 22. Engels, op. cit, p. 297-298 23 Ver, por exemplo, 0 Petit Dictionnaire Philesophique (Moscou, Editions en Langues Etrangéres, 1955), preparado por dois eminentes académicos soviéticos, M. Rosenthal e P. Tudine: “O materialismo [...] sempre foi a concepgaio de mundo das classes sociais avangadas ‘em luta pelo progresso ¢ interessadas no desenvolvimento das ciencias” (p. 360). 168 LUA NOVA N° 43 —98 logia revoluciondria: “O estandarte religioso tremulou pela tiltima vez na Inglaterra no século XVI e, apenas cingtienta anos depois, a nova con- cepcdio cléssica da burguesia, a concepgao juridica, entra em cena na Franga, sem disfarce.” A grande Revolugdo Francesa foi o primeiro le- vante burgués que “rejeitou totalmente a vestimenta religiosa e sustentou todos os seus combates no terreno abertamente politico”. A partir desse momento, a religiéo nada mais péde ser do que uma forca social e politica- mente retr6grada.”4 E por esta razio que ele (como Marx) expressa a maior per- plexidade diante da persistente referéncia ao comunismo primitivo entre as primeiras correntes operdrias e comunistas do século XIX. No artigo "Os progressos da reforma social no continente", de 1843, Engels admi- ra-se com 0 fato de que os comunistas franceses, “agora que sdo mem- bros de uma nagdo conhetida por sua falta de fé, sio, eles prdprios, cristéos. Um de seus axiomas favoritos é o de que ‘o cristianismo € 0 co- munismo’. Tentam provd-lo com a Biblia, 0 estatuto das comunidades nas quais se diz que viveram os primeiros cristdos, etc.”. N4o tem outra explicagdo para este paradoxo, a ndo ser 0 escasso conhecimento da... Biblia entre os comunistas franceses: se estivessem mais familiarizados com as Escrituras, teriam compreendido que “o espirito geral de seus en- sinamentos é totalmente oposto” ao comunismo. Constata, por outro lado, que até o proprio Weitling, “o fundador do comunismo alemao”, alegava, “exatamente como os icariens da Franga”, que “o cristianismo € 0 comu- nismo”. Ao rejeitar este tipo de sincretismo politico-religioso, Engels manifesta sua simpatia e sua concordancia filoséfica com os socialistas ingleses (isto €, os owenistas), que “Iutam, como nds, contra os precon- ceitos religiosos” — ao contrério dos comunistas franceses, que “perpe- tuam a religido, arrastando-a trés de si como uma grilheta”.?5 Sabe-se que, em 1844, estas divergéncias quanto & religidio impediriam um acordo entre Marx/Engels ¢ os comunistas franceses em torno de uma revista co- mum (0s Anais Franco-Alemdes) e provocariam também sua ruptura com Weitling em 1846, a propésito da circular contra 0 “comunismo do amor” de Hermann Kriege. 24 F, Engels, “Socialisme de juristes”, 1887, SR, p. 264, ¢ “Introduction & Pédition anglaise de Socialisme utopique..”, cit. p. 298. 25 F. Engels, “Les progrés de la réforme sociale sur le continent”, 1843, em H. Desroche, op. cit, p. 268-215. MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO 169 Trinta anos depois, Engels constata, com satisfagdo, que o novo movimento operério socialista é ndo-religioso — conceito que Ihe parece mais pertinente do que o de “ate”. Seu principal argumento para ridicu- larizar determinados revolucionérios (blanquistas e bakuninistas), que pre- tenderiam “transformar as pessoas em ateus por ordem do mufti”, “abro~ gar Deus por decreto” ou “fazer do atefsmo um artigo de fé obrigatério”, era que, de todo modo, entre a grande maioria dos operdrios socialistas, notadamente na Alemanha e na Franca, 0 atefsmo “teve seu tempo”: “Este termo puramente negativo nao se aplica mais a eles, pois nado estao mais em oposigao tesrica, mas apenas pratica, a crenca em Deus; simplesmente, eles acabaram com Deus. Vivem e pensam no mundo real e, portanto, sao materialistas.”?6 E evidente que este diagnéstico relaciona-se com a hipétese fun- damental de Engels, ou seja, de que, a partir do século XVIII, com o ad- vento do Iuminismo (Voltaire!), 0 cristianismo entrara em sua tiltima fase ¢ torna-se “incapaz de servir no futuro de cobertura ideolégica para as as- piragdes de qualquer classe progressista”.27 Todavia, em certas andlises concretas, Engels est4 mais disposto a reconhecer as diferengas e a exis- téncia de movimentos religiosos potencialmente subversivos ou de movi- mentos revoluciondrios que tomavam uma “forma” religiosa. Por exemplo: em um artigo de 1853, sobre o conflito entre o bispo de Friburgo e as autoridades protestantes (0 principe de Bade), En- gels refere-se & insurreicéio armada dos camponeses para defender seu cle- ro (catélico) e expulsar os militares prussianos. Como explicar este inespe- rado retorno dos conflitos de religiao do século XVII? “O segredo consiste apenas no fato de que todos os movimentos populares que fermentam sob a superficie so forcados pelo governo a tomar de inicio a forma mistica e impossivel de vigiar de movimento religioso. Os membros do clero deixam-se iludir pela aparéncia e, acreditando que dirigem em seu provei- to os sentimentos populares contra 0 governo, so na realidade instrumen- tos inconscientes e involuntérios da prépria revolugao.”°8 Mais impressionante ainda ¢ a andlise que Engels propde a res- peito do Exército da Salvagdo na Inglaterra: em seu esforco para manter a qualquer custo o espirito religioso na classe operdria, a burguesia inglesa 26 F, Engels, “Literature d’émigrés”, 1874, SR, p. 143. 27, Engels, “Ludwig Feverbach...", cit. p. 260. 28 K, Marx/P. Engels, “Die religidse Bewegung in Preussen’ Berlin, Dietz Verlag, 1954, Il, 1, p. 633-634. , Zur Deutschen Geschichte, 170 WA NOVAN®43—98 *aceitou a perigosa ajuda do Exército da Salvagdo, que faz reviver a pro- paganda do cristianismo primitivo, declara que os pobres sio os eleitos, combate o capitalismo a seu modo religioso e alimenta assim um elemento primitivo de antagonismo cristdo de classe, suscetfvel de um dia tornar-se perigoso para os proprietérios, que hoje so seus s6cios em comandita”.2® E ocioso acrescentar que as previsdes de Engels estavam equi vocadas € que nem os camponeses catdlicos de Bade, nem os salvacioni tas tornaram-se “‘perigosos para os proprietérios”. Cabe destacar, porém, sua abertura a possibilidade do ressurgimento da religiéo como ideologia ¢ cultura de um movimento anticapitalista revolucionério. Isso realizar-se-ia mais tarde, sob formas bem mais importantes do que o Exército da Salvagéio — 0 qual, diga-se de passagem, também fascinaria Brecht, que lhe dedicou a peca Santa Joana dos matadouros —, com a esquerda crista francesa dos anos 30 aos anos 70 e com a latino- américana dos anos 60 até hoje (especialmente gracas a teologia da liber- taco). Mas esta é uma outra histéria, que nem Marx nem Engels poderiam prever... Em conclusdo: herdeiros do hegelianismo de esquerda ¢ do ilu- minismo, Marx e Engels criariam por sua vez um novo modo de andlise da religido, baseado no estudo dos vinculos entre alteragdes econdmicas, con- flitos de classe e transformagGes religiosas. Apesar de nem sempre evita- rem o reducionismo, eles abriram um campo de pesquisa que se mantém até hoje no centro da sociologia das religiGes. MICHAEL LOWY € pesquisador do Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos (CEIFR), Paris. 29 F, Engels, “Socialisme utopique..", SR, p. 303. RESUMOS/ABSTRACTS 221 MARX E ENGELS COMO SOCIOLOGOS DA RELIGIAO MICHAEL LOWY Mais do que a questo da critica marxista da alienagao religiosa interessa neste artigo a contribuigéo de Marx e Engels & sociologia dos fatos religiosos. Uma excursao atenta neste campo pode nos supreender, escreve 0 autor. O artigo procura mostrar no que consiste essa surpresa. 222 LUA NOVA N43 — 98 MARX AND ENGELS AS SOCIOLOGISTS OF RELIGION More than the question of the Marxist critique of religious alienation this article deals with Marx and Engels’ contribution to the sociology of religious facts. A clear view of this field could surprise us, writes the author. The article tries to show the nature of this surprise.

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