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DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS

Um debate sobre desafios e alternativas

UMA PUBLICAÇÃO - IBASE


Rio de Janeiro, janeiro 2007
DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS
Um debate sobre desafios e alternativas

Uma publicação do Instituto Brasileiro de Análises


Sociais e Econômicas (Ibase)

COORDENAÇÃO GERAL

Cândido Grzybowski
COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Iracema Dantas
Moema Miranda
ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO

Manoela Roland
EDIÇÃO

AnaCris Bittencourt
REVISÃO

Flávia Leiroz
PRODUÇÃO

Geni Macedo
FOTOGRAFIA

Samuel Tosta/Arquivo Ibase-FSM 2006


TRADUÇÃO

James Mulholland
Lêda Maia
Patrick Wuillaume
PARCERIAS

ActionAid Brasil
Fundação Rosa Luxemburgo
Fondation Charles Léopold Mayer pour
le Progrès de l´Homme
Observatório Eurolatino-americano de Democracia
e Desenvolvimento Social (Euralat)

PEDIDOS DE EXEMPLARES

Ibase
Av. Rio Branco, 124, 8º andar – Centro
20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Brasil
Tel: + 55-21 2509-0660 Fax: + 55-21 3852-3517
<ibase@ibase.br> < www.ibase.br>

Esta publicação foi impressa em papel recilado.


SUMÁRIO

4 Apresentação
Moema Miranda

8 De que Brasil o mundo precisa?


Cândido Grzybowski

18 Radicalização do feminismo, radicalização


da democracia
Maria Betânia Ávila

20 O movimento social e a histórica “guerra de posição”


Pierre Beaudet

41 Tendências dominantes da nossa época


Nosso tempo estará se esgotando?
Edgardo Lander
APRESENTAÇÃO
MOEMA MIRANDA
Antropóloga, coordenadora do Ibase

O Ibase organizou, como parte das atividades de celebração dos 25 anos da


instituição, o seminário “Democracia, desenvolvimento e direitos, que Brasil o
mundo precisa”, nos dias 12 e 13 de maio de 2006, no Rio de Janeiro. A iniciativa
buscou articular diferentes atores do Ibase e fez parte do projeto “Agenda pós-
neoliberal: alternativas estratégicas para o desenvolvimento humano democrá-
tico”, publicado em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e a ActionAid
Brasil. O seminário contou com o apoio da Fondation Charles Léopold Mayer pour
le Progrès de l´Homme e do Observatório Eurolatino-americano de Democracia
e Desenvolvimento Social (Euralat). Esta publicação traz alguns dos textos apre-
sentados no encontro e outros, inéditos, sobre temas correlatos.

Ao completar 25 anos de luta pela radicalização da democracia no Brasil – tema


que nos identifica –, o Ibase assumiu a tarefa de produzir uma inflexão progra-
mática institucional: discutir o desenvolvimento em todas as suas dimensões
– ambiental, cultural, política, econômica e social –, e os limites que o tipo
de desenvolvimento adotado impõe para o exercício da democracia e para a
universalização dos direitos. Essa preocupação se articula com a proposta de
muitos outros movimentos sociais, redes e ONGs de refletir e buscar formas de
superação da desigualdade em nosso país, levando em conta a necessidade de
articular estratégias em âmbito local, nacional e internacional.

O Brasil é o nosso foco, mas sabemos que muitos dos impasses aqui observados
se repetem em outras nações. Não podemos tratá-los de forma isolada, sem
levarmos em conta a inserção do Brasil no mundo e o papel que o nosso país
ocupa no contexto internacional.

Nossos trabalhos, nossas ações e reflexões nos indicam a hipótese de que,


para se concretizar, a democracia (no sentido que damos ao termo) precisa
incorporar a discussão sobre as dimensões e as estratégias de desenvolvimento,
repensando e discutindo os sentidos do próprio conceito. Desejamos que o
desenvolvimento induza à democracia ampla e profunda e radicalize direitos.
O Brasil necessita imaginar novas formas de desenvolvimento para, finalmente,
superar uma dívida histórica com sua população, cuja maioria tem sido sistema-
ticamente excluída dos benefícios que se poderiam originar de uma nação com
as características do Brasil. Da mesma forma, precisamos incorporar o sentido
de sustentabilidade e o cuidado na relação com os bens comuns da natureza.

Nossa reflexão começou constatando que, no caso brasileiro, a onda democrati-


zadora que vivemos nas últimas décadas, embora fundamental e absolutamente
relevante, foi incapaz de desafiar a estrutura de dominação, as relações, os
processos e as políticas em que se baseia nosso modelo de desenvolvimento
claramente excludente.

Supondo que algo equivalente se repita em outros povos e países, gostaríamos


de compartilhar essa hipótese. Buscamos, além da ênfase na democratização das
instituições políticas e da perspectiva de repolitizar a vida e nossa ação pública,
imaginar pressupostos e elaborar alternativas de desenvolvimento que incorporem
o enorme avanço político que a sociedade brasileira alcançou em décadas mais
recentes, e que exige uma democracia sem fronteiras com raízes profundas.

A reflexão que apresentamos necessita ser radical para ser efetiva. Assim,
propomos o seguinte questionamento para nós mesmos(as) e para nosso
público leitor: será que o modelo de desenvolvimento e suas estratégias são

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os impedimentos verdadeiros para o exercício pleno da democracia e para a
imperativa ampliação de direitos? É nessa direção que devemos seguir para
ultrapassar os limites que percebemos no sistema democrático? A hipótese,
que aqui lhes apresentamos, é correta?

Precisamos debater com nossos parceiros, com movimentos sociais e organiza-


ções da sociedade civil sobre o caminho que planejamos seguir. Vale ressaltar
que a dimensão do novo, aqui, não significa ineditismo. Várias questões tratadas
já são gestadas em diferentes movimentos e espaços, em alguns dos quais o
próprio Ibase atua, como o Fórum Social Mundial. Pretendemos, a partir do diag-
nóstico de que a política perdeu espaço para o econômico-financeiro, contribuir
para a produção de uma nova etapa de reflexão sobre caminhos que resgatem
a economia para a política e restaurem o verdadeiro sentido do espaço político
como momento de concertação de estratégias na direção do desenvolvimento,
no sentido de vida digna para todos e todas, com democracia e direitos, susten-
tabilidade ambiental, justiça social e solidariedade.

Convidamos você, leitor e leitora, a participar desse diálogo.

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DE QUE BRASIL O
MUNDO PRECISA? CÂNDIDO GRZYBOWSKI
Sociólogo, diretor do Ibase

O ponto de partida deste artigo é uma reflexão sobre o Brasil, seu povo, sua
terra, sua cultura, sua economia, sua organização política. Brasil de enormes
potencialidades e contradições, que precisa encontrar seu caminho, mas como
parte de um mundo cada vez mais interdependente. Brasil do grande território e
patrimônio natural, que deve gerir como bem comum da humanidade.

Queiramos ou não, com a globalização neoliberal que domina o mundo inteiro,


que concentra riqueza com estratégias globais, que marginaliza grupos e povos
inteiros e que acelera assustadoramente o processo de destruição do meio am-
biente, o mundo deixa de ser visto como algo externo, distante, e invade nosso
lugar, nosso cotidiano. Essa é uma questão incontornável hoje, presente em toda
parte, mas é forçoso constatar um enorme déficit teórico, analítico e, sobretudo,
político em termos de propostas e práticas sobre a mundialização de nossas
sociedades e de nossas vidas.

Na tentativa de dar sentido e humanizar tal percepção nasceu o Fórum Social Mundial
(FSM), fazendo convergir muitas organizações e movimentos sociais, redes, coalizões
e campanhas que, de algum modo, se opunham à centralidade dos mercados nos
processos globais em curso. O FSM contribui para um grande movimento de idéias
em busca de alternativas, movimento de intrínseca dimensão mundial, centrado
numa nova consciência e prática de cidadania que abarca todos e todas que vivem
no planeta. Ele se alimenta da tomada de consciência da comum humanidade na
diversidade de culturas e identidades e do patrimônio natural da vida – a natureza e
seus recursos – como bem comum maior, que precisamos compartir hoje e preservar
para gerações futuras. O FSM inspira em grande parte essa iniciativa.

Para pensar e construir outro Brasil, precisamos pensar o mundo. E, para pensar
e edificar outro mundo, também é necessário pensar o Brasil. Isso muda radical-
mente a perspectiva para onde olhar e como olhar se pretendemos ver, entender,
propor e agir. Essa mudança implica rever conceitos, análises e propostas, em
particular para todos e todas que se pautam pelos direitos humanos e pelos
valores fundantes da democracia como base da vida em sociedade.
BRASIL POTÊNCIA OU DEMOCRÁTICO, SOLIDÁRIO E SUSTENTÁVEL?
As turbulências políticas da conjuntura brasileira, por mais graves que
sejam, não conseguem encobrir os enormes desafios que temos pela frente.
Vivemos nos últimos 20 a 25 anos, como os povos vizinhos da América do
Sul, uma aventura fundamental: a redemocratização. Assistimos à emergên-
cia dos mais diversos sujeitos sociais, com novos e vibrantes movimentos
dos muitos antes sem identidade e voz, alargando e fortalecendo o tecido
social e a capacidade de intervenção de uma cidadania ativa na afirmação
e conquista de direitos. Ao mesmo tempo, foi sendo moldada uma institu-
cionalidade política do estado de direito para desmontar o autoritarismo e
criar condições para a participação democrática. Foi, por isso, um extraordi-
nário processo de reconquista de liberdades e instituições democráticas, de
construção de espaços de participação e concertação política, de formulação
de demandas de inclusão econômica e cultural, de maior justiça social e de
mudanças profundas.
Entretanto, começam a ficar claros os sinais de esgotamento desse ciclo
democratizador. Para além da crise política brasileira, a questão de fundo
são os limites da própria onda portadora de democracia, incapaz de ir muito
à frente de um modelo formal representativo e de desafiar e transformar o
poder, a estrutura, as relações, os processos e as políticas em que se baseia a
sociedade e o seu desenvolvimento econômico. Como resultado, continua-
mos a ser uma emergente economia e um poder ascendente na geopolítica
do mundo, mas que se alimenta internamente na manutenção da exclusão e
desigualdade social, no racismo e na violência, e num sistemático extrativismo
do patrimônio natural de que é dotado o nosso país.
A democracia brasileira, até aqui, apesar dos enormes
AS TURBULÊNCIAS ganhos, não consegue incluir todas e todos nos direi-
POLÍTICAS DA CONJUNTURA tos humanos e produzir uma base econômica justa,
BRASILEIRA, POR MAIS solidária e sustentável, nem um poder político mais
GRAVES QUE SEJAM, NÃO participativo, mais cidadão.
CONSEGUEM ENCOBRIR OS Hoje, o Brasil surpreende em sua política externa,
ENORMES DESAFIOS QUE seja nas negociações sobre a Área de Livre Comércio
TEMOS PELA FRENTE das Américas (Alca) e na Organização Mundial do
Comércio (OMC); no acordo entre Índia, Brasil e
África do Sul, na cúpula entre países árabes e a Amé-
rica do Sul; seja em termos de iniciativas de integração
regional, como a Comunidade de Nações da América do Sul, a retomada da
Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), o anúncio
de um gasoduto da Venezuela até a Argentina e, sobretudo, na desenvoltura

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com que o Brasil financia empreendimentos por meio do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nos diferentes países da
região e até na África, num verdadeiro processo de multinacionalização de
empresas controladas por capitais brasileiros.
Emerge um Brasil potência sub-regional? A quem interessa? Ao diverso,
multifacetado e sofrido povo brasileiro? Aos povos das Américas? Sem dúvida,
nunca o Brasil exportou tanto e conseguiu superávits comerciais de tamanha
monta – o que cria um ambiente externo mais favorável à nossa economia,
que patinava em termos de crescimento desde a rendição de nossos dirigentes
ao receituário neoliberal. Em última análise, isso cheira à retomada do pro-
jeto desenvolvimentista, expansionista de negócios e concentrador de renda,
destruidor do meio ambiente, fundado numa lógica de exclusão social. Sim,
devemos tratar da superação da exclusão, da desigualdade social em suas
múltiplas formas e da destruição ambiental se quisermos um desenvolvimen-
to radicalmente democrático. Até aqui, porém, em vez de mais democracia
participativa e mais direitos como parâmetros das relações sociais, assistimos
ao recrudescimento de contradições, conflitos e disputas sociais.
Vivemos um momento crucial para definir o Brasil que queremos.
Temos diante de nós a possibilidade de fincar as bases de um modelo de
desenvolvimento cidadão para o país, que tenha a democracia radical e
os direitos como suas forças de indução, rompendo o histórico divórcio
entre economia e sociedade, entre poder político e cidadania. Na prática,
entretanto, somos empurrados por relações, estruturas, processos, interes-
ses e forças, internos e externos, para a continuidade e intensificação de
um desenvolvimento que aprofunda uma economia que funciona contra
a sociedade, concentradora de riquezas e poder, socialmente excludente,
destruidora dos bens comuns. Economia e poder que se combinam com
racismo, machismo, violência, patrimonialismo e clientelismo, presentes
com leis pétreas no seio da sociedade brasileira.
As dificuldades de emergência da opção que radicaliza a democracia
nos levam naturalmente para a aceitação quase inevitável da agenda de
crescimento a todo custo, medido pelo Produto Interno Bruto (PIB), pelo
comércio externo e superávit comercial, pelos lucros e pela acumulação,
ou seja, para o desenvolvimento puxado segundo os interesses das grandes
corporações e suas estratégias globais. Superar esse impasse é o desafio para a
democracia brasileira. Não enfrentar tal impasse pode nos levar a uma crise
ainda maior. Pior, a própria democracia corre grande risco, limitada ao seu
formalismo representativo, incapaz de gerar uma nova sociedade cidadã e
participativa, responsável, justa e solidária, diversa e sustentável.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 11


QUE OUTRO PAÍS A DEMOCRACIA BRASILEIRA DEVE E PODE CONSTRUIR?
O momento é de inovar com ousadia, coragem e determinação. Trata-se, mais
uma vez, de reconhecer os novos desafios para a democracia brasileira, atual-
mente num contexto de maior abertura ao mundo e maior interdependência.
Isso nos remete de imediato para as grandes questões do Brasil no mundo: de
que Brasil o mundo precisa e a democracia brasileira pode produzir?
Essa tarefa torna imprescindível a repolitização do tema do desenvol-
vimento, da economia, da ciência e da tecnologia, da apropriação e uso
dos bens comuns, do poder estatal, enfim, da vida com uma perspectiva
radical de direitos e de democracia. Processo que só se fará a contento num
diálogo aberto com outros povos e sujeitos do planeta, reconhecendo que
aqui decidimos nosso futuro e também influímos no da humanidade, como
gestores que somos de um imenso patrimônio natural.
A democracia, por definição, é uma aventura incerta fundada num pacto
que estabelece a disputa permanente como modo de escolha de rumos e
projetos coletivos. Seu pressuposto constitutivo é a participação cidadã na
esfera pública, definindo o poder e a institucionalidade política. O berço da
democracia é a sociedade civil, na qual a cidadania ativa gesta os grandes
movimentos de opinião e se organiza em forças sociais portadoras que dão
forma à participação cidadã.
Os sonhos, as esperanças e os projetos são componentes fundamentais
de qualquer processo democrático. São eles que motivam a cidadania, a par-
ticipação e a disputa democrática, permitindo que, entre avanços e recuos, se
molde o próprio desenvolvimento do país. O sentido último da democracia
é criar, pela via política, condições para que os direitos civis e políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais, assim como as equivalentes res-
ponsabilidades, sejam referências para toda a sociedade e para que, de forma
sustentável, desenvolvam-se estruturas e relações capazes de incluir todos e
todas. O que move a democracia não são as instituições, mas a cidadania em
ação e a responsabilidade cidadã inspirada nos direitos comuns.
Ao longo das últimas décadas, a aventura democrática brasileira foi
capaz de decantar muitos sujeitos coletivos inspirados em princípios e
valores da democracia e de avançar na moldagem de um estado de direito.
Essa democracia, porém, perdeu força e intensidade e está sem capacidade
para transformar a sociedade racista, machista e profundamente injusta,
bem como a natureza produtivista e destruidora do desenvolvimento.
Estamos diante de enormes desafios que, se não forem enfrentados,
limitarão o processo democratizador, sem capacidade de avançar e perigo-
samente engolido pelas contradições autoritárias, excludentes e destruidoras

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de relações e estruturas econômicas, políticas e culturais que construímos.
Ainda não fomos capazes de enfrentar e derrotar o patrimonialismo in-
crustado na nossa cultura, que apropria e privatiza o público a serviço de
interesses e privilégios privados. Pior, perde força o princípio da responsa-
bilidade pública de todas e todos, por meio da luta e da vigilância cívicas,
expressas na participação cidadã, nas mobilizações, nos debates e na pressão
da rua. Prospera com perigo, especialmente entre estratos médios urbanos
do Brasil, a cultura do cinismo, de cada pessoa por si mesma, de dar as costas
e isolar-se em condomínios protegidos por grades e guardas privados.
Precisamos encarar sem medo as coisas como são: a democracia brasileira
ainda não alterou a lógica excludente e destruidora em que assenta a sociedade,
a economia e o próprio Estado. O privilégio tende a se sobrepor ao direito. A
cidadania para muitas pessoas é restrita ao direito de votar quando convoca-
das. Aproximadamente, metade da população brasileira, nos enormes bolsões
de pobreza no campo e nas gigantescas periferias sociais dentro e à margem
das nossas cidades, vive em condições tão difíceis e violentas que não tem
identidade social, não tem voz, não tem poder real nos processos políticos.
Restritas à formalidade de uma democracia representativa liberal, emergem
e se tornam visíveis todas as contradições da democracia brasileira.
A delegação que a cidadania faz ao eleger representantes e governantes
facilmente se transforma em apropriação dos mandatos pelos eleitos e pelas
eleitas segundo conveniências políticas e interesses pessoais, sem nenhuma
ética política e sem respeito aos princípios democráticos. Governantes, uma
vez empossados, desrespeitam os programas que os(as) elegeram e muito
rapidamente se compõem com os grupos e as forças que controlam com
mão de ferro as riquezas do país. Como resultado, a própria instituciona-
lidade política democrática, duramente conquistada – no Congresso e nos
Legislativos, nos Executivos, em âmbito federal e estadual –, acaba domi-
nada pelos velhos patrimonialismos e clientelismos, limitando o potencial
democratizador de políticas públicas de desenvolvimento e de promoção
da justiça social. Assim, se mantém e se aprofunda a perversa concentração
de renda, transferindo recursos públicos para grupos privados, numa dis-
tribuição de renda às avessas, de indivíduos pobres para ricos.
Foi isso que sempre fizemos, mas agora aperfeiçoamos os métodos, com
transferência escandalosa de patrimônio público a grupos privados multinacio-
nalizados e com a prioridade absoluta na geração de superávit fiscal para pagar
os especuladores da dívida pública. A democracia brasileira – uma importante
conquista, sem dúvida, para um povo longamente submetido a regimes dita-
toriais – perde intensidade e pode acabar. Ou, então, pode virar simplesmente

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 13


um rito formal, sem conseguir transformar todos e todas em reais cidadãos e
cidadãs, em pleno gozo de direitos fundamentais e no exercício de seu dever
cívico de sujeitos responsáveis e constituintes do poder e das políticas.
A crise atual mostra de forma exemplar os impasses da democracia
até aqui praticada. Os princípios e valores éticos da democracia não estão
no centro do poder estatal, das políticas, das leis, das decisões judiciais,
das estruturas e das relações que regem a produção e distribuição de
bens e serviços na economia. De uma perspectiva de radicalização da
democracia fundada em princípios e valores éticos, não podemos limitar
nosso olhar e nossa agenda às instâncias políticas representativas, mesmo
reconhecendo que precisamos rever e aperfeiçoar a institucionalidade
política e eleitoral, para avançar na democratização do poder estatal.
No entanto, isso é insuficiente e incapaz de dar nova vitalidade ao
processo democratizador entre nós. Os princípios e valores fundantes
da democracia devem ser as referências da economia e de seu desen-
volvimento, devem estar no centro de todas as relações na sociedade e
na sua cultura.
A ética na política, um pilar incontornável da democracia, continua
sendo solapada, e não só na prática política de nossos(as) representantes
eleitos(as), que facilmente desrespeitam o mandato delegado pela cidadania.
O pior é o sentido e a direção para onde apontam as políticas adotadas,
antiéticas e, portanto, antidemocráticas em sua essência. O princípio ético
da inclusão de todos e todas, sem discriminações, buscando a justiça e a
eqüidade, permitindo o acesso sustentável aos bens comuns, é desrespeitado
em nome de direitos adquiridos e de relações consagradas pela tradição
– verdadeiros privilégios pétreos – de quem tem dinheiro e propriedade, é
homem e branco, dos donos de gado e de gente, enfim.
A nossa democracia não se mostra capaz, até aqui, de igualar pela po-
lítica em favor de todos e de todas o poder que emana do patriarcalismo,
da propriedade e do capital, até do legado da escravidão. Por não se pautar

14 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


por uma ética que produz igualdade na diversidade, com liberdade e parti-
cipação, com solidariedade cidadã, a democracia brasileira perde vitalidade.
Frustração, decepção, cansaço. Será isso o que teremos pela frente?
Precisamos reconhecer que o ciclo democratizador inaugurado na luta
contra a ditadura se esgotou. O melhor que produziu foi isso aí, incapaz até
de garantir segurança pública para as grandes maiorias condenadas a viver
na pobreza. Precisamos voltar às bases, à cidadania ativa, ampliar o espaço
público, a consciência dos direitos e dos deveres, a capacidade de intervenção
política além dos momentos eleitorais. Precisamos ser capazes de imaginar
e propor uma democracia que seja referência do próprio desenvolvimento
e da inserção do Brasil no mundo.
Só um grande movimento de idéias, cívico e civilizador, com portadores
e portadoras convencidos de seus sonhos e projetos democráticos pautados
pelos princípios e valores éticos da democracia, será capaz de dar vitalidade
nova ao processo. Tarefa árdua, longa e paciente, mas gratificante. Temos
que começar logo, tirar os olhos do Planalto, do poder estatal, e olhar mais
para a planície onde vivemos e onde está o país real.
Precisamos de uma agenda positiva, envolvente, ousada, vibrante, que
nos dê ânimo para produzir um novo grande movimento de idéias demo-
cráticas e democratizadoras, que penetre em todos os poros da sociedade,
em todos os seus bolsões de pobreza e miséria, capaz de romper o avanço de
cercas e condomínios gradeados (reais e simbólicos, que privatizam, isolam
e segregam) e de desmontar o renascimento de um projeto excludente e
destruidor, para dentro e para fora, de um Brasil potência emergente. O
nosso foco deve ser a política e a ética – o espaço público dos direitos e da
participação –, reconquistando a capacidade autônoma da cidadania sobre
o poder de Estado e a economia de mercado.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 15


MOMENTO PARA REVISAR O BRASIL
Com o governo Lula, o país contribui para a ebulição que tomou conta da América
do Sul, com vários governos eleitos tentando romper com o modelo da globali-
zação neoliberal – com pouco sucesso, diga-se de passagem –, num verdadeiro
mosaico de caminhos alternativos. Em 2006, voltamos às urnas em outubro. O
debate travado no processo eleitoral ficou mais restrito à crise política e ética que
envolveu o governo e toda a institucionalidade política.
Apesar disso, pode também ser visto como uma oportunidade de reação
da cidadania até aqui “encurralada” pelas esperanças e pelos sonhos partidos.
Não podemos esperar tal possibilidade dos partidos e dos(as) candidatos(as),
porque isso depende, sobretudo, de iniciativas cidadãs, concebendo e alimen-
tando um processo virtuoso de debates sobre os rumos que queremos dar ao
Brasil, à democracia e ao desenvolvimento e a nós, brasileiros e brasileiras,
cidadãos e cidadãs do Brasil e do mundo.
A conjuntura eleitoral pode ser um momento para pensar o presente e o
futuro, o local e o global, as conquistas e as faltas, a onda que rebenta na praia e
a nova onda de democratização que precisamos desencadear. Queremos criar
um espaço de reflexão e iniciar atividades que alimentem o debate na atual
conjuntura brasileira, que finquem bases na sociedade civil e que visem a um
processo de longo prazo. Trata-se mais de avaliar o futuro e contribuir para a
construção de alternativas que alimentem movimentos amplos de cidadania, do
que simplesmente diagnosticar problemas e heranças do passado. O momento
é propício para articular redes e grupos brasileiros com o debate em curso em
vários lugares do mundo, trazendo seus promotores para um confronto direto
com as questões e as perspectivas que temos. Mas é também oportuno que,
assim como o Brasil precisa se pensar a partir do mundo, outros e outras, em
outros países e outras realidades, se pensem a partir do mundo e do Brasil. Essa
é a melhor forma de integrar a mundialização como questão e como possibili-
dade na construção de alternativas democráticas, solidárias e sustentáveis para
o planeta, para todos os seres humanos e para cada um de seus povos.

O MOMENTO É PROPÍCIO
PARA ARTICULAR REDES E
GRUPOS BRASILEIROS COM
O DEBATE EM CURSO EM
VÁRIOS LUGARES DO MUNDO

16 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


DEMOCRACIA + DIREITOS HUMANOS + DESENVOLVIMENTO
Como se trata de iniciar um processo de reflexão, alguns pontos de referência do grupo. Vale
análise e debate, o que importa, acima de tudo, é destacar também o projeto Monitoramento
uma busca que estimule um processo de produ- Ativo da Participação da Sociedade (Mapas)
ção intelectual e política de longo alcance. Um no contexto do governo Lula.
objetivo básico é apresentar uma agenda ousada, Existem outras iniciativas, mas o que im-
olhando para o futuro. Trata-se de um esforço porta é a necessidade de ir além de projetos
de construir pensamento para a ação, para os pontuais e a busca de uma estratégia que dê rumo
emergentes movimentos e as organizações de e sentido ao conjunto da intervenção pública.
cidadania de dimensões planetárias, localizando- É um convite para construir outra visão, outra
os sempre em realidades econômicas, políticas e abordagem, os fundamentos de uma estratégia
culturais concretas. que combine democracia + direitos humanos +
Ao longo dos anos, diferentes instituições, desenvolvimento.
redes e fóruns pelo mundo realizam um esfor- O desenvolvimento capitalista, exacerbado
ço sistemático de investigação, análise e troca. na sua versão global neoliberal, na busca do
Existe um acúmulo de indagações, rupturas, lucro privado a todo custo, cria estruturas e
críticas, com pressupostos diversos, num esfor- processos econômicos de poder político, culturas
ço de revisão de idéias e propostas de muitos de exploração e domínio do capital que têm no
e muitas diante da crise de paradigmas do centro o produtivismo e o consumismo como
passado e de suas experiências históricas, bem valores máximos a serem alcançados por meio
como diante da avassaladora hegemonia do de uma desenfreada competição entre pessoas,
pensamento neoliberal, com seu fundamenta- empresas, setores e países. Como base científica
lismo de mercado. A busca continua e cada vez e técnica desse desenvolvimento, vemos a rique-
mais se torna evidente a importância de pôr za crescer, mas contra nós – pela exploração,
em diálogo, confronto e sistematização o que exclusão e desigualdade social – e contra o bem
foi acumulado. Juntar esses esforços é uma das comum maior, que é o patrimônio natural, num
razões de ser do FSM, mas seu caráter de espaço verdadeiro extrativismo destruidor.
aberto e de encontro não dá conta da tarefa que A experiência do socialismo real, centrada na
se impõe. Por isso, outras e diversas iniciativas capacidade planificadora e executora do Estado,
se fazem necessárias. tanto em relação à organização produtiva como
O próprio Ibase, além de seu papel e en- em relação à distribuição dos bens e serviços, em
gajamento no FSM, desenvolve alguns esforços nome da justiça social, mostrou seus enormes
na mesma direção. Um exemplo é o acumulado limites em termos de desenvolvimento. A sua base
no projeto Agenda Pós-neoliberal, com uma científica e técnica também estimulou o produ-
rede de parceiros no Brasil, nas Américas e na tivismo a todo custo e a conseqüente destruição
Europa, de intelectuais e ativistas. Em recente ambiental, sem contar que suas conquistas na
publicação para o FSM em Caracas – Miradas área da justiça social não são sustentáveis, exa-
y reflexiones: bases para la construción de una tamente por falta de ativa participação cidadã.
agenda postneoliberal –, estão condensados Ainda vale destacar que, em ambos os modelos,

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 17


a questão da cidadania e dos direitos humanos, Estamos diante de realidades complexas,
bases de uma democracia radical, não estão com muitas e diversas culturas e, portanto,
presentes. O que importa, porém, é o fato de tais com muitas identidades e alternativas possí-
modelos, como paradigmas, serem ainda hege- veis. Os próprios sujeitos sociais da promoção
mônicos e funcionarem como estruturas mentais da democracia, dos direitos humanos e do
subjacentes, verdadeiros códigos de referência desenvolvimento são diversos. Não existem
para o pensamento e a ação. protagonismos a priori. É no processo de dis-
Em oposição à lógica desencadeada por puta que se constrói a democracia como modo
esses modos de pensar o desenvolvimento, suas de vida e organização do poder e se definem as
políticas, as relações sociais e os processos que prioridades de desenvolvimento. Nesse sentido,
priorizam, devemos afirmar aqui o primado temos muito a aprender com os movimentos
dos valores da igualdade, liberdade, diversida- feministas, que buscam construir subjetividades
de, solidariedade e participação cidadã, tendo alternativas como condição para novas formas
como referência todos os direitos humanos, de participação e organização social.
para todas as pessoas. Um aspecto fundamental A partir desses movimentos, somos levados
na construção de paradigmas novos, com novas a perceber dimensões de raça, de gênero e de
culturas políticas democráticas para o desenvol- orientação sexual com a mesma importância que
vimento, é articular e fundir a idéia da busca anteriormente se atribuíam a relações de classes
da mais ampla igualdade com radical respeito sociais. A radicalidade de uma perspectiva fun-
à diversidade que nos caracteriza como seres dada nessas dimensões repõe em outro plano a
humanos e caracteriza nossas culturas, bem questão dos direitos humanos, da responsabilida-
como à natureza, seus recursos e biodiversidade, de cidadã, da democracia e do desenvolvimento
que compartimos. da sociedade, capaz de incluir todas e todos.
Um princípio fundamental, em tal pers- Os espaços de disputa política e definição
pectiva, é partir da afirmação que homens e dos rumos democráticos e do modelo de desen-
mulheres, em sua condição de detentores de volvimento são diversos, pois são espaços de ex-
direitos e de cidadania, são capazes e podem, perimentação, de novos modos de organização e
responsavelmente, construir a história, a so- convivência humana, de novas formas de família
ciedade, a economia e o poder. Para isso, é e sociabilidade, de emergência de novos direitos.
fundamental resgatar e reinventar a política, o É fundamental debruçarmos sobre as alternativas
espaço público de debate e disputa, a afirmação embrionárias, marcadas pela capacidade decisó-
da prioridade do bem comum e público sobre o ria de seus participantes, baseada na responsabili-
individual e privado, ou seja, da política sobre dade coletiva, na coesão social e na ação solidária.
os mercados. Mas política aqui não fica limitada Os pressupostos aqui levantados implicam outra
ao estatal. Trata-se de politizar todas as relações, sociedade, outra política e outra economia para
na economia, na comunidade, na cidade, na frear tanto o absolutismo do mercado como o
cultura, no poder, na apropriação e no uso da poder estatal absoluto e abrir condições para a
natureza, na vida. plena realização das capacidades humanas.

18 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


PRECONDIÇÕES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA NOVA AGENDA
• Um profundo ancoramento ético: toda política e sua institucionalidade
devem ter como princípio absoluto o respeito aos ditames da cidadania de
todos e todas, numa verdadeira equalização do poder. O enfrentamento
da desigualdade e exclusão social é prioridade para a democracia, como
responsabilidade e dever do Estado na definição de políticas e alocação de
recursos, antes de qualquer imposição dos mercados. Reconhecer as várias
formas de diversidade da cidadania e buscar a igualdade é um imperativo
ético e democrático. O uso sustentável e eqüitativo dos bens comuns
naturais é também uma imposição ética e condição incontornável para o
desenvolvimento humano democrático.

• Um grande projeto mobilizador: o sonho e a esperança precisam renas-


cer. Para cimentar a vontade coletiva em torno de um projeto de Brasil
democrático, é necessário que a agenda de uma nova onda seja capaz de
despertar o sonho e captar a esperança ainda presente em nossa cultura
popular. Essa é uma condição para enfrentar o ressurgimento do cinismo
e da perda de valores, especialmente nos estratos médios urbanos, leva-
dos a crer na exacerbada competição e no individualismo, da atitude de
“salve-se quem puder”. Mas é, também, condição para que não prospere
a fragmentação de movimentos e lutas sociais, na desesperança de solu-
ções à vista e na falta de mediação política legítima. Solução democrática
de inclusão de todas e todos, de bem com o nosso patrimônio natural, é
possível. Entretanto, precisamos acreditar.

• Um modo de fazer radicalmente democrático: a solução dos problemas do


Brasil passa pela cidadania, e não pelo Estado ou pela economia. Quem faz
a diferença somos nós, mulheres e homens, jovens e velhos(as), brancos(as)
e negros(as), indígenas de todas as tribos. Enfim, nós, em nossa comum
qualidade de cidadãs e cidadãos. A tarefa essencial e imprescindível é alar-
gar o espaço público, o debate sobre todos os direitos a todas as pessoas,
sobre a legalidade que deve dar conta da legitimidade. A participação
responsável, a mais direta possível, é o caminho. Só o poder democrático
baseado na participação direta é legítimo e capaz de enfrentar as tarefas
que a democracia exige.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 19


RADICALIZAÇÃO DO FEMINISMO,
RADICALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA
MARIA BETÂNIA ÁVILA
Socióloga, coordenadora geral do SOS Corpo Instituto
Feminista para Democracia

Podemos definir democracia como governo pelo povo ou governo pelo poder do
povo. Mas quando foi, de fato, que o povo governou? Para o feminismo, desde
a sua origem, se impõe a questão sobre as mulheres como parte do povo que
governa. A esfera política foi historicamente construída como um domínio dos
homens, e está relacionada com a dominação sobre as mulheres no espaço da
vida privada. O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a rela-
ção entre liberdade pública e dominação privada – o que já traz uma exigência
de radicalidade, de pensar a democracia não só como um sistema político, mas
como uma forma própria de organização da vida social.

A organização política do feminismo surge com a revolta das mulheres, forjada


em uma experiência histórica concreta de relações sociais de desigualdade. A
práxis feminista é ação política e pensamento crítico. Portanto, a radicalidade
da ação está relacionada com a reinvenção da prática política e com a produção
teórico-analítica feminista nos vários campos do saber. Para a construção do
sujeito, conhecer e agir são dimensões inseparáveis. Isso fica mais claro quando
constatamos que a produção de saber é também uma esfera da dominação mas-
culina. Dominação simbólica diretamente voltada para reprodução da dominação
e da exploração material – patriarcal e capitalista.
ENFRENTANDO OS CONFLITOS
Há, no movimento feminista, diversidade de organizações e lutas e há desi-
gualdade entre as mulheres que as compõem: mulheres de classes desiguais;
de raças diferentes (transformadas historicamente em desigualdades); mu-
lheres negras; mulheres indígenas e rurais; trabalhadoras domésticas, que
constituem, majoritariamente, a classe das mulheres pobres; mulheres cujas
desigualdades de classe, de raça e de gênero encontram-se entrelaçadas; mu-
lheres lésbicas, que radicalizam contra as heranças do padrão heterossexual
dominante; portadoras de necessidades especiais; mulheres de várias gerações,
que trazem os conflitos inerentes entre transmissão e reinvenção.
Por isso, a necessidade de radicalizar, de viver o conflito interno no
movimento – enfrentando democraticamente as várias tendências e propo-
sições –, de produzir conflito na sociedade em torno das suas proposições,
de entender que radicalizar também é ser referência para outras mulheres
fora do espaço da sua própria organização.
A radicalização do feminismo diz respeito à sua própria forma de orga-
nização e à sua ação no mundo. Se o movimento é radical, a sua organização
exige, de imediato, os meios para enfrentar as contradições da mulher na vida
cotidiana, que deve exercer o direito de existir como sujeito político – já que
uma das conquistas do feminismo é a instituição da mulher como sujeito.
Para pensarmos em uma proposta radical de luta feminista, é im-
portante pensarmos no acesso aos espaços de luta. Caso contrário, a
desigualdade social e as discriminações se transformam perversamente
em um déficit do sujeito. No cotidiano, há bloqueios para as mulheres se
movimentarem entre as esferas pública e privada, como a violência sexual e
doméstica, o preconceito, a dupla jornada de trabalho e a falta de tempo.
O trabalho das mulheres nas esferas produtiva e reprodutiva está mar-
cado pela desigualdade da divisão sexual do trabalho. Precisamos responder
teórica e politicamente à transformação dos fundamentos econômicos dessa
divisão e das relações sociais por ela produzida.
A mercantilização do corpo das mulheres, do prazer, e a banalização
da exploração sexual são dimensões importantes da globalização econô-
mica. As mulheres são consideradas alvos estratégicos do consumismo, e o
apelo sexual é o elemento central desse método. A indústria cultural, por
intermédio dos diversos meios de comunicação, produz, cotidianamente, as
mais enlouquecidas formas de alienação e apreensão de todas as propostas
de liberdade e igualdade. É também no terreno da sexualidade que a força
repressiva das instituições religiosas e fundamentalistas têm produzido
controle e abusos em nome de princípios transcendentes.

22 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


A ilegalidade e a clandestinidade do aborto, por exemplo, sempre ser-
viram aos interesses mercantis e ao poder das igrejas na dominação sobre a
vida das mulheres. Na América Latina e no Caribe, o poder do Estado esteve
historicamente nas mãos de homens, em sua maioria, ligados aos senhores
da terra, da indústria e do capital financeiro, subordinados e aliados dos
senhores do Norte.
O patrimonialismo, que teve grande peso na conformação desses Es-
tados, a violência no campo, a violência sexual, o racismo, a homofobia, a
violência sobre o povo indígena, a concentração de renda e seu reverso, a
pobreza, são marcas que persistem a partir de uma imbricada relação entre
dominação simbólica e reprodução da desigualdade social.

ATUAÇÃO MAIS POPULAR


Um projeto político que propõe a democratização da vida social deve
ser radicalmente contra o racismo, a heterossexualidade como modelo
hegemônico, as formas autoritárias de gerir o poder político e contra as
instituições que sustentam a dominação e a exploração: igreja, família,
Estado e mercado. Enfim, deve ser radical no seu confronto com o sistema
capitalista e patriarcal.
As mulheres, sobretudo negras e indígenas, são a maioria nos povos
pobres da América Central, da América do Sul e do Caribe. Assim, se o
feminismo na América Latina e no Caribe não enfrentar a pobreza das
mulheres, a democratização da terra – e o acesso das mulheres a ela – e o
direito ao próprio corpo, não pode radicalizar. O feminismo deve se po-
pularizar, se estender por todos os cantos onde as mulheres são exploradas
e violentadas, criar raízes como uma organização política voltada para a
transformação social.
Por isso, duas questões devem ser assinaladas como relações dialé-
ticas entre o feminismo e o movimento de mulheres no geral: qual é a
capacidade do movimento feminista de reconhecer todas as expressões
de lutas cotidianas de milhares de mulheres que produzem mudanças
nas comunidades onde vivem, nas instituições onde trabalham, que se
definem como feministas (ou não), e que forjam um amplo movimento
de mulheres? Como o feminismo se relaciona com essa movimentação
de mulheres?
A radicalidade também passa pela não aceitação da idéia de que os fins
justificam os meios. Radicalizar é lutar contra a hegemonia de uma visão
liberal de democracia, contra a visão da democracia liberal como a única
experiência histórica e a única definição possível de democracia.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 23


RECUPERAR A UTOPIA
Quais são as formas de democracia política que
forjamos, teorizamos, praticamos, defendemos
e alteramos? É a representativa, a participativa, a
democracia direta? Como podemos democratizar o
sistema de poder político? Como o feminismo en-
frenta, de fato, o sistema de poder político, produz
crítica e confronto? Como se apresenta, agora, para
o movimento feminista, a questão do poder?
Enfrentar esse sistema – no qual as estruturas
que reproduzem as desigualdades se imbricam
– requer uma capacidade imensa de organização,
solidariedade e generosidade em nossas articula-
ções, bem como uma capacidade crítica para com-
bater, em nós mesmas, as formas de agir herdadas
da tradição desse sistema e das tradições políticas
autoritárias. Entre a fragmentação atomizada e os
modelos totalitários, temos que inventar processos
de democracia radical, capazes de alterar a ordem
social vigente e as formas de fazer política.
A capacidade de enfrentar as diferenças e
os conflitos democraticamente, por meio do
diálogo, é um desafio para a organização do
feminismo. Negar o conflito só fragiliza a luta e
diminui a capacidade de organizar uma resistên-
A CAPACIDADE DE ENFRENTAR cia coletiva. A democracia política radical exige
AS DIFERENÇAS E OS CONFLITOS uma nova cultura política. É preciso repensar
DEMOCRATICAMENTE, os métodos feministas utilizados para construir
POR MEIO DO DIÁLOGO, autonomia e relações não hierárquicas dentro
É UM DESAFIO PARA A do movimento e também em relação a outros
ORGANIZAÇÃO DO FEMINISMO movimentos, reafirmando sempre a pluralidade
dos sujeitos. O Fórum Social Mundial nos impõe
um grande desafio nesse sentido.

24 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


Diante dos desafios que temos, a mobilização e a consciência crítica
são elementos estratégicos. Logo, a organização política, a socialização dos
saberes e os processos educativos, voltados para a formação de sujeitos,
são indissociáveis como método para uma práxis transformadora. Há
uma relação dialética entre os processos coletivos de ação política trans-
formadora e as experiências alternativas, as “microrevoltas”, as aquisições
de direitos e a luta dentro das instituições que, na vida cotidiana, forjam
novas experiências.
Temos que fortalecer as bases organizacionais de um internacionalis-
mo crítico e ativo, capaz de se opor, verdadeiramente, ao neoliberalismo, ao
terror e à guerra, à mercantilização da vida e dos bens comuns da natureza,
ao fundamentalismo. Um internacionalismo que atravesse desde a luta na
aldeia mais recôndita até os grandes centros urbanos.
Devemos recuperar a utopia – no sentido defendido pela filósofa fe-
minista Françoise Collin – como fratura permanente com o que há, como
abertura para transformar, e não como representação de um modelo. A
feminista Cristina Buarque defende a necessidade de mostrar claramente
o que rejeitamos, de expressar com determinação o nosso confronto. O
momento da ação política transformadora também é o momento da
invenção de novas relações, de construção de subjetividade e, portanto,
da reinvenção coletiva e da reinvenção de nós mesmas.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 25


O MOVIMENTO SOCIAL E A
NOVA “GUERRA DE POSIÇÃO”
PIERRE BEAUDET

Em 2001, realizava-se o primeiro Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre.


Naquele momento, poucas pessoas tinham uma idéia clara sobre seu significado
e seu alcance. Percebia-se, intuía-se, que algo “estava no ar”. A insurreição “de
baixa intensidade” dos Zapatistas, os avanços do movimento social, particu-
larmente na Europa Latina e na América do Sul, as gigantescas manifestações
anti-neoliberais realizadas em quase todo o mundo, sacudiam a ganga de chumbo
do capitalismo e questionavam as “teorias” do fim da história e do triunfo da
civilização ocidental.1

1
A revolta dos Zapatistas, no Chiapas mexicano, ocorreu no início de 1994, quando o governo mexicano
aderiu ao Acordo de Livre Comércio com o Canadá e os Estados Unidos. Os movimentos sociais des-
pontaram a partir de meados da década de 1990, notadamente na França (greves de 1995), na Bolívia
(“guerras da água”) e em outros lugares. Então, poderosas coalizões se estruturaram para paralisar
conferências e cúpulas organizadas por Estados em torno de propostas neoliberais promovidas pela
Organização Mundial do Comércio, do projeto de criação de uma Área de Livre Comércio para as
Américas e das reuniões de cúpula do G-8, como ocorreu em Seattle, em Gotenburgo, em Gênova,
em Quebec, em Johanesburgo e em várias outras cidades do mundo.
SEIS ANOS DEPOIS
Reunidos na capital do estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, por
iniciativa dos movimentos brasileiros e com o apoio da municipalidade
petista, os movimentos sociais projetaram-se usando uma complicada inte-
ligibilidade. Eles percebiam que as linguagens que falavam eram, ao mesmo
tempo, semelhantes e diversas. Embora aparentemente desconectados uns
dos outros, estavam em rede, mesmo que apenas através dos tênues fios da
Internet. Os movimentos sociais começavam a adotar, pelo menos intelec-
tualmente, um itinerário de ruptura parcial, ambíguo e aparentemente sem
horizontes bem definidos. Para a maioria dessas organizações, com efeito,
não havia como invocar alguma “megateoria” ou alguma “grande utopia”,
como ocorrera com os movimentos sociais do século XX.
Assim, sob o sol de Porto Alegre, surgiu uma nova experimentação du-
rante os próprios trabalhos, por meio de novas gramáticas, de novos códigos
e de novas expressões. Mas, seis anos depois, o que foi feito do movimento
social? Sabe-se, é claro, que seis anos, numa temporalidade histórica, não
correspondem a mais de seis segundos! Seria preciso, portanto, uma grande
arrogância, (e alguns a tinham, mas não diremos quem) para propor esque-
mas explicativos globais. Nesse processo, é necessário prudência, modéstia,
respeito e paciência.2

A IRRUPÇÃO DOS SUBALTERNOS


SOB O SOL DE PORTO Na esteira do sucesso do FSM e da intensa ciranda
ALEGRE, SURGIU UMA NOVA das mobilizações sociais que continuam a se am-
EXPERIMENTAÇÃO DURANTE OS pliar, o movimento social retomou a confiança.
PRÓPRIOS TRABALHOS, POR Trata-se de um grande avanço, que se apóia, sem
MEIO DE NOVAS GRAMÁTICAS, determinismo, nas transformações profundas
DE NOVOS CÓDIGOS E DE de longa duração de nossas sociedades, como o
NOVAS EXPRESSÕES explica tão bem Immanuel Wallerstein.3 O ritmo
das mudanças imediatas é bem visível e intenso,
notadamente na América do Sul.4 As classes po-
pulares continuam a dizer “basta” aos dominantes

2
Pensamos na pequena frase de Groucho Marx: “Pode-se prever tudo, menos o futuro”.
3
Ver especialmente seu comentário sobre o FSM. Disponível em: <http://www.binghamton.edu/
fbc/130en.htm>. Acesso em: 18 dez. 2006.
4
As mobilizações não cessam de cruzar o continente. A direita pró-americana foi vencida eleitoralmente
em quase todos os lugares, com exceção do México. Lá, segundo todas as aparências, ela se manteve
no poder graças a uma monumental fraude.

28 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


nas ruas e pelo voto. Os grupos subalternos, e
entre eles os povos originários e os camponeses,
não querem mais, enquanto as elites, sobre-
tudo brancas e urbanas, não podem mais.5 A
América do Sul se tornou um vasto laboratório
onde se experimenta um novo diálogo entre um
aprofundamento democrático e uma espécie de
“neokeynesianismo” de esquerda. Sem cinismos
ou desilusões, imensas massas agem para alterar
os termos do poder, sem esperar, ingenuamente,
por um milagre qualquer, que viria de cima para
baixo, de um “salvador”. Essas massas exercem
pressões sobre os interlocutores políticos para
que eles empreendam grandes reformas, de
modo a restabelecer certa redistribuição social
e a proteção do bem comum. Será que isso vai
funcionar? As opiniões se dividem, mas quer
façamos parte dos otimistas, dos pessimistas ou
dos “otipessimistas”, constata-se que a estrutura
do poder foi efetivamente abalada.

A DIREITA SOB O CHOQUE


Em outras partes do mundo, os setores mais arrogantes e os mais agres-
sivos da direita estão sofrendo duros revezes. É o que ocorre na Índia, na
Espanha, na Itália e, mais recentemente, nos Estados Unidos.6 É claro que
o jogo dos partidos e da alternância nas democracias representativas tem
um forte impacto nessas mudanças. Entretanto, seria essa a única razão?
As massas em ação e os movimentos fluidos lançam sobre essas direitas
um descrédito total, principalmente ao revelarem a amplitude da “ma-
landrocracia” que se apoderou do poder em vários países ditos democrá-
ticos. Setores cada vez mais significativos da população se dão conta das
empreitadas que solapam a democracia pelo viés de derivas militaristas e

5
É uma paráfrase da afirmação de Lenine: “Uma revolução sobrevém quando os de cima não podem
mais e os de baixo não querem mais”.
6
A direita “dura” (o BJP) perdeu as eleições na Índia em 2004. O governo Aznar foi vencido, a despeito
das expectativas na Espanha, por uma formidável mobilização antiguerra organizada pelos jovens,
que pôs a nu a grande mentira da direita contra os movimentos bascos, por ela acusados de serem
responsáveis por grandes atentados terroristas. Mais tarde, Berlusconi foi vencido e, finalmente, mais
recentemente (novembro de 2006), os eleitores americanos rejeitaram a administração Bush e sua
política de guerras no escrutínio para a renovação do Congresso.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 29


repressivas que criminalizam as classes “perigosas”, a começar pelos “elos
mais frágeis” (imigrantes, refugiados e jovens). Em quase todos os lugares,
contra essa realidade, retumba um formidável NÃO. Como resultado, o
grandioso projeto de “reengenharia” do mundo, promovido principal-
mente pelos neoconservadores (mas não apenas por eles) nos Estados
Unidos, é contido pela resistência dos povos, por um feixe complexo e
diversificado de movimentos, de expressões organizadas ou espontâneas.
Por outro lado, esse projeto é freado por uma combinação de forças
políticas, sociais e culturais, numa espécie de “arco de tempestades” que
atravessa o globo terrestre de Jacarta a Casablanca, passando por Cabul e
Bagdá. É uma grande reviravolta. Há alguns anos acontecia o deslanche
de uma ofensiva reacionária que visava reconstituir um “consenso” entre
os dominantes e fazer com que os dominados recaíssem na impotência
e na indiferença.

O TURBOCAPITALISMO SEM FÔLEGO


Enquanto isso, o capitalismo, que afirmava ser o “fim da história” após
ter “triunfado” sobre o socialismo, esbarra em suas próprias contradições.
As turbulências econômicas se aceleram: de um lado, há a intensificação
da competição entre a “tríade” (Estados Unidos, União Européia, Japão);
do outro, entre a tríade e alguns países ditos “emergentes”, notadamente
a China. A “bolha” financeira americana, dopada por um dólar abusi-
vamente superavaliado, está se tornando cada vez mais frágil, sem que
a União Européia, e mesmo o Japão, estejam em condições de reverter
a tendência profunda ao decrescimento. A incessante canibalização dos
pequenos pelos grandes e dos grandes pelos ultragrandes concentra a
riqueza num processo de polarização de classes, cuja evolução havia sido
prevista por Marx.
Até hoje, os cenários dos dominantes para a “saída da crise” conten-
tam-se em forçar os dominados a aceitar o inaceitável, como ocorria antes
de Keynes.7 Isso não funciona mais. Paralelamente, os “crashes” e as catás-

7
O feito genial de Keynes foi, justamente, salvar o capitalismo. Não o fez pela repressão, mas pela
formulação de um compromisso social no qual os dominantes concederiam uma parte da riqueza social
aos dominados em troca de uma estabilidade a longo prazo e de sua aquiescência ao capitalismo.
Naturalmente, essa grande transação havia sido imposta aos dominantes pelo contexto da época,
quando a hipótese de uma ruptura revolucionária com o capitalismo estava ao alcance da vista.

30 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


trofes financeiras proliferam, fazem desabar, umas após as outras, as “sucess
stories” da bíblia “bancomundialista” (Argentina, Tailândia, Indonésia etc.).
O trabalho pioneiro de Robert Brenner sobre os ciclos longos e a inexorá-
vel contradição que mina a acumulação capitalista, nos trazem de volta a
realidades fundamentais que diversas ideologias do tipo “panela de pres-
são”, ditas pós-modernistas, queriam mascarar.8 A crise semipermanente,
a competição destruidora das ferramentas econômicas e das vidas que as
animam, o assustador desperdício de recursos, não são “acidentes” ou “danos
colaterais”, mas sim características constitutivas do capitalismo que nenhum
“corretivo” interno poderá resolver. No entanto, diversamente do que reza
uma outra bíblia (desta vez a da esquerda), é preciso saber que esse processo
de autodestruição sem fim não levará necessariamente à autodestruição do
capitalismo. Muito pelo contrário.

UM (OUTRO) FIM DA HISTÓRIA?


Por meio de uma série de processos, a relação de forças entre dominantes
e dominados limita, bifurca, se fragiliza e desequilibra todos os futuristas
mais ou menos experimentados, sejam eles de direita ou de esquerda.
Diante desse vazio analítico, alguns concluem, com demasiada pressa, que
estamos “às vésperas de uma grande reviravolta”. A grande noite, o dia
D, o ponto de ruptura está chegando, dizem eles. Para alguns, o declínio
do capitalismo está marcado na história. Sob sua forma neoliberal, ele
entra na fase “senil”, sem capacidade de renovação, deixando atrás de si a
devastação, as guerras e os confrontos permanentes. Para outros, as “mul-
tidões” sem nome aprontam-se para desferir o golpe fatal contra o “poder
biopolítico”. De uma forma ou de outra, vários prevêem, diversamente
dos neoliberais de Washington, um outro “fim da história”: um “happy
end” dos movimentos sociais, desde que, esclarecem alguns, eles saibam
abandonar suas veleidades autonomistas e reconheçam a linha e a tática
justas que possam “capturar”, numa surpreendente síntese do futuro da
contestação social.

8
Ver sua última obra: The Economics of Global Turbulence. London: Verso Press, 1998.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 31


A PESADA HERANÇA DO CATASTROFISMO
Não é a primeira vez que um movimento social, embriagado pelo seu
próprio sucesso e por uma crise aparentemente “terminal” do capitalismo,
prediz um outro fim da história. A Segunda Internacional, da mesma forma
que a Terceira, incrustaram no seio do movimento social a idéia herdada
do Século das Luzes, ou seja, a de que a “modernidade” e o “progresso”, e
até mesmo o socialismo na sua versão proletária, iriam necessariamente
triunfar em um futuro próximo!9 A crise, a verdadeira crise, a grande crise,
a crise com C maiúsculo, iria inelutavelmente sobrevir. O movimento social
deveria agir para “precipitar” essa crise inelutável (pela insurreição) ou para
aguardar que o “fruto maduro” do capitalismo caísse por si só e fizesse evoluir
a sociedade, por meio de um processo “natural”, em direção ao socialismo
(socialdemocracia). Esse catastrofismo “de esquerda” acompanhou, durante
todo o século XX, sob uma pluralidade de formas, o pensamento crítico.
Mercê da atração de sua argumentação e munido da força desenvolvida por
toda uma geração de movimentos, ele se cristalizou numa “sociologia” das
relações dominantes-dominados, que se reproduz até hoje.

O CAPITALISMO SE REPRODUZ PELA DESTRUIÇÃO DO CAPITAL


As crises políticas, sociais e econômicas do capitalismo realmente existente,
sem dúvida alguma, se multiplicam. Elas expressam processos complexos e
contraditórios. Marx havia demonstrado, de forma magistral (e isso foi esque-
cido posteriormente), que o capitalismo se nutre de crises e se amplia por meio
das crises.10 A destruição do capital assegura sua reprodução. Paralelamente,
a despeito de outras interpretações fechadas, o capitalismo se desenvolve pela
competição, pela concorrência – e por meio dela –, pelo deslocamento inces-
sante dos atores e das forças. Hoje, o modelo neoliberal, que é evidentemente
um constructo político – e não uma fatalidade –, domina e reestrutura o ca-
pitalismo de várias maneiras. Ele se desloca “geograficamente”, pelo menos de
forma parcial, em direção a partes do “Sul global”, que se transformam em novas
zonas de acumulação intensiva. Ele força reconfigurações onde as burguesias da
“tríade” são confrontadas por potências capitalistas emergentes, especialmente
a China, sem mencionar os outros pólos em situação de devir (Índia, Brasil e

9
Dissidentes precoces, como Rosa Luxemburgo ou Walter Benjamin, já tinham enxergado essa
opacidade analítica.
10
“As crises do mercado mundial devem ser vistas como a síntese real e o achatamento violento de
todas as contradições dessa economia”. MARX, Karl. Matériaux pour l’économie (1861-1865). Œuvres.
Paris: Gallimard, 1968.v.2.

32 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


Rússia). O modelo neoliberal “reestrutura”, na destruição, as classes populares e
as chamadas classes “médias”, tanto no Norte quanto no Sul, excluindo algumas
(uma boa parte dos assalariados “fordistas”, que proliferaram notadamente no
período keynesiano) e incluindo outras camadas (entre 10 e 15% da população
do Sul global que tem condições de tornar a oferta capitalista solvente), ao
mesmo tempo que condena à morte centenas de milhões de “não-cidadãos”, em
sua maioria camponeses. Nada indica que esse modelo não seja “sustentável”, a
não ser pelo esgotamento acelerado dos recursos, um fenômeno que é muitas
vezes mal interpretado, de forma catastrofista, por certo ecologismo.

AS DIFERENTES “GESTÕES” DA CRISE


Nessa evolução, os dominantes dispõem de várias “estratégias”. Mesmo que o
edifício de sua hegemonia esteja fissurado aqui e ali, suas fundações permane-
cem sólidas. Em larga medida, a “guerra sem fim” é uma dessas estratégias, pois
ela permite repolarizar o mundo e, ao mesmo tempo, põe os dominados na
defensiva. O objetivo dessa guerra é o de estender o império sob formas mais
tradicionais, diretamente coloniais. O projeto, porém, esbarra em obstáculos
formidáveis (o contra-exemplo do Iraque). Os neoconservadores teimam e
planejam alçar essa guerra a um nível “superior”, mediante o uso, por exem-
plo, de armas nucleares,11 mas encontram diante de si os “neo-realpolitiks”,
que consideram os velhos métodos do “indirect rule” mais eficientes, com a
realização de alianças interestados e com a cooptação de uma parte das elites
locais na gestão da dominação. Além de divididos por interpretações diferentes
da crise e de suas possíveis soluções, os dominantes se vêem assediados e im-
portunados por uma competição imperialista crescente. Os Estados Unidos,
para manterem sua dominação frente à União Européia e frente aos países
emergentes, não têm outra escolha, racionalmente falando, senão apoiarem-se
em certa remilitarização. No entanto, falta entusiasmo em seus concorrentes.
Eles não são menos “imperialistas”, mas suas armas de dominação são mais
econômicas e tecnológicas do que militares. Esse é um problema sério para
os dominantes, mas não devemos subestimar a capacidade que eles têm de
refazer certo número de consensos, principalmente porque estão conscientes
das ameaças representadas por um movimento popular ascendente.12

11
No início de 2006, a administração Bush contemplou seriamente a possibilidade de lançar mísseis
nucleares de “terceira geração” sobre o Irã. Considerou-se, entretanto, no mais alto escalão, que o
projeto era “prematuro” e comportava riscos em demasia.
12
Durante a grande crise entre as duas guerras, a burguesia européia, que tinha medo de Hitler, re-
ceava ainda mais os movimentos sociais e a influência da União Soviética. Os dominantes franceses,
principalmente, inventaram este slogan: “Melhor Hitler que o Front Populaire”.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 33


O SOCIAL-LIBERALISMO COMO PORTA DE SAÍDA
Há limites objetivos e subjetivos contra esses cenários de gestão de crise. Os
dominantes sabem que é preciso continuar a guerra de posição contra os
dominados por outros meios. A gestão “socioliberal” (o neoliberalismo com
“rosto humano”) apresenta-se como uma tática tentadora. Trata-se, subs-
tancialmente, de oferecer a uma parte dos dominados uma redistribuição
marginal da riqueza social ou apenas assegurar que a parte que eles já detêm
não sofrerá qualquer redução, desde que aceitem as regras do jogo: a perda
dos “direitos adquiridos”, a flexibilização do trabalho e o encolhimento do
guarda-chuva da seguridade social. Estamos, naturalmente, longe da grande
solução de compromisso oferecida por Keynes, que propunha, ao contrário,
uma redistribuição substancial e uma melhora visível das condições de vida
das classes populares. De uma forma um pouco perversa, a gestão socioliberal
joga os pobres contra os “ultrapobres”, as classes médias proletarizadas contra
os camponeses excluídos, oferecendo a estes últimos, contra os interesses dos
outros, certa garantia de que eles não se tornarão os excluídos. E aqui, mais
uma vez, não devemos subestimar o impacto dessas políticas e suas capacida-
des reais de estabilizar o espaço político em proveito dos dominantes.

O MOVIMENTO SOCIAL EM DESAFIO


O movimento social é, ao mesmo tempo, forte e
fraco. É forte em razão de diversas vitórias que for-
çam os dominantes a recuar e por conseguir impor,
aqui e ali, novos avanços democráticos. É fraco por
estar longe de reunificar as classes populares em
torno de um projeto utópico e factível. Ele ainda é
enganado pelas táticas da direita e permanece enre-
dado em nosso passado catastrofista e vanguardista.
Para alguns, a alternativa é a de se tomar de “assalto
ao céu” e forçar a ruptura entre nosso movimento
social e os dominantes, até mesmo na sua apropria-
ção do espaço político. É preciso, portanto, que a
“esquerda da esquerda”, que repousa no movimento
social, se projete no anteplano, mesmo que isso
signifique a realização de dolorosas rupturas. Para
outros, uma tal virada comporta mais desvantagens
do que vantagens. A força do movimento social
repousa sobre sua exterioridade relacionada com
certa temporalidade política, sobre sua definição

34 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


pela ação mais do que numa adesão a um progra-
ma de transformação que, necessariamente, acaba
delimitando o horizonte das lutas. Ele extrai sua
força da proximidade que mantém com a galáxia
das reivindicações e das resistências, principalmente
por não tentar “reduzi-las” ou hierarquizá-las. Ele
se redefine perpetuamente pela inclusão de novas
identidades de luta, com as reviravoltas das relações
de força e dos ciclos do capitalismo. O esforço de
coligação desses processos heterogêneos é conse-
guido pelo movimento social ao reunificá-los, sem
achatá-los, a partir de evoluções necessariamente
conjunturais e efêmeras.

“SER” OU “FAZER” POLÍTICA


Nesse contexto, o movimento social “é” político, mas não “faz” política. É preciso
continuar a funcionar, a exercer influência no espaço político tal como este existe
– e não como se fosse num outro “planeta” – ou aguardar que a grande noite
sobrevenha como resultado da grande crise. No imediato, esse espaço é limitado.
Há, de um lado, o neoliberalismo militarizado; do outro, o socioliberalismo que
se exprime de várias maneiras. Para além dessas versões, o socioliberalismo,
herdeiro de uma socialdemocracia em farrapos, aparece como aliado por falta
de outro. As massas em movimento aceitam apoiá-lo sem muitas ilusões (e
às vezes até tampando o nariz), não como uma capitulação, mas como uma
forma de desestabilizar a direita.13 Acima, entretanto, dessas diferenças táticas,
importantes entre aqueles que querem avançar diretamente no terreno político
e aqueles que querem determiná-lo “de fora”, existe um forte consenso que se
rearticulou na esteira das idéias do FSM. Todo mundo (ou quase) interiorizou
a idéia de que não se trata mais de subordinar o movimento social a projetos
políticos imediatos. A maioria dos movimentos reconhece que é inaceitável
censurar grupos subalternos em nome da “linha justa” ou da “contradição
principal”. Em suma, está emergindo, há alguns anos, uma idéia estruturante.
Como ela continua a fazer progredir as coisas, os movimentos estão, de uma
maneira geral, conscientes de que não se deve desviar do itinerário empreendido
para estimular uma força popular consciente e proposicional.

13
Isso foi, notadamente, a escolha do movimento social na Índia. Desde a derrota da linha dura (o
BJP), a diretriz majoritária (existem dissidentes) é a de apoiar partidos centristas como o do Congresso,
esperando que isso crie mais espaços para as forças de transformação.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 35


JUSTAMENTE A “GUERRA DE POSIÇÃO”
Devemos nos lembrar do contexto no qual Gramsci utilizou essa imagem.
O movimento social ascendente na Europa do século XX esbarrava no
muro do capitalismo militarizado, secundado por uma poderosa esfera
política antiinsurrecional. O sensacional golpe da revolução russa, pensava
Gramsci, não tinha como ser repetido. A extraordinária conjunção de
forças entre o desmoronamento de um império declinante, a decompo-
sição rápida de seu exército e a explosão do campesinato, acoplados ao
surgimento de um movimento social dinâmico nos centros capitalistas,
não tinha como se “reproduzir”. De uma “guerra de movimento” ofensiva,
e que queria chegar aos últimos limites, o movimento iria passar de uma
“guerra de posição, uma guerra de trincheiras”, a um movimento lento, a
uma constante corrosão das posições do adversário, a uma série de com-
bates laboriosos, esgotantes, duros, tanto no plano das forças quanto no
plano das idéias. Nessa visão, o Estado, contrariamente a uma percepção
bem enraizada, não era simplesmente um “objeto” ou um local a ser “cap-
turado”, tal como um “palácio de inverno” (Lenine já o havia percebido),
mas uma relação multidimensional de forças a serem transformadas.
Na esteira da revolução de outubro e do imenso entusiasmo que ela
tinha suscitado, as massas em movimento não se sentiram atraídas por
essa perspectiva e se lançaram, efetivamente, ao “assalto ao céu”, acabando
por desembocar numa série de catástrofes, como aquela que sobreveio na
Alemanha. No outro extremo do mundo, entretanto, os cruéis fracassos
da primeira revolução chinesa forçaram o movimento social a construir
outra estratégia. As massas urbanas e o Partido
Comunista, totalmente dizimados nos assaltos
O MOVIMENTO SOCIAL SABE frontais contra o poder, tiveram a inteligência de
QUE DEVE EVITAR A DERROTA pensar em recuar para transformar a derrota em
E GUARDAR SUAS FORÇAS vitória, além de fazer uma releitura da ciência da
E MANTER SEUS ESFORÇOS guerra de classes como a arte da sobrevivência, do
PARA CONSTRUIR UMA NOVA contornar e da paciência. Mais tarde, na década de
HEGEMONIA 1960, a proposta gramsciana ressurgiu, mas logo
foi marginalizada, em virtude da torrente de uma
nova insurreição terceiro-mundista. Atualmente,
impõe-se uma nova exploração do tema. É claro
que a situação mudou bastante. Intuitivamente, o
movimento social sabe que deve evitar a derrota e encontrar uma forma
de guardar suas forças, sua ascendência moral, e manter seus esforços
para construir uma nova hegemonia.

36 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


INVADIR AS TRINCHEIRAS DO ADVERSÁRIO
Hoje, nos confins do planeta, em um país cujo nome a maioria das pessoas
ignora, estão em jogo consideráveis interesses. No Nepal, um movimento
camponês organizado por um partido que se define como maoísta, chegou às
portas do poder. Somente às portas, pois suas lideranças tiveram a inteligên-
cia de perceber que a ruptura está fora de seu alcance, não apenas em bases
estritamente militares, mas em razão da ascensão dos grupos subalternos
(camponeses, minorias étnicas, mulheres) que essa coalizão representa. Ela
precisa negociar politicamente um espaço com uma fração dos dominantes
e uma parte das classes populares urbanas. Os formidáveis avanços do mo-
vimento popular contra os objetivos do imperialismo americano e contra a
hegemonia indiana souberam destituir a ditadura e transformar a correlação
de forças. O movimento dos subalternos, essencialmente composto por
camponeses armados, não se apresenta “na cidade” de “mãos vazias”. Ele
envolve, tanto geográfica quanto politicamente, a cidade, que não é apenas
uma urbanidade, mas também uma cultura, uma relação social e uma
forma de gerir o poder. Ele procura destacar desse espaço classes populares
semiproletarizadas para propor-lhes uma outra utopia. É, evidentemente,
um imenso partido, que pode degringolar em sentido oposto e nada está
antecipadamente assegurado.14

NÃO SER MAIS VÍTIMA


Em outro universo, os subalternos se revoltam contra suas condições de pes-
tilentos em uma África do Sul pós-apartheid ou neo-apartheid. A criminosa
gestão dos dominantes criou uma situação em que mais de 5 milhões de
pessoas foram atingidas pela epidemia do HIV/Aids, que as está matando,
a despeito da existência de ferramentas para interromper o massacre. Po-
rém, em vez de se contentarem com seu papel designado de vítimas, essas
populações se organizaram e desestabilizaram os dominantes. Mais ainda:
com sua corte de movimentos nacionais e locais, eles elaboram o contorno
de um novo movimento popular que objetiva criar, sob o edifício do poder,
fissuras que enfraqueçam consideravelmente o projeto socioliberal no qual
se transformou o African National Congress (ANC).15

A respeito da insurreição nepalesa, convém ler o analista indiano Siddharth Varadarajan. Disponível
14

em: <http://svaradarajan.blogspot.com>. Acesso em: 18 dez. 2006.


15
Ver a experiência do Treatment Action Campaign (TAC).

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 37


UM MILHÃO DE “BATALHAS DA ÁGUA”
Em quase todos os lugares, sob a inspiração das formidáveis mobilizações de
Cochabamba, articulam-se coalizões vencedoras que estão “gripando” a má-
quina neoliberal com grossos e, às vezes, enormes grãos de areia, que impedem
a privatização e a pilhagem do bens comuns. Vimos isso acontecer na França
com a resistência dos jovens e dos sindicalizados contra o projeto chamado de
contrat première embauche (CPE), cujo objetivo era o de “flexibilizar” (dualizar)
o mercado de trabalho. Foi o caso também da greve, bem-sucedida, em 2005,
dos 300 mil estudantes de Quebec contra a mercantilização da educação. Em
todos os lugares, massas inéditas se põem em movimento para recusar suas
condições de excluídos e para pensar em escolhas que possam, a longo prazo,
reconstruir uma alternativa para os vivos. As condições nas quais esses movi-
mentos atuam são extremamente difíceis, principalmente pela hostilidade e pela
violência dos dominantes. Porém, o maior desafio pode não ser esse. Muitos
desses movimentos sociais não querem ser utilizados por projetos que têm por
objetivo, simplesmente, diminuir a miséria. Eles sabem perfeitamente que não
estão prontos, que não têm a capacidade hegemônica de impor um novo curso
de ação. Não se trata, obviamente, de permanecer à margem, de esperar uma
milagrosa contravolta das coisas ou de se manter longe da política definida como
“política suja”. É preciso intervir, mas com discernimento e sem ilusões.

A “LIÇÃO” BOLIVIANA
Ao eleger o movimento ao socialismo (MAS), os camponeses e os povos origi-
nários bolivianos agiram com discernimento, paciência e determinação. Com
relação a esse “partido não-partido”, guardam um afastamento necessário. Assim,
previnem os líderes do novo governo, que permanecerão extremamente vigilantes
e mobilizados. Eles os advertem que qualquer comprometimento acarretará,
inevitavelmente, sua queda. Dizem a esses líderes que estão prontos a propor, a
resistir, a participar de avanços sociais modestos, mas significativos, desde que
não sejam utilizados como buchas de canhão. Diante disso, Evo Morales sabe
que está, na verdade, numa crista de onda. Realisticamente, não podem levar o
projeto do movimento social para além de uma “acomodação razoável”, como
o admite Álvaro Garcia Linera, uma das cabeças pensantes do MAS.16 Então, nas
planícies rurais e nas favelas do altiplano, se permanece paciente, mas alerta.

16
Segundo Linera, “o projeto de transformação que o MAS pretende implantar não pode ser qualificado
nem de comunista, nem de socialista, nem mesmo de comunidades indígenas. Ocorre uma implosão das
economias comunitárias no seio das estruturas familiares, que constituíram a estrutura a partir da qual
surgiram as revoltas sociais. É necessário, nesse contexto, uma espécie de capitalismo andino. Trata-se
de construir um estado forte, que possa articular de forma equilibrada as três plataformas ‘econômico-
produtivas’ que coexistem na Bolívia: a comunitária, a familiar e a ‘moderna-industrial’. A Bolívia continuará
sendo capitalista durante pelo menos 50 ou 100 anos.” Bolivie depuis l’election d’Evo Morales. Entrevue
avec Alvaro García Linera. Points de Repère, Alternatives International, Montreal, p. 16, hiver 2006.

38 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


CONTESTAR O PODER, CONTESTAR A NÓS MESMOS
Essas duras lutas de longo fôlego abrem um horizonte imenso para o movimento
social que tenta navegar em águas turbulentas. Para isso, está em andamento
uma pesquisa para reconfigurar os movimentos e as estruturas que tornam
suas ações possíveis. O fato não é mais segredo nem tabu. Os movimentos de
transformação social reproduzem os códigos e as culturas que se expressam
nas sociedades de onde eles emergem. Como poderia ser diferente? Para nós,
materialistas, o pensamento dos humanos está inscrito no meio ambiente, mas
não determinado por ele. Os humanos fazem sua história num mundo que
eles mesmos criaram, como explicou Marx. A sociedade muda, novas idéias
emergem contra as idéias dominantes. E assim segue a humanidade.

RUPTURAS
Uma linha de pensamento ascendente indica a necessidade de lutar contra
hierarquias que impedem os subalternos de se expressarem. Isso se traduz
de diversas formas na articulação das reivindicações e dos programas, mas
também na sua maneira de ser e de agir. O horizontalismo de muitos mo-
vimentos sociais e, em maior escala, do FSM, poderá parecer excessivo, até
mesmo paralisante, mas geralmente é o meio para quebrar o verticalismo,
o “sim-chefismo” e o “eu-sei-tudismo” que caracterizaram várias gerações
de movimentos. Os movimentos sociais devem se transformar, ainda mais
explicitamente, no centro de gravidade de nossas análises.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 39


TENDÊNCIAS DOMINANTES DA
NOSSA ÉPOCA. NOSSO TEMPO
ESTARÁ SE ESGOTANDO?
EDGARDO LANDER1
Sociólogo, professor da Universidade da Venezuela

Este texto se propõe a fazer uma leitura angustiada sobre as condições com as
quais estamos nos confrontando hoje no planeta, tanto do posto de vista das
condições de sobrevivência da vida, como do ponto de vista das possibilidades
de construção de sociedades democráticas, eqüitativas, culturalmente plurais
e diversificadas, sociedades que vivam em paz orientadas para a celebração da
vida e não para a guerra, a destruição e a morte.

Dentre a multiplicidade de tendências e de processos aos quais se poderia fazer


referência para a caracterização dos tempos atuais serão apenas abordados aqui
cinco processos globais que se retroalimentam, como as principais tendências
que formam o presente e o futuro da humanidade e da vida: As tendências à
destruição das condições que tornam possível a vida no planeta Terra; a cres-
cente mercantilização de todas as dimensões da vida, tanto social como natural;
a guerra permanente e a crescente militarização do planeta; o ocaso histórico
da democracia liberal; e as múltiplas e variadas expressões de resistência e de
re-existência de povos, comunidades, organizações e movimentos que, a partir
da maior pluralidade de experiências históricas e culturais em todo o planeta,
opõem-se a esses processos destrutivos e reivindicam a vida, a democracia e
a diversidade cultural dos povos.

1
Versão parcial da conferência apresentada na Seção Plenária No 4: “Panorama e desafios das ciências
sociais na América Latina e no Caribe” da XXII Assembléia Geral da IV Conferência Latinoamericana
y Caribenha de Ciências Sociais (Clacso), “Heranças, crises e alternativas ao neoliberalismo”, Rio de
Janeiro, 25 de agosto de 2006.
TENDÊNCIAS À DESTRUIÇÃO, A CURTO E A MÉDIO PRAZO, DAS CONDIÇÕES QUE
TORNAM POSSÍVEL A VIDA NO PLANETA
A mais grave de todas as ameaças com as quais a humanidade e a vida no
planeta hoje se defrontam é precisamente a destruição das condições que
tornaram possível a existência da vida. Se não forem detidos os processos
destrutivos acelerados que hoje nos ameaçam, se não houver mais vida, tudo
o mais carece de sentido. As principais ameaças à vida são claramente uma
conseqüência da ação do ser humano, das suas dimensões demográficas,
das suas modalidades de ocupação territorial, dos seus modelos e estilos
tecnológicos, dos seus padrões de consumo, dos seus imaginários e das suas
concepções daquilo que constitui a riqueza e a boa vida.
Já faz algumas décadas, ao soarem os primeiros sinais de alarme global2,
que as tendências à destruição da vida – e que a inviolabilidade dos padrões
atuais de relacionamento dos seres humanos com o resto da natureza – são
cada vez mais conhecidos. Basta ler os principais meio de comunicação
para se dar conta disso. Celebram-se inúmeras conferências e pactos inter-
nacionais. Os estudos ambientais e ecológicos ocupam um espaço cada vez
maior no âmbito acadêmico. Generaliza-se, em todos os países, a criação
de organismos públicos, como os ministérios do meio ambiente e de leis e
regulamentos ambientais. Assim mesmo, os processos de destruição da vida
não apenas não foram freados, mas têm se acelerado cada vez mais.
Há muitas maneiras de conceitualizar e de avaliar e/ou medir o impacto
da atividade humana sobre os sistemas de vida da Terra. Existem níveis sig-
nificativos de incerteza sobre as dimensões assumidas por esses problemas,
gerando continuadas discussões a respeito. O que parece claro, entretanto,
é que, além das polêmicas em torno das conceitualizações e medições, há
alguns lustros que os seres humanos, de forma extremamente desigual, estão
utilizando a capacidade de carga do planeta muito além de suas condições
de regeneração.
Um dos métodos mais conhecidos de avaliação desses impactos é a
utilização da chamada impressão ecológica. Trata-se de uma medida que
registra de forma sintética o impacto humano sobre o planeta, tanto por
meio do consumo de recursos e energia, como pela capacidade de pro-
cessamento de rejeitos que os sistemas naturais possuem. Essa medida é

2
Entre os primeiros textos que contribuíram para dar inicio a esses debates globais a partir das décadas
de 60 e de 70 do século passado, destacam-se: Silent Springs de Rachel Carson (Boston: Houghton
Mifflin Co., Boston, 1962); e o famoso relatório comissionado pelo Clube de Roma, The Limits to Growth,
de Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers y William W. Behrens III, (Universe Books,
Nueva York, 1972).

42 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


expressa em termos da superfície biologicamente produtiva exigida para
fins humanos. Estima-se que o impacto da atividade humana ultrapassou a
biocapacidade global do planeta na década de 1980, e não cessou de crescer
desde então. Entre 1960 e 2001, a impressão ecológica global cresceu em
160%. De acordo com esses cálculos, no ano 2001 a impressão ecológica
global já superava a biocapacidade do planeta em cerca de 21%.3 O índice
do planeta vivente é um calculo do estado da sua biodiversidade que mede
a densidade das populações das espécies vertebradas que vivem em zonas
terrestres, na água doce e nos sistemas marinhos. Estima-se que esse índice
reduziu-se aproximadamente 40% entre 1970 e 2000.4
Não se trata, entretanto, de uma responsabilidade abstrata “da huma-
nidade”. Essas condições de sobre-utilização da capacidade de carga do
planeta se dão numa situação de profundas e crescentes desigualdades no
acesso aos bens que tornam possível a vida humana. Centenas de milhões
de pessoas, sobretudo no Sul, mas não unicamente nele, carecem dos bens
necessários para viver dignamente.
Os habitantes dos países do Norte têm uma impressão ecológica
quatro vezes maior do que os habitantes dos países do Sul. Enquanto a
população dos países que não pertencem à OCDE está vivendo apenas
no limite da capacidade produtiva biológica dos territórios ocupados por
seus respectivos países, o conjunto dos países da OCDE está utilizando
mais que dobro da capacidade produtiva biológica dos territórios que
ocupam.5 Isso quer dizer que seus níveis de consumo são mais que o do-
bro dos níveis de consumo sustentáveis. Para isso, utilizam grande parte
da capacidade produtiva biológica que caberia aos habitantes dos países
que não pertencem à OCDE, isto é, da maioria das populações do Sul.
De acordo com esses cálculos, 100% do excesso de impressão ecológica
atual da humanidade (relativamente à capacidade produtiva biológica da
Terra) é produzida pelos países da OCDE. Assim, por exemplo, enquanto
a população africana utiliza apenas 77% da capacidade produtiva ecoló-
gica do território que ocupa, na Europa Ocidental a impressão ecológica
ultrapassa em 53% a capacidade produtiva ecológica disponível no seu
território. Esse número é de 55% nos Estados Unidos, apesar da densidade

3
WWF, The UNEP World Conservation Monitoring Centre, Global Footprint Network, Living Planet Report
2004, Gland, Suíça, 2004, p.10. [http://assets.panda.org/downloads/lpr2004.pdf].
4
Op. cit., p. 2.
5
World Wide Fund International, The UNEP World Conservation Motinoring Centre, Redefining Progress,
The Centre for Sustainable Development e Norwegian School of Management, Living Planet Report
2000. Table 2. Ecological Footprint Data: 1996., p. 24.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 43


populacional relativamente baixa desse país, da imensa extensão de seu
território, e da extraordinária dotação de recursos naturais com os quais
esse país conta.6
Isto significa que, com a deterioração da capacidade produtiva biológica
dessas regiões, apela-se para proporções cada vez maiores da capacidade
produtiva biológica do resto do planeta. Dada a crescente preocupação
ambiental dos habitantes dos países do Norte e à incorporação do ambiente
como critério de qualidade de vida nas últimas décadas (e dadas as profundas
desigualdades na distribuição do poder, existente entre os países do Norte e
do Sul), o crescimento da impressão ecológica dos países do Norte não pro-
vocou uma deterioração significativa de seus ecossistemas entre os anos de
1970 e 1999.7 A maior parte da deterioração dessas três décadas tem ocorrido
nos ecossistemas do Sul. Isto significa que o aumento sustentado dos níveis
de consumo dos habitantes dos países do Norte é diretamente responsável
por essa deterioração, pela via de níveis de vida muito mais elevados do
que o nível que seus próprios recursos naturais lhe permitiriam sustentar.
Isso quer dizer que os padrões de consumo dos países do Norte (situados
normalmente nas zonas temperadas) são os principais responsáveis pelas
perdas em riquezas naturais que estão ocorrendo nas zonas tropicais e nas
zonas temperadas do Sul.8
A partir do momento em que a atividade humana ultrapassa a capa-
cidade produtiva biológica do planeta, as relações entre as populações,
com relação ao uso que elas fazem da capacidade produtiva ecológica da
Terra, passam a operar dentro de um jogo de soma-zero. Nessas condi-
ções, enquanto os ricos do planeta (independentemente de onde vivam,
no Norte ou no Sul), continuarem a aumentar seus níveis de consumo (e
sua impressão ecológica), estarão se apropriando de proporções crescentes
da capacidade produtiva ecológica que caberia aos habitantes excluídos.
A partir dessas condições de jogo de soma-zero, quanto mais ricos forem
os habitantes do Norte, quanto menos, necessariamente, as maiorias do
Sul terão acesso aos bens da vida. Mas a despeito das possíveis inovações
tecnológicas que possam melhorar de forma acelerada e radical a efici-
ência no uso dos recursos e energia e venham a reduzir drasticamente a

6
Op. cit. p. 27.
7
Op. cit. p. 1.
8
Op. cit. p. 1. O consumo de recursos e de capacidade de carga do planeta é, entretanto, profundamente
desigual, tanto no Norte como no Sul. As cifras correspondentes a essas definições territoriais, em
razão de tratar-se de porcentagens, apresentam como homogêneas o que são, na verdade, profundas
desigualdades no interior de cada território. Essas cifras, portanto ocultam as dimensões significativas
da desigualdade que existem no acesso aos recursos da natureza.

44 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


produção de rejeitos – tecnologias essas que não estão à vista –, esse jogo
de soma-zero levará também ao consumo dos recursos e da capacidade de
carga que caberiam às futuras gerações (humanas e não-humanas). Isso é
evidentemente, insustentável.
O assunto, que talvez recebe a maior atenção – e o reconhecimento da
urgência implicada – nos debates sobre as transformações dos sistemas que
sustentam a vida, é o das mudanças climáticas. Aqui se torna indispensável
fazer referência a algumas pesquisas recentes que ilustram dramaticamente
a gravidade das mudanças em curso e apontam para a necessidade urgente
de transformações profundas nos padrões e imaginários da vida humana.
O que parece estar além de qualquer dúvida é que a ação humana é a maior
responsável pelo maior parte do aquecimento global ocorrido durante o
último meio século, bem como pela continuação projetada dessas tendên-
cias. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática:
“há novas e maiores evidências de que a maior parte do aquecimento global
observado durante os últimos 50 anos é atribuível à atividades humanas”.9
Hoje em dia, só os lobbies e os cientistas assalariados de algumas trans-
nacionais do petróleo, como a Exxon-Mobil, os “think tanks” da direita
estadunidense (defensores fundamentalistas de um mercado livre de toda
regulamentação), e o governo Bush negam a responsabilidade humana nas
mudanças climáticas.10
Desde o início da revolução industrial, a concentração de dióxido de
carbono na atmosfera aumentou em 35%. A temperatura média global
aumentou em 0,6 graus centígrados. Segundo cálculos da Agência Mete-
orológica Mundial das Nações Unidas, o período de 1990 a 2004 foi um
dos mais quentes desde que se começou a manter registros confiáveis, em
1861.11 E a temperatura continua a aumentar. De acordo com a Nasa, o ano
de 2005 foi o mais quente sobre a superfície da Terra desde que se conta
com registros fidedignos.12 O Painel Intergovernamental sobre a Mudança
Climática considera provável que, como conseqüência da continuidade da
concentração de gases de efeito estufa, ocorra um aumento da temperatura
média da superfície do planeta “ de 1,4ºC - 5,8ºC no período entre 1990 a 2100.

9
WMO, UNEP, Intergovernmental Panel on Climate Change, Climate Change 2001: Working Group I:
The Scientific Basis [http://www.grida.no/climate/ipcc_tar/wg1/007.htm]
10
Para um olhar crítico sobre essas atitudes, ver: ClimateScienceWatch, Promoting integrity in the use
of climate science in government. Global Warming Denial Machine, [http://www.climatesciencewatch.
org/index.php/csw/C25/]
11
Kevin Gray, “2004 Among the Hottest Years on Record” Associated Press, Buenos Aires, 16 de
dezembro de 2004.
12
Timothy Gardner, “Undersea gas could speed global warming - study”, Reuters, 20 de julio, 2006.[http://
today.reuters.com/news/newsarticle.aspx?type=scienceNews&storyid=2006-07-20T192854Z_01_
N19270382_RTRUKOC_0_US-ENVIRONMENT-METHANE-SEAS.xml&src=rss]

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 45


Essa quantidade é de 2 a 10 vezes superior ao valor central do aquecimento
observado durante o século XX, e é muito provável que a velocidade esti-
mada do aquecimento não tenha tido precedentes durante, pelo menos, os
últimos 10.000 anos”.13 A tendência não é somente de ocorrerem tempera-
turas médias mais elevadas, mas também a de que ondas de calor, como as
que produziram na Europa mil mortes nos últimos anos, ocorram de forma
cada vez mais freqüente.14
O primeiro estudo sistemático das alterações que se manifestam em
toda a região do Ártico caracterizou tendências a transformações do clima
global ainda mais aceleradas e graves do que aquelas que foram previstas
até o momento.15 De acordo com as conclusões desse volumoso estudo, na
região do Ártico a temperatura aumentou a um ritmo quase duas vezes
maior do que no resto do planeta. Estima-se que a temperatura média da
região aumente entre 4oC e 7oC durante os próximos 100 anos.16 No Alaska
e no Canadá Ocidental, a temperatura média aumentou entre 3 e 4 graus
nos últimos 50 anos.17 As superfícies cobertas por neve, as geleiras e os gelos
marinhos, se reduziram de forma significativa durante as últimas décadas
como conseqüência desses aumentos de temperatura. Durante os últimos 30
anos, a área coberta por gelo marinho se reduziu em aproximadamente 8%.
A redução no verão foi ainda maior, de 10% a 15%, atingindo, em algumas
áreas, cerca de 40% entre 1960 e 1990.18 Dependendo das hipóteses assu-
midas – especialmente no que diz respeito aos níveis de emissões futuras de
gases de efeito estufa – estima-se que daqui até o fim do século sobrevenha
um desaparecimento de 50% a 100% da calota polar ártica.19
A cobertura de neve reduziu-se de 10% na região ártica nos últimos 30
anos. Estima-se que ela encolha mais 10% a 20% até o ano 2070.20 A superfície
das geleiras que se derretem no verão aumentou em 16%, na Groelândia,

13
United Nations Environmental Program (Unep) e World Meteorological Organization (WMO), Grupo
Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC), Mudança Climática 2001: Re-
latório Síntese. Resumo para os Responsáveis de Políticas, Wembley, Reino Unido, setembro de 2001.
[http://www.grida.no/climate/ipcc_tar/vol4/spanish/009.htm]
14
Kovats, R Sari y otros, “Climate change and human health in Europe”, British Medical Journal, no.
318, pp.1682-1685, 19 de junho 1999.
15
Susan Joy Hassol, Impacts of a Warming Arctic, Arctic Climate Impact Assessment, Cambridge
University Press, Cambridge, 2004. Este é o primeiro estudo compreensivo de avaliação global do
impacto das mudanças climáticas no Ártico, e suas conseqüências planetárias. Centenas de cientistas
de todos os países que circundam o Ártico (Canadá, Finlândia, Rússia, Estados Unidos, Noruega, Reino
Unido, Suécia, Islândia) trabalharam durante quatro anos, contando também com a participação das
comunidades locais.
16
Op. cit., p. 9.
17
Op. cit., p. 22.
18
Op. cit., p. 25.
19
Op. cit., p. 30.
20
Op. cit., p. 12.

46 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


de 1979 até hoje.21 Paralelamente, está ocorrendo, também, o descongela-
mento de vastas extensões de tundra. Tudo isto aumenta a descarga de água
doce, aumentando o nível do Oceano Ártico e diminuindo sua salinidade.
Estima-se que todas as geleiras do Ártico, e as mais importantes são as que
cobrem a Groenlândia, contém água em volume suficiente para elevar o
nível de todos os oceanos em cerca de 8 metros22 aos quais iria se agregar
o aumento dos níveis do mar atribuíveis ao aumento do volume da água
como conseqüência da elevação da temperatura.
Além das traumáticas conseqüências regionais que essas transformações
aceleradas estão produzindo sobre a vida dos seres humanos e as espécies
de animais e plantas que ocupam esses territórios, são previsíveis grandes
impactos produzidos por essas mudanças sobre o clima global. Segundo os
autores desse estudo, a maior parte dos modelos de mudanças climáticas
se baseiam na suposição de um aumento progressivo da temperatura. Mas
existe a possibilidade de que a mudança climática gradual possa – depois de
determinado ponto de inflexão não conhecido, e portanto não-previsível – de-
sencadear uma dinâmica de mudança climática em padrão não-linear.23
Essa possibilidade de mudanças abruptas, não previstas, torna-se mais
previsível, tanto pela evidência de que mudanças climáticas anteriores na
região verificaram-se em curtos períodos de tempo,24 como também pelos
efeitos retroalimentadores potenciais que as mudanças na região do Ártico
podem produzir nos sistemas climáticos globais. Três potentes mecanismos
que podem exercer uma ação nesse sentido são descritos nesse relatório.
Em primeiro lugar, em conseqüência do descongelamento das calotas
polares, das geleiras e das superfícies cobertas de neve, produz-se uma
redução da superfície terrestre responsável pela reflexão e pela devolução
à atmosfera de uma proporção significativa da luz solar. Tanto os mares
como a terra sem cobertura de neve absorvem mais calor, contribuindo,
dessa forma, para acelerar a elevação da temperatura.25
Em segundo lugar, podem manifestar-se alterações nas correntes
marinhas que desempenham um papel vital na regulação dos sistemas
climáticos globais. As diferenças de temperatura e de salinidade entre as
águas da zona tropical e as da zona temperada é a responsável pelas cor-
rentes que regulam as temperaturas do Atlântico Norte e que levam chuva
e moderam os invernos da Europa Ocidental. Esse processo depende de um

22
Op. cit., p. 40.
23
Op. cit., p. 32.
24
Susan Joy Hassol, op. cit., p. 33.
25
Op. cit., p. 36.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 47


delicado equilíbrio que poderia se interromper se as temperaturas do Ártico
se elevarem ou se sua salinidade diminuir. Em terceiro lugar, na medida
em que os aumentos de temperatura descongelem milhões de quilômetros
quadrados de superfície da tundra, uma grande parte da matéria orgânica
presa no permafrost seria libertada. As conseqüentes emissões de metano
e de dióxido de carbono poderiam acelerar os aumentos de temperatura
produzidos por gases de efeito estufa.26
Existem outros processos com efeitos potencialmente realimentadores que
podem acelerar a mudança climática global e levar a rupturas abruptas com
transformações lineares. Foi amplamente comentada, nesse sentido, o papel das
florestas na regulação do clima, dos ciclos hídricos e na absorção dos gases de
efeito estufa. A redução da superfície coberta por florestas, sobretudo a floresta
tropical, avança de forma sustentada tanto como resultado da ação humana
voluntária – como a expansão da fronteira agrícola da soja transgênica na
Amazônia brasileira27 – quanto como resultado dos incêndios florestais, cada
vez mais freqüentes em razão das secas e da elevação da temperatura. Assim, a
cada vez que se aumenta a emissão global de gases de efeito estufa, reduz-se a
capacidade das florestas para contrabalançar parcialmente seus efeitos.
Existe um consenso crescente sobre a probabilidade de que essas al-
terações abruptas, não-lineares ocorram. Segundo o relatório do Painel
Intergovernamental sobre a Mudança Climática:

As simulações indicam que a crescente concentração atmosférica de


gases de efeito estufa trará como resultado mudanças na freqüência, na
intensidade e na duração de fenômenos extremos... Muitas dessas mu-
danças estimadas poderiam provocar o risco de inundações e secas em
muitas regiões, além de impactos predominante adversos nos sistemas
ecológicos, nos setores econômicos e à saúde humana.
Algumas das mudanças repentinas e não lineares nos sistemas físicos e
nas fontes naturais e poços de gases de efeito estufa, poderiam ser irrever-
síveis, mas não se conhecem totalmente alguns dos processos subjacentes.28

26
Op. cit., p. 38; Janet Wilson, “Global Warming Threat Is Seen in Siberian Thaw”, Los Angeles Times,
Los Angeles, 16 de junho de 2006. E também, extraordinários volumes de metano, cujo efeito estufa é
muito superior ao do dióxido de carbono, poderiam ser liberados na atmosfera como conseqüência do
impacto do aquecimento do mar sobre os imensos depósitos de hidratos de metano existente no fundo
dos oceanos.Ver: Timothy Gardner, “Undersea gas could speed global warming - study”, Reuters, 20 de
julho, de 2006.[http://today.reuters.com/news/newsarticle.aspx?type=scienceNews&storyid=2006-07-
20T192854Z_01_N19270382_RTRUKOC_0_US-ENVIRONMENT-METHANE-SEAS.xml&src=rss]
Daniel Howden, “Huge soya farms financed by Cargill, the largest privately owned company in the
27

world, are the rainforest’s new worst enemy”, The Independent, Londres, 17 de julio, 2006.
28
UNEP. WMD, Intergovernamental Panel on Climate Change, Mudanças climáticas 2001: Relatório
Síntese. Resumo para os Responsáveis de Políticas. (Pergunta quatro). [http://www.grida.no/climate/
ipcc_tar/vol4/spanish/010.htm]

48 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


Vários estudos recentes mostraram que o aumento da intensidade
dos furacões que ocorreram nos últimos anos é o resultado da elevação da
temperatura do Oceano Atlântico causada pela ação humana.29 Porta-vozes
do Pentágono advertiram que as mudanças climáticas abruptas represen-
tam uma severa ameaça à segurança mundial e poderiam levar a guerras,
conflitos nucleares, secas, fome e outros desastres.30
Os impactos das mudanças climáticas recairão de forma desproporcio-
nal sobre os países do Sul e as populações mais desfavorecidas de todos os
países, o que continuará a avultar as desigualdades em matéria de saúde e
acesso a alimentos adequados, água limpa e outros bens. A população dos
países do Sul se encontra mais propensas a sofrer os impactos adversos
produzidos pelas mudanças climáticas. Como demonstraram os furacões
que afetaram a América Central e o Caribe nos últimos anos, inclusive o
Katrina que destruiu a cidade de Nova Orleans, em 2005, tanto a possibi-
lidade de tomar medidas preventivas quanto à capacidade de recuperação
após eventos climáticos extremos é quanto menor, como a população em
questão for mais pobre e excluída, e quanto menos poder político ela tem.
Além disso, “na maioria das zonas tropicais e subtropicais, estima-se que o
rendimento das colheitas venha a diminuir com a maioria dos aumentos
previstos de temperatura”.31
São muitos os processos destrutivos que hoje ameaçam a sobrevivência
da vida no planeta. Está em curso uma acelerada redução da diversidade
genética, processo esse que poderá levar em muitas áreas a colapsos dos
sistemas ecológicos. A vida marinha tem sido super-explorada, chegando-se
a situações em que grandes extensões oceânicas se encontram praticamente
sem vida orgânica. Os volumes de muitas das principais variedades de peixes
comestíveis reduziram-se de forma extremamente drástica. As fontes de
água doce estão sendo exploradas além de sua capacidade de reposição, e
estão sendo também contaminadas. Tende a diminuir a disponibilidade
de terra agrícola como resultado da super-exploração e da contaminação
com agroquímicos.
Pode-se afirmar, a partir desse diagnóstico sombrio, que não existe,
para a humanidade de hoje, questão mais premente. E que fora das decla-
rações genéricas, esse é um problema que deve ocupar o primeiro lugar em
todas as agendas nacionais e internacionais e que deve constituir a parte
expressa, principal, de todo debate e de toda política pública, assim como

United nations Environment Programme, Geo-Yearbook 2004-2005. An Overview of our Changing


30

Environment, Nairobi, 2005, p. 3.


31
Idem.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 49


da produção de conhecimento na academia. Evidentemente isto não está
ocorrendo. As políticas públicas dos modelos produtivos da quase totalidade
dos países do planeta continuam avançando numa espécie de sonambulismo
irresponsável, como se bastasse ignorar esses assuntos para que eles desa-
parecessem por si só. Há mais de 30 anos que existem informações globais
sobre as conseqüências previsíveis das mudanças climáticas. Os limites do
planeta já foram reconhecidos e poderia se esperar que algumas medidas já
tivessem sido tomadas, e que houvesse alguma indicação de que os acordos
internacionais e as conferências sobre o clima tivessem algum impacto. Na
realidade, é muito difícil saber se esses esforços chegaram a, pelo menos,
diminuir o ritmo de aumento dos fatores destrutivos.
As decisões que estão sendo tomadas no presente, longe de frear, estão,
na verdade, acentuando essas tendências destruidoras. O modelo de desen-
volvimento chinês, neste aspecto, é ilustrativo. Quando, há poucos anos, o
governo chinês deu impulso ao seu atual modelo de desenvolvimento capita-
lista (neoliberal), ele se encontrava numa situação na qual ainda era possível
definir um modelo de transporte alternativo ao do automóvel individual.
Entretanto, assumindo o modelo de consumo dos Estados Unidos como
um padrão a ser imitado, optou-se pela cultura do automóvel. Com taxas de
crescimento sustentadas de cerca de 10% durante as últimas duas décadas,
o mercado interno de automóveis na China passou de 220 mil em 1999 a
2 milhões em 2003, com um aumento de vendas de 69% no ano 2003. Se
essa tendência continuar, o país terá 30 milhões de automóveis em 2010 e
mais automóveis do que os Estados Unidos no ano de 2030. Estima-se que
40% do aumento da demanda global de petróleo entre os anos 2000 e 2004
ocorreu na China. Para que se tenha uma média, como nos Estados Unidos,
de dois carros por família, serão necessários 600 milhões de automóveis,
mais do que o total existente em todo o planeta.32
A continuidade da vida no planeta só será possível se se houver uma
radical distribuição do acesso aos recursos do planeta, o que exigiria uma
profunda e fundamental redução dos padrões de consumo energético e de
recursos por parte das minorias ricas da Terra. Passaria também por uma
transformação cultural igualmente radical nos imaginários – e modos de
produção do conhecimento – no que diz respeito à riqueza e à boa vida. Do
contrário, avançaremos de modo aparentemente inexorável para crises am-
bientais cada vez mais profundas, com afetações profundamente desiguais.
Enquanto que as populações que não têm acesso a recursos ou que tenham

32
Newsday “Editorial: 1.3 Billion Reasons to Worry about Oil”, Domingo, 15 de agosto, de 2004.

50 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


sido vítimas dos maiores desastres naturais procurarão se deslocar para lugares
onde tenham maiores chances de sobrevivência, a reação dos privilegiados será
um aumento do racismo, das barreiras antimigratórias, e das guerras.
Um dos cenários (ou pesadelo) para os quais a falta de ação imediata
poderá levar, é aquele no qual – uma vez reconhecidas as ameaças reais
à sobrevivência – os mais poderosos, frente ao crescimento demográfico
e ao consumo “irresponsável” da população, criem um Estado global de
autoritarismo ambiental, um big brother, para salvar a vida no planeta. Esse
Estado autoritário-tecnológico regularia, supervisionaria e controlaria de
tal modo as ameaças destruidoras representadas pela ação humana, que a
vida, nessas condições, deixaria de ser propriamente vida.

TENDÊNCIAS À MERCANTILIZAÇÃO RADICAL DE


TODAS OS ÂMBITOS DA VIDA
Faz parte da lógica do regime capitalista a tendên-
cia inexorável e expansiva à incorporação cada vez
maior de territórios, mercados, recursos naturais,
capacidade de trabalho e conhecimentos às suas
exigências de acumulação. Em toda a história do
capitalismo, ocorreram discussões e debates liga-
dos aos processos de apropriação e privatização
daquilo que, em diferentes contextos têm sido
considerados como bens comuns. As tendências A CONTINUIDADE DA
à mercantilização de tudo não constitui, de modo VIDA NO PLANETA SÓ
algum, uma novidade histórica. Entretanto, após SERÁ POSSÍVEL SE SE
cinco séculos de expansão global do capitalismo, FIZER UMA RADICAL
parcelas significativas das atividades humanas e DISTRIBUIÇÃO
das condições que tornam possível a vida na Terra DO ACESSO AOS
não se encontram ainda plenamente submetidas à RECURSOS
lógica do capital. As tendências à mercantilização
têm encontrado limites e obstáculos das mais
diversas espécies. Os bens comuns são valorizados
e defendidos por comunidades, povos e movimen-
tos em todo o planeta.
O que constitui hoje uma novidade histórica,
o que define um novo momento na expansão
do capital, são as formas pelas quais ele procura
superar esses limites e vencer as múltiplas e
simultâneas confrontações de âmbito global

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 51


relativamente a eles. É possível destacar, grosso e à mercantilização desses interesses que impul-
modo, quatro tipos de obstáculos históricos à sionam a agenda neoliberal. As transformações
apropriação/mercantilização de modos de vida, ocorridas nas últimas décadas têm sido muito
saberes e recursos: geopolíticos, democráticos, radicais. Tem havido um cerceamento radical
tecnológicos e ideológicos /culturais/comunica- daquilo que é público, e os direitos têm sido
cionais. Em torno de cada um desses obstáculos, transformados em mercadorias. Do acesso aos
a lógica da mercantilização que a acompanha a bens e serviços como um direito, uma exigência
expansão do capital procura destruir as barreiras coletiva, política na esfera pública, passa-se a uma
ao seu avanço e está gerando com isso novos relação contratual privada entre uma empresa e
âmbitos de confrontação civilizatórios contra um cliente que só tem acesso ao bem ou ao ser-
aqueles que resistem. viço na medida em que ele tenha a capacidade de
Limites geopolíticos – referem-se aos territó- pagá-lo. Essa agenda tem sido imposta mediante o
rios, recursos e populações que, de alguma forma, dispositivo político da dívida externa, as políticas
têm estado à margem das possibilidades de apro- de ajustes estruturais e as privatizações. A trans-
priação por razões geopolíticas. Historicamente, formação do papel do Estado e a consolidação
esses limites eram representados principalmente dessas reformas como normas de cumprimento
por territórios não-colonizados ou não-submeti- obrigatório foram sendo estabelecidos por meio
dos ao domínio imperial. No século XX, o limite dos tratados chamados “comerciais”, pela via da
geopolítico mais importante foi a existência do Organização Mundial do Comércio, e dos TLCs,
bloco socialista. Com o colapso do socialismo que vêm construindo uma nova ordem consti-
soviético e a guinada capitalista da China, esses tucional global.
limites ficaram cada vez menores. A incorporação Limites tecnológicos e/ou de custos – refe-
da maioria dos países à OMC é uma prova cabal rem-se aos limites encontrados pelo processo de
do ponto que esse processo atingiu. mercantilização, em razão da tecnologia dispo-
Limite democráticos – esses obstáculos são nível. Não é possível converter um determinado
a conseqüência das múltiplas formas pelas quais bem em mercadoria, ou só é possível fazê-lo a
as lutas populares em diferentes partes do mundo um custo demasiadamente alto para ser rentável.
conseguiram conquistar direitos que impuseram Característicos desses limites são os recursos na-
limites à submissão de todos os processos da vida turais pouco acessíveis e com elevados custos de
à lógica do capital. Esse âmbito se refere funda- produção ou transporte até os mercados, como é
mentalmente à existência de uma esfera pública, o caso dos depósitos de hidrocarbonetos não con-
aos direitos econômicos e sociais, (educação, vencionais – areias betuminosas, petróleo pesado,
saúde, seguridade social, água etc) que, graças às jazidas em mar alto ou a grandes profundidades
conquistas das lutas democráticas, têm operado – os depósitos de minerais em regiões pouco aces-
com critérios políticos, e não formam diretamente síveis, etc. A progressiva superação tecnológica
parte dos processos de valorização do capital. atual desses limites pode ser hoje constatada na
Hoje, uma das principais áreas da luta po- exploração de petróleo a grandes profundidades,
lítica global é a defesa da esfera pública e área em mar aberto, na selva amazônica ou nas areias
dos direitos contra as tendências à privatização betuminosas do Canadá.

52 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


A água vai se convertendo em mercadoria não diversidade genética, numa vasta pluralidade de
só em razão de sua escassez, mas pela criação de ca- contextos ecológicos, com uma extrema variedade
pacidades tecnológicas que tornam isso possível. de modalidades e técnicas de cultivo, utilizando
A busca para ultrapassar esses limites envol- experiências e conhecimentos também variados,
ve, de maneira ainda mais fundamental, os pro- e com uma produção destinada principalmente ao
cessos científico-tecnológicos de manipulação e autoconsumo e aos mercados locais e/ou regionais
apropriação da vida e da matéria (biotecnologia, – constitui um grande obstáculo para que seja
nanotecnologia e as combinações dessas ciências apropriada ao processo de valorização das grandes
com a informática e a observação por satélite) empresas e seja subordinada a elas. A transforma-
por meio dos quais foram realizados passos ção da agricultura campesina e a dos produtores
colossais em direção ao controle das capacida- independentes numa atividade submetida ao
des geradoras da vida visando a sua conversão controle e à valorização do capital requer uma
em mercadoria. Esse processo é acompanhado uniformidade genética e a padronização dos pa-
por ações de biopirataria e outras modalidades drões de produção. Exigiria a repetição da exitosa
de apropriação dos conhecimentos de povos (para o capital) experiência histórica da chamada
indígenas e camponeses de todo o planeta para organização científica do trabalho,34 e a realização
transformá-los também em mercadoria. de um processo sistemático de apropriação/valori-
A atividade agrícola representa hoje a prin- zação do conhecimento dos camponeses e demais
cipal fronteira de expansão da lógica mercantil produtores independentes, e sua substituição por
em todo o planeta. De acordo com a Organi- um conhecimento científico-tecnológico contro-
zação das Nações Unidas para a Agricultura e lado pelas empresas da agroindústria.
a Alimentação (FAO), aproximadamente 60% Para atingir esse objetivo ambicioso, a agroin-
da terra cultivável do planeta é cultivada por dústria dispõe de dois instrumentos paralelos: o
camponeses tradicionais ou de subsistência, primeiro de natureza científico-tecnológica e o
majoritariamente mulheres (FAO, 1998). Essa segundo de caráter jurídico. Os novos desenvol-
agricultura é assumida como um modo de vida e vimentos da biotecnologia que tornam possível
não fundamentalmente como uma atividade eco- a manipulação genética para a criação de novas
nômica dirigida para a produção de mercadorias. variedades padronizadas de sementes com algu-
A diversidade genética das plantas presentes nas mas características específicas consideradas como
fazendas, campos e florestas do Sul, tem estado, valiosas, buscam substituir a imensa diversidade
tradicionalmente disponível a todos,33 pois é genética (não controlável nem comercializável)
concebida como um bem comum. por umas poucas variedades. Os instrumentos
A atividade agrícola, desempenhada por jurídicos da defesa da propriedade industrial
centenas de milhões de camponeses e produ- permitem patentear essas novas variedades e in-
tores independentes – com uma extraordinária corporá-las aos pacotes tecnológicos orientados

33
FAO, Food and Agricultural Organization of the United Nations Sustainable Development Department (SD) 1998 “Special: Biodiversity for
Food and Agriculture”, SD Dimensions, fevereiro. [http://www.fao.org/WAICENT/FAOINFO/SUSTDEV/EPdirect/EPre0040.htm]
34
Taylor, Frederick W. 1971 Principios de la administración científica del trabajo (México: Herrera y Hermanos, Sucs., S.A.).

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 53


para a ampliação do controle por parte das em-
presas agroindustriais, com a conseqüente perda
de autonomia dos produtores. Vai ocorrendo,
dessa forma, um deslocamento do conhecimento
dos camponeses e dos produtores diretos, co-
nhecimento que responde à particularidades dos
diferentes contextos ecológicos e culturais (tipo de
solo, regime de chuvas, modalidades produtivas
etc) e à diversidade genética de seus cultivos, por
umas poucas ou apenas uma variedade genética
e pelas normas padronizadas estabelecidas pelas
empresas onde as sementes são compradas. Isto
representa uma ameaça de morte para a vida
agrícola-camponesa do planeta.
Limites culturais/ideológicos e comunica-
cionais – esses limites dizem respeito a uma gama
de áreas. Um deles, estreitamente ligado às mu-
danças tecnológicas, e extraordinariamente signi-
ficativo nas últimas décadas, refere-se ao campo
dos meios de comunicação social e à crescente
expansão planetária desses meios. A globalização
da comunicação através da televisão por satélite
converteu-se em um poderoso instrumento de
divulgação da expectativa de acesso universal ao
padrão de consumo representado pela imagem
que o cinema e a televisão dos Estados Unidos
A GLOBALIZAÇÃO DA difundem de sua civilização.
COMUNICAÇÃO ATRAVÉS DA Um aspecto relativamente recente e particu-
TELEVISÃO POR SATÉLITE larmente significativo dos processos de expansão
CONVERTEU-SE EM UM da lógica mercantil em áreas nas quais, há poucas
PODEROSO INSTRUMENTO DE décadas, não se considerava adequado fazê-lo, é
DIVULGAÇÃO DA EXPECTATIVA o processo acelerado de submissão da pesquisa
DE ACESSO UNIVERSAL AO científica e tecnológica, de uma forma cada vez
PADRÃO DE CONSUMO mais direta, às exigências da valorização do
capital. Está se operando aqui uma profunda
transformação cultural que está transformando
e resignificando as concepções anteriores sobre a
ciência e a universidade. Isto se dá com um maior
vigor nas disciplinas associadas à biotecnologia

54 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


e à biomedicina.35 Esses deslocamentos culturais do controle sobre o financiamento, – estão defi-
estão deixando par trás, de forma acelerada, nindo, de modo crescente, as agendas da pesquisa,
o ethos da ciência e da academia tal como este a seleção de especialidades por parte dos novos
aparece no modelo idealizado descrito por Robert alunos, o regime de remuneração e de premiação
Merton. Segundo essa formulação clássica do do pessoal docente, as modalidades da divulgação
ethos da ciência como instituição da sociedade e de utilização dos resultados das pesquisas e, de
liberal moderna, a atividade científica se carac- modo geral, a cultura acadêmica por inteiro. Se
terizaria pelo atendimento às seguintes prescri- é verdade que é nas universidades dos Estados
ções normativas: universalismo (supõe que o Unidos que essa submissão da ciência, da tec-
conhecimento científico transcende as culturas nologia e da academia às exigências diretas do
particulares); comunalismo (o conhecimento processo de valorização do capital está numa
científico é fruto de um esforço compartilhado e etapa mais avançada, constata-se, entretanto,
não pode ser apropriado, mas sim tratado como que as universidades do resto do mundo estão
um conhecimento público), e é um saber desin- caminhando hoje na mesma direção.
teressado (na busca do conhecimento científico Cada uma dessas tendências à mercantili-
e investigador, não se deve buscar o proveito zação, como se verá mais adiante, gera áreas de
próprio, e sim se orientar pela busca da verdade embates, resistências e confrontações sociais que
e do bem comum).36 As exigências imediatas de podem ser propriamente caracterizadas como
valorização do capital, por meio, principalmente combates de uma guerra civilizatória total.

Ver: Edgardo Lander, “La ciencia neoliberal”, en Ana Esther Ceceña, Los desafíos de las emancipaciones en un contexto militarizado,
35

CLACSO, Buenos Aires, 2006.


Krimsky, Sheldon 2003 Science and the Private Interest. Has The Lure Of Profits Corrupted Biomedical Research?, Rowman & Littlefield
36

Publisher, Inc., Lanham, 2003:, pp., 76-77.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 55


OCASO DA DEMOCRACIA LIBERAL
A democracia liberal – como construção de uma sociedade de cidadania
universal, com o reconhecimento da igualdade de direitos políticos, com
a conquista de crescentes direitos econômicos e sociais, que tornaram
possível uma redução tendencial das profundas diferenças sociais caracte-
rísticas da sociedade capitalista – tem sido historicamente uma experiência
excepcional, concentrada em alguns poucos países centrais do mundo.
Este não foi o caso na maior parte do Sul, do mundo ex-colonial. Hoje,
no momento em que os centros do poder celebram a universalização
desse modelo de democracia, este último se encontra globalmente em
franco processo de esgotamento ou de reversão, inclusive nos poucos
países nos quais a construção de experiências históricas de democracias
liberais mais avançou: a Europa Ocidental e os Estados Unidos. A ordem
global de mercantilização – a crescente prioridade dos direitos do capi-
tal sobre os direitos das pessoas – e a militarização que caracterizam a
globalização neoliberal estão minando as condições de viabilidade desse
regime político.
Na União Européia, cuja experiência do Estado de bem-estar social nas
décadas do pós-guerra representou o grau máximo de democratização
da sociedade sob o regime liberal, esse modelo de Estado se encontra em
franco retrocesso. O debate político no interior da União Européia não gira
hoje em torno de opções sociais básicas (modelos alternativos da sociedade
que se quer), ou em torno de novas conquistas democráticas. Os debates se
centram sobre a velocidade com a qual irão erodir-se as conquistas sociais
e políticas do Estado, da época de ouro do Estado do bem-estar-social, para
melhor adaptar-se – competir – nas condições criadas pela globalização
neoliberal. A Constituição da União Européia busca consolidar, constitu-
cionalizar, e, por essa via, tornar irreversíveis as reformas neoliberais das
últimas décadas. Isto explica a recusa dessa Constituição nos referendos
realizados na França e nos países-baixos.
Para diagnosticar o estado de saúde da democracia liberal ,não há um
melhor exemplo que o do país que atribuiu a si próprio a missão divina de
levar a democracia e a liberdade a todos os povos do mundo, se necessá-
rio pela força: os Estados Unidos. Esse país vive hoje uma profunda crise
constitucional. A situação atual do sistema político dos Estados Unidos
está muito distante da utopia de Lincoln sobre um governo do povo, para
o povo e pelo povo. Como nunca, o poder dos grandes financiadores das
campanhas e o controle corporativo de todos os meios de comunicação
determinam quem pode ser candidato e quem pode ser eleito. As fraudes

56 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


eleitorais nas eleições da Flórida, no ano 2000, e em Ohio, em 2004 – fraudes
que tornaram possível tanto a primeira eleição quanto a reeleição de George
Bush – foram documentadas de forma ampla e convincente.37
O controle simultâneo do Executivo, da Corte Suprema e do Congresso
por parte de um Partido Republicano cada vez mais controlado por inte-
resses corporativos, a direita radical e o fundamentalismo religioso cristão
produziu, nos últimos anos, profundas transformações no sistema político.
A chamada “Guerra contra o Terrorismo” e a promoção sistemática do
medo na população se converteram em instrumentos eficazes para justificar,
passo a passo, um significativo cerceamento dos direitos políticos que se
imagina estarem garantidos pelo “Bill of Rights38 – a Carta de Direitos que
faz parte da Constituição – e também um debilitamento severo do prin-
cípio da separação de poderes, concentrando-se cada vez mais as decisões
nas mãos do Executivo. Iniciam-se e se justificam guerras contra Estados
“soberanos” com base numa manipulação sistematicamente distorcida das
informações de inteligência. O governo amplia o âmbito das áreas em que
opera em segredo para impedir a avaliação pública de sua gestão. Apro-
vam-se novas leis severamente restritivas aos direitos dos cidadãos, como
é o caso das Atas Patrióticas I e II, e reinterpretam-se de normas legais por
parte dos Tribunais para autorizar políticas que, até este momento, haviam
sido consideradas claramente anticonstitucionais, o que mostra o desloca-
mento profundo do sistema político. Tudo isto acompanhado por meios de
comunicação crescentemente controlados pelas grandes corporações e cada
vez menos dispostos a questionar e/ou denunciar as ações do governo. Isto
ocorre, em parte, como resultado de ameaças e perseguições contra quem
divulga informações prejudiciais ao governo,39 mas é principalmente um
reflexo dos interesses das empresas matrizes dos grandes conglomerados da
comunicação. Poderia-se esperar por parte da NBC – cadeia de televisão de
propriedade da General Electric e uma das principais contratantes militares
dos Estados Unidos – um olhar crítico sobre a invasão do Iraque?

37
Sobre as eleições de 2000, ver: David Margolick, Evangelina Peretz e Michael Shnayerson, “The Path
to Florida”, Vanity Fair, outubro de 2004; e Greg Palast, The Best Democracy Money Can Buy, Plume,
Nueva York, 2003; Sobre as eleições de 2004, ver: U.S. House of Representatives, Status Report of
the House Judiciary Committee Democratic Staff, Preserving Democracy: What Went Wrong in Ohio, 5
de Janeiro de 2005. [http://www.house.gov/judiciary_democrats/ohiostatusrept1505.pdf]; Bob Fitrakis,
Harvey Wasserman and Steve Rosenfeld, Did George W. Bush Steal America’s 2004 Election? Ohio’s
Essential Documents, The Free Press, The Columbus Institute for Contemporary Journalism; Robert F.
Kennedy Jr., “Was the 2004 Election Stolen?”, Rolling Stone.1o de junho de 2006.
Ann Fagan Ginger, Editora, Challenging U.S. Human Rights Violations Since 9/11 (Report by Meiklejohn
38

Civil Liberties Institute), Prometheus Books, 2005.


39
The Associated Press, “Fearing Legal Battle, Ohio Newspaper Holds Stories”, 9 de julho de 2005.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 57


Uma das expressões mais alarmantes da crescente concentração de poder
numa presidência cada vez mais imperial tem sido a utilização recorrente
da figura dos chamados signing statements, mediante os quais Bush, quando
discorda de algum aspecto de uma lei aprovada pelo Congresso, em lugar de
vetá-la, ao firmá-la (convertendo-a assim em lei de cumprimento obrigatório
para todos, inclusive para o presidente) se reserva o direito de não cumprir
a citada lei quando ele considere que esta entra em contradição com sua
interpretação da Constituição. Assim, ele avoca a si o poder de formular e
interpretar tanto as leis quanto a própria Constituição, atribuições que a
Constituição só outorga ao Congresso e aos Tribunais.40 Essa prática tem
sido considerada uma grave ameaça ao sistema constitucional da separação de
poderes.41 A American Bar Association criou um grupo de trabalho formado
por notáveis constitucionalistas para avaliar as implicações dessas práticas.
Em seu relatório, o grupo de trabalho conclui, por unanimidade, que os signing
statements constituem uma violação do Estado de Direito e da separação dos
poderes estabelecida na Constituição.42
O relatório final de uma exaustiva investigação sobre a crise atual da
ordem constitucional dos Estados Unidos, preparada sob a responsabilidade
do deputado John Conyers, Jr. (Democrata de Michigan),43 conclui, entre
muitos outros assuntos, que o governo Bush violou as leis e a Constituição
nos seguintes casos: Declaração de guerra ao Iraque antes de obter a neces-
sária autorização do Congresso; manipulação de informações de inteligência
sobre a posse de armamentos por parte do governo do Iraque, para justi-
ficar a chamada “guerra preventiva”; perseguição e castigos contra críticos
da guerra e das políticas do governo, muitos deles funcionários públicos;
mentiras e falsidades sobre o desenvolvimento da guerra, sobre seus custos
e seu impacto; espionagem ilegal de cidadãos inocentes sem a autorização
dos tribunais; encobrimento de atos ilegais nos quais a responsabilidade
do governo estava envolvida; negar-se a dar informações ao Congresso e à
população; e deterioração geral das liberdades civis. Entre os aspectos mais
controversos do Patriotic Act, segundo esse relatório, está a autorização ao
FBI para supervisionar, sem ordem judicial, e sem aviso prévio, as chamadas

40
Charlie Savage, “Bush Challenges Hundreds of Laws”, The Boston Globe, 30 de abril de 2006.
41
Statement of Senator Patrick Leahy, Ranking Member, Judiciary Committee, Hearing on Presidential
Signing Statements, June 27, 2006. [http://judiciary.senate.gov/member_statement.cfm?id=1969&wit_
id=2629]
42
American Bar Association, Task Force on Presidential Signing Statements and the Separation of
Powers Doctrine, 2006. [http://www.abanet.org/op/signingstatements/]
The Constitution in Crisis, Final Investigative Report Prepared at the Direction of Rep. John Conyers, Jr,
43

August 2006. [http://www.house.gov/judiciary_democrats/iraqrept2.html].

58 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


telefônicas e comunicações pela Internet e o acesso, por parte de agências de
informações, a fichas e cadastros médicos, a registros de compras em livrarias
e consultas a bibliotecas, assim como a históricos de consumo.44
Em flagrante violação à Constituição, o governo defende seu direito a
prender os cidadãos americanos sem que seja formulada qualquer acusa-
ção.45 Denominando os prisioneiros de guerra de “combatentes ilegais”,46 o
governo dos Estados Unidos declara que a eles não se aplicam as normas da
Convenção de Genebra. A prática generalizada de tortura foi amplamente
documentada tanto em Guantánamo47 quanto em Abu Ghraib.48 O governo
Bush argumenta que tem direito de utilizar a tortura como parte de sua
“guerra contra o terrorismo”.49 Não se sabe o que ocorre na ampla rede de
centros secretos de detenção que os Estados Unidos mantêm em diversas
partes do mundo e aos quais nem a Cruz Vermelha tem acesso.50
A conseqüência do exercício dessa modalidade de governo do capital e
para o capital é a redução dos impostos para os ricos, um aumento acelerado
das desigualdades sociais, a deterioração da educação pública, milhões de
pessoas sem seguro médico, muros, guardas e milícias armadas para impedir
a entrada de imigrantes etc.
Na maior parte dos países do Sul, e certamente na América Latina, não
chegaram a se constituir Estados nacionais democráticos nem soberanos.
Com significativas diferenças entre países, com avanços e retrocessos, a
maioria da população desse continente, após as independências políticas
do início do século XIX, continuou a viver em sociedades com um padrão

44
Op, cit., p. 132. Ver: Barton Gellman, “The FBI’s Secret Scrutiny”, The Washington Post, 6 de no-
vembro de 2005.
45
Tom Jackman, “US a Battlefield, Solicitor General Tells Judges” The Washington Post, 20 de julio, 2005.
46
Patrice de Beer, “Illegal Combatants, a False Debate”, Le Monde, Paris, 29 de junho de 2004.
47
AFP y The Independent “A Cruz Vermelha Internacional constata torturas em presos de Guantánamo”,
La Jornada, México, 1o de dezembro de 2004; Neil A. Lewis, “Fresh Details Emerge on Harsh Methods
at Guantanamo”, The New York Times, 1o de Janeiro de 2005; Carol D. Leonnig, “Further Detainee
Abuse Alleged”, The Washington Post, 26 de dezembro de 2004; Andrew Buncombe, The Independent,
Londres, “Green light for Iraqi prison abuse came right from the top”, 3 de abril de 2005; Rosa Miriam
Lizalde, “La tortura, estimulada por Bush, acusa vocero de grupo de juristas estadounidenses”, La
Jornada, México, 26 de novembro de 2005.
Suzanne Goldenberg, “Abuse ‘continued after Abu Ghraib’”, The Guardian, Londres, 9 de dezembro
48

de 2004.
Edward Alden, “Dismay at Attempt to Find Legal Justification for Torture”, Financial Times. Londres,
49

10 de junho de 2004.
50
Andrew Buncombe “Bush ‘operating secret gulag in eastern Europe’”, The Independent, Londres, 3
de novembro de 2005; AFP Y DPA “Cerrar centros de detención secretos, exigen ONU y OEA a Wa-
shington”, La Jornada, México, 29 de julho de 2006; John Hendren, “CIA May Have Held 100 ‘Ghost’
Prisoners”, Los Angeles Times, 10 de setembro de 2004; AFP e Notimex, “Detectan más de mil vuelos
secretos de la CIA por naciones de la UE”, La Jornada, México, 27 de abril de 2006; DPA, Reuters e
AFP, “Estuvo en Polonia el mayor centro de detención secreto de la CIA: HRW”, La Jornada, México,
10 de dezembro, 2005; Afp, The Independent y DPA, “EU ha creado un archipiélago de centros de
detención, denuncia AI”, La Jornada, México, 6 de junho de 2005.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 59


de poder colonial, racialmente hierarquizadas, com padrões de cidadania
altamente excludentes.51 As profundas e recentes desigualdades sociais
que caracterizam a América Latina nos dias de hoje permitem constatar
a persistência e a continuidade histórica desses mecanismos de exclusão.
Países que nunca foram propriamente soberanos têm sofrido, nestes tempos
neoliberais, reduções tendenciais de sua autonomia. Operam em um con-
texto global dominado pelo capital transnacional, por um pequeno grupo
de países do Norte e pelas instituições financeiras, comerciais e militares
que defendem os interesses desses países. A base territorial da democracia
liberal, o Estado nacional, está deixando de ser a esfera pertinente para a
tomada das principais decisões que afetam as populações desses territórios.
O direito internacional democrático, que com retrocessos e avanços, con-
seguiu ampliar as definições dos direitos das gentes e dos povos no período
que se seguiu à 2a Guerra Mundial, se encontra hoje em franca regressão.
Em uma ordem global imperial, as normas do direito internacional e suas
instituições só são acatadas na medida em que correspondem ao interesse
da potência hegemônica. Os projetos de desenvolvimento, de industriali-
zação, de integração sub-regional ou continental latino-americanos atuais
estão montados em imaginários e previsões sobre padrões de produção e
níveis de consumo e abundância material que não são sustentáveis. Tudo
parece indicar que já é demasiadamente tarde para isso. No presente con-
texto global, a aspiração dos povos do Sul de construir Estados nacionais
“desenvolvidos”, com uma democracia liberal inclusiva, capaz de garantir a
igualdade e os direitos universais efetivos para todos, constitui uma corrida
para o passado. Já é tarde demais. Outras opções são agora necessárias.

AS DESIGUALDADES SOCIAIS
QUE CARACTERIZAM A
AMÉRICA LATINA PERMITEM
CONSTATAR A PERSISTÊNCIA
E A CONTINUIDADE HISTÓRICA
DESSES MECANISMOS DE
EXCLUSÃO

51
Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”, em Edgardo Lander, La
colonialidad del saber. Eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas, CLACSO,
UNESCO, Buenos Aires, 2000.

60 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


ÉPOCA DA GUERRA PERMANENTE
Outra característica da nossa época é o estado precisamente porque as agências de inteligência
de guerra permanente, tal como Orwell o havia dos Estados Unidos e do Reino Unido sabiam
previsto em 1984. Uma guerra que não tem fim. que o governo de Saddam Hussein carecia da
Na medida em que as tensões entre acumulação capacidade militar para resistir a uma invasão.
e legitimidade, tão características nos tempos da O pesadelo da guerra nuclear que parecia
democracia liberal, se resolveram em favor da ter sido superado com o fim da Guerra Fria foi
acumulação, foi se constituindo um regime de colocado novamente no tapete. As principais
crescente dominação sem hegemonia. A busca potências nucleares descumprem as obrigações
do consenso e da legitimidade é cada vez mais que assumiram com a celebração do Tratado
substituída pela promoção do medo e do uso da de Não-Proliferação de Armas Nucleares, de
força. Esse exercício descarnado do poder gera reduzir seus arsenais nucleares. Países “amigos”
necessariamente múltiplas formas de resistência. dos Estados Unidos, como Israel, o Paquistão
Por isso, na ordem neoliberal, a dimensão militar e a Índia, não encontram obstáculo algum na
é essencial e constitutiva. O complexo industrial- chamada “comunidade internacional”, na Agên-
militar tem crescente poder econômico, político cia internacional de Energia Atômica, nem nas
e comunicacional e encontrou um novo âmbito Nações Unidas para desenvolver seus programas
de valorização, ao operar como subcontratante de armamentos nucleares. O mesmo não ocorre,
nas novas dinâmicas de privatização corporativa entretanto, com o Irã e com a Coréia do Norte.
da guerra. O que ocorrerá quando mais e mais países deci-
No Afeganistão, no Iraque, na Palestina, direm que somente a possessão de mísseis e de
com bombas chamadas “inteligentes”, assassina- armas nucleares pode oferecer algum nível de
se sistemática e impunemente a população civil proteção contra um ataque militar dos Estados
e se tem o cinismo de chamar esses massacres de Unidos, quando este país decidir que alguma
“danos colaterais”. O homicídio indiscriminado nação abriga ou patrocina “terroristas” que per-
de civis – preferivelmente a distância para não tencem ao “eixo do mal”, ou simplesmente que
ter de presenciá-lo – banalizam-se como um fato não gostam de suas políticas? Para os Estados
inevitável da vida contemporânea e suas ima- menores, o grupo de subestados que não têm
gens, televisionadas pela Fox News e pela CNN, essas possibilidades militares, sempre existirão
diferenciam-se pouco na sua estática e no seu outras opções. O chamado terrorismo e o fun-
impacto moral nulo, dos filmes de Hollywood. damentalismo religioso e étnico identitário pa-
A política imperial tem como conseqüên- recem estar se convertendo na resposta dos mais
cia inevitável uma crescente militarização do fracos, dos desesperados, dos acossados e dos
planeta. O Iraque não foi invadido pelo fato povos cuja própria existência está sendo amea-
de possuir armas de destruição em massa, mas, çada. Nada disto augura um futuro de paz.

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 61


DA RESISTÊNCIA E DA RE-EXISTÊNCIA: A LUTA PELA VIDA
Esses processos civilizatórios que apontam em direção à morte estão hoje
afrontados com uma extraordinária gama de formas de existência e de
resistência, de mobilização e de luta de povos, comunidades, organizações,
movimentos e redes locais, regionais e mundiais, que, a partir de sua vasta
gama de experiência, reivindicam a defesa da vida. Não se trata apenas de uma
confrontação com o regime do capital, com suas formas de propriedade, com
sua exploração e com suas formas de exercício do poder. Trata-se também da
recusa de um modelo de civilização caracterizado historicamente pela idéia de
controle e de submissão da natureza, – mesmo dos seres humanos –, modelo
que se não for detido, conduzirá inexoravelmente à destruição das condições
que tornam possível a vida no planeta Terra. Por isso, a luta anticapitalista, a
resistência a esse modelo civilizatório, não é principalmente uma expressão de
contradições internas no regime do capital, contradições que operam dentro
de uma jogada compartilhada por uma sociedade industrial, (tal como foi
imaginada pelo marxismo, no seu investimento no papel protagonista do
proletariado industrial), mas uma luta a partir da experiência, a partir da
memória, a partir da comunidade, a partir da vida que está sendo submetida
e ameaçada. É esse caráter propriamente civilizatório que torna possível a
convergência da mais extraordinária diversidade de indivíduos em todo o
planeta. Essa convergência não se baseia em acordos sobre um modelo de
sociedade alternativa, mas se faz em torno de princípios de preservação das
culturas, dos saberes, da natureza, da vida, da re-existência.

NOSSO TEMPO ESTÁ SE ESGOTANDO?


Como se disse anteriormente, o regime do capital dispõe de novos recursos
geopolíticos, tecnológicos, comunicacionais, militares e jurídicos-políticos
com os quais busca a superação dos múltiplos obstáculos que têm impedido,
no curso da história, a plena mercantilização de todas as dimensões da vida, e
a realização da utopia do mercado total.52
Retomando e integrando o que foi assinalado anteriormente, é possí-
vel identificar duas novas condições que definem com precisão uma nova
época histórica. A primeira é a capacidade dos seres humanos de destruir
em curto prazo as condições que tornam a vida possível, tanto por meio do
impacto de suas atividades de produção como por meio de um holocausto

Edgardo Lander, “La utopía del mercado total y poder imperial”, Revista Venezolana de Economía y
52

Ciencias Sociales, vol. 8, no. 2, maio-agosto de 2002.

62 INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS


nuclear global. A segunda se refere às confron- tempo nos resta antes que esses processos des-
tações – que ocorrem pela primeira vez em nível trutivos se tornem irreversíveis? Não muito,
global, já que operam de forma muito diversa, evidentemente.
mas simultânea em todos os rincões do planeta Do ponto de vista das lutas civilizatórias
– em torno dos processos de mercantilização de em torno da lógica produtivista-depredadora da
todas as dimensões da cultura e da vida, para sociedade industrial radicalizada nas suas atuais
submetê-los de forma direta, não mediada, às expressões neoliberais, esse tempo histórico é crí-
exigências de valorização do capital. Essa dinâ- tico. A maior parte das capacidades de resistência
mica de mercantilização da vida, por sua vez, só contra a mercantilização de todas as expressões
faz acelerar os processos de destruição. da cultura e da vida não se faz a partir de ima-
Essas duas condições obrigam a repensar ginários ou de projetos de sociedade alternativa
as formas pelas quais foi concebido o tempo. para o futuro, mas como já dissemos, a partir de
Nos principais imaginários sobre o futuro da experiências, tradições, histórias, identidades,
sociedade, associados à experiência moderna e ao vida em comunidade, vivências e memórias.
capitalismo, sejam eles de celebração ou críticos, Isso ocorre a partir do tecido sociocultural da
o tempo foi concebido como um bem infinita- própria existência histórica dos povos, a partir
mente disponível no futuro. Assim, a sociedade da subjetividade do que tem sido a experiência
do bem-estar, da abundância, da liberdade, da humana. Se hoje se resiste de forma tão vigorosa
igualdade seria possível no futuro. Aquilo que à transformação da água em mercadoria, não é
fosse impossível conseguir no presente e no apenas porque a água é uma condição de vida.
curto prazo, o seria, com segurança, num prazo É também porque, na experiência dos povos e
maior. Mas o que ocorreria se reconhecêssemos comunidades, a água tem sido um bem comum,
que esses pressupostos deixaram de ser susten- porque o acesso à água como direito humano
táveis? Que implicações teria a assunção de que tem sido uma conquista das lutas democrá-
nos encontramos numa época histórica decisiva, ticas em diferentes partes do mundo. Se essa
num ponto de inflexão tal que se não conseguir- memória histórica e essa defesa das conquistas
mos como humanidade, nas presentes gerações, democráticas forem derrotadas, e se o capital
deter o avanço desses dispositivos de sistemática global conseguir impor a plena privatização e
destruição das culturas e da vida, que garantia mercantilização da água, as próximas gerações
de futuro existirá? irão considerar a água como uma mercadoria a
Essas considerações sobre a concepção do mais. Aceitar-se-á como natural que as pessoas
tempo e sobre sua disponibilidade se funda- que não têm como pagá-la, não possam ter
mentam nas duas condições de nossa época acesso a ela. As discussões se deslocariam para
mais acima indicadas. Os cálculos e as projeções questões de qualidade e de preço na relação en-
dos diversos modelos sobre o futuro do planeta tre os clientes e as empresas de comercialização
podem variar e estar sujeitos a polêmicas, mas que vendem o serviço. Da mesma forma, depois
não resta dúvida de que os padrões de civilização de uma ou duas gerações, nas quais o acesso à
atuais não são sustentáveis e que estão destruindo educação, aos serviços de saúde ou de seguri-
as condições que tornam a vida possível. Quanto dade social só seja possível pela via mercantil,

DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIREITOS – UM DEBATE SOBRE DESAFIOS E ALTERNATIVAS 63


poderiam desaparecer da memória coletiva os
padrões culturais que hoje definem o acesso a
esses bens como direito.
É este exatamente o mesmo padrão que define,
por exemplo, as confrontações globais atuais entre
o modo de vida campesino e o modelo produtivo
da agroindústria. Isto não é apenas uma confron-
tação, mas, na progressiva expansão histórica da
fronteira da agricultura capitalista, uma batalha
que continua, tendencialmente, as dinâmicas de
décadas e de séculos anteriores. Hoje, como se as-
sinalou anteriormente, o capital conta com novas
disponibilidades tecnológicas (especialmente na
biotecnologia) e jurídico políticas (OMC, TLC e as
correspondentes normas de propriedade intelectu-
al). Poderíamos estar em presença de uma grande
confrontação final, de uma arremetida global, na
qual está em jogo a própria existência dos com-
plexos culturais que constituem a vida campesina,
não em algumas regiões afastadas do mundo, mas
em todo o planeta. O impacto devastador que, há
alguma décadas apenas, o Nafta teve sobre milhões
de indígenas e camponeses produtores de milho
no México ilustra a extraordinária velocidade
com a qual esses processos operam. As condições
materiais e territoriais que tornam possível a ex-
traordinária diversidade de culturas ou modos de
viver no planeta estão sendo ameaçadas.
AS CONDIÇÕES MATERIAIS E
Tudo isto define o presente – e aqui seria
TERRITORIAIS QUE TORNAM
necessário debater sobre a faixa temporal que
POSSÍVEL A EXTRAORDINÁRIA
devemos entender como sendo “o presente”, um
DIVERSIDADE DE CULTURAS
momento no qual deverá resolver-se, se isto é
OU MODOS DE VIVER NO
possível, a continuidade da vida e da diversida-
PLANETA ESTÃO SENDO
de de culturas no planeta. Nosso tempo está se
AMEAÇADAS
esgotando. Nas formas atuais de resistência, de
criação e de recriação de outras formas de viver
que lutam para frear a lógica de expansão da mer-
cantilização, da submissão e da destruição, isto é,
o padrão civilizatório do progresso está em jogo
o futuro da vida.

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