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As Margens de Idmar Boavenura

Em meados de 2008, saiu pela Secretaria de Cultura da Bahia e pela Fundação Pedro Calmon, o
livro de poemas A outra margem, de Idmar Boaventura. Não houve lançamentos. E, exceto alguns
poucos párias, a quem Idmar presentou o livro, creio que poucos leitores tenham tido acesso ao
livro, encontrado à venda no sebo Tulle, na Uefs. Lá se vão dois anos, já passou da hora de uma
breve apresentação do livro.

Adentrar a Outra margem é lançar-se, em um “rio de incontáveis margens”, mais ainda é confundir-
se com o próprio rio, como revela o poema “Rio” (Sou fragmentos,/ matéria difusa, sou vário:/
infinitamente rio/ e abismo/ de incontáveis margens.), que abre o livro, composto de poemas
inéditos e de poemas do primeiro livro O dessossar (d)as horas.

Seguindo uma tradição que passa pelo grego Heráclito e pelo mineiro Guimarães Rosa – ambos
citados na epígrafe –, Idmar joga com o rio como imagem do devir humano. Vários são os poemas
em que o poeta singulariza essa imagem, a exemplo do poema “O rio de infindáveis margens”: Ser
livres e não ter mais tédio:/eis o que buscamos/na terceira margem,/onde nos ancoramos
perdidos. /(pois estamos perdidos/ neste imenso rio/ de tão longas beiras)// E, se não achamos de
todo a cura,/temos, ao menos, descanso da dor,/por um momento que seja,/um instante que
seja,/um lampejo:/ e então somos o rio de infindáveis margens. Um tema caro a Idmar: a imersão
no rio-tempo, ser o próprio rio.

Idmar também revisita as margens da infância com o belo poema “Infância”, que no tom e no
sentido nos remete ao de Drummond, poeta da predileção do autor: Bolinhas de gude esparramadas
no quintal/ e minha mãe a me chamar pra ave-maria./ E Deus era noel, o bom velhinho/ e era o pai
e era o filho/ e adorava as criancinhas.// Um cachorro chamado Cruzeiro,/ que morreu
envenenado em pleno plano cruzado. A colega feia/ que morreu de câncer/ antes que eu soubesse/
o quanto a morte doía,/ e a outra, que amei/ e que virou rameira/ da Rua da Bagaceira./ Lulu que
morreu de desastre/ Manu que a polícia matou.

Navegando por suas próprias margens que são as mesmas margens do mesmo rio, o poeta também
pinta seu “Auto-retrato”: Sou mesmo sozinho./ Todo o universo/ mora em meus olhos, / e o outro
universo não me diz respeito./ Moro sozinho/ comigo mesmo. Pintei meu retrato/ no fundo do ego/
e eu me contemplo/ e a mim mesmo nego/ (me faço o avesso/ de uma velha farsa)/ mas sou mesmo
eu/ e isso me basta. Ou “Bem sabias”, terceira margem com a qual o poeta ata as duas margens de
si mesmo: Tu bem sabias, amiga,/ que entre mim e mim mesmo/ há cem mil léguas de abismo;// que
entre o que que componho/ e aquele em que me teceram/ há intervalos medonhos.

Idmar ainda visita as margens da tradição lírica brasileira com um poema que dialoga com o poema
“Ismália, do simbolista Alphonsus Guimaraens. Trata-se do poema “Quando Ismália se perdeu”:
Quando Ismália se perdeu,/ não havia o que sonhar.../Não era ismália no céu,/ não era Ismália no
mar...// O luar se enegreceu,/banhou-se em prantos o mar../Ismália, que emudeceu,/já não sabia
cantar...// As asas Deus não lhe deu,/ não poderia voar.../Sua alma se esvaneceu,/ seu corpo sumiu
no mar...// Sobre a torre fiquei eu,/como um louco, a perguntar:/buscar a lua no céu,/ ou ir buscá-
la no mar?

O rio do esquecimento e suas margens também são aportados pelo poeta. Dois poemas fazem
referência ao Lethes – “Permanência” e “Levitação I”I. No primeiro, os amigos que se foram são
rememorados às margens do rio: Dos amigos que esperam/nas margens do Lethes/ (silentes águas
de um rio/ que corre para outro abismo). No segundo, o poeta bebe de suas águas para adquirir a
“leveza”: Bebi das águas do Lethes/ e enfim adormeci./ Para acordar sem angústias,/ liberto de
todo peso./ Para, enfim, poder ser leve.

Essas margens várias de Idmar Boaventura que contornamos ( e as que deixamos de contornar)
remetem-nos à “outra margem”, que segundo o poeta e crítico mexicano, é a própria poesia. Poesia
como revelação de nossa condição original. Em cada poema de Idmar Boaventura, encontramos
sempre uma pequena epifania da condição do homem como ser para a morte, como devir. Cada
poema nos convida a esse encontro com esse outro que somos nós próprios, não escapa nem mesmo
a paradoxal teogonia de nós mesmo: O maior pecado dos deuses/ foi nos terem feito/ (a nós,
matéria perecível!)/ à sua imagem e semelhança./ E nós, divinos que somo,/não podemos crer
eternamente/ nos deuses que criamos./ E eis que estamos,/ humanos e deuses,/(deuses e humanos)/
irremediavelmente sozinhos/ em nossa inútil dividade.

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