« A escrita do ego » é o título da 10ª aula do Seminário XXIII de Jacques Lacan, O
Sinthoma, que, por sorteio, coube a mim comentar no Seminário de Formação Continuada dos membros do FCL-SP, em 03/11/2008. Esta apresentação é uma colagem, e poderia dizer que quase nada tem de meu a não ser o que recortei para colar. Mais uma vez, foram várias, nesta sessão do seminário, Lacan fala de seus embaraços à noite, nos fins de semana, para encontrar um troço, um negócio, uma coisa transmissível. Eu também, nós também, neste lugar. Joyce não tinha nenhuma idéia do nó borromeano, mas fez uso do círculo e da cruz. Lacan retoma o nó como cadeia com certas propriedades: ter no mínimo três elementos que, enodados, na realidade, encadeados, constituem metáfora. Isso nada mais é que metáfora da cadeia, diferentemente da cadeia de significantes que só precisa de dois, no mínimo. Como pode haver metáfora de alguma coisa que é apenas um número? Por causa disso, essa metáfora é chamada cifra. Existem muitas maneiras de traçar as cifras, a mais simples é a do traço unário. Aliás, basta fazer alguns traços ou pontos para indicar um número. Seria uma idéia essa idéia do real tal como ela se escreve no nó borromeano que é uma cadeia? Não se pensa facilmente o efeito de cadeia que se obtém pela escrita. Esse nó é um apoio para o pensamento, mas é preciso escrevê-lo para tirar dele alguma coisa. E, ao fazer isso, o embaraço, o enrosco é inevitável, tanto para nós como para Lacan quando tentava escrever o nó. O nó borromeano, o nobô como o abreviava Lacan, muda completamente o sentido da escrita. Escrita e não escrito. A escrita tem a ver com a cifra. O nobô dá à escrita uma autonomia tanto mais notável por haver uma outra escrita, a que resulta de uma precipitação do significante. E Lacan nos lembra que não encontrou outra maneira de sustentar, de dar suporte ao significante a não ser pela escrita S maiúsculo. O nobô mostra alguma coisa a que se podem pendurar significantes. E como fazer isso? Por meio do que Lacan chamou dito-mansão (dit-mension), jogo de homofonia que Lacan já fizera no Semnário XX, cap. VIII, onde ele explica: “a residência do dito, desse dito cujo saber coloca o Outro como lugar”. Mas a forma de escrever que ele adota aqui permite um prolongamento de mension a mensionge (fusão de mension com mensonge [mentira]) que indica que o dito não é forçosamente verdadeiro. A simples introdução do nobô já dá a idéia de que sustenta um osso, um ossobjeto. E não é o a minúsculo – pequeno a – o que o caracteriza? Por ser um caractere, como qualquer dígito numérico, letra do alfabeto ou um símbolo especial como &, %, $, etc., esse ossobjeto se reduz ao pequeno a para marcar que a letra não faz mais que dar testemunho da intrusão de uma escrita como outra com um azinho. A escrita em questão não vem do significante, mas de outro lugar. Faz tempo que Lacan se interessou por esse negócio de escrita e que a promoveu pela primeira vez quando falou do traço unário, einziger Zug em Freud. Com o nó borromeano, Lacan deu outro suporte a esse traço unário que ele vai escrever RI, reta infinita. Retomo uma passagem do capítulo anterior, onde Lacan responde a uma pergunta sobre o limite aos campos da metáfora: não é porque a reta é infinita que ela não tem limite; não é porque o finito tem limites que uma reta infinita basta para metaforizar o infinito, uma vez que se pode supor que ela tenha um ponto no infinito, isto é, constituir um círculo. A questão que a reta coloca é esta: a reta não é reta. Einstein demonstrou que o raio luminoso, que tem toda a aparência de realizar a reta, se encurva. Como conceber uma reta que se encurva? É sem dúvida um problema levantado pela questão do real. Lacan caracteriza a reta infinita por sua equivalência ao círculo. Este é o princípio do nó borromeano. Temos o essencial do nó combinando duas retas com o círculo. A reta tem essa virtude, por ser a melhor ilustração do buraco, do furo, melhor que o círculo. A topologia nos indica que o círculo tem um furo no meio. Já a reta infinita tem a virtude de ter o buraco todo em torno dela. É o suporte mais simples do furo. Lacan tratou da RI nos capítulos 1, 2, 3, 5, 7, 8, 9 e neste, o 10. O homem, e não Deus, é um composto trinitário, composto do que chamamos elemento. Um elemento é o que constitui um – ou seja, o traço unário – e que, pelo fato de constituir um, atrai a substituição. A característica de um elemento é que ele instaura a combinatória dos elementos. Com a escrita do nó, Lacan está tentando introduzir o que ele chama uma lógica de sacos e de cordas. Há o saco cujo mito consiste na esfera. Mas ninguém parece ter pensado nas conseqüências da introdução da corda. O que a corda prova é que um saco só fica fechado quando é amarrado com corda ou barbante. Essa introdução, usando a experiência mais comezinha do cotidiano doméstico, é para nos fazer acompanhar melhor o que ele vai trazer em seguida: a partir de uma lembrança de infância, relatada por Joyce, é possível mostrar como essa lógica chamada de sacos e de cordas pode nos ajudar a compreender como Joyce funcionou como escritor. O que para Joyce significa escrever? Veio a Lacan a idéia de que algo acontecera a Joyce por uma via que ele, Lacan, acreditava poder dar conta, algo que fez com que em Joyce o ego tivesse um papel diferente do papel simples – o imaginamos simples – que ele tem para o comum dos mortais. Lacan considera que só pode dar conta da função que o ego teve para Joyce pela escrita do nó borromeano. É que a escrita é essencial ao ego de Joyce, o que pode ser ilustrado pelo seguinte diálogo: alguém lhe pede que fale de uma imagem que reproduza um aspecto da cidade de Cork. Joyce lhe respondeu que era Cork. O outro insiste, dizendo que é evidente, que é a praça de Cork, mas o que enquadra essa imagem? Joyce lhe respondeu: Cork, o que quer dizer cortiça. Esse diálogo é uma ilustração do fato de haver sempre naquilo que Joyce escreve referência ao enquadramento, e esse enquadramento tem uma relação nem que seja de homonímia entre Cork (substantivo próprio, nome de cidade e de praça) e cork (cortiça, substantivo comum). Esse tecido está ligado para ele ao próprio tecido do que ele relata e que evoca para Lacan seus aros do nó, eles também suporte de algum enquadramento. O que ocorre quando alguma coisa acontece a alguém na seqüência de um erro? -pergunta Lacan. Um erro nunca se produz por acaso, por trás de todo lapso há sempre uma finalidade significante. Se existir um inconsciente, o erro tende a querer exprimir alguma coisa. O erro exprime a vida da linguagem. O que significa morte para o suporte somático tem tanto cabimento quanto vida nas pulsões, que tem a ver com a vida da linguagem. As pulsões têm a ver com a referência ao corpo, e a relação com o corpo não é simples para homem algum. Sem falar que o corpo tem buracos. Lacan destaca do livro de Joyce, Portrait of the Artist as a Young Man, uma confidência que ele nos faz (‘nos’, pois se trata de uma confidência a seus leitores, uma vez que ele escreve para ocupar a posteridade durante 300 anos). Alguns colegas, comandados por um deles, Héron, amarraram Joyce a uma cerca de arame farpado e lhe deram uma surra. Depois do ocorrido, Joyce se questiona sobre a razão pela qual não ficou zangado com Héron. Ele constata que toda essa história se evacuou como uma casca de fruta. Isso dá uma indicação de algo que diz respeito à relação de Joyce com o corpo, relação já tão imperfeita nos seres humanos. O que acontece em seu corpo? É algo extremamente sugestivo. Lacan já afirmara que o inconsciente nada tem a ver com o fato de que se ignore um monte de coisas quanto a seu próprio corpo. Quanto ao que se sabe, é de outra natureza, sabemos de coisas que têm a ver com o significante. A antiga noção do inconsciente, o Unerkannt (“desconhecido”, “não reconhecido”), se baseava sobre nossa ignorância a respeito do que ocorre em nosso corpo. O inconsciente de Freud é a relação que existe entre um corpo que nos é estranho, estrangeiro e alguma coisa que constitui círculo, e até mesmo reta infinita, e que é o inconsciente. Essas duas coisas são equivalentes uma à outra. Que sentido dar àquilo de que Joyce dá testemunho? Em Joyce não se vê nada da relação psíquica que fica afetada, que reage. Em Joyce existe apenas algo que vai embora, que dá no pé, que é largada, que se solta como uma casca de fruta. Que haja pessoas que não se deixem afetar pela violência sofrida corporalmente já é bastante curioso. A coisa fica ambígua – isso pode lhe ter dado prazer, o masoquismo não está descartado das possibilidades de estímulo sexual em Joyce. O que chama a atenção são as metáforas que Joyce emprega: algo que se desprende, que se destaca como uma casca. Desta vez ele não gozou, tendo tido, em vez disso, uma reação de fastio, de repugnância. É algo que vale psicologicamente. Essa repugnância, esse fastio diz respeito a seu próprio corpo. É como alguém que, para espantar uma lembrança desagradável, a colocasse entre parênteses. A relação com seu próprio corpo como estranho, como estrangeiro, é uma possibilidade que é expressa pelo uso do verbo ter. É preciso levar em conta que a relação do homem com seu corpo se assenta no fato de ele dizer seu corpo, isto é, ele o tem. Dizer seu quer dizer que ele o possui, como um móvel, por exemplo. Isso nada tem a ver com o que permite definir estritamente o sujeito que se define por ser representado por um significante para outro significante. Nosso corpo, nós o temos, mas não o somos. Em Joyce, a forma do largar, do deixar cair da relação ao corpo próprio é completamente suspeita para um psicanalista, pois a idéia de si como corpo tem um peso. É precisamente o que se chama o ego. Se o ego é chamado narcísico, é exatamente porque num certo nível existe algo que sustenta o corpo como imagem. No caso de Joyce, o fato de esta imagem não estar implicada na circunstância não seria o que assinala que o ego em Joyce tem uma função inteiramente particular? E como escrever isso no nó borromeano? Aqui, Lacan avisa que vai transpor alguma coisa. Até onde vai a père-version (versão do pai, pai-versão, homofônico a perversion)? A pai- versão, é a sanção, a ratificação do fato de Freud ter feito tudo se sustentar na função do pai. O nobô é isso. O nobô não é mais que a tradução disto: que o amor e, ainda por cima, o amor eterno, se dirige ao pai, em nome do fato de ser ele o portador da castração. Pelo menos é o que a intuição de Freud sanciona em Totem e tabu. A essa intuição Lacan vai dar outro corpo com o seu nobô (mon noeud bo), bem produzido para evocar o Mont Neubo, onde a lei nos foi dada. Essa lei nada tem a ver com as leis do mundo real. A Lei (com L maiúsculo) de que se trata no caso é simplesmente a lei do amor, isto é, a pai-versão (père-version). Aprender a escrever o nobô pode servir para alguma coisa, e Lacan propõe uma figura de nó onde há um erro, isto é, os cortes cometem uma falta. A terceira argola, a do I, aquela que desde o Seminário RSI é a do corpo, passa por cima do R em vez de passar por baixo. E o que resulta? O I escapa, dá no pé, exatamente como o que Joyce experimenta depois da surra que levou dos colegas. O I escapa, a relação imaginária não se dá, não ocorre. Isso leva a pensar que se Joyce se interessou tanto pela perversão, era talvez por outra razão. Talvez a surra até lhe repugnasse. Talvez ele não fosse um verdadeiro perverso. Mas alguma coisa não poderia ser sugerida em nosso negócio que é a psicanálise por esse fato patente de Joyce ter um ego de outra natureza? Voltando ao nó onde o aro do I não está enlaçado. O que Lacan vai propor é a correção desse erro: um pequeno anel enlaçando o R e o S no qual Lacan encarna o erro como corretor, como corretivo da relação que falta, ou seja, o que, no caso de Joyce, não enoda borromeanamente o imaginário ao que constitui cadeia de real e de inconsciente. Por esse artifício de escrita o nó borromeano é restaurado, recuperado. Lacan considera que, graças a Joyce, se pôde tocar em algo em ele nunca tinha pensado. O texto de Joyce surpreende pelo número de enigmas que contém, e se poderia dizer que ele se divertiu com isso, sabendo que haveria joycianos por 200 ou 300 anos. Que Joyce seja o escritor por excelência do enigma não seria a conseqüência da costura, da junção tão mal feita desse ego de função enigmática, de função restauradora, de conserto? Quase chegando ao fim desta décima aula de seu 23º seminário, Lacan faz uma breve observação sobre as epifanias de Joyce: elas são sempre caracterizadas pela mesma coisa, isto é, pela conseqüência resultante do erro no nó, a saber, que o inconsciente está ligado ao real. Pode ser lido claramente em Joyce que a epifania faz com que, graças ao erro, inconsciente e real se enodem. E, para concluir este comentário, algumas citações da conferência que Lacan pronunciou no V Simpósio Internacional James Joyce (16/06/1975) com o título “Joyce o Sintoma”. Mas antes lembro a definição que Lacan dará ao sintoma em 1979: um acontecimento de corpo, definição que não se aplica a Joyce, como podemos deduzir a partir das articulações de Lacan referidas antes sobre a escrita do ego. “...dou a Joyce, ao formular esse título, Joyce o Sintoma, nada menos que seu nome próprio, aquele no qual acredito que ele se teria reconhecido na dimensão da nomeação”. Se eu digo Joyce o Sintoma, é que o sintoma, o simbólico, ele o aboliu, se é que posso continuar nesse veio. Não é apenas Joyce o Sintoma, é Joyce como tendo cancelado a assinatura do inconsciente”. “...Toda realidade psíquica, isto é, o sintoma, depende, em último termo de uma estrutura na qual o Nome-do-Pai é um elemento incondicionado. O pai como nome e como aquele que nomeia não é a mesma coisa. O pai é esse elemento quarto (...) sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real. Mas existe uma outra maneira de chamá-lo. É aí que, pelo que diz respeito ao Nome-do- Pai, ao grau em que dele Joyce dá testemunho, eu o cinjo hoje daquilo que convém chamar O Sinthoma”.