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De Poul Anderson - livro O Patrulheiro do Tempo

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A MÁGOA DE ODIN, «O GODO»

Então ouvi uma voz no mundo: «Ó maldita seja


promessa quebrada,
E a Necessidade premente dos Nibelungos, e
a Mágoa de 0din, o Godo!

WILLIAM MORRIS,
Sigurd the Volsung

372

Ao crepúsculo, o vento soprava quando a porta se abriu. Os fogos que


ardiam ao longo do salão cintilaram nos seus sulcos; as chamas
ondularam efluíram dos candeeiros de pedra; o fumo acre rolava dos
orifícios no tecto por onde deveria ter saído. Esta repentina
luminosidade refletia-se nas pontas das lanças, dos machados, nas
bainhas das espadas, nos ornamentos dos escudos, nas ara-mas guardadas
perto da entrada. Os homens que enchiam aquela grande sala, ficaram
imóveis e atentos, tal como as mulheres que distribuíam os chifres de
cerveja. Eram os deuses esculpidos nos pilares que pareciam mover-se
por entre as sombras inquietas. O pai Tiwaz, o maneta, Donar do
Machado e os Cavaleiros Gêmeos - eles e as bestas e os heróis e os
ramos entretecidos gravados no lambril. Uuuu... gemia o vento, um
ruído gélido como ele próprio.
Hathawulf e Solbem entraram. A mãe, Ulrica, estava no meio deles e a
expressão da sua cara era não menos terrível que a expressão dos seus
filhos. Os três pararam por um breve momento, mas demasiado longo para
aqueles que aguardavam as suas palavras. Então, Solbern fechou a
porta enquanto Hathawulf dava uns passos em frente e levantava o seu
braço direito. O silêncio abateu--se sobre o salão, a não ser pelo
estalar dos fogos e os bafos agitados.
No entanto, foi Alawin quem falou primeiro. Levantando-se do
seu banco, a figura frágil, tremendo, gritou: 83

-Então, iremos vingar-nos! - a voz falhou-lhe; tinha apenas


quinze-Invernos.
O guerreiro a seu lado puxou-lhe pela manga e rosnou:
-Senta-te! Cabe ao senhor dizer-nos o que fazer... -Alawin engoliu em
seco, olhou fixamente e obedeceu.
Uma espécie de sorriso revelou os dentes de Hathawulf por entre a
barba loura. Ele já estava neste mundo há mais nove anos que aquele
seu meio-irmão, e há mais quatro que o seu irmão Solbern, mas parecia
mais velho, e não só por causa da altura, dos ombros largos e da
postura de gato selvagem; a chefia coubera-lhe nos últimos cinco
destes anos, depois da morte de seu pai, Tharasmund, acelerando o
crescimento da sua alma. Havia quem murmurasse que Ulrica mantinha uma
rédea apertada sobre ele, mas quem duvidasse da sua virilidade teria
de o enfrentar numa luta e o mais certo era perder.
- Sim - disse ele, em voz comedida, mas apesar disso ouvida de um lado
ao outro do edifício. - Tragam o vinho, mulheres; bebam bem, meus
homens, façam amor com as vossas mulheres, aprontem o vosso material
de guerra; aos amigos, que vieram até aqui para oferecer a sua ajuda,
os meus mais sinceros agradecimentos, porque amanhã, pela alvorada,
cavalgaremos para matar o assassino da minha irmã.
-Ermanaric! -proferiu Solbern. Era mais baixo e mais more-o que
Hathawulf , mais dado a tratar das suas terras e a construir coisas
com as mãos que à guerra e à caça; mas cuspiu o nome
mo se fosse uma infâmia na sua boca.
Um suspiro, mais que um respirar ofegante percorreu a multidão,
embora algumas das mulheres se encolhessem, ou se aproximassem dos
seus maridos, irmãos, pais ou jovens que poderiam um dia desposar.
Alguns guerreiros rugiram rouca e quase alegremente. Uma certa
austeridade caiu sobre outros.
Entre estes últimos contava-se Liuderis, que acalmara Alawin.
Ergueu-se do banco, para ser visto por todos. Homem possante, grisalho
e coberto de cicatrizes, que fora anteriormente o homem de confiança
de Tharasmund, disse pesadamente:
- Erguer-te-ias contra orei, a quem prestaste juramento de vassalagem?
- Esse juramento perdeu todo o seu valor quando ele mandou espezinhar
Swanhild debaixo dos cascos dos cavalos -respondeu Hathawulf .
- No entanto, ele declara que Randwar planeava matá-lo...
- Isso é o que ele diz! - gritou Ulrica. Avançou, até a escassa luz
existente brilhar mais completamente sobre ela. Era uma mulher grande,
as suas tranças meio grisalhas e ainda meio ruivas enquadrando uma
face cujas linhas se tinham imobilizado na
inflexibilidade da própria Weard. Valiosas peles orlavam o manto de
Ulrica; por baixo, o vestido era de seda das terras orientais;
âmbar das terras do norte brilhava em redor do seu pescoço: porque
ela era filha de um rei e casara na casa de Tharasmund, descendente
dos deuses.
Ela parara com os punhos cerrados e atirou à cara de Liuderis e dos
restantes:
- Razão tinha Randwar, o Vermelho, em tentar derrubar Ermanaric. Os
Godos já há demasiado tempo que sofrem às mãos desse cão. Sim, eu
chamo cão a Ermanaric, indigno de viver. Não me falem em como ele nos
fez poderosos e em como o seu domínio se estende do mar Báltico até ao
mar Negro. - o domínio dele, não o nosso, e não sobreviverá à sua
morte. Lembrem-se antes das taxas quase ruinosas que temos de pagar,
das esposas e donzelas desonradas, das propriedades arbitrariamente
anexadas e das pessoas que são expulsas das suas terras, de homens
derrubados e queimados nos seus lares cercados, unicamente por se
terem atrevido a falar contra os atos dele. Lembrem-se de como ele
assassinou os seus sobrinhos e respectivas famílias, quando não
conseguiu apoderar-se do tesouro deles. Lembrem-se de como mandou
enforcar Randwar, sem nada mais que a palavra de Sibicho
Mannfrithsson, Sibicho, aquela víbora sempre a assobiar aos ouvidos do
rei. E perguntem uma coisa a vocês próprios. Mesmo que Randwar se
tivesse tornado inimigo de Ermanaric, atraiçoado antes de ter podido
atacar, como vingança do insulto praticado sobre os seus parentes,
mesmo que isso fosse verdade, porque havia Swanhild de morrer também?
Ela era apenas a sua mulher! - Ulrica respirou fundo.
- Ela era também a filha de Tharasmund e de mim própria, a irmã do
vosso chefe Hathawulf e de Solbern, o seu irmão. Eles, que nasceram
de Wodan, hão de mandar Ermanaric para o outro mundo para ser escravo
dela.
- - Senhora, esteve meio dia sozinha a falar com os seus filhos disse
Liuderis. - Até que ponto é que isto não é a sua vontade
e não a deles?
Hathawulf levou a mão à espada.
- Estás a exceder-te... - vociferou ele.
- A minha intenção era boa... - começou o guerreiro a dizer.
-A terra chora como sangue de Swanhild, a Bela - disse Ulrica.
-Será que a terra frutificará mais alguma vez para nós, se não a
lavarmos
com o sangue do seu assassino?
Solbem continuou mais calmo:
-Vocês, os Teurig, sabem bem como os problemas se têm vin-do a
acumular ao longo dos anos entre orei e a nossa tribo. Por que razão
se vieram juntar a nós quando souberam do sucedido? Será que não
pensam todos que este ato foi realizado com o fim de testar a nossa
têmpera? Se ficarmos sentados à lareira sem fazer nada, se Heorot
aceitar qualquer que seja a justificação que ele se digne oferecer,
ele saberá que está à vontade para nos esmagar
completamente.
Liuderis acenou com a cabeça, cruzou os braços em frente do peito e
respondeu firmemente:
- Bem, não irão para a batalha sem mim e sem os meus filhos, enquanto
esta velha cabeça permanecer acima do chão. Queria só saber se
Hathawulf não estaria a ser um bocado precipitado. Não há dúvida que
Ermanaric é poderoso. Não seria melhor se esperássemos pela nossa
oportunidade, fizéssemos preparativos e reuníssemos homens das tribos
vizinhas, antes de atacarmos?
Hathawulf sorriu de novo, um pouco mais calorosamente que antes.
- Pensamos nisso - disse ele num tom equilibrado. - Se der-mos a nós
próprios tempo, estamos também a dar tempo ao rei. Nem acredito que
consigamos reunir muito mais lanças contra ele. Não, enquanto os Hunos
rondarem os pântanos, os povos vassalos estiverem amuados por causa do
tributo a pagar e os Romanos puderem considerar uma guerra de godo
contra godo como uma oportunidade de penetrar nas nossas terras e
arrasar tudo. Além disso, Ermanaric não ficará ocioso durante muito
tempo até se decidir a humilhar os Teuring. Não, devemos atacar
imediatamente, antes que ele fique à nossa espera, apanhá-lo
desprevenido, dominar os seus guardas, não são muito mais numerosos
que nós aqui reunidos, matar Ermanaric de um só golpe rápido e limpo e
depois convocar uma reunião do povo para escolher um novo rei que seja
justo.
Liuderis voltou a acenar com a cabeça.
- Disse o que pensava, o mesmo acontecendo consigo. Agora, acabemos
com a conversa. Amanhã avançaremos. -E sentou-se.
- E um risco... - disse Ulrica. - Estes são os únicos filhos vi-vos
que me restam e talvez caminhem para a morte. Será segundo a vontade
de Weard, que determina o destino dos deuses e dos homens por igual.
»Mas prefiro ver os meus filhos morrer valentemente que ajoelharem-se
aos pés do assassino de sua irmã. Não poderia daí advir nenhum bem.
O jovem Alawin voltou a pôr-se de pé num salto. A sua faca faiscou.
- Nós não morreremos! - gritou ele. - Ermanaric morrerá e Hathawulf
será rei dos Ostrogodos!
Um rugir lento, como a maré a subir, elevou-se dos homens.
Solbern, o Sóbrio, atravessou o salão. A multidão abriu caminho para
ele. Caniços dispersos esvoaçaram e o chão de terra batida ressoava
debaixo das suas botas.
- Será que vos ouvi dizer «nós»? - perguntou ele no meio do rumor. -
Não, tu és um rapaz. Ficas em casa.
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As faces cavadas coraram.
- Sou suficientemente homem para lutar pela minha casa!
-guinchou Alawin. Ulrica ficou hirta onde estava.
A crueldade destilava das suas palavras:
- A «tua» casa, bastardo?
O barulho crescente desvaneceu-se. Os homens trocaram olhares
apreensivos. Não preconizava nada de bom, uma tal libertação de
velhos ódios, numa hora destas. Erelieva, mãe de Alawin, não fora
apenas a concubina de Tharasmund, ela tornara-se na única mulher que
ele realmente amara, e Ulrica regozijara-se quase abertamente quando
cada criança que Erelieva dava à luz, com excepção do primeiro, morria
com tenra idade. Mais tarde, quando o chefe desceu a estrada do
inferno, amigos dela arranjaram-lhe rapidamente um casamento com um
pequeno proprietário que vivia longe dali. Alawin ficou, o que
pareceu o mais indicado para o filho de um senhor, mas Ulrica estava
sempre a picá-lo.
Os olhos fecharam--lhe contra o fumo e a luz dos fogos intercalados
com as sombras.
-Sim, a minha casa -respondeu Alawin -, e Swanhild também é m-m-minha
irmã! - a sua gaguez fê-lo morder os lábios, envergonhado.
- Calma, calma! - Hathawulf voltou a levantar o braço. -Tens esse
direito, rapaz, e fazes bem em exigi-lo. Sim, vem conosco, à alvorada.
O seu olhar desafiava Ulrica. Ela torceu a boca, mas não disse nada.
Todos adivinharam que ela alimentava esperanças de que o adolescente
fosse morto.
Hathawulf dirigiu-se para o assento colocado no meio do salão. As suas
palavras ecoaram:
-Chega de brigas! Esta noite estaremos alegres. Mas, primeiro,
Anslaug - disse à sua mulher -, vem sentar-te ao pé de mim e juntos
beberemos pelo copo de Wodan.
Pés bateram no chão, punhos esmurraram a madeira e facas
levantaram-se como tochas. As próprias mulheres começaram a gritar
com os homens:
- Salve, salve, salve!
A porta abriu- subitamente.
O crepúsculo descera rapidamente, visto que se aproximava o Outono,
por isso, o recém-chegado estava mergulhado em trevas. O vento agitou
as extremidades do seu manto azul, atirando com algumas folhas mortas
para dentro, assobiou e arrefeceu a sala.
As pessoas viravam-se para ver quem entrara, sustendo a respiração, e
os que estavam sentados apressavam-se a levantar.
Era o Viandante.
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Era mais alto que todos eles, segurando a sua lança mais como um
bordão que como uma arma, como se não tivesse necessidade de usar o
ferro. Um chapéu de aba larga sombreava-lhe a face, mas não escondia o
cabelo e a barba de um cinzento de lobo, nem o brilho do seu olhar.
Poucos dentre eles o tinham visto antes, a maior parte não calhara
estar por perto quando ele fizera as suas visitas esporádicas; mas
ninguém ignorava que ele era o avoengo dos chefes teuring.
Ulrica foi a primeira a reunir coragem.
-Saudações, Viandante, e bem-vindo sejas! -disse ela. -É uma honra
para o nosso tecto. Venha, sente-se na cadeira principal, eu vou
buscar-lhe um chifre de vinho.
- Não, um copo, um copo romano, o melhor que tivermos -disse Solbern.
Hathawulf dirigiu-se para a porta, endireitou os ombros e enfrentou o
antepassado.
- Sabe o que se está a preparar - disse ele. - Que palavras tem para
nos dirigir?
-Isto... - respondeu o Viandante. A sua voz era profunda e não soava
como a dos Godos do sul, ou como mais ninguém que eles alguma vez
tivessem conhecido. Os homens supunham que a sua língua materna era a
língua dos deuses. Hoje parecia pesada, como se carregada de
sofrimento. - Vocês estão dominados pelo desejo de vingança,
Hathawulf e Solbern, e isso não pode ser alterado; é essa a vontade de
Weard. Mas Alawin não irá com vocês!
O jovem encolheu-se, empalidecendo. Um quase soluço partiu agreste da
sua garganta.
O olhar do Viandante percorreu o salão e fixou-se nele.
- E necessário que assim seja - continuou ele, articulando as palavras
lentamente. -Não é um insulto que te faço quando digo que ainda não és
adulto e que morrerias corajosa mas inutilmente. Todos os que são
agora homens, já foram em tempos rapazes. Não, digo-te em vez disso
que a tua tarefa será outra, mais difícil e mais estranha que a
vingança, em defesa da segurança dos descendentes que nasceram da mãe
do pai do teu pai, Jorith (teria a sua voz tremido um pouco?), e de
mim próprio. Tem paciência, Alawin. A tua vez em breve chegará!
-Será... feito... segundo a tua vontade, senhor - declarou Hathawulf ;
com a garganta seca. - Mas que quer isso dizer... para aqueles de
entre nós que vão lutar?
O Viandante olhou- por uns instantes e depois ficou muito calmo antes
de responder:
- Vocês não querem saber. Seja a resposta boa ou má, vocês não a
querem saber.
Alawin enterrou-se no seu banco, agarrou a cabeça com as mãos,
tremendo.
- Boa viagem - disse o Viandante. O seu manto rodopiou, a lança rodou
e a porta fechou-se. Partira.

1935

Não troquei de roupa até o veículo me ter transportado através do


espaço-tempo. Só então, numa base da Patrulha, que passava por um
armazém, despi as minhas vestes da bacia do Dnieper, dos fins do
século XX, e vesti roupa de meados do século XX, dos Estados Unidos.
Os aspectos básicos, camisas e calças para os homens, vestidos para as
mulheres, eram os mesmos. As diferenças de pormenor eram inúmeras.
Apesar do tecido grosseiro, o trajo gótico era mais confortável que um
fato completo com gravata. Arrumei- no compartimento de bagagem do
meu saltitão, juntamente com o material especial que usara para
escutar, do exterior, o desenrolar da discussão no salão da tribo
teuring. Visto a minha lança não caber, atei-a ao lado da máquina. Não
iria nela a nenhum outro sitio a não ser ao meio onde essas armas
pertenciam.
O oficial de serviço de hoje tinha vinte e poucos anos -jovem pelos
padrões correntes; na maior parte das épocas há muito tempo que já
seria um homem com família estabelecida -e estava um pouco intimidado
pela minha presença. E verdade que o meu estatuto como membro da
Patrulha do Tempo era praticamente tanto um pormenor técnico como era
o dele. Eu não fazia nenhum trabalho de policiamento das estradas
espaço-temporais, salvando viajantes em perigo, nem nada de tão
espetacular. Era apenas uma espécie de cientista; «erudito» era,
provavelmente, mais correto. No entanto, determinava as minhas
próprias viagens e ele não estava qualificado para o fazer.
Deitou-me uma espreitadela quando me viu emergir do hangar para o
escritório vulgar, alegadamente duma companhia de construção, que era
a nossa cobertura, nesta cidade, durante estes anos.
- Bem-vindo a casa, Sr. Farness - saudou ele. - Hum, teve uma viagem
bastante agitada, não teve?
- Por que diz isso? - repliquei automaticamente.
- A sua expressão, senhor. A forma como anda.
- Não corri qualquer perigo - vociferei. Sem ter a mínima vontade de
falar daquilo, a não ser com Laurie, e se calhar nem mesmo com ela
durante uns tempos. Passei rapidamente por ele e saí para a rua.
Também aqui era Outono, um daqueles dias estimulantes e
brilhantes que Nova lorque freqüentemente tem, antes de se ter tornado
impossível lá viver; curiosamente, este ano era o anterior ao do meu
nascimento. A pedra e o vidro elevavam-se até se perder de vista, em
direção a um azul onde se viam umas manchas de nuvens vogando na brisa
suave que me beijava com lábios frescos. Os carros não eram tantos que
fizessem mais que acrescentar-lhe um certo travo, mais fraco que o
aroma dos carros dos vendedores de castanhas assadas que começavam a
acordar do estio. Fui até à Quinta Avenida e andei a pé até ao centro
da cidade, passando por lojas esplendorosas e cruzando-me com algumas
das mulheres mais belas de todo o mundo, assim como com pessoas
provenientes da rica diversidade do nosso planeta.
A minha esperança era que, indo a pé para casa, dispersasse parte da
tensão e infelicidade que sentia dentro de mim. A cidade podia fazer
mais que estimular, podia curar, não podia? Era aqui que Laurie e eu
tínhamos escolhido viver, nós que nos podíamos instalar praticamente
em qualquer local de qualquer passado ou futuro.
Não, claro que isso não era bem assim. Como a maioria dos casais,
desejávamos um ninho num ambiente razoavelmente familiar, onde não
tivéssemos de aprender tudo do zero e estar sempre de guarda. Os anos
30 eram uma época maravilhosa, para quem fosse americano e branco, de
boa saúde e com dinheiro. As amenidades que faltavam, tais como ar
condicionado, podiam ser discretamente instaladas, desde que não
fossem usadas quando se tinha visitas que nunca deveriam saber que os
viajantes no tempo existiam. Era verdade que o grupo de Roosevelt
estava ao leme, mas a conversão de República para Estado Corporativo
ainda não estava muito adiantada e não afetava as nossas vidas
privadas, nem a minha nem a de Laurie; a desintegração efetiva desta
sociedade só se transformaria num processo rápido e óbvio depois da
eleição de 1964 (em minha opinião).
Para Oeste, onde a minha mãe estava nesta altura grávida de mim,
tínhamos de ser aborrecidamente circunspectos. Mas a maioria dos
nova-iorquinos era tolerante, ou pelo menos nada curiosa. Uma barba
até à cintura e um cabelo comprido até ao ombros, que eu apanhava em
trança quando estava na base, não atraía muitos olhares, nem sequer
nada mais que alguns gritos de «Urso! » dos miúdos. Para o nosso
senhorio, os nossos vizinhos e outros contemporâneos, nós éramos um
professor de Filologia Germânica e sua mulher, com as suas naturais
idiossincrasias. E, na realidade, até nem era mentira.
Portanto, o passeio devia ter-me feito bem, recuperando a perspectiva
que todos os agentes da Patrulha devem ter, e sem a qual ficariam
doidos varridos com as coisas que se viam obrigados
a presenciar. Devemos compreender que o que Pascal dissera era
90

verdade em relação a todos os seres humanos em todos os


espaços-tempos. Nós próprios incluídos: «O último ato é trágico,
independentemente de quão agradável possa ter sido a comédia dos
outros atos. Um pouco de terra sobre as nossas cabeças e fica tudo
resolvido para sempre.»
«E melhor que nos compenetremos disso, para que possamos viver assim
calma, senão serenamente. Vejamos, estes meus Godos estavam a safar-se
muito bem, se os compararmos com, digamos, milhões de judeus europeus
e ciganos, menos de dez anos no futuro, ou milhões de russos neste
exato momento.
Não servia de nada. Não eram os meus godos. Os seus fanas-mas
apertavam-se à minha volta, até as ruas, os edifícios, os corpos se
transformarem num sonho irreal e tenuemente recordado.
Sem ver nada à minha frente, apressei o passo, em direção ao santuário
que Laurie me pudesse fornecer.
Vivíamos num andar enorme, com vista para Central Park, onde
gostávamos de passear em noites suaves. O porteiro não precisava de
acumular essas funções com as de guarda armado. Magoei- com a secura
com que retribui a sua saudação e só me apercebi disso já no elevador,
mas nessa altura era demasiado tarde para arrepiar caminho. Saltar
para trás no tempo e alterar o incidente seria violar a primeira
diretriz da Patrulha. Não que algo de tão trivial ameaçasse o
continuum, que é bastante flexível, dentro de certos limites, e os
efeitos das alterações diluem-se, em regra, com rapidez. Na realidade,
existe uma pergunta metafísica interessante sobre até que ponto é que
os viajantes no tempo descobrem o passado versus até que ponto é que
o criam. O gato de Schrodinger espreita tanto na história, como da
sua caixa. No entanto, a Patrulha existe para assegurar que o tráfego
temporal não destrua o desenrolar dos acontecimentos que levarão à
existência dos super-homens danelianos fundadores da Patrulha quando,
no seu passado remoto, os homens vulgares descobriram como viajar no
tempo.
Os meus pensamentos tinham-se refugiado neste tema familiar, enquanto
permanecia no elevador. Tornava os fantasmas mais distantes, menos
clamorosos. Apesar disso, quando entrei em casa, eles seguiram-me.
Um cheiro a terebentina vagava por entre os livros que cobriam as
paredes da sala. Laurie estava a conseguir firmar-se como pintora,
aqui nos anos 30, quando já não era a preocupada mulher de um
professor de faculdade, como acontecera mais tarde, no fim do nosso
século. Quando lhe ofereceram um lugar na Patrulha, ela recusou;
faltava-lhe a força física de que um agente de campo, masculino e,
especialmente, feminino, por vezes necessita, enquanto 9 trabalho
administrativo ou de referência não lhe interessava. E
claro que partilhara férias em locais extremamente exóticos. 91

Ela ouviu-me entrar e veio a correr do estúdio para me receber. Esta


visão levantou-me um pouco a moral. Apesar do avental te-lo sujo e o
cabelo coberto por um lenço, era ainda esbelta, flexível e atraente.
As linhas por debaixo dos olhos verdes eram demasiado finas para
serem notadas, até que ela se aproximou para me abraçar. Os nossos
conhecimentos locais tendiam a invejar-me a mulher que, além de ser
deliciosa, era bastante mais nova que eu. De fato, a diferença de
idades era de uns meros seis anos. Eu estava no meio da minha quarta
década, e prematuramente grisalho, quando a Patrulha me recrutou,
enquanto ela mantivera a sua aparência jovem. O tratamento
anti-envelhecimento que a nossa organização fornecia, pára o processo
de envelhecimento mas não anula os seus efeitos.
Para além disso, ela passou a maior parte da sua vida no tempo
normal, sessenta segundos em cada minuto. Como agente de campo,
passavam- às vezes dias, semanas ou meses entre o dizer-lhe adeus de
manhã e o regresso para o jantar - um interlúdio no qual ela podia
prosseguir a sua carreira sem que eu a perturbasse. A minha idade
cumulativa aproximava-se já dos cem anos.
Às vezes pareciam mil. E isso notava-se.
- Olá, Carl, querido! - Os seus lábios pulsavam contra os meus.
Puxei-a para mim. E se uma mancha de tinta me passasse para o fato,
que importância tinha? Então ela deu uns passos atrás, pegou-me em
ambas as mãos e dirigiu o seu olhar através e para dentro de mim.
O seu tom de voz enfraqueceu:
- Esta viagem magoou-te.
- Eu já sabia que sofreria - respondi no meio de um grande cansaço.
- Mas não sabias até que ponto... Ficaste lá muito tempo?
-Não. Daqui a bocado já te conto os pormenores. Apesar de tudo tive
sorte. Apanhei um ponto-chave, fiz o que tinha a fazer e sal outra
vez. Poucas horas de observação às escondidas, uns poucos minutos de
ação e fini.
- Suponho que se pode chamar a isso sorte. Tens de regressar em breve?
-A essa era sim, dentro em breve. Mas quero passar aqui uns tempos
a... descansar, recuperar do que vi que estava prestes a acontecer...
Agüenta-me aqui por perto, sorumbático, à tua voa-ta, durante uma
semana ou duas?
- Querido... - Ela voltou para junto de mim.
- De qualquer maneira, vou ter de trabalhar as minhas notas
-disse-lhe ao ouvido-, mas ao fim do dia podemos sai para jantar, para
ir ao teatro, para nos divertirmos juntos.
- Oh, espero que te consigas divertir. Não finjas por minha
causa... 92

- Mais tarde, as coisas serão mais fáceis -


assegurei-lhe. -Limitar-me-ia a cumprir a minha missão original,
registando as histórias e canções que eles farão acerca disto. E só
que... primeiro tenho de atravessar a realidade.
- Tens mesmo?
- Sim. E não por motivos acadêmicos, não, acho que não. Mas porque
eles são o meu povo. São mesmo.
Ela abraçou-me com mais força. Ela sabia.
O que ela não sabia, pensei eu num ressurgir de dor, o que eu pedia a
Deus que não soubesse, era a razão por que eu me interessava tanto
por aqueles meus descendentes de outrora. Laurie não era ciumenta.
Nunca invejaria os momentos que Jorithe eu tivéramos juntos. A rir,
dissera que não a privara de nada, enquanto me proporcionara uma
posição na comunidade que estava a estudar, que poderia bem ser única
nos anais da minha profissão. Depois, fizera tudo o que pudera para
me consolar.
O que eu não consegui contar-lhe foi que Jorith não fora simplesmente
uma grande amiga que, por acaso, era mulher. Não lhe podia dizer que
amara uma mulher, que jazia em cinzas há mil e seiscentos anos, tanto
quanto a amava a ela, e ainda amava, e talvez nunca deixasse de amar.
300

A casa de Winnithar, o Wisentslayer, erguia-se numa escarpa sobre o


rio Vístula. Era uma aldeia com meia dúzia de casas amontoadas à volta
duma casa principal, com celeiros, telheiros, cozinha, ferreiro,
destilaria e outros locais de trabalho: porque a sua família há longo
tempo que habitava aqui e contava se entre as mais importantes entre
os teuring. Para ocidente, estendiam-se prados e campos de cultura.
Para leste, do outro lado do rio, mantinha-se a floresta, embora a
povoação estivesse a alastrar para esse lado, conforme a tribo
aumentava em números.
Poderiam ter derrubado os bosques por completo, se não fosse por, cada
vez mais, as pessoas se estarem a mudar para longe. Eram tempos
instáveis. Não só havia bandos de pilhagem à solta; populações
inteiras estavam a deslocar fronteiras, lutando quando se
encontravam.
Ouviam-se rumores longínquos de que os Romanos também estavam
freqüentemente com lutas internas, enquanto o poderio que os seus
antepassados tinham construído se desmoronava. Por enquanto, poucos
homens do norte se tinham atrevido a algo de
mais temerário que algumas incursões ao longo das fronteiras ter- 93

ritoriais. Mas as terras do sul, para além das fronteiras, eram


quentes, ricas e mal defendidas pelos seus habitantes, o que as
tornava convidativas para que muitos godos aí construíssem um no-lo
lar para si próprios.
Winnithar permaneceu onde estava. No entanto, isso obrigava- a passar
tanto tempo a lutar - especialmente contra os Vândalos, embora também
algumas vezes contra tribos godas, greutung ou taifal - como a lavrar.
A medida que os seus filhos chegavam à idade adulta, começavam a
ansiar por partir para outras terras.
Assim estavam as coisas quando Carl chegou.
Ele chegou no Inverno, quando praticamente ninguém viajava. Por causa
disso, os estranhos eram duplamente bem-vindos, quebrando a monotonia
das suas vidas. Ao princípio, espiando-o a uns mil metros de
distância, tomaram-no por um simples viajante, visto que andava
sozinho e a pé. De qualquer forma, sabiam que o chefe quereria vê-lo.
Ele aproximou-se, caminhando facilmente pelos sulcos gelados da
estrada, usando a lança como bordão. O seu manto azul era a única
mancha de cor na paisagem de campos cobertos de neve, árvores
despidas, céu escuro. Os cães ladraram e rosnaram; ele não mostrou
medo e mais tarde os homens compreenderam que ele poderia tê-los morto
se o atacassem. Nesse dia, porém, chamaram os cães e receberam o
recém-chegado com um súbito respeito -porque se tornara claro que as
suas vestes eram do mais fino material e nada sujas pela caminhada,
ao mesmo tempo que ele próprio tinha um aspecto imponente. Mais alto
que os mais altos, destacava-se, magro mas robusto, com uma barba
cinzenta, tão flexível como um jovem. Que coisas já teriam os seus
olhos pálidos observado?
Um guerreiro destacou-se para o receber.
-Eu chamo-me Carl -respondeu, quando interrogado. Nada mais. - Muito
me agradaria ficar como vosso hóspede algum tempo. - As palavras em
godo saiam-lhe com facilidade, mas o seu som, e algumas vezes a sua
ordem e terminação, não eram as de nenhum dialeto conhecido dos
teuring.
Winnithar ficara em sua casa. Não estaria à altura da sua dignidade
ser visto a olhar, pasmado, como um criado. Quando Carl entrou,
Winnithar falou da sua cadeira mais alta:
- Seja bem-vindo se vem em paz e com boas intenções. Que o pai Tiwaz o
proteja e a mãe Frija o abençoe! - Como era costume antigo na sua
casa.
- Os meus agradecimentos - respondeu Carl. - Foi muito bom da sua
parte dizer isso a uma pessoa, de quem bem podem pensar ser um
pedinte. Não o sou e espero que este presente seja considerado digno -
meteu a mão na bolsa que trazia pendurada no
94

cinto e retirou uma pulseira que entregou a Winnithar. Ouviram--se


suspiros dos que se tinham acotovelado para observar, porque a
pulseira era pesada, de ouro puro, delicadamente trabalhada e
incrustada de pedras preciosas.
O anfitrião por pouco não perdeu a compostura.
- É um presente digno de um rei. Compartilhe comigo o meu assento,
Carl. - Era o lugar de honra. - Fique conosco o tempo que
desejar -bateu palmas. -Ehla! - gritou ele. -Tragam hidromel para o
nosso convidado e para mim também, para poder - beber à sua saúde! -E,
para os moços, criadas e crianças que por ali andavam gritou: -Voltem
para o trabalho, vocês. Podemos todos ouvir o que ele nos quiser dizer
depois da refeição da noite. Agora, sem dúvida, que se sente cansado.
Resmungando, eles acederam.
- Por que diz isso? - perguntou-lhe Carl.
- A casa mais próxima em que poderia ter passado a noite fica a uma
boa distância daqui - replicou Winnithar.
- Não estive em nenhuma - disse Carl.
- Quê?
- Mais tarde ou mais cedo acabaria por descobri-lo. Não queria que
pensasse que lhe estivera a mentir.
....... - Winnithar inclinou-se para o observar, puxando pelos seus
bigodes, e disse lentamente: - Você não é destas partes; sim, deve
ter viajado de muito longe. No entanto, as suas vestes estão limpas,
embora não lhe veja nenhuma muda de roupa, nem comida nem nada do que
é costume um viajante trazer. Quem é você, de onde vem e... como?
O tom de voz de CarI era calmo, mas os que o ouviram sentiram o metal
que lhe estava subjacente.
- Há coisas das quais não posso falar. Dou-lhe a minha palavra, que o
relâmpago de Donar me castigue, se não estiver a falar verdade, que
não sou um bandido, nem um inimigo da sua gente, nem do gênero que o
envergonharia de albergar debaixo do seu tecto.
- Se a honra lhe exige que guarde certos segredos, nenhum de nós se
intrometerá - disse Winnithar. - Mas deve compreender que não podemos
deixar de nos admirar... - evidente era o alívio com que se
interrompeu para exclamar: - Ah, aqui vem o hidromel. E a minha
esposa Salvalindis que lhe traz o seu chifre, como merece um hóspede
da sua importância.
Carl cumprimentou-a cortesmente, embora o olhar se desvias-se
contentemente para a donzela a seu lado, que levava a Winnithar a
sua bebida. Ela era de uma elegância doce e movia-se como um veado; o
cabelo solto caía dourado, emoldurando uma face de ossos delicados,
lábios sorridentes e tímidos, olhos grandes e da
tonalidade de um céu de Verão. 95
- Apresento-lhe a nossa filha mais velha - disse ela a Carl -, a nossa
filha Jorith.

1980

Depois do treino básico na Academia da Patrulha, voltei para Laurie,


no mesmo dia em que a deixara. Precisava duns tempos para descansar e
readaptar-me; produzia um certo choque transferirmo-nos do período
oligoceno para uma cidade universitária da Pensilvânia.
Precisávamos também de pôr os nossos assuntos mundanos em ordem. Pelo
meu lado, acabaria o ano acadêmico antes de aceitar «um lugar mais
bem pago no estrangeiro». Laurie tratou da venda da nossa casa e do
destino a dar às coisas que não queríamos conservar - para onde e para
quando quiséssemos montar residência.
Entristeceu-nos imenso despedirmo-nos dos amigos de anos. Prometemos
fazer visitas ocasionais, mas sabíamos de antemão que seriam poucas e
muito espaçadas, até terminarem completamente. As mentiras que se
tornavam necessárias constituíam um grande esforço. Como deixamos as
coisas, ficaram com a impressão que o meu novo lugar, algo vago,
deveria ser uma cobertura para um cargo na CIA.
Bem, no inicio já me tinham avisado de que a vida de um agente da
Patrulha do Tempo acaba por se transformar numa série de despedidas.
Ainda me faltava sentir na pele o verdadeiro significado desta
verdade.
Ainda estávamos no processo de desenraizamento, quando recebi um
telefonema.
- Prof. Farness? Fala Manse Everard, operador independe-te. Gostaria
de o convidar para uma conversa, talvez para este fim-de-semana, se
pudesse.
O meu coração deu um pulo. Independente é praticamente o mais alto que
se pode chegar na organização; através dos milhões ou mais de anos que
vigiam. Este pessoal é extremamente raro. Normalmente, um membro,
mesmo que seja um oficial da policia, trabalha dentro de um único
meio, de forma a ele ou ela poderem conhecê-lo profundamente, e em
conjunto com uma equipa extremamente coesa. Os Independentes podiam
ir onde quisessem e fazer praticamente tudo o que achassem necessário,
sendo responsáveis apenas perante a sua consciência, os seus pares e
o Danelianos.
- Ah, claro, certamente, senhor - respondi eu, sem pensar.
96

-Sábado estaria bem. Quer vir a nossa casa? Prometo-lhe um excelente


jantar...
- Obrigado, mas prefiro que seja em minha casa. Pelo menos da primeira
vez. Tenho lá os meus arquivos e o terminal de computador e tudo o
mais. Só nós os dois, por favor. Não se preocupe com o horário dos
aviões. Arranje-me um local, como por exemplo a sua cave, onde ninguém
nos veja. Foi-lhe fornecido um localizador, não foi? Bem, leia as
coordenadas e telefone-me. Eu vou buscá-lo no meu saltitão.
Mais tarde, descobri que este procedimento era característico dele.
Grande, de aspecto duro, possuindo mais poder que César ou Gengis
alguma vez sonharam, era tão cordial como um velho amigo.
Comigo na sela atrás dele, transferimo-nos no espaço, mais que no
tempo, para a atual base da Patrulha, na cidade de Nova lorque. De lá,
fomos a pé até ao apartamento que ele mantinha. Ele não gostava de
sujidade, desordem e perigo mais que eu. No entanto, sentia que
precisava dum pied-d'terre no século XX, e habituara-se a estas
acomodações antes da decadência ter avançado exageradamente.
-Eu nasci no seu estado em 1942 - explicou ele. -Entrei para a
patrulha com 30 anos. Por isso, decidi que seria eu a entrevistá-lo.
Temos mais ou menos os mesmos antecedentes; deveríamos compreender-nos
bem um ao outro.
Eu tomei um bom golo do uísque com soda que ele preparara para mim, e
disse cautelosamente:
-Não sei se será bem assim, senhor. Ouvi falar de si enquanto estive
na academia. Parece que teve uma vida bastante aventureira, mesmo
antes de se juntar ao grupo. E depois... eu, pelo meu lado, tenho sido
um tipo calmo, rato de biblioteca.
-Não é tanto assim - Everard olhou de relance para uma folha de notas
que tinha na mão. A sua mão esquerda segurava um cachimbo de torga em
bastante mau estado. De vez enquanto, dava uma fumadela ou bebia um
golo. - Vamos refrescar a minha memória, se não se importa? Não esteve
na frente durante o serviço militar, mas isso é porque cumpriu os
seus dois anos durante aquilo que nós ironicamente chamamos tempo de
paz. No entanto, atingiu níveis elevados na carreira de tiro. Sempre
foi um homem de ar livre, fez montanhismo, esqui, vela, natação. No
liceu,
jogou futebol e obteve bons resultados apesar da sua magra estatura.
Na faculdade, os seus passatempos incluíam esgrima, arco e flecha.
Viajou bastante, e nem sempre para os habituais lugares seguros. Sim,
não há dúvida que o consideraria suficientemente aventureiro para os
nossos fins. Provavelmente, até demasiado aventureiro. É sobre isso
que estou a tentar sondá-lo.
Sentindo-me embaraçado, voltei a olhar em volta da sala. 97

Num piso mais elevado, encontrava-se um oásis de quietude e limpeza.


Prateleiras de livros cobriam as paredes, com excepção de três
excelentes quadros e um par de lanças da Idade do Bronze. Para além
disso, as recordações óbvias era constituídas por um tapete de pele
de urso polar que ele sabia pertencer à Groenlândia do século X.
-Está casado há vinte e três anos com a mesma senhora -salientou
Everard. -Nos tempos que correm, isso indica um caracter estável.
Não havia aqui nenhum sinal de feminilidade. É claro que ele poderia
ter uma ou várias mulheres noutro sitio.
- Sem filhos - continuou Everard. - Hum, não tenho nada a ver com
isso, mas sabe, não é verdade que, se quiser, os nossos médicos podem
resolver qualquer problema de infertilidade anterior à menopausa?
Também podem compensar um inicio tardio de gravidez.
-Obrigado - respondi. -Trompas de Falópio... Sim, Laurie
e eu já discutimos esse assunto. Talvez algum dia recorramos a
isso. Mas não achamos aconselhável iniciar uma paternidade e a
minha nova carreira simultaneamente - deitei-lhe um sorriso.
-Se é que simultaneidade tem algum significado para um patrulheiro...
- Uma atitude responsável. Agrada-me! - Everard acenou com a cabeça.
-Mas porquê a inspeção, senhor? - atrevi-me a perguntar.
- Não fui convidado a alistar-me meramente com base na recomendação
de Herbert Ganz. A vossa gente fez-me uma bateria completa de testes
do futuro longínquo, antes de me explicarem do que se tratava.
»Chamaram-lhe uma série de experiências científicas. Eu cooperei
porque Ganz me pediu para o fazer e como um favor a um amigo dele. Não
era da área dele; ele estava em Literatura e Lín-guas Germânicas como
eu. Encontram-nos num encontro profissional, tornam-nos amigos de
farra e escrevem-nos bastante. Ele admirava os meus trabalhos
publicados sobre Deor e Widsith, e eu admirava o dele sobre a Bíblia
gótica.
»Naturalmente que, na altura, não sabia que ele era o autor. Foi
publicado em Berlim, em 1853. Mais tarde, foi recrutado pela Patrulha
e, por fim, subiu no tempo com um pseudônimo, em bus-ca de talentos
jovens para os seus trabalhos.
Everard encostou-se. Por cima do cachimbo, o seu olhar
pers-crutava-me.
- Bem - disse ele -, as máquinas disseram-nos que você e a sua mulher
eram de confiança e ficariam ambos deliciados com a verdade. O que
elas não podiam medir é até que ponto é que você seria competente
para o lugar que lhe era destinado. Desculpe-
98

-me, não é de forma alguma um insulto. Ninguém é bom em todas as


coisas e estas missões serão duras, solitárias e delicadas. - Fez uma
pausa. - Sim, delicadas. Os Godos podem ser bárbaros, mas não quer
dizer que sejam estúpidos, ou que não possam ser magoa-dos com a mesma
facilidade que você ou eu...
-Compreendo -respondi eu. -Mas repare, basta-lhe ler os relatórios que
entregarei no meu futuro pessoal. Se os meus primeiros resultados
mostrarem que me portei mal, bem, é só dizer-me para ficar em casa e
tornar-me num investigador de bibliotecas. A organização também
precisa deles, não é verdade?
Everard suspirou.
-Já investiguei e fui informado que se portou... portará... terá se
portado satisfatoriamente. Mas não chega. Não pode compreender,
porque ainda não passou por isso, até que ponto é que a Patrulha está
sobrecarregada, até que ponto é que nós estamos esparsamente
espalhados através da história. Não podemos examinar todos os ínfimos
pormenores do que um agente de campo faz. E isso é especialmente
verdade quando ele ou ela não é um polícia como eu, mas um cientista
como você, explorando meios pobremente documentados, ou sem
documentação alguma... - emborcou mais um golo da sua bebida. - E por
isso que a Patrulha tem um setor científico. Para obter uma idéia mais
concreta dos verdadeiros acontecimentos, para que possa saber
exatamente o que deve evitar que os descuidados viajantes do tempo
alterem.
-Faria assim uma diferença tão significativa, numa situação tão
obscura como essa?
- Talvez. A seu tempo, os Godos terão um papel importante, não é
verdade? Quem sabe que acontecimentos no inicio da sua história,
vitória ou derrota, salvamento ou morte, nascimento ou não de um certo
indivíduo, poderão ter efeitos, se considerarmos a pro-pagação dos
resultados através das gerações?
- Mas eu nem sequer irei trabalhar com acontecimentos reais, exceto
indiretamente... - argumentei. - O meu objetivo é ajudar a recuperar
várias histórias e poemas perdidos e des-vendar a forma como eles
evoluíram e como influenciaram obras posteriores.
Everard sorriu pesarosamente.
- Sim, eu sei. O grande trabalho de Ganz. A Patrulha aceitou-o, porque
é uma abertura, a única que encontramos até ago-ra, para conseguir
registar a história dessa época.
Acabou a bebida e levantou-se.
- Que me diz a outro copo? - propôs ele. - E depois vamos almoçar.
Entretanto, gostaria que me dissesse exatamente qual é o seu projeto.
- Bem, deve ter falado com Herbert... com o Prof. Ganz... -respondi,
atônito. - Hum, obrigado, gostaria de um reforço.
99

- Com certeza - disse Everard, enchendo o copo. - Recuperar a


literatura germânica da Idade Média. Se é que -literatura- é o termo
correto para material que era originalmente transmitido oralmente, em
sociedades analfabetas. Apenas alguns excertos sobreviveram em forma
escrita e os investigadores não concordam quanto ao grau de deturpação
destas cópias. Ganz está a trabalhar no... hum... no épico dos
Nibelungos. O que não percebo muito bem é onde você se encaixa. Isso é
uma história do Reno. Você quer andar à toa, sozinho, pela Europa
Oriental, no século IV.
Os seus modos contribuíam mais que o uísque, para me pôr à vontade.
-Espero conseguir apanhar a parte referente a Ermanaric -expliquei-lhe.
- Não é um texto integral, mas desenvolveu uma
ligação e, para além disso, tem um interesse intrínseco.
- Ermanaric? Quem foi ele? - Everard passou-me o copo e instalou-se
para me ouvir.
-Talvez seja melhor voltar um pouco atrás -disse eu. -Até que ponto é
que conhece o ciclo do Nibelung-Volsung?
- Bem, vi as óperas sobre o Anel, de Wagner. E, uma vez, quando tive
uma missão na Escandinávia, por volta dos finais do período viquíngue,
ouvi um conto sobre Sigurd, que matou o dragão, acordou as Valquírias
e depois estragou tudo.
- Isso é só um fragmento da história, senhor.
- Trato-me por Manse, Carl.
- Oh, obrigado. Sinto-me honrado. -Para não me tornar fastidioso,
continuei, no meu melhor estilo acadêmico:
- A «Saga dos Volsung» é de origem islandesa e foi escrita mais tarde
que as Canções dos Nibelungos germânicas, mas contém uma versão mais
antiga, mais primitiva e mais extensa da história. A Antiga e Jovem
Edda também têm algo dela. Foram estas as fontes às quais Wagner foi
buscar a maioria dos seus temas.
»Provavelmente, lembrar-se-á que Sigurd e Volsung são traiçoeiramente
levados a desposar Gudrun, a Gjuking, em vez de Brunilde, a Valquíria,
o que levou a um grande ciúme entre estas mulheres e, por fim, à sua
morte. Em germânico, estas personagens são chamadas Siegfried,
Kriemhild da Burgonha e Brunhild de Isenstem; e os deuses pagãos não
aparecem; mas isso não vem para aqui chamado. Segundo ambas as
histórias, Gudrun ou Kriemhild, casou mais tarde com um rei chamado
Atli, ou Etzel, que não é outro senão Átila, o Huno.
»A partir daí, as versões começam a divergir bastante. Na Canção dos
Nibelungos, Kriemhild atrai os seus irmãos para a corte de Etzel,
atraiçoa-os e os destroi, como vingança pelo assassínio de Siegfried.
Teodorico, o Grande, o ostrogodo que conquistou a Itália, aparece
nesse episódio com o nome de Dietrich de Berna, embora,
historicamente, tenha florescido uma geração mais tarde
100

que Átila. Um seu seguidor, Hildebrand, fica tão horrorizado com a


traição e crueldade de Kriemhild que a mata. Não nos esqueçamos que,
por seu lado, Hildebrand tem uma lenda só para si, numa balada, cuja
versão integral Herb Ganz tenta descobrir, bem como em trabalhos
posteriores. Está a ver o monte de anacronismos que isto suscita.
- Com que então, Átila,o Huno? - murmurou Everard. -Não era um homem
nada simpático. Mas operava em meados do século V, quando aqueles
malfeitores já andavam à solta pela Europa. Você vai para o século
IV.
-Exatamente. Deixe-me contar-lhe a lenda islandesa. Atli atraiu o
irmão de Gudrun para junto de si, porque queria o Ouro do Reno. Ela
tentou avisá-los, mas apesar de tudo eles foram,ao ser-lhes prometido
um salvo-conduto. Ao recusarem-se a entregar o tesouro e a dizer a Atli
onde ele estava escondido, Atli mandou-os se matar. Gudrun vingou-se.
Assassinou os filhos que lhe dera e serviu-lhos como comida num
refeição normal. Mais tarde, apunha1ou-o enquanto dormia, lançou fogo à
sua casa e abandonou a Terra dos Hunos. Levou com ela Svanhild, a
filha que tivera de Sigurd.
Everard franziu a testa, concentrando-se. Não era nada fácil não
confundir todas estas personagens.
- Gudrun foi para a terra dos Godos - disse eu. - Ali casou novamente
e teve dois filhos, Hamther e Sorli. O rei dos Godos chama-se
Jormunrek, na saga e nos poemas de Edda, mas não há qualquer dúvida de
que ele era Ermanaric, que é uma figura real, ainda que obscura, que
viveu por volta de meados ou fins do século IV. Os relatos variam
quanto a ter casado com Svanhild e ela ter sido falsamente acusada de
infidelidade, ou a ter casado com outro homem qualquer a quem orei
apanhou a conspirar contra ele e que por isso mandou enforcar. Em
qualquer dos casos, ele mandou que ela fosse espezinhada até à morte
pelos cascos dos cavalos.
»Por esta altura,já os filhos de Gudrun, Hamther e Sorli, eram homens
feitos. Ela atiçou-os para que matassem Jormunrek, como vingança pela
morte de Svanhild. Pelo caminho eles encontraram o seu meio-irmáo,
Erp, que se ofereceu para os acompanhar. Eles recusaram. Os
manuscritos são vagos quanto às razões desta recusa. Suspeito que ele
era filho do pai deles e duma concubina, e havia guerras entre eles e
o meio-irmáo.
»Eles continuaram até ao quartel-eneral de Jormunrek e atacaram. Eram
só dois, mas invulneráveis ao aço, por isso mataram à direita e à
esquerda, conseguiram chegar junto do rei e feriram-no gravemente. No
entanto, antes de acabarem o trabalho, Hamther descuidou-se a dizer
que as pedras os podiam atingir. Ou, segundo a saga, 0din apareceu
subitamente, vestido como um velho zarolho, e forneceu traiçoeiramente
esta informação. 101

Jormunrek mandou os seus últimos guerreiros apedrejarem os irmãos e foi


assim que eles morreram. Assim acaba a fábula.
-Triste, não é? -disse Everard. Reflectiu durante um minuto. - Mas
parece-me que todo esse último episódio, «Gudrun na Terra dos Godos»,
deve ter sido composto muito mais tarde. Os anacronismos são
perfeitamente incontroláveis.
- Claro -concordei. -É o que acontece muito freqüentemente nas tradições
populares. Uma história importante atrairá para si outras secundárias.
Mesmo de formas superficiais. Por exemplo, não foi W. C. Fields que
disse que um homem que odeia crianças e cães não pode ser mau de todo.
Foi outra pessoa qualquer,já não me lembro do nome, que assim
apresentou Fields num banquete.
Everard riu-se.
-Não me diga que a Patrulha deveria monitorizar a história de
Hollywood! - Mas voltando a ficar sério, disse: - Mas se essa lenda
verdadeiramente sangrenta não pertence ao cânone dos Nibelungos, por
que razão a quer investigar? Por que razão quer Ganz que você a
investige?
- Bem, chegou à Escandinávia, onde inspirou alguns bons poemas, se é
que não eram simplesmentes redacções de algo anterior, e ligou-se à
saga dos Volsungs. As ligações, toda a sua evolução, nos interessa.
Além disso, Ermanaric é também mencionado noutros sítios: em certas
baladas em inglês antigo, por exemplo. Por isso deve ter entrado em
muitos dos trabalhos lendários e bárdicos que ficaram entretanto
esquecidos. Ele foi poderoso na sua época, embora aparentemente não
fosse um homem muito simpático. O ciclo perdido de Ermanaric poderá
bem ser tão importante e tão brilhante como tudo o que nos chegou do
Ocidente e do Norte. Poderá ter influenciado a literatura germânica
numa data de formas insuspeitadas.
- Tenciona ir directamente a essa corte? Não lhe aconselharia tal
coisa, Carl. Demasiados agentes de campo são mortos por se tornarem
descuidados.
- Oh, não. Algo de terrível deve ter acontecido, donde se originaram
histórias que se espalharam rapidamente e até terras distantes,
chegando mesmo a entrar nas crónicas históricas. Acho que me posso
enquadrar no tempo em que aquilo aconteceu, uns dez anos antes.
»Mas tenho intenções de me familiarizar primeiro com o meio, antes de
me aventurar nesse episódio.
- Acho bom. Qual é o seu plano?
- Vou apanhar com uma memorização electrónica da língua goda. Já a
consigo ler, mas quero falá-la fluentemente,embora o meu sotaque seja
com certeza estranho. Também quero toda a informação que houver sobre
os costumes, crenças, etc. O que será muito pouco. Os Ostrogodos,
se não os Visigodos, ainda mal existiam
102

na periferia da consciência romana. Seguramente que mudaram


bastante antes de se deslocarem para o ocidente.
»Por isso começarei bastante antes das datas que constituem omeu
objectivo; um pouco arbitrariamente, estou a pensarem 300 d. C.
Tomarei contacto com as populações. Depois, reaparecerei a certos
intervalos para me informar do que aconteceu durante a minha
ausência. Em resumo, estarei a par dos acontecimentos à medida que
eles marcharem em direção ao acontecimento. Quando finalmente se der,
não serei apanhado de surpresa. Depois, aparecerei aqui e ali,
esporadicamente, e escutarei os poetas e contadores de histórias e
registrarei as suas palavras num gravador escondido.
Everard carregou o sobrolho.
- Hum, este tipo de actuação... Bem, mais tarde discutiremos as
complicações possíveis. Também se deslocará bastante do ponto de
vista geográfico, não é verdade?
- Sim. Segundo as raras tradições que foram passadas à escrita no
Império Romano, os Godos são originários do que é agora a Suécia
central. Não acredito que uma raça tão numerosa possa ter origem numa
área tão reduzida, mesmo contando com o aumento natural da população,
mas poderá ter fornecido chefes e organizações, da mesma forma que os
Escandinavos, em relação ao nascente estado da Rússia, no século IX.
»Eu diria que o grosso dos Godos começaram como habitantes ao longo do
litoral sul do Báltico. Eram os povos germânicos mais a leste. Não que
alguma vez tivessem constituído uma só naçâo. Na altura em que
atingiram a Europa ocidental,já estavam divididos em Ostrogodos, que
conquistaram a Itália, e Visigodos, que tomaram a Ibéria. Já agora,
a verdade é que deram um Governo bastante bom a estas regiões, o melhor
que elas até então tinham tido. Finalmente, os invasores acabaram por
ser, por sua vez, vencidos e diluíram-se na população em geral.
- E antes disso?
- Os historiadores fazem menção vaga de tribos. Por volta de 300 d.C.,
os Godos já estavam firmemente estabelecidos ao longo do Vístula,
no centro do que é actualmente a Polónia. Antes do fim desse século,
os Ostrogodos estavam na Ucrânia e os Visigodos a norte do Danúbio, a
fronteira romana. Uma grande migração de povos, aparentemente no
decurso de gerações, porque parece que eles acabaram por abandonar
completamente o norte; para ai se moveram tribos eslávicas. Ermanaric
era um ostrogodo, por isso tenciono seguir esse ramo.
-Ambicioso - disse Everard duvidoso. -E você ainda por cima é um
novato...
- Ganharei experiência à medida que avançar, não é, Manse?
Você próprio admitiu que a Patrulha tem falta de efectivos. Além
103

disso, apanharei muita da história de que vooês tanto necessitam.


Ele sorriu.
- Lá isso é verdade.
Levantando-se: - Vamos lá, acabe a bebida e vamos comer.
Vamos precisar mudar de roupa, mas verá que vale a pena.
Conheço um bar local, aí por volta de 1890, que tem uns
magníficos almoços à borla.

302

O Inverno desceu e depois, lentamente, em vagas de vento, neve e


chuva glacial, afastou-se. Para os que viviam no lugarejo ao pé do
rio, e em breve para os seus vizinhos, a monotonia dessa estação foi
aliviada nesse ano. Carl passou uma temporada com eles.
Ao principio, o mistério que o rodeava provocava medo em muitos
deles; mas depressa viram que ele não trazia má vontade nem má sorte.
O respeito por ele não se desvaneceu. Pelo contrário, cresceu. Desde o
principio que Winnithar dissera que, para tal convidado, dormir num
banco, como um guerreiro vulgar, era indigno, cedendo-lhe uma cama.
Ofereceu-lhe ainda à escolha qualquer das mulheres para a aquecer, mas
o estranho recusou, de uma forma cortês. Aceitou comida e bebida e
tomava banho e ia à latrina. No entanto, murmurava-se que talvez estas
coisas não lhe fossem necessárias, a não ser para fingir que era
mortal.
Carl era comedido e amigável, de uma forma algo imponente. Ria, dizia
uma piada, contava uma história divertida. Andava a pé ou a cavalo,
com companhia, para caçar ou fazer visitas aos proprietários vizinhos
ou juntando-se às oferendas aos Anses e aos festejos que se seguiam.
Tomava parte em torneios de tiro ou de luta, até se tornar claro que
ninguém conseguia ser melhor que ele. Quando jogava os jogos de
crianças ou de tabuleiro, nem sempre ganhava, embora ficassem com a
idéia de que se tal não acontecia, era porque não queria que as gentes
ficassem com medo da feitiçaria. Falava com todos, desde Winnithar
até ao mais humilde servo ou à criança mais pequena, e escutava com
atenção; na verdade, fazia-os falar e era bondoso para serviçais e
animais. Mas o seu eu interior permanecia escondido.
Isso não queria dizer que ficasse sentado de mau humor. Não, falava e
cantava de uma forma brilhante, que ninguém nunca antes vira. Sempre
interessado em ouvir canções, contos, histórias, ditados, tudo o que
por ali corria; e retribuía largamente o que ouvia. Porque parecia
conhecer o mundo inteiro, como se tivesse viajado por todo ele,
durante mais de uma vida.
Falava de Roma, a poderosa e conturbada, do seu chefe Diocleciano,
104

das suas guerras e das suas leis severas. Respondia a


perguntas sobre o novo deus, o da Cruz, de quem os Godos tinham
ouvido falar através dos mercadores e dos escravos vendidos mesmo até
no norte. Falava dos grandes inimigos dos Romanos, os Persas, e das
maravilhas que eles tinham realizado. As suas palavras rolavam sem
parar, serão após serão... até às terras do sul, onde fazia sempre
calor e onde as pessoas tinham a pele negra e rondavam feras parecidas
com os linces, mas do tamanho de ursos. Falava-lhes de outros animais,
desenhando figuras a carvão sobre placas de madeira e eles gritavam
alto em sinal de admiração; comparado com um elefante, um boi selvagem
ou até mesmo um cavalo de batalha não eram nada!
Próximo do distante Oriente, dizia ele, existia um reino mais vasto,
antigo e maravilhoso que Roma ou a Pérsia. Os seus habitantes tinham a
pele da cor do âmbar e olhos que pareciam oblíquos. Cercados
constantemente por tribos a norte, eles tinham construído uma muralha
tão comprida como uma cordilheira de montanhas e desde então atacavam
a partir desse reduto. Era por isso que os Hunos tinham vindo para o
Ocidente. Eles, que tinham vencido os Alanos e vexado os Godos, eram
apenas uma canalha aos olhos oblíquos de Khitai. E esta vastidão não
era ainda tudo o que havia. Quando se viajava para Ocidente, até se
ter atravessado a província romana chamada Gália, chegar-se-ia ao Mundo
do Mar, do qual se ouviam fábulas, e se tomássemos um barco,
e os que atravessavam os rios não eram suficientemente grandes, e se
navegássemos sempre em frente, encontraríamos as terras dos
sábios e ricos Maias.
Carl também contava histórias de homens, mulheres e dos seus feitos -
Sansão, o Forte; Deirdre, a Bela e Infeliz; Crockett, o Caçador.
Jorith, filha de Winnithar, esquecia-se de que já tinha idade para
casar. Sentava-se no chão entre as crianças, aos pés de Carl, e
escutava atentamente enquanto os seus olhos reflectiam a luz do fogo e
se transformavam em sóis.
Ele não estava lá permanentemente. Muitas vezes dizia que precisava de
estar sozinho e desaparecia de vista. Uma vez, um garoto impetuoso e
perito em seguir a caça, foi atrás dele sem ser visto, a não ser que
Carl não se dignasse a prestar-lhe atenção. O rapaz regressou pálido e
a tremer, titubeando que o "barba cinzenta" fora para o bosque de Tiwaz.
Ninguém se atrevia a entrar nesse pinheiral sombrio a não ser na
Véspera do Solstício de Inverno, quando eram feitas três oferendas de
sangue - de cavalo, de cão e de escravo - para que o Protector do Lobo
mandasse embora a escuridão e o frio. O pai do rapaz chicoteou-o e
depois disso ninguém mais falou abertamente no assunto. Se os deuses
permitiam que isso acontecesse, o melhor era não questionar as suas
razões.
Carl regressava uns dias depois, com roupa lavada e trazendo
105

presentes. Eram coisas pequenas, mas preciosas, fossem elas uma faca
cujo metal tivesse um fio extremamente afiado, um lenço de tecido
brilhante de terras distantes, um espelho melhor que metal polido ou
que um lago calmo - os tesouros não paravam, até que todos, qualquer
que fosse a sua hierarquia, fossem homem ou mulher, tivessem pelo
menos um. A cerca disto ele dizia simplesmente:
- Conheço os artífices.
A Primavera fugiu para norte, a neve derreteu, os botões explodiam em
folhas e flores, o rio encheu-se, barulhento. Pássaros voando em
migração enchiam os céus com asas e chilreados. Cordeiros, vitelos,
poldros andavam vacilantes pelos cercados. As pessoas saíam, piscando
os olhos face a esta súbita claridade; arejavam as suas casas, roupas
e almas. A Rainha da Primavera levou a imagem de Frija de quinta em
quinta para abençoar o lavrar e semear dos campos, enquanto jovens e
donzelas com grinaldas de flores dançavam em volta do seu carro puxado
a bois. Os desejos acendiam-se.
Carl ainda se afastava, mas regressava no mesmo dia. Cada vez mais se
via Jorith e ele juntos. Passeavam mesmo até aos bosques, descendo
caminhos em flor, em direção a prados, longe da vista de todos. Ela
andava como perdida em sonhos. Salvalindis, sua mãe, ralhava-lhe por
se portar de uma forma tão leviana -não se importava ela com o seu bom
nome? - até Winnithar mandar calar a mulher. O chefe era um
calculista esperto. Quanto aos irmãos de Jorith, estavam encantados.
Por fim, Salvalindis falou em privado com a sua filha. Foram para um
anexo onde as mulheres da casa se encontravam para tecer e coser,
quando não havia outros trabalhos para elas. Agora havia, por isso,
as duas estavam sozinhas na penumbra. Salvalindis pôs Jorith entre si
própria e o tear grande e com pesos de pedra, como se a quisesse
prender numa armadilha, e perguntou-lhe directamente:
- Terás sido menos indolente com esse homem Carl do que te tornaste em
casa? Ele já te possuiu?
A jovem corou, torcendo os dedos e baixando os olhos.
- Não - murmurou ela. - Ele pode fazê-lo, quando quiser. Como eu
gostaria que ele o fizesse. Mas só temos andado de mãos dadas, dado
uns beijos e... e...
-E o quê?
-Falado. Cantado canções. Rido. Ficado sérios. Oh, mãe, comigo ele
não é nada reservado. Comigo, ele é mais bondoso e terno que... que eu
pensava ser possível um homem ser. Ele fala comigo como com alguém que
sabe pensar e não simplesmente como com uma esposa.
Os lábios de Salvalindis comprimiram-se.
106

- Eu nunca deixei de pensar depois de casada. O teu pai pode ver em


Carl um aliado poderoso. Mas eu só vejo nele um homem sem terra e sem
povo, feiticeiro ou parecido com isso, mas sem raízes, sem quaisquer
raízes. Que vantagem terá a nossa casa em se aliar com ele? Bens, sim,
conhecimentos; mas para que serve isso quando os inimigos estão à
porta, ameaçadores? Que poderia ele deixar de herança aos seus filhos?
Que coisas o ligariam a ti, depois de passada ajuventude? Rapariga,
estás a ser muito insensata.
Jorith apertou os punhos, bateu o pé e gritou através de lágrimas que
eram mais de raiva que de pesar:
- Cala essa língua, velha coruja! - Imediatamente se encolheu, tão
espantada como Salvalindis.
- Atreves-te a falar assim a tua mãe? - disse esta. - Sim, ele é mesmo
um feiticeiro, que lançou um encantamento sobre ti. Deita esse broche
que ele te deu ao rio, ouviste? - deu meia volta e abandonou a sala.
As saias fizeram uma restolhada de ira.
Jorith chorou, mas não obedeceu.
E depressa tudo mudou.
Num dia em que a chuva caía como lanças, enquanto o carro de Donar
ribombava e o brilho do seu machado cegava oscéus, entrou um homem a
galope pela aldeia dentro. Quase caía da sela e o seu cavalo estava
prestes a desfalecer de fadiga. Apesar disso, acenou com uma seta e
gritou para quem atravessou a lama para o receber:
- Guerra! Os Vândalos aproximam-se!
Trazido para o salão, ele disse em frente de Winnithar:
- O aviso vem de meu pai, Aefli de Staghorn Dale. Ele soube-o através
de Dagalaif Nevittasson, que se escapou da carnificina em Elkford para
transmitir o aviso. Mas já nós em Aefli tínhamos reparado no vermelho
na linha do horizonte, onde seguramente havia quintas a arder.
- Então são dois bandos deles, não é? - murmurou Winnithar. - Pelo
menos. Provavelmente mais. Este ano apareceram mais cedo e em força.
- Como é que eles podem abandonar as suas terras em tempo de
semear? - perguntou um dos seus filhos.
Winnithar emitiu um suspiro.
- Reproduziram- mais que o necessário para o trabalho existente. Além
disso, ouvi falar num rei Hildaric, que conseguiu submeter todas as
tribos à sua autoridade. Assim eles conseguem reunir maiores hostes
que dantes, que se movem mais depressa e sob um melhor plano do que
nos é possível a nós. Sim, pode ser que Hildaric tencione pilhar estas
nossas terras, para bem do seu reino transbordante.
- Mas que havemos nós de fazer? - queria saber um velho e
valente guerreiro.
107

-Reúnam os homens da vizinhança e informem tantos quantos puderem, no


tempo disponível, como fez Aefli, se é que ele já não foi atacado.
Encontram-nos na Rocha dos Cavaleiros Gémeos como das outras vezes,
que dizem? Pode ser que juntos não tenha-mos de enfrentar uma tropa de
vândalos demasiado grande para nós.
Carl agitou- no seu assento.
- Mas que acontecerá aos vossos lares? - perguntou ele. -Atacantes
poderão ultrapassar-vos pelos flancos, sem vocês saberem e atacar as
vossas casas... -o resto ficou implícito: pilhagem, fogo, mulheres
jovens raptadas, todos os outros mortos.
- Teremos de correr esse risco. De outra forma, seremos eliminados à
peça. - Winnithar ficou silencioso. As chamas do fogo saltavam e
relampejavam. Lá fora, o vento soprava e a chuva chicoteava as
paredes. O seu olhar procurou o de Carl.
- Não temos elmo nem malha que lhe sirva. Talvez consiga arranjá-los
no sítio onde vai buscar tudo o resto.
O estranho ficou hirto. As linhas aprofundaram-se-lhe no rosto.
Os ombros de Winnithar afundaram-se.
- Bem, esta luta não tem nada a ver consigo, não é? -ele suspirou.
- Não é um teuring.
- Carl, oh, Carl! -Jorith destacou-se do grupo de mulheres. Por uns
momentos eles aproximaram-se. Ela e o homem grisalho olharam um para o
outro. Depois ele sacudiu o olhar, virou-se para Winnithar e disse:
- Não receies. Eu ficarei ao lado dos meus amigos. Mas terá de ser à
minha maneira e vocês terão de seguir os meus conselhos, quer os
compreendam ou não. Estão dispostos a isso?
Ninguém aplaudiu. Um som como o do vento atravessou o salão de um
lado ao outro.
Winnithar arranjou coragem.
- Sim - disse ele. - Agora os nossos cavaleiros que distribuam
flechas de guerra por todos. Mas os restantes celebrarão.
O que aconteceu nas semanas seguintes, nunca ninguém o compreendeu
bem. Os homens cavalgavam, montavam o acampamento, lutavam
e regressavam ou não a casa. Os que regressaram, que foram a maior
parte, contavam freqüentemente histórias fantásticas. Falavam de um
lanceiro de manto azul que atravessava o céu numa montada que não era
um cavalo. Falavam de monstros assustadores que atacavam as fileiras
dos Vândalos e luzes feéricas na escuridão e o medo cego que se
abatia sobre o inimigo, até ao ponto de largar as armas e fugir aos
gritos. Falavam do facto de, não sabiam bem como, encontrar sempre um
bando de vândalos antes de eles terem chegado a uma aldeia goda e de
como os punham em fuga, fazendo que a auséncia de saque levasse os
clãs a desistirem uns a seguir aos outros e a dispersarem.
108

Falavam de vitória. Os seus chefes pouco mais sabiam dizer.


Fora o Viandante que lhes dissera onde ir, o que esperar, a
melhor forma de se prepararem para a batalha. Foi ele quem
correu mais veloz que a tempestade ao trazer
avisos e ordens, foi ele quem arranjou auxílio a Greutung, Taifal
e Amaling, foi ele quem intimidou os arrogantes até eles trabalharem
lado a lado, como ele lhes ordenava.
Estas histórias foram progressivamente esquecidas no decurso das duas
gerações seguintes. Eram demasiado estranhas. Ou antes, ficavam
submersas entre as histórias antigas do mesmo tipo. Anses, Wanas,
cantos, feiticeiros, fantasmas, não é verdade que estes seres já se
tinham muitas vezes juntado às desavenças entre os homens? O que
interessava era que durante uns dez anos, os godos ao longo do Vístula
superior conheceram paz. Avancemos com a colheita, diziam eles: ou o
que quer que eles pretendessem fazer com as suas vidas.
Mas Carl voltou para Jorith como o salvador.
Ele não podia na realidade desposá-la. Ele não tinha parentes que
pudesse apresentar. No entanto, os homens que o podiam, tinham sempre
tomado concubinas; os Godos não consideravam isso uma vergonha, se o
homem tratasse convenientemente da mulher e dos filhos. Além disso,
Carl não era um simples mancebo, guerreiro ou rei. A própria
Salvalindis lhe levou Jorith, onde ele a aguardava num sala coberta de
flores, depois de festejos em que se trocaram esplêndidos presentes.
Winnithar mandou cortar madeira, transportou-a através do rio e
construiu-se uma boa casa para ambos. Carl queria algumas coisas
esquisitas no edifício, tais como um quarto de cama separado. Havia
também um outro quarto, que se mantinha sempre fechado à chave, a não
ser quando ele lá entrava sozinho. Nunca lá ficava muito tempo e
também nunca mais foi para o bosque de Tiwaz.
Os homens cochichavam que ele dava demasiada importância a Jorith. As
vezes acontecia eles trocarem olhares, ou afastarem--se dos outros,
como um par de jovens enamorados. No entanto... ela tratava bem da sua
casa e, de qualquer forma, quem é que se atrevia a fazer troça dele?
Ele próprio encarregou um criado da maior parte das tarefas de um
marido. Levava para casa as provisões necessárias ou o equivalente
para as trocar. E tornou-se um grande mercador. Estes anos de paz não
foram anos de indiferença. Não, trouxeram mais vendedores ambulantes
que antes, vendendo âmbares, peles, mel, sebo do Norte, vinho, vidros,
trabalhos em metal, panos, cerâmica fina do Sul e do Ocidente. Sempre
desejoso de falar com todos os desconhecidos, Cari alojava os
caminhantes com toda a
109
sumptuosidade, e ia tanto às feiras como às reuniões da assembléia.
Nessas reuniões ele, que não pertencia às tribos, era apenas
observador; mas depois da conversa do dia, as coisas animavam-
-se na sua tenda.
No entanto, os homens interrogavam-se a si próprios e as mulheres
também. Foram chegando notícias de que um homem, grisalho mas
vigoroso, que ninguém antes vira, aparecia freqüentemente entre
outras tribos godas...
Talvez fosse por causa destas ausências dele que Jorith não ficou de
imediato grávida; ou talvez fosse por ela ser ainda muito jovem,
apenas com dezasseis primaveras, quando foi para o seu leito.
Passara-se um ano até os sinais se tornarem inconfundíveis.
Embora a doença se acentuasse, a alegria transbordava dela. Mais uma
vez o procedimento dele era estranho, pois parecia preocupar- menos
com a criança que ela lhe daria que com o próprio bem-estar dela.
Chegava mesmo a vigiar o que ela comia, oferecendo-lhe frutos
estrangeiros, independentemente da estação, embora a proibisse de
comer o sal que ela desejava. Ela obedecia alegremente, dizendo que
era uma demonstração do seu amor.
Entretanto, a vida continuava nas imediações, e a morte também. Nos
enterros e nas respectivas festas, ninguém se atrevia a falar
abertamente com CarI; ele estava demasiado perto do desconhecido. Por
outro lado, os chefes que o tinham escolhido, ficaram surpreendidos
quando recusou a honra de ser o homem das redondezas a desflorar a
próxima Rainha da Primavera.
Recordando tudo o que ele já fizera e continuava a fazer por todos,
depressa se recuperaram desta desilusão.
Calor, colheita, desolação, renascimento, novamente Verão; e Jorith
estava prestes a dar à luz.
Longo foi o seu trabalho de parto. Sofreu corajosamente as suas dores,
mas as mulheres que a ajudavam começaram a ficar muito pessimistas. Os
duendes não gostariam de ver um homem ao lado dela nessa altura. Já
fora suficientemente mau quando CarI exigira condições de higiene
nunca antes vistas. Elas só esperavam que ele soubesse o que estava a
fazer. Ele esperava na sala principal da sua casa. Quando entravam
visitas,
oferecia-lhes hidromel e bebidas como era seu dever, mas falava pouco.
Quando eles saíram ao cair da noite, não dormiu, ficando sentado
sozinho no escuro até ao nascer do Sol. De vez em quanto, a parteira
ou uma ajudante vinham cá fora para lhe dizer como o parto estava a
correr. Ela sofria à luz da lamparina e via como o olhar dele
procurava contentemente a porta que mantinha fechada à chave.
No fim do segundo dia, a parteira foi ter com ele, no meio dos
110

seus amigos. O silêncio caiu sobre eles. Então o que ela trazia nos
braços produziu um gemido, e Winnithar lançou um grito. CarI
levantou-se,
com as narinas brancas.
A mulher ajoelhou-se em frente dele, destapou o cobertor e colocou, no
chão de terra, aos pés do seu pai, uma criança do sexo masculino, ainda
ensanguentada mas gesticulando echorando vi-gorosamente. Se Carl não
pegasse na criança ao colo, ela levá-la-
-ia para os bosques e abandoná-la-ia aos lobos. Ele nem sequer se
demorou a ver se a criança tinha algum defeito. Abraçou-se àque-la
minúscula forma e gemeu:
- Jorith. Como está Jorith?
- Fraca - disse a parteira. - Pode ir ter com ela agora, se quiser.
Carl devolveu-lhe o seu filho e apressou-se a entrar no quarto de cama.
As mulheres que lá se encontravam afastaram-se. Inclinou-se sobre
Jorith.
Ela estava pálida, coberta de transpiração, esvaziada. Mas quando viu o
seu homem, ergueu-se debilmente e sorriu o fantasma de um sorriso.
-Dagobert - sussurrou ela. Era esse o nome, antigo na família, que ela
desejara para a criança, se fosse um rapaz.
- Dagobert, sim - disse Carl em voz baixa. Embora fosse invulgar em
frente dos outros, inclinou-se para a beijar.
Ela baixou as pálpebras e afundou-se na palha.
-Obrigado - mal se ouvia a sua voz. - O filho de um deus...
-Não...
Subitamente, Jorith estremeceu. Por momentos agarrou-se à cabeça. Os
olhos
voltaram a abrir-se. As pupilas estavam fixas e dilatadas. Ficou
flácida. Respirava com grande dificuldade.
Carl endireitou-se, deu meia volta e saiu rapidamente do quarto. Em
frente da porta fechada, tirou a chave e entrou. Bateu com ela atrás de
si.
Salvalindis moveu-se para o lado da sua filha.
- Ela está a morrer - disse em tom átono. - Poderá a feitiçaria
salvá-la? Deverá salvá-la?
A porta proibida voltou a abrir-se. Carl saiu, acompanhado por outra
pessoa. Esqueceu-se de a fechar. Os homens vislumbraram um aparelho de
metal. Alguns lembraram-se do que tinha voado sobre os campos de
batalha.
Encolheram-se uns junto aos outros, apertaram amuletos nas mãos e
fizeram
sinais no ar.
O companheiro de Carl era uma mulher, embora vestisse umas calças e
túnica com as cores do arco-iris. As suas feiçôes eram de um tipo nunca
antes visto: largas e de maçãs-do-rosto salientes como as dos hunos, mas
de nariz pequeno, com a pele de um dourado-acobreado e com cabelo
preto-azulado. Segurava uma caixa pela pega.
Os dois correram para o quarto.
111
- Todos para fora. Todos! - rugiu Carl e enxotou as mulheres godas como
folhas perseguidas pela tempestade.
Ele seguiu-as e lembrou-se então de fechar a porta do quarto onde estava
a sua montada. Ao voltar-se, viu toda a gente a olhar para ele e a
afastarem-se assustados.
-Não tenham medo! -disse com dificuldade. -Não há aqui nada de mal. Eu
só fui buscar uma mulher sábia para ajudar Jorith.
Por momentos ficaram todos imóveis a ganhar coragem.
A estranha aproximou-se e chamou CarI. Havia algo nela que o fez gemer.
Cambaleou até junto dela e ela levou-o pelo braço até ao quarto de
dormir.
O silêncio transbordava daquele quarto.
Pouco tempo depois, ouviram-se vozes, a dele cheia de fúria e angústia,
a dela calma e inexorável. Ninguém conhecia aquela língua.
Eles voltaram. A face de Carl parecia ter envelhecido.
- Ela deixou-nos - disse. - Fechei-lhe os olhos. Preparem o seu funeral
e festejos, Winnithar, eu voltarei nessa altura.
Ele e a mulher sábia entraram no quarto secreto. Dos braços da parteira,
Dagobert bramia.
2319

Eu subira no tempo para a Nova lorque de 1930 porque conhecia a base e


o seu pessoal. O jovem de serviço tentou fazer um estardalhaço por
causa dos regulamentos, mas dele podia eu tratar. Transmitiu uma chamada
de emergência para um médico altamente especializado. Por acaso foi
Kweifei Mendoza que respondeu, embora nunca nos tivéssemos visto. Ela
fez apenas as perguntas essenciais, juntou-se a mim no saltitão e fomos
logo até à terra dos Godos. Mais tarde, no entanto, ela quis que ambos
fôsse-mos até ao seu hospital, na lua do século XXIV. Eu não estava em
condiçôes de protestar.
Obrigou-me a tomar um banho escaldante e mandou-me para a cama. Um
capacete electrónico proporcionou-me muitas horas de sono.
Porfim, acabaram por me darroupas lavadas, algo para comer (não reparei
o que era) e indicações para chegar ao gabinete dela. Sentada por detrás
duma enorme secretária, indicou-me uma cadeira. Nenhum de nós falou
durante um ou dois minutos.
Fugindo do dela, o meu olhar espalhava-se em volta. A gravidade
artificial, que mantinha o meu peso como era habitual, não

112
tornava aquele local hospitaleiro. Não por não ser bonito à sua
maneira. O ar perfumado cheirava a rosas e a trigo acabado de moer.
Aalcatifa era dum violeta-escuro pontilhada com estrelas brilhantes.
Cores subtis rodopiavam nas paredes. Uma grande janela, se é que
era janela, mostrava a grandeza das montanhas e uma cratera ao longe, o
céu negro mas dominado por uma Terra em fase quase cheia. Eu perdi-me na
visão daquele azul glorioso, coberto de turbilhões brancos.
- Bem, agente Farness - disse Mendonza lentamente em temporal, a
linguagem da Patrulha -, como se sente?
-Confuso, mas acordado-murmurei. -Não. Como um assassino.
- E certo que devia ter deixado aquela criança em paz.
Eu forcei a minha atenção a focar-se nela e respondi:
- Ela não era uma criança. Não naquela sociedade, ou na maior parte das
sociedades em toda a história. A relação ajudou-se imenso a conseguir a
confiança da comunidade, portanto, a executar a minha missão. Não que o
tivesse feito a sangue-frio, acredite-me. Nós estávamos apaixonados.
- Que diz a sua mulher a tudo isto? Ou não lhe falou no assunto?
A minha defesa esgotara-me demasiado para que me ressentisse com o que
poderia ser considerado uma curiosidade excessiva.
-Sim, eu falei-lhe... perguntei-lhe se se importava. Ela pensou nisso e
decidiu que não. Lembre-se que passámos a nossa juventude nos anos de
1960 e 1970... Não, não deve ter ouvido falar, mas foi um período de
revolução nos costumes sexuais.
Mendoza sorriu tristemente.
- As modas vão e vêm...
- Nós éramos monogâmicos, a minha mulher e eu, mas mais por escolha que
por princípio. E repare, eu visitava-a com frequência. E amo-a. De
verdade.
- E é claro que ela achou melhor deixá-lo gozar o seu romance de homem
de meia-idade... - contrapôs Mendoza.
Isso doeu.
- Mas não era! Já lhe disse que amava Jorith, a rapariga goda, eu
também a amava... - A dor apertava-me a garganta. -Não havia
absolutamente nada que pudesse fazer por ela?
Mendoza abanou a cabeça. As suas mãos descansavam calma-mente sobre a
secretária. O seu tom suavizou-se.
-Já lhe disse. Explicar-lhe-ei em pormenor, se o desejar. Os
instrumentos... não interessa o modo como funcionam... mostraram um
aneurisma na artéria cerebral anterior. Não fora suficientemente grave
para manifestar sintomas, mas o esforço de um parto difícil, longo e
primíparo provocou uma ruptura. Não seria bom
para ela reanimá-la, depois de uma lesão cerebral tão extensa.
113
- Não podia ter reparado essa lesão?
- Bem, podíamos ter trazido o corpo para mais tarde, no tempo,
reanimado os pulmões e o coração e utilizado a técnica de cIone dos
neurónios para produzir uma pessoa que se parecesse com ela, mas que
teria de aprender quase tudo do princípio. O meu grupo não faz esse
tipo de operações, agente Farness. Não é que nos falte compaixão, é
apenas por já termos demasiadas chamadas para ajudar o pessoal da
Patrulha e as suas... famílias oficiais. Se começássemos a abrir
excepções, ficaríamos inundados. Compreende que nem mesmo assim
recuperaria a sua querida. Ela não seria a mesma.
Eu reuni a força de vontade que me restava.
- Suponha que descíamos no tempo, anteriormente à gravidez dela... -
disse eu. - Podíamos trazêla até aqui, tratar dessa artéria, limpar as
memórias dessa viagem e devolvêla ao seu meio... para viver uma vida
saudável?
- São os seus anseios a falarem. A Patrulha não altera os acontecimentos
passados. Conserva-os.
Mundei-me ainda mais na minha cadeira. Contornos variá-veis tentavam, em
vão, confortar-me.
Mendoza abrandou.
- Mas não se sinta demasiado culpado - disse ela. - Você não podia saber
disso. Se a rapariga tivesse casado com outro qualquer, como seguramente
teria acontecido, o fim seria o mes-mo. Fiquei com a impressão que a fez
mais feliz que a maior par-te das mulheres da época dela. - O tom dela
ganhou força: -Quanto a si, no entanto, inflingiu a si próprio uma
ferida que leva-rá longo tempo a sarar. Nunca sarará, a não ser que
resista à ten-tação suprema... continuar a voltar atrás no tempo, até ao
tempo em que ela vivia, vêla, estar com ela. Isso é proibido, sob
amea-ça de severas penalidades e não só por causa dos riscos que poderá
trazer para essa corrente do tempo. Destruiria, destruiria até a sua
própria mente. E nós precisamos de si. A sua mulher pre-cisa de si.
- Sim - consegui dizer.
- Bastante difícil será observar os seus descendentes e dela sofrerem o
que terão de sofrer. Pergunto a mim própria se não seria melhor
transferir-se completamente desse projecto...
- Não. Por favor...
- Por que não? - lançou-me ela.
- Porque... não os posso abandonar sem mais nada... como se Jorith
tivesse vivido e morrido para nada.
-Essa decisáocaberá aos seus superiores. Nomínimorecebe-rá uma severa
reprimenda, tão próximo do buraco negro quanto épossível. Nunca mais
poderá interferir ao nível que o fez agora -
114
Mendoza fez uma pausa, observou-me, afagou o queixo e murmurou. - A não
ser que sejam necessárias certas medidas parar estabelecer o
equilíbrio... Mas isso não é do meu pelouro.
O seu olhar virou-se para a infelicidade espelhada no meu rosto.
Subitamente inclinouse sobre a secretária, fez menção de me estender a
mão e disse:
- Ouça bem, CarI Farness. Vão pedir-me a opinião quanto ao seu caso. Foi
por isso que o trouxe para aqui e o quero manter aqui uma semana ou
duas... para ficar com uma ideia mais clara. Mas para já, e, meu amigo,
acredite, que você não é um caso único em milhões de anos de operações
da Patrulha!, fiquei com a impressão de que você é um tipo decente, que
talvez tenha errado, mas essencialmente devido à falta de experiência.
»Acontece, aconteceu e acontecerá, vezes e vezes sem conta. O
isolamento, apesar das licenças em casa e das ligações com colegas
prosaicos como eu. Fascínio, apesar de uma preparação prévia; choque
cultural; choque humano. Você presenciou o que para si era infelicidade,
pobreza, sordidez, ignorância, tragédia dispensável. Pior que isso,
insensibilidade, brutalidade, injustiça, mortícinio arbitrário. Não era
possível ver tudo isso e não se sentir magoado. Tinha de provar que os
seus godos não eram piores que você pró-prio, mas apenas diferentes; e
tinha de procurar para além dessa diferença a identidade subjacente; e
depois tinha de tentar ajudá-los, e se, ao longo do caminho, encontrasse
uma porta aberta pa-ra algo de querido e maravilhoso...
»Sim, inevitavelmente, os viajantes no tempo, incluindo patru-lheiros,
formam ligações. Eles têm de agir, e muitas vezes essas acçoes são de
carácter íntimo. Geralmente, não representam qualquer ameaça. Que
interesse poderia ter a ascendência preci-sa, obscura e remota até mesmo
de uma figura-chave da história? O continuum cede mas recupera mais
tarde. Se se forçam os limi-tes, bem, então a questão tornase impossível
de responder, sem significado, quer tais acções Infimas tenham
modificado o passa-do ou tenham «sempre» feito parte dele.
»Náo se sinta demasiado culpado, Farness -concluiu ela, cal-mamente. -
Gostaria também de iniciar a sua recuperação deste choque e da sua dor.
Você é um agente de campo da Patrulha do Tempo; não será este o último
luto por que passará.

302-33O

Carl foi fiel à sua palavra. Silenciosamente, apoiado à sua lança,


observou os parentes de Jorith a colocarem-na na terra e a
amontoarem pedras sobre ela. Depois, ele e o pai dela honraram-
115
-na com uma festa para a qual foram convidados todos os vizinhos
e que durou três dias. Ali ele só falava quando lhe dirigiam a pa-lavra,
embora nessa altura respondesse educadamente no seu mo-do senhorial.
Embora não tentasse refrear a alegria de ninguém, a festa foi mais
sossegada que a maioria.
Quando os convidados já tinham partido e CarI estava solita-riamente à
lareira, acompanhado somente por Winnithar, disse ao chefe:
- Amanhã também me vou embora. Não me verão novamen-te com frequência.
-Já fizeste então aquilo para que vieste?
- Não, ainda não.
Winnithar não perguntou o que era. CarI suspirou e acrescentou:
-Tanto quanto Weard o permitir, tenciono proteger a tua ca-sa. Mas pode
não ser muito o que poderei fazer.
Ao crepúsculo, despediu-se e partiu. Os nevoeiros gelados pairavam
pesadamente, depressa o escondendo da vista dos homens.
Nos anos que se seguiram, as lendas foram-se acumulando. Alguns pensavam
vislumbrar a sua estatura alta ao anoitecer, entrando no túmalo, como
se de uma porta se tratasse. Outros diziam que não; ele levara-a consigo
pela mão. As memórias que conser-vavam dele perderam progressivamente
toda a humanidade.
Os avós de Dagobert receberam-no, encontraram-lhe uma ama e criaram -no
como seu próprio filho. Apesar do seu nascimento misterioso, Não foi
ostracizado nem deixado ao abandono. Em vez disso, as pessoas
consideravam a sua amizade digna, porque ele estava desinado a grandes
feitos; e, por isso, devia aprender a honra e os modos adequados, assim
como a perícia do guerreiro, do caçador e do marido. Não era a primeira
vez que se falava em filhos dos deuses. Eles tornavam-se heróis, ou
mulheres
sábias e belas, mas eram apesar de tudo mortais.
Três anos mais tarde, CarI visitou-os brevemente. Ao ver o seu filho,
murmurou.
- Como ele se parece com a mãe!
- Sim, na cara - concordou Winnithar -, mas não lhe faltará virilidade;
já é bastante evidente, CarI.
Mais ninguém se atrevia agora a tratar o Viandante pelo seu nome - nem
pelo nome que supunham ser o correcto. A mesa, enquanto bebiam, faziam
como ele queria, contando-lhe as histórias e os versos que tinham ouvido
ultimamente. Ele perguntava de onde tinham vindo e eles indicavam-lhe um
bardo ou dois que ele dizia ir visitar. E visitava, mais tarde, e os
autores consideravam-se com sorte por terem atraído a sua atenção. Ele,
pelo seu lado, contava coisas de encantar como dantes. No entanto,
agora demorava-se
116
pouco, e estava anos sem voltar.
Entretanto Dagobert crescia, um rapaz expedito, alegre, bem-parecido e
bem-amado. Contava doze anos quando acompanhou os seus mei~irmáos, os
dois filhos mais velhos de Winnithar, numa viagem para sul, com uma
tripulação de mercadores. Passaram lá o Inverno e voltaram na Primavera
a transbordar de maravilhas. Sim, as terras longínquas eram terras
disponíveis, ricas, extensas, atravessadas poro rio Dnieper, quefazia o
Vístula parecer um ria-cho. Os vales a norte eram densamente
arborizados, mas para sul o campo estendia-se aberto, com pastagens para
as manadas e re-banhos, como uma noiva à espera do arado do agricultor.
Quem as possuísse, ficaria também no caminho de uma corrente de
merca-dorias que atravessava os portos do mar Negro.
Por enquanto, poucos godos se tinham mudado para ali. Eram as tribos
ocidentais que tinham na realidade percorrido o grande caminho,
penetrando nas terras a norte do Danúbio. Estavamjun-to da fronteira
romana, o que significava uma enchente de comér-cio. Do ponto de vista
negativo, se houvesse uma guerra, os Roma-nos continuavam formidáveis -
especialmente se conseguissem pôr termo à sua instabilidade interna.
O Dnieper corria a uma distância confortável do Império. E certo que os
Heruís tinham descido do norte e se tinham instala-do ao longo da costa
Azov: homens selvagens, que indubitavelmen-te provocariam distúrbios. No
entanto, exactamente por serem tão bicho do mato, desprezando o uso de
malha ou a 1 ta em fileiras, eram menos de temer que os Vândalos. Também
e~a verdade que a norte e a oriente deles se acoitavam os Hunos,
c-~yaleiros, cria-dores de gado, parecidos com duendes na sua fealdade,
sujidade e sede de sangue. Dizia-se que eram os guerreiros mais temíveis
do mundo. Mas nesse caso maior era a glória de os vencer quando
ata-cados; e uma aliança goda poderia vencê-los, porque eles estavam
divididos em clâs e tribos, com mais probabilidades de lutarem en-tre si
que pilharem quintas e cidades.
Dagobert ardia em desejos de partir e os seus irmãos estavam ansiosos.
Winnithar aconselhava calma. Era conveniente in-formarem-se melhor,
antes
de tomarem uma decisão que seria irrevogável. Além disso, quando
chegasse a altura, não deviam ir algumas famílias separadas, presa fácil
dos salteadores, mas em força. Parecia que em breve isso se tornaria
possível.
Porque estes eram os tempos em que Geberic, da tribo dos greutung,
estava a unir as tribos dos godos orientais. Algumas ele atacou e
submeteu à sua vontade, outras foram convencidas a juntarem-se-lhes,
quer
através de ameaças quer de promessas. Entre estes últimos contavam-se os
teuring, que no décimo quinto ano de Dagobert proclamaram Geberic seu
rei.
Isso queria dizer que lhe pagavam um tributo, não muito pesado;
enviavam-lhe homens para lutar por ele quando tal lhes era
117
solicitado, a não ser que fosse a época da sementeira ou da colheita; e
acatavam as leis que a Grande Assembleia decretava para todo o reino. Em
troca, não tinham de recear os godos que se lhe tives-semjuntado, mas
obtinham antes o auxilio destes contra inimigos comuns; o comércio
floresceu; e eles próprios tinham homens na Grande Assembleia anual,
para falar e votar por eles.
Dagobert portou-se bem nas guerras do rei. Nos intervalos, viajava para
sul, como capitão da guarda dos bandos de vendedo-res ambulantes. Por
isso viajou bastante e aprendeu muito.
Não se sabe bem como, as raras visitas de seu pai coincidiam sempre com
os períodos em que ele estava em casa. O Viandante dava-lhe muitos
presentes e conselhos sábios, mas a comunicação entre eles era um pouco
forçada, porque que coisas teria umjovem a dizer a uma pessoa daquelas?
Dagobert dirigia os sacrifícios feitos no santuário que Winni-thar
construíra no local onde existira a casa em que ele nascera. Winnithar
queimara essa casa, para que ele tivesse a casa que fi-cava por detrás
desta. Estranhamente, nesta cerimónia, o Vian-dante proibira o
derramamento de sangue. Apenas os primeiros frutos da terra poderiam
servir de oferenda. Espalhou-se a histó-ria que as maças atiradas ao
fogo em frente da pedra se transfor-mavam nas Maças da Vida.
Quando Dagobertjá era adulto, Winnithar procurou uma boa esposa para
ele. Foi Waluburg, uma donzela forte e graciosa, filha de Optaris de
Staghorn Dale, que era o segundo homem mais po-deroso entre os teuring.
O Viandante abençoou o casamento com a sua presença.
Estava também presente quando Waluburg deu à luzo seu pri-meiro filho,
um rapaz chamado Tharasmund. Nesse mesmo ano nasceu o primeiro filho do
rei Geberic que chegou à idade adulta, Ermanaric.
Waluburgprosperou dando ao seu marido filhos saudáveis. No entanto,
Dagobert continuava inquieto; as pessoas murmuravam que era o sangue de
seu pai a manifestar-se nele, e que ele ouvia o vento no fim do mundo a
chamá-lo sem cessar. Quando voltou da sua viagem seguinte ao sul, trouxe
notícias de que um chefe roma-no chamado Constantino tinha finalmente
vencido os seus rivais e se tinha tornado senhor de todo o Império.
Talvez isto tivesse incitado Geberic, apesar da grande activi-dade que
oreijá desenvolvera até à data. Ele passou mais alguns anos a unificar
os Godos do oriente; depois, chamou-os ajuntarem-se-lhe para acabar com
a
peste dos Vândalos.
Nesta altura, já Dagobert decidira que se iria mudar para o sul.
O Viandante dissera-lhe que isso seria bastante sensato; era es-se o
destino dos Godos e o melhor era ele ser dos primeiros e dis-
118
por de terras por onde escolher. Começou a falar disto aos pequenos e
grandes proprietários, pois sabia bem que o seu avô tinha ra-zão
ao dizer que deviam ir em força. No entanto, quando a chama-da para a
guerra chegou, ele não podia, em sua honra, deixar de responder à
chamada. Partiu à frente de mais de uma centena de homens.
Foi uma luta violenta, terminando numa batalha que en-gordou os lobos e
os corvos. Ali pereceu o rei vândalo Visimar. Também ali morreram os
filhos mais velhos de Winnithar, que es-peravam poder partir com
Dagobert. Ele sobreviveu, nem sequer gravemente ferido, e ganhou grande
fama pela sua bravura. AI-guns diziam que o Viandante o protegera no
campo de batalha, fe-rindo com a sua lança os inimigos, mas isso sempre
foi negado por Dagobert.
- O meu pai estava lá, sim, para estar comigo na noite antes do último
encontro... nada mais. Falámos de muitas coisas e al-gumas delas bem
estranhas. Eu pedi-lhe que não me humilhasse lutando em meu lugar, e ele
disse que não era essa a vontade de Weard.
O resultado foi os Vândalos serem expulsos, vencidos e obrigados a
abandonar as suas terras. Depois de vaguearam de um lado para o outro,
para lá do rio Danúbio, durante alguns anos, ainda perigosos mas
miseráveis, pediram autorização ao imperador Constantino para se
instalarem no seu reino. Nada averso a ter guerreiros frescos a defender
os seus pântanos, deixou-os ir para a Pannonia.
Entretanto, Dagobert deu por si como chefe dos Teuring, através do seu
casamento, da sua herança e do nome que conquistara. Demorou algum tempo
a preparar a sua gente e levou-os enfim para sul.
Poucos ficaram para trás, tão brilhante era a esperança. Entre os que
ficaram contava-se Winnithar e Salvalindis. Quando os carros já se
tinham
afastado, a chiar, o Viandante foi ter com estes dois, uma última vez,
e foi bondoso para eles, em consideração pelo que se tinha passado e por
ela que dormia nas margens do rio Vístula.

1980

Manse Everard não foi o oficial que me deu uma ensaboadela devido à
minha temeridade e só dificilmente concordou em me deixar continuar
nesta missão. Principalmente, resmungou ele, devi-do aos pedidos de
Herbert Ganz, pois não tinha ninguém que me
substituísse. Everard tinha as suas razões para se manter afasta-
119
do. Essas razões acabaram por se tornar evidentes, bem como ofac-to de
ele ter estudado os meus relatórios.
Entre o século iv e o século xx, tinham-se passado dois anos do meu
tempo
de vida pessoal, desde que perdera Jorith. Aminha dor já se atenuara
para um único desejo: que ela pudesse ter gozado um pouco mais da vida
que tanto amara e tornara tão digna de ser vivida! Excepto às vezes
quando se erguia em toda a sua força e me atingia novamente. Com a sua
maneira de ser calma, Laurie aju-dara-me a aceitar os factos. Nunca
antes compreendera bem até que ponto é que ela era uma pessoa
maravilhosa.
Eu estava em casa, de licença, em Nova lorque, em 1932, quando Everard
me contactou, pedindo uma outra conferência.
- Apenas algumas perguntas, um par de horas de trabalho - disse ele -, e
depois podemos ir passear pela cidade. A sua mulher também, claro. Já
alguma vez viram a Lola Montez no seu auge? Tenho bilhetes, para Paris,
1843.
Já era Inverno, naquela época. A neve caía em turbilhões, visível
através das janelas do seu apartamento, transformandoo numa caverna de
quietude branca.
Ele deu-me um copo de grogue e perguntou-me quais eram os meus gostos em
matéria de música. Acordámos numa execução de koto, por um tocador
medieval japonês, cujo nome as crónicas esqueceram, mas que foi o melhor
que já alguma vez existiu. As viagens no tempo têm as suas recompensas,
assim como as suas exigências.
Everard levou o seu tempo a encher e a acender o cachimbo.
-Nunca entregou um relatório sobre a sua relação com Jorith
- disse ele num tom quase casual. - Só se descobriu no decurso
do inquérito, depois de ter mandado chamar Mendoza. Porquê?
-Era... pessoal -respondi eu. -Não considerei que disses-se respeito a
ninguém. Oh, eles avisaram-nos em relúção a este ti-po de coisas na
Academia, mas os regulamentos não o proibem concretamente.
Olhando para a sua cabeça escura e inclinada, senti de uma forma
estranha que elejá devia ter lido tudo o que eu escreveria no futuro.
Ele conhecia os meus futuros pessoais muito melhor que eu próprio - como
eu apenas os conheceria depois de passar por eles. Raras vezes é
necessário reforçar a regra que proibe um agente de conhecer o seu
destino; é das coisas menos desejáveis e que pode acontecer com a maior
facilidade.
- Bem, não pretendo repetir a reprimenda que já recebeu -disse
Everard. - Na realidade, aqui entre nós, penso que o coor-denador
Abdullah foi desnecessariamente formal. Os operadores devem usar o seu
poder de decisão, ou nunca conseguiriam levar a bom termo as suas
missões, e muitos outros estiveram mais per-
120
to de se queimar que voce.

Ele demorou um minuto a acender o cachimbo antes de continuar, através


do fumo azul:
- No entanto, gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre um ou outro
pormenor. Mais para observar a sua reacção que pa-ra investigar bases
filosóficas profundas; embora admita que tam-bém me sinto curioso.
Compreende, com base nisso, talvez lhe pos-sa dar alguns conselhos úteis
sobre a forma de proceder. Não sou um cientista, mas tenho andado por
muitas épocas históricas, pré-históricas e até mesmo pós-históricas,
bastantes mesmo.
- Com certeza que andou - concordei com enorme respeito.
- Bem, chega de introduções, vamos ao mais óbvio. No prin-cípio,
interferiu numa guerra entre os Godos e os Vândalos. Como justifica
isso?
-Respondi a essa pergunta no inquérito, Sr.... Manse. É claro que não
matei ninguém, aliás a minha vida nunca esteve em peri-go. Ajudei a
organizar, coligi informações, inspirei medo no ini-migo, andando ali às
voltas a sobrevoar com antigravidade, pro-jectando ilusões, projectando
os raios subsónicos. Na realidade, fazendoos entrar em pânico, salvei
vidas em ambos os lados. Mas o meu principal motivo foi ter gasto muito
esforço, esforço da Patrulha, para estabelecer uma base na sociedade
que me propunha estudar e os Vândalos ameaçavam destruir essa base.
-Não receou provocar uma mudança nos acontecimentos posteriores?
-Não. Oh, talvez devesse ter pensado mais cuidosamente no assunto e
obtido a opinião de peritos, antes de agir. Mas parecia quase um exemplo
típico de manual de estudo. Era apenas um ata-que em grande escala que
os Vândalos tinham montado. Não era referido em sítio algum da história
registada. O resultado, qual-quer que ele fosse, era insignificante...
excepto para os indivíduos, alguns dos quais eram também importantes
para a minha missão, assim como para mim. E quanto à vida desses
indivíduos, e à linha de descendentes que eu próprio iniciei, atrás no
tempo, bem, são flutuações estatísticas infimas no reservatório
genético. Depressa se equilibram.
Everard carregou o sobrolho.
- Está a dar-me os argumentos habituais, CarI, exactamente o que fez com
a comissão de inquérito. Foi ilibado por eles. Mas hoje não se preocupe
com isso. O que eu estou a tentar instilar-lhe, não no seu cérebro mas
na suamedula, é que a realidade nunca se-gue bem os livros de estudo, e
às vezes não os segue mesmo nada.
- Acredito que começo agora a compreender isso - a minha humildade era
genuína. -Nas vidas que seguimos, abaixo no tempo. Não temos o direito
de dominar as pessoas, não é verdade?
Everard sorriu, e senti-me em liberdade para saborear um
longo golo do meu copo.
121
- Óptimo. Deixemos as generalidades e entremos nos porme-nores do que
você está na realidade a tentar fazer. Por exemplo, deu aos seus godos
coisas que eles nunca teriam sem a sua inter-venção. Os presentes
físicos não sáoo problema; esses apodrecerão ou enferrujar-se-ão e
depressa desaparecerão. Mas relatos do mundo e histórias sobre culturas
estrangeiras.
-Eu tinha de me tornar interessante, não acha? Por que outra razão é que
eles haviam de recitar coisas velhas e familiares para eu ouvir?
- Mmm..., claro, claro. Mas repare, o que lhes contou não poderia entrar
no seu foclore, alterando o próprio objecto do seu estudo?
Permiti-me um sorriso.
- Não. Neste caso fiz correr previamente um estudo psico-social e
utilizei-o como guia. Acontece que as sociedades deste tipo têm memórias
colectivas altamente selectivas. Lembre-se de que são analfabetos e
vivem
num mundo mental em que as mara-vilhas são vulgares. O que eu contei,
digamos, acerca dos Romanos apenas acrescentou pormenores à informação
que eles já obtinham dos viajantes; e esses pormenores depressa se
misturariam com o nível geral dos seus conceitos sobre Roma. Quanto ao
mate-rial mais exótico, bem, o que era alguém como Cuchulainn senão mais
um herói predestinado, como todos os outros sobre os quais eles ouviam
histórias? O que era para eles o Império Han senão mais um país fabuloso
para lá do horizonte? Os meus ouvintes imediatos ficavam
impressionados; mas depois passavam estas histórias a outros, que
integravam tudo nas sagas já existentes.
Everard acenou com a cabeça.
....... - deu mais umas passas no seu cachimbo e disse abruptamente: - E
quanto a si próprio? Você não é um amontoa-do de palavras; é uma pessoa
concreta e enigmática, que aparece constantemente entre eles. Você
propõe--se faze--lo durante várias gerações. Está a montar negócio como
deus?
Essa era a pergunta mais difícil, para a qual demorarabastan-te tempo a
preparar-me. Deixei que outro golo da minha bebida me escorresse pela
garganta e me aquecesse o estômago, antes deres-ponder lentamente:
- Sim, receio bem que sim. Não que fosse essa a minha inten-ção, nem o
meu desejo, mas parece que aconteceu realmente.
Everard mal se mexeu. Preguiçosamente, como um leão, arrastou as
palavras:
- E mantém que isso não faz qualquer diferença histórica?
-Mantenho. Porfavor, ouça-me. Nunca declarei ser um deus, nem exigi
prerrogativas divinas, nem nada no género. Nem tenciono faze-lo.
Aconteceu simplesmente. O facto é que apareci sozinho,
122
vestido como uma viajante, mas não como um vadio. Levava uma
lança porque é essa a arma que um homem a pé deve ter. Sendo do século
XX, sou mais alto que a média dos homens do século IV, mesmo entre os
tipos nórdicos. Os meus cabelos e barba são grisalhos. Contei histórias,
falei de terras distantes, e, sim, voei no céu e es-palhei o pânico
entre os inimigos. Não o pude evitar. Mas não criei, repito, não criei
nenhum deus novo. Correspondia simplesmente a uma imagem que elesjá
veneravam há muito tempo e, com o cor-rer do tempo, uma ou duas gerações
mais tarde, partiram do prin-cípio que eu devia ser ele.
- Qual é o nome dele?
-Wodan, entre os Godos. Relacionado com o Wotan germânico ocidental, o
Woden inglês, o Wons frísio, etc. A versão escandi-nava mais recente é a
mais conhecida: 0din.
Fiquei surpreendido por verificar que Everard ficara admirado. E claro
que os relatórios que enviava ao ramo guardião da Patrulha eram muito
menos pormenorizados que as notas que es-tava a compilar para Ganz.
-Hum? Odin? Mas ele só tinha um olho e era o patrão dos deu-ses, o que,
segundo eu depreendo, você não era... ou era?
-Não - quão agradável era voltar ao ritmo académico. -Está a pensar no
Eddic, no Odin dos Vikíngues. Mas esse pertence a uma era diferente,
séculos mais tarde e umas centenas de quilómetros mais a noroeste.
»Para os meus Godos, o patrão dos deuses, como você lhe chama, é Tiwaz.
Provém directamente do panteão indo~uropeu,jun-tamente com os outros
Anses, opondo-se às divindades nativas ctonianas como os Wanes. Os
Romanos identificavam Tiwaz com Marte, porque ele era o deus da guerra,
mas era muito mais que isso.
»Os Romanos pensavam que Donar, a quem os Escandinavos chamavam
Thor,devia ser o mesmo que Júpiter, porque contro-lava o tempo; mas para
os
Godos, ele era um filho de Tiwaz. O mesmo acontecia com Wodan, que os
Romanos identificavam com Mercúrio.
- Então a mitologia evoluiu com o passar dos tempos, não é? sugeriu
Everard.
- Isso mesmo - disse eu. - Tiwaz diluiu-se para Tyr de Asgard. Poucas
recordações sobreviveram dele, excepto o facto de ter sido ele quem
perdeu uma mão ao prender o Lobo que destruirá o mundo. No entanto,«tyr»
como substantivo comum é um sinónimo de «deus» em escandinavo antigo.
»Entretanto, Wodan, ou Odin, ganhou importância, até se transformar no
pai dos outros. Eu penso, embora seja algo que ainda teremos de
investigar um dia, eu penso que foi porque os Escandinavos se tornaram
num povo extremamente aguerrido. Uma
psicopompa, que adquirira ainda traços xamanísticos através da
123
influência finlandesa, era adequada a um culto limitado a guerreiros
aristocratas; ele trouxe-os para o Valhaíla. Para dizer a verdade, Odin
era bastante popular na Dinamarca e talvez até mesmo na Suécia. Na
Noruega, e na sua colónia islandesa, Thor impunha-se aos restantes.
-Fascinante -Everard suspirou. -Uma vastidão tão grande de
conhecimentos que nenhum de nós viverá o suficiente para apreender na
sua totalidade... Bem, mas fale-me da sua figura de Wodan, no século
Iv, na Europa de Leste
-Ele ainda tem dois olhos - expliquei -, mas já tem o chapéu, o manto e
a
lança, que é na realidade um bordão. Veja bem, ele é o Viandante. Foi
por
isso que os Romanos pensaram que ele devia ser Mercúrio, sob um nome
diferente, tal como pensaram que fosse o deus grego Hermes. Tem tudo as
suas raízes nas remotas tradições indo-europeias. Encontramos indícios
destes nos mitos indianos, persas, celtas e eslávicos, mas estes últimos
ainda mais deficientemente registados. Eventualmente, o meu trabalho
fará...
»De qualquer forma, Wodan-Mercúrio-Hermes é o Viandante, porque é o deus
do vento. O que resulta no facto de ele se tor-nar o patrono dos
viajantes e mercadores. Devido às suas longas viagens, deve ter
aprendido muito, por isso, e da mesma maneira, é associado à sabedoria,
poesia... e magia. Esses atributos juntam-
-se à ideia da cavalgada da morte no vento da noite; juntam-se para o
transformar na Psicopompa, o condutor dos mortos para o mundo do Além.
Everard expirou um anel de fumo. O seu olhar seguiu-o, como se
vislumbrasse um símbolo nas suas espirais.
- Associou-se a uma figura bastante poderosa, segundo me parece - disse
ele em voz baixa.
-Sim -concordei. -Repito que não era essa a minha intenção. Por acaso
até traz infinitas complicações para a minha missão. E é claro que serei
extremamente cuidadoso. Mas... é um mito que já existia. Há inumeráveis
histórias sobre as visitas de Wodan entre os mortais. A maioria são
fábulas, ao passo que algumas outras reflectem acontecimentos que
realmente se deram... mesmo assim, qual é a diferença?
Everard puxou umas fumaças do cachimbo.
-Não sei. Apesar do estudo que fiz sobre este episódio até ao momento,
não sei. Talvez nenhuma, nada. E, no entanto... já aprendi a desconfiar
dos arquétipos. Têm mais poder que qualquer ciência da história
conseguiu até agora medir. E por isso que o tenho chateado com isto,
sobre assuntos que deveriam ser óbvios
124
para mim. Mas não são, lá muito no fundo - sacudiu mais que en-
colheu os ombros. - Bem - resmungou -, esqueçamos a meta-física. Vamos
lá resolver um ou dois assuntos práticos e depois vamos buscar a sua
mulher e o meu par e vamo-nos divertir.

337

Durante todo esse dia, a batalha prosseguira violenta. Vezes sem conta
se tinham os hunos atirado contra as fileiras godas, como vagas de uma
tempestade a irromperem sobre os penhascos. As suas setas escureciam os
céus até às lanças se baixarem, as ban-deiras desfraldadas ao vendo, a
terra a tremer sob o ribombar dos cascos e os cavaleiros a atacarem.
Lutadores a pé, os godos aguentavam as suas formações. Piques
inclinados para a frente, espadas, machados e espadas de lâminas largas
brilhavam prontas para a luta, arcos tangiam e voavam pedras de
arremesso, cornetas ornejavam. Quando o choque se produzia, gritos
roucos e profundos respondiam aos gritos de guerra uivantes dos hunos.
Depois era cortar, apunhalar, arquejar, suar, matar, morrer. Quando os
homens caíam, pés e cascos esmagavam costelas e espezinhavam a carne
numa massa vermelha. O ferro abatia-se sobre os elmos, ribombando nas
cotas de malha, martelando nos escudos de madeira e nos couros
endurecidos que serviam de protecção ao peito. Os cavalos relinchavam e
gemiam, gargantas perfuradas ou jarretes de tendões cortados. Homens
feridos rosnavam e tenta-vam atacar ou lutar. Raras vezes alguém tinha a
certeza de quem atingira e de quem o ferira. A loucura inundava~,
dominavao, rodopiando negra através do seu mundo.
A certa altura, os hunos conseguiram forçar uma linha inimiga. Uivaram
a sua alegria, ao esporearem as suas montadas para os chacinar pela
retaguarda. Mas, vinda não se sabe de onde, uma nova tropa goda os
atacava, e agora eram eles que estavam encur-ralados. Poucos escaparam.
Por outro lado, os capitães hunos, que viam uma carga falhar, mandavam
tocar à retirada. Aqueles cava-leiros estavam bem treinados;
afastavam-se
do alcance das fle-chas e, por um bocado, as hostes respiravam fundo,
matavam a se-de, cuidavam dos seus feridos, lançando olhares furiosos
para o fosso que os separava.
O Sol pôs-se a ocidente, vermelho-sangue num céu esverdea-do. A sua luz
cintilava sobre orio e nas asas das aves que se alimen-tam da carne em
decomposição e que sobrevoavam o terreno. As sombras alongavam-se pelas
encostas de vegetação prateada, es-praiavam-se pelos vales,
transformavam
grupos de árvores em
manchas negras e informes. Uma brisa corria fria através da ter-
125
ra encharcada em sangue coagulado, despenteando o cabelo dos cadáveres
quejaziam amontoados, assobiando como que a chamá-
-los.
Os tambores rufavam. Os Hunos formaram esquadrões. Uma última trombeta
soou e eles iniciaram a sua derradeira investida violenta.
Embora estivessem extenuados, os godos repeliram-na, dizi-mando homens
às centenas. Dagobert armara bem e depressa a sua armadilha. Quando
recebeu as primeiras notícias de um exér-cito invasor - chacinando,
violando, saqueando e queimando-, fez apelo à sua gente para que se
reunissem sob um estandarte. Não sóos teuring, mas também outros colonos
o fizeram. Ele atraiu os hunos a esta ravina que descia até ao Dnieper,
onde a cavala-ria ficava confinada, e só então o corpo principal das
suas forças se precipitara pelas encostas de ambos os lados, barrando a
retirada.
O seu pequeno escudo redondo ficara feito em tiras. O elmo es-tava
amolgado, a cota de malha em farrapos, a espada romba, o corpo era uma
chaga de ponta a ponta. Mas apesar disso man-tinha-se na vanguarda do
centro godo e a sua bandeira ondulava sobre ele. Quando o ataque
começou, moveu-se como um gato sel-vagem.
Um cavalo escouccou enorme. Ele vislumbrou o homem que o montava: baixo
mas entroncado, coberto por peles malcheirosas debaixo da escassa
armadura que possuía, cabeça rapada com excepção duma trança, uma barba
espessa dividida ao meio e en-trelaçada, uma cara com um grande nariz de
aspecto hediondo, devido às suas muitas cicatrizes.
O huno manejava o machado com uma só mão. Dagobert afas-tou-se para o
lado, enquanto os cascos desciam com estrépito. Ele atacou e aparou a
outra arma a caminho. O aço tiniu. Faíscas cruzaram-se no crepúsculo.
Dagobert girou a sua lâmina em redor, caindo sobre a coxa do cavaleiro.
Esse golpe teria sido fatal se a ar-ma ainda estivesse afiada. Assim, o
sangue espirrou. O huno ge-meu e voltou a atacar. Acertou em cheio no
elmo do godo. Dagobert cambaleou. Conseguiu firmar-se de novo, mas o seu
inimigo desa-parecera, sugado pelo furacão da luta.
De um outro cavalo, surgido de repente, avançou uma lança. Dagobert,
meio confuso, apanhou com ela entre o pescoço e o om-bro. O huno viu~
ceder e continuou a fazer pressão no buraco aber-to na linha goda. Do
solo, Dagobert lançou a sua espada. Atingiu o braço do huno e ~lo largar
a lança. O companheiro mais próxi-mo de Dagobert acorreu com uma espada
de lâmina larga. O hu-no caiu. O seu corpo foi arrastado, preso a um
estribo.
Subitamente, a luta cessara. Vencidos, dominados pelo terror, os
inimigos sobreviventes fugiram. Não como uma hoste, mas ca-
126
da um por i, à debandada.
-Atrás deles - disse ofegante Dagobert do local onde caíra.
- Não deixem nenhum escapar-se. Vinguem os nossos mortos, tornem a nossa
terra segura... -fraco, deu uma palmada no tor-nozelo do seu
porta~standarte. O homem levou a bandeira em frente e os godos
seguiram-no, matando e matando. Poucos foram, na verdade, os hunos que
regressaram a casa.
Dagobert apalpava o pescoço. A ponta entrara pela direita. O sangue
escorreu. O troar da guerra afastou-se. Mais perto, ouviam-se os gritos
dos aleijados, homens e cavalos, e dos corvos que já voavam baixo.
Também estas vozes se dilufram para ele. Os seus olhos procuraram o
último raio de sol.
O ar tremeluzia num turbilhão. O Viandante chegara.
Desmontando do seu cavalo feérico, ajoelhou-se no esterco, apalpando com
os dedos as feridas do seu filho.
-Pai - sussurrou Dagobert, um gorgulhar através do sangue que lhe enchia
a boca.
A angústia invadiu a face que ele sempre recordara austera e
indiferente.
-Eu não posso salvar... não me é permitido salvar... eles não
deixariam... - murmurou o Viandante.
-Será... que... vencemos?
- Sim. Ficaremos livres dos Hunos por muitos anos. O teu feito...
O godo sorriu.
- Optimo. Agora leve-me, pai. CarI apertou Dagobert nos seus braços até
a morte chegare depois ainda durante muito tempo.

1933

- Oh, Laurie!
- Calma, querido. Tinha de ser...
- O meu filho, o meu filho!
- Vem para opé de mim. Não tenhas medo de chorar.
- Mas ele era tão jovem, Laurie!
- Um homem adulto, apesar de tudo. Não abandonarás os filhos dele. Os
teus netos, pois não?
-Não, nunca. Mas que posso eu fazer? Diz-me o que posso fazer por eles.
Estão condenados, os descendentes de Jorith morre-rão. Não posso mudar
isso, como poderei ajudá-los?
-Depois pensamos nisso, querido. Agora, descansa, porfavor, acalma-te,
dorme.

127

337-344

Tharamund estava no seu décimo terceiro Inverno quando o seu pai


Dagobert pereceu no campo de batalha. Apesar disso, depois de
enterrarem o seu líder num túmulo no cimo do monte, os teuring aclamaram
o rapaz como seu chefe. Era apenas um man-cebo, mas prometedor, e eles
não permitiriam que qualquer outra casa os governasse.
Além disso, depois da batalha nas margens do Dnieper, não esperavam
enfrentar perigos nos próximos tempos. Tinham es-magado uma aliança de
várias tribos de hunos. Os restantes tão depressa não se atreveriam a
atacar os Godos, o mesmo acontecen-do com os Heruis. As lutas a travar
no futuro ainda estariam pix» vavelmente longe e não seriam em defesa
mas sim em nome do rei Geberic. Tharasmund teria tempo de crescer e
aprender. Além disso, não teria ele os favores e o conselho de Wodan?
A sua mãe, Waluburg, voltou a casar com um homem chama-do Ansgar. Ele
era-lhe inferior em nobreza, mas rico, capaz e não ambicionava o poder.
Ele e ela governaram bem as suas possessões e deram um boa chefia à sua
gente até Tharasmund chegar à mai~ ridade. Se eles ficaram ainda durante
algum tempo nesse ano, antes de se afastarem para viver sossegadamente,
foi a pedido dele. A inquietação da sua linha manifestavase também nele
e queria liberdade para viajar.
O que foi muito bom, porque nesses tempos, muitas mudanças se deram no
mundo. Um chefe deve conhece-las antes de tentar lidar com elas.
Roma estava novamente em paz consigo própria, embora, antes de morrer,
Constantino tivesse dividido o governo do Império entre oOriente e o
Ocidente. Para centro de governo do Oriente, ele escolhera Bizâncio,
dand~lhe o seu próprio nome. Cresceu rapidamente em tamanho e riqueza.
Depois de recontros em que sofreram grandes derrotas, os Visigodos
fizeram um tratado com Roma e o comércio floresceu através do rio
Danúbio.
Constantino proclamara Cristo o único Deus do Estado. Porta-
-vozes dessa fé viajaram muito e para longe. Os Godos ocidentais aderiam
cada vez mais. Os que se mantinham fiéis a Tiwaz e Frija preocupavam~
muito com isso. Não só os deuses antigos poderiam zangar-se e trazer
desgraça a um povo mal agradecido; mas também a aceitação do novo deus
abria caminho para Constantinopla aumentar o seu poder, sem nunca
desembainhar uma espada. Os Cristãos diziam que isso era menos
importante que a salvação; além disso, de um ponto de vista mundano, era
melhor pertencer ao Império que estar de fora. Com o passar dos anos, o

128
ressentimento cresceu entre as facções.
Longe de tudo isso, os Ostrogodos só lentamente tomaram consciência
destes problemas. Os cristãos entre eles eram, na maior parte, escravos
trazidos das terras do ocidente. Havia uma igreja em Olbia, mas era para
uso dos comerciantes romanos: de madeira, pequena e miserável quando
comparada com os templos antigos de mármore, embora o seu interior
ecoasse agora algo vazio. No entanto, com o incremento do comércio, os
habitantes das terras interiores também começaram a conviver com
cristãos, aí-guns deles padres. Aqui e ali, mulheres livres recebiam o
baptismo e alguns homens também.
Os teurings não permitiriam tal coisa. Os seus deuses eram bons para
eles, assim como para todos os Godos do Oriente. Vas-tos acres de terras
produziam riquezas; bem como as trocas a norte e a sul, e o seu quinhão
do tributo pago pelos povos que o rei tinha dominado.
Waluburge Ansgar construfram uma nova casa que seria dig-na dofilho de
Dagobert. Erguia-se na margem direita do Dnieper, numa elevação com
vista
sobre o rio cintilante, o ondular do ven-to sobre a vegetação e as
terras de cultura, os maciços de árvores onde as aves faziam os seus
ninhos em bandos que escondiam os céus. Dragões esculpidos erguiam-se
sobre os seus frontões; armações douradas de alces e de bisontes sobre
as portas; os pilares interiores apresentavam as imagens de
deuses- excepto Wodan, para o qual fora reservado um santuário ricamente
decorado ali perto. Anexos espalhavam-se em seu redor, bem como casas
mais modestas, até a povoação quase poder ser considerada uma aldeia. A
vida expandia-se por todo o lado, homens, mulheres, crianças, cavalos,
cães, carros, armas, ruídos de conversas, riso, canções, passadas nas
pedras do pavimento, martelos, serras, rodas, fogo, juramentos e, de vez
em quando, alguém a chorar. Uma telheiro junto à água protegia um barco,
quando este não andava em viagem, e o desembarcadouro recebia
frequentemente embarcações que atravessavam o rio transportando as suas
maravilhosas mercadorias.
Heorot, foi o nome que deram à mansão, porque o Viandante, sorrindo
tristemente, dissera que era o nome de uma habitação fa-mosa no norte.
Ele aparecia com intervalos de alguns anos, apenas por alguns dias de
cada vez, para escutar o que havia para escutar.
Tharasmund cresceu mais moreno que seu pai, de cabelos cas-tanhos, mais
pesado de ossatura, de feições e de alma. O que não eramau, pensavam os
teurings. Deixaram-noqueimar os seus de-sejos de aventura cedo, obtendo
conhecimentos ao faze-- lo; depois disso, assentaria e chefiá-los-ia
sobriamente. Eles sentiam que iriam necessitar de uma mão segura a
dirigi-los. Tinham-lhes chegado histórias de um rei que andava a reunir
os Hunos como
Gebericjá fizera com os Ostrogodos. As notícias que chegavam da
129
pátria mais a norte eram que ofilho de Geberic e provável herdei-ro,
Ermanaric, era um homem cruel e prepotente. Para além disso, havia
grandes probabilidades de, em breve, a casa real se mudar para o sul,
para longe dos pântanos e da humidade, descendo para estas terras
soalheiras, onde o grosso da nação estava agora instalado. Os teurings
quenam um chefe que defendesse os seus direitos.
A última viagem empreendida por Tharasmund foi quando ele tinha
dezassete Invernos e demorou três anos. Levou~ através do mar Negro até
à própria Constantinopla. A partir daí, o barco ini-ciou a viagem de
regresso; e foram essas as únicas notícias que os seus familiares
receberam dele. Mas apesar disso, não se preocu-param -porque o
Viandante oferecera~ para acompanhar o seu neto durante toda a viagem.
Depois disso, Tharasmund e os seus homens tiveram histórias para alegrar
os serões até ao fim das suas vidas. A seguir à sua estada em Nova Roma,
maravilhas sobre maravilhas, aconteci-mentos uns a seguir aos outros,
foram por terra, atravessando a província de Moesia, até ao Danúbio. Na
sua outra margem, ins-talaram~ durante um ano entre os Visigodos. O
Viandante insis-tira nisso, dizendo que Tharasmund devia criar amizades
entre eles.
E a verdade é que o jovem conheceu Ulrica, uma filha do rei Athanaric.
Esse homem poderoso ainda venerava os velhos deu-ses; e o Viandante
tambémjá aparecera algumas vezes no seu rei-no. Por isso, alegrara-se
por
formar uma aliança com uma casa de chefes do leste. Quando aos jovens,
davam-se bem. Já nessa altu-ra Ulrica era altiva e dura, mas não havia
dúvidas que dirigiria bem a sua casa, daria à luz crianças saudáveis e
apoiaria o mari-do nos seus empreendimentos. Chegara-se a um acordo:
Thara-mund seguiria para casa, presentes e garantias seriam trocadas
entre ambos os lados e daí a cerca de um ano a noiva iria ter com ele.
O Viandante ficou apenas uma noite em Heorot, antes de se despedir.
Dele, Tharasmund e os restantes relacionaram pouco mais que o facto de
os orientar sabiamente, embora desapareces-se frequentemente por longos
períodos. Ele era demasiado estra-nho para ser assunto de falatório.
No entanto, uma vez, anos mais tarde, quando Erelieva esta-va deitada a
seu lado, Tharasmund dissera-lhe:
- Eu abri-lhe o meu coração. Era o que ele queria e escu-tou-me
atentamente, e, não sei bem como, era como se o amor e o sofrimento
vivessem lado a lado por detrás daqueles olhos.
130

1858
Ao contrário da maior parte dos agentes da Patrulha com uma certa
patente, Herbert Ganz não abandonara o seu ambiente de origem. Já de
meia-idade quando fora recrutado, e solteirão em-pedernido, gostava de
ser o Herr Prof. da Universidade de Frie-drich Wilhelm, em Berlim. Regra
geral, voltava das suas viagens no tempo cinco minutos depois da sua
partida para retomar uma existência académica ordenada e levemente
pomposa. Para dizer a verdade, os seus saltos eram quase sempre para
escritórios so-berbamente equipados, séculos acima no tempo, e
praticamente nunca para os ambientes germânicos medievos, que
constituíam o seu campo de investigação.
- São inapropriados para um velho e pacifico sábio - disse-ra ele quando
lhe perguntara o motivo. -E vice-versa. Faria uma figura muito triste,
seria desprezado, levantaria suspeitas, talvez até fosse morto. Não, a
minha utilidade reside no estudo, organi-zação, análise e raciocínio.
Deixem-me gozar a minha vida nestas décadas que me agradam. Depressa
acabarão. Sim, claro, antes da civilização iniciar a sua autodestruição
a sério, necessariamente quejá terei envelhecido a minha aparência, até
por fim simular a minha própria morte... E depois, que fazer? Quem sabe?
Terei de procurar. Talvez devesse simplesmente começar de novo noutro si
tio: exempli gratia, Bona depois de Napoleão ou Heidelberga.
Ele sentia-se na obrigação de oferecer hospitalidade aos ope-radores de
campo, quando eles faziam os seus relatórios pessoal-mente. Pela quinta
vez, na minha vida até ao momento, ele e eu se-guimos uma refeição a
meio do dia verdadeiramente gargantuana de um passeio ao longo de Unter
den Linden. Regressámos a sua casa num crepúsculo estival. As árvores
respiravam fragâncias, carros puxados a cavalos faziam ouvir o barulho
dos seus cascos no empedrado, cavalheiros cumprimentavam as senhoras
suas co-nhecidas, com quem se cruzavam, com um levantar do chapéu al-to,
um rouxinol cantava num roseiral. Ocasionalmente, via-se passar um
oficial prussiano fardado, mas os seus ombros não car-regavam obviamente
o peso do futuro.
A casa era espaçosa, embora os livros e o brique-a-braque tendessem a
esconder esse facto. Ganz levou-me para a biblioteca e chamou a criada,
que entrou com um sussurrar do vestido negro, de touca branca e avental.
-Pode trazer-nos café e bolos -ordenou ele. -E, sim, ponha no tabuleiro
uma garrafa de conhaque com copos. Depois, não de-vemos de forma alguma
ser perturbados.
Quando elajá saíra para executar as suas ordens, ele sentou-
-se pesada e confortavelmente no sofá.
131
-Emma é uma boa rapariga -comentou enquanto polia o seu pince-nez. Os
médicos da Patrulha poderiam facilmente corrigir-lhe o globo ocular, mas
ele teria dificuldade em explicar a razão por quejá não precisava de
lentes e declarava que não lhe fazia di-ferença alguma. - De uma família
rural pobre, ach, como eles se reproduzem rapidamente, mas a natureza da
vida é o facto de transbordar, não é verdade? Interessc~me por ela. Um
interesse meramente avuncular, assegur~lhe. Ela deixará a minha casa
daqui a três anos, para casar com um jovem muito simpático.
Providenciarei um pequeno dote sob a forma de um presente de casamento e
serei padrinho do seu primeiro filho. - Com a face rubicunda e bem
disposta atravessada pela tristeza acrescentou:
- Morre de tuberculose aos quarenta e um anos de idade. - Pas-sou a mão
pela careca. - Não me é permitido fazer nada por ela a não ser dar-lhe
alguns medicamentos que a aliviem. Nós, os da Patrulha, não nos
atrevemos a chorar a morte de ninguém: segura-mente nunca antes do facto
consumado. Deveria guardar a pieda-de e sentido de culpa para os meus
pobres amigos e colegas invo-luntários, os irmãos Grimm. Avida de Emma
será melhor que a da maior parte da humanidade.
Não respondi. Garantida a nossa privacidade, fiquei mais absorvido do
que seria necessário na montagem do aparelho que trouxera na minha
bagagem. (Aqui, fazia-me passar por um cien-tista britânico de visita.
Treinara o meu sotaque. Um americano teria sido perseguido com
demasiadas perguntas sobre peles-ver-melhas e escravatura.) Enquanto
visitava os Visigodos em companhia de Tharasmund, conhecêramos Ulfilas.
Eu registara esse acontecimento, como fazia com todos os de particular
interesse. Seguramente que Ganz desejaria deitar uma olhadela ao
principal missionário de Constantinopla, o apóstolo dos Godos, cujas
tra-duções da Bíblia eram virtualmente a única fonte de informação sobre
as suas línguas, que sobrevivera até à descoberta das via-gens no tempo.
O holograma apareceu subitamente. De repente, a sala-candelabro,
prateleiras, mobiliário moderno, que eu conhecia com o nome de linha
império, bustos, desenhos emoldurados e quadros a óleo, loiça de barro,
papel de parede com motivos chineses, cortinados castanhos -
transformou-se nas trevas misteriosas que rodeavam uma fogueira ao ar
livre. No entanto, eu não estava lá em corpo: porque era para mim que eu
olhava e ele era o Viandante.
(Os gravadores são minúsculos, operando a nível molecular,
auto-regulados
quanto à obtenção de estímulos sensoriais completos. O meu, um dos
vários que levava semprecomigo, estava es- -condido na lança que deixara
encostada a uma árvore. Desejando
132
encontrar Ulfilas informalmente, fiz que o percurso do meu grupo
interceptasse o dele, numa altura em que ambos viajávamos pelo que os
Romanos chamavam a Dácia, antes de se terem retirado de lá, e que no meu
tempo se chamava Roménia. Depois de promes-sas mútuas de intenções
pacificas, os meus ostrogodos e os seus bi-zantinos montaram as tendas e
partilharam uma refeição.)
As árvores emparedavam aquele prado, no meio da floresta, rodeado pela
penumbra. O fumo das fogueiras subia até esconder as estrelas. Um mocho
piou, vezes sem conta. A noite ainda esta-va agradável, mas a neblinajá
começara a refrescar as ervas. Os homens sentavam~ de pernas cruzadas
perto do fogo, com excep-ção de Ulfilas e eu. Ele ficara a pé até tarde
nas suas devoções e eu não me podia deixar dominar em frente dos outros.
Eles olhavam fixamente, escutavam, fazendo furtivamente o sinal do
Machado ou da Cruz.
Apesar do seu nome -Wulfila, originalmente -era baixo, en-troncado, de
nariz carnudo; saía aos seus avós da Capadócia, leva-dos na incursão dos
Godos de 264. De acordo com o tratado de 332, ele tinha ido para
Constantinopla, um misto de refém e de envia-do. Acabou por voltar para
os Visigodos como missionário. O cre-do que pregava não era o do
Concflio de Nice, mas sim a doutrina austera de Arius, que fora lá
rejeitada como heresia. No entanto, movia-se na vanguarda da
Cristandade,
o amanhã.
- Não, não devíamos apenas trocar histórias das nossas via-gens -dizia
ele. -Como podem elas ser separadas das nossas fés?
- O seu tom de voz era suave e razoável, mas penetrante era o olhar que
me dirigia. - Você não é um homem vulgar, Carl. Isso vejo eu claramente
em si, e nos olhos dos seus seguidores. Que nin-guém se ofenda se eu me
perguntar se será totalmente humano.
- Não sou nenhum demónio maléfico - respondi.
Seriarealmente eu quem se inclinava sobre ele, esguio, cinzen-to,
embuçado num manto, condenado e resignado à presciência, aquela figura
ali no meio da escuridão e do vento? Nesta noite, mil e quinhentos anos
depois daquela noite, sentia-me como se fosse realmente uma outra
pessoa, realmente Wodan, o eternamente sem lar.
O fervor de Ulfilas flamejava na sua direcção:
- Então não receará o debate?
- Para quê, padre? Sabe bem que os Godos não são seguido-res do Livro.
Eles não se importariam de fazer oferendas a Cristo nas suas terras;
fazem~o até frequentemente. Mas vocês nunca fazem oferendas a Tiwaz nas
suas terras.
- Não, porque Deus proibiu que nos curvássemos diante de outro que não
ele. Só Deus, o Pai, pode ser venerado. Ao Filho, que lhe seja dada a
devida reverência, sim; mas a natureza de Cristo...
- e Ulfilas estava lançado num sermao.
Não era uma arenga. Ele não era parvo. Falava calmamente,
133
com sensatez, até com boa disposição. Não hesitava em empregar imagética
pagã, nem tentou fazer mais que lançar uma base de ideias antes de se
lançar na conversão por outras paragens. Vi homens do meu grupo
acenarem com a cabeça pensativamente. O arianismo adaptava-se melhor às
suas tradições e temperamen-to que um catolicismo que eles desconheciam
por completo. Seria a forma do cristianismo que todos os Godos acabariam
por tomar; e daí nasceriam séculos de convulsões.
Eu não me portara lá muito bem. Mas como poderia honesta-mente defender
um ateísmo no qual eu próprio não acreditava e que eu sabia estar em
vias de desaparecer? Para falar verdade, co-mo podia eu honestamente
tomar o partido de Cristo?
Os meus olhos, de 1858, procuraram Tharasmund. Nas suas feições jovens
transparecia muito dos adorados traços de Jorith.
- E como vai a pesquisa literária? - perguntou Ganz quan-do o filme
acabou.
- Bastante bem. - Refugiei-me no relato dos factos. - No-vos poemas;
versos que parecem definitivamente anteriores a versos de Widsith e
Walthere. Para ser específico, desde a batalha de Dnieper... -Isso
magoava-me muito, mas puxei do livro de apontamentos e registos e
atirei-me para a frente.

344-347

No mesmo ano em que Tharasmund regressou a Heorot e assumiu a chefia


dos teurings, Geberic morreu na casa de seus pais, no auge da Alta
Tatra. Seu filho, Ermanaric, sucedeu-lhe como rei dos Ostrogodos.
No fim do ano seguinte, Ulrica, filha do visigodo Athanaric, juntou-se
ao seu prometido Tharasmund, à cabeça de um grande e rico séquito. O
casamento deles foi uma festa recordada duran-te muito tempo, uma semana
em que a comida, bebida, prendas, jogos, divertimentos e fanfarronices
ilimitadas foram partilhadas por centenas de convidados. Porque fora
convidado pelo seu neto, o Viandante consagrou o par e, à luz das
tochas, conduziu a noiva ao ninho onde o noivo a aguardava.
Houve quem murmurasse, não da tribo dos teurings, que Tha-rasmund
parecia demasiado ufano, como se desejasse ser mais que o homem leal ao
seu rei.
Pouco depois do seu casamento, viu-se obrigado a afastar-se. Os Heruís
avançavam e os pântanos estavam em chamas. Derro-tá-los e fazêlos
recuar, arrasando parte do seu território, foi trabalho para todo um
Inverno. Imediatamente a seguir Ermanaric
134
mandou palavra que queria que todos os chefes de tribo se reunis-sem com
ele na terra natal.
O que valeu a pena. Foram elaborados planos de conquista e decididas
coisas que precisavam de ser feitas. Ermanaric mudou a sua corte para
sul, onde residia agora a maioria do seu povo. Pa-ra além de muitos dos
seus greutungs, os chefes tribais e os seus guerreiros seguiram-no. Foi
uma viagem esplêndida, na qual os bardos esbanjaram profusamente
palavras que o Viandante de-pressa ouviu cantadas.
Por isso, Ulrica tardou em ficar grávida. No entanto, depois de
frharasmund se voltar a encontrar com ela, depressa lhe encheu o ventre
e muitíssimo bem. Ela disse às suas mulheres que era evi-dente que seria
uma criança macho, que viveria para se tornar tão celebrada como os seus
antepassados.
Deu à luz numa noite de Inverno - alguns dizem que com fa-cilidade,
outros dizem que ignorando as dores. Heorot congratu-lou-se. O pai
mandou
espalhar pela vizinhança que daria uma fes-ta para dar o nome à criança.
O que constituía uma pausabem-vinda na tristeza da estação, acrescentada
às festas de Yuletide. As pessoas dirigiam~ para lá. Entre eles havia
homens que pensavam que seria uma oportu-nidade de trocar algumas
palavras com Tharasmund, em parti-cular. Tinham queixas contra o rei
Ermanaric.
O salão estava repleto de ramos de sempr~viva, tapeçarias, metais
polidos, vidros romanos. Embora o dia ainda reinasse sobre os campos
cobertos de neve, as luzesjá iluminavam o longo salão. Vestidos com as
suas melhores roupas, os agricultores mais impor-tantes entre os
teurings e suas mulheres sentavam-se nos lugares de honra, rodeando o
berço da criança. Do seu lado, Ulrica levan-tou nas mãos água do poço de
Frija. Ninguém alguma vez assisti-ra a tal coisa no passado, excepto
para o primeiro nascido duma ca-sa real.
- Encontram~nos reunidos... -Tharasmund interrompeu--se. Todos os olhos
se dirigiram para a porta e todos sustiveram a respiração como uma
vaga. - Oh, eu tinha esperança! Seja bem-
-vindo!
Com a espada lentamente a tocar no chão, o Viandante apro-ximou-se.
Inclinou-se, cinzento, sobre a criança.
- Meu senhor, dar-nos-á a honra de lhe dar o nome? - per-guntou
Tharasmund.
- E qual será ele?
- Dos parentes de sua mãe, para nos ligar mais estreitamen-te aos Godos
do Ocidente, Hathawulf.
O Viandante ficou imóvel por uns momentos, que se arrasta-ram. Por fim,
levantou a cabeça. Aaba do chapéu ensombrecia-lhe
aface.
135
-Hathawulf... -disseele em voz baixa, como para si próprio.
-Oh, sim. Agora compreendo. -Um pouco mais alto continuou:
-Essaé avontade deWeard. Bem, assim seja. Dar-lhe-ei o nome.

1934

Saída base de Nova lorque para of rio e a tristeza de Dezembro, e fui


até
à parte alta da cidade a pé. As luzes e as montras ati-ravam-me com o
Natal à cara, mas os compradores não eram muitos. Nas esquinas, ao
vento, músicos do Exército de Salvação baliam ou os Pais Natal tocavam
sinos nas suas caixas deesmolas, enquanto vendedores tristes ofereciam
isto e aquilo. <Entre os Godos não havia uma Depressão», pensei. Mas os
Godos tinham menos a perder. Do ponto de vista material, pelo menos.
Espiritual-mente - quem poderia dizer? Seguramente não eu, não obstante
a quantidade de história que já pudera observar ou ainda viria a
observar.
Laurie ouviu-me chegar ao patamar e escancarou a porta do nosso
apartamento. Já tínhamos anteriormente marcado a data para o meu último
regresso, depois de ela regressar de Chicago, on-de tinha uma exposição.
Abraçou-me com toda a força.
Ao entrarmos em casa, a sua alegria esmoreceu. Parámos no meio da sala
de estar. Ela tomou as minhas mãos nas suas, olhou-
-me mudamente por uns instantes e perguntou, em voz baixa:
- Que é que te magoou... nesta viagem?
- Nada que não devesse ter previsto - respondi, ouvindo a minha voz tão
sombria como a minha alma. - Hum, como correu a exposição?
- Bem -respondeu ela eficientemente. -Na realidade, dois quadrosjá foram
vendidos por uma bonita soma. -A preocupação que sentia manifestou-se: -
Com esse ponto resolvido, sentemo-
-nos. Vou buscar-te uma bebida. Meu Deus, parece que levaste uma tareia!
- Estou bem. Não é preciso apaparicares~ne.
- Talvez sinta a necessidade de o fazer. Nunca pensaste nisso?
Laurie empurrou-me para o meu cadeirão habitual. Deixei-
-me cair nele e olhei para ajanela. Luzes longínquas projectavam um
clarão sobre o peitoril, aos pés da noite. O rádio estava sinto-nizado
para um programa de cançóes de Natal.

Oh, pequena cidade de Belém... 136


- Atira com os sapatos - aconselhou Laurie da cozinha.
Foi o que fiz, e pareceu-me que só nessa altura é que chegara a casa,
como um godo a desapertar o cinto da sua espada.
Ela trouxe um par de uísques escoceses com limão e roçou os lábios
contra a minha fronte antes de se instalar na cadeira em frente.
- Bem-vindo - disse ela. - És sempre bem-vindo. - Brin-dámos com os
copos levantados e bebemos.
Ela esperou calmamente que eu estivesse preparado.
Eu contei num turbilhão:
- Nasceu Hamther.
-Quem?
- Hamther. Ele e o seu irmão Sorli morreram tentando vin-gar a irmã de
ambos.
- Eu sei - murmurou ela. - Oh, Carl, meu querido.
- Primeiro filho de Tharasmund e Ulrica. O verdadeiro nome
é Hathawulf, mas é fácil ver como evoluiu para Hamther, à medi-
da que a história se espalhava para o norte ao longo dos séculos.
E querem chamar Solbem ao próximo filho. Os tempos coincidem
também. Serão homensjovens... terão sido... quando... -nao con-segui
continuar a falar.
Ela inclinou~se para mim apenas o tempo suficiente para oto-que da sua
mão alcançar o meu consciente.
Depois, com voz severa, ela disse:
- Não tens de continuar a passar por isto. Não é verdade, CarI?
- Quê? - O espanto fez-me deixar de sofrer por uns mo-mentos.
- Claro que tenho. Éo meu trabalho, o meu dever.
- O teu trabalho é seguir o que as pessoas puseram em versos e as
histórias que correm. Não o que eles fizeram narealidade. Sal-ta para
uns tempos depois, querido. Deixa... que Hathawulfjá es-teja morto
quando voltares.
-Não!
Compreendi que gritara, respirei fundo e bebi um golo recon-fortante,
obriguei-me a olhá-la nos olhos e a dizer controladamente:
- Já pensei nisso. Acredita-me que já pensei. E não posso. Não posso
abandoná-los!
- Também não os podes ajudar, tão-pouco. Tudo está predes-tinado.
-Nós não sabemos o que acontecerá... terá acontecido. Ou co-moeu
poderei... Não, Laurie, por favor, não digas mais nada sobre isso.
Ela suspirou.
- Bem, compreendo-te. Tens estado com eles há várias ge-
137
rações, enquanto cresciam, viviam, sofriam e morriam; mas para ti não
foi assim tanto tempo... Para ti... - E isso ela não disse, Jorith é
uma memória muito recente. - Sim, faz o que tens a fazer, CarI, enquanto
o tiveres de fazer.
Eu nem tinha palavras, porque sentia a dor dela.
Ela sorriu fracamente.
- No entanto, agora estás de licença! - disse. - Põe de lado o teu
trabalho. Fui hoje às compras e trouxe uma pequena árvore de Natal. Que
dizes a decorá-la esta noite, depois de preparar um jantar de verdadeiro
epicurista?

Paz na terra, aos homens de boa~ontade, Dos Céus sempre gracioso Rei...

348-366

Athanaric, rei dos Godos do Ocidente, odiava Cristo. Além de se agarrar


aos deuses de seus pais, temia a Igreja como agente in-sidioso do
Império. Se os deixassem corroer o tempo suficiente, di-zia ele, as
pessoas ac~bariam por se ver a dobrar ojoelho perante os senhores
romanos. Por isso incitava os homens contra ele, repe-lia os parentes de
cristãos assassinados quando procuravam asi-lo e por último forçou a
aprovação de leis na Grande Assembleia que os punham à mercê do
extermínio em grande escala, assim que alguns acontecimentos fizessem
aquecer os ânimos. Ou assim o pensava. Pela sua parte, os godos
baptizados, que nessa alturajá não eram poucos, reuniram-se e falaram em
deixar que o Senhor Deus das Hostes decidisse o desfecho dos
acontecimentos.
O bispo Ulfilas considerou~s insensatos. Mártires tornavam--se santos,
concordava ele, mas era o corpo dos fiéis que conserva-va a Palavra viva
sobre a Terra. Ele pediu e obteve autorização do imperador Constantino
para o seu rebanho se mudar para a Moe-sia. Conduzindoos na travessia do
Danúbio, fez que se instalas-sem nas montanhas de Haemus. Aí ficaram e
tornaram-se um grupo pacifico de pastores e agricultores.
Quando estas notícias chegaram a Heorot, Ulrica riuse bem alto.
- Então o meu pai conseguiu livrarse deles!
Mas alegrouse demasiado cedo. Porque nos trinta anos se-guintes ou mais,
Ulfilas continuou a trabalhar na sua vinha. Nem todos os visigodos
cristãos o tinham seguido para sul. Alguns fica-ram, entre eles chefes
suficientemente fortes para se protegerem
138 a si próprios e à sua gente. Estes recebiam missionários, cujo tra-
balho produzia frutos. As perseguições de Athanaric levaram os Cristãos
a procurar um chefe para si próprios. Encontraram um em Frithigern,
também dacasareal. Emboranuncasetivesseche-gado a guerra aberta entre as
facções, havia choques constantes. Maisjovem, e em breve mais rico que o
seu rival por ser preferido pelos comerciantes do Império, Frithigern
levou muitos godos do ocidente ajuntarem-se à Igreja nos anos que se
seguiram, mera-mente por parecer ser o melhor e mais prometedor caminho
a se-guir.
Isso pouco afectou os Ostrogodos. O número de cristãos entre eles
crescia, mas lentamente e sem causar problemas indevidos. O rei
Ermanaric não se ralava absolutamente nada com deuses de qualquer
espécie, nem com o outro mundo. Estava demasiado ocupado a apanhar
tudo'o que podia deste.
As suas guerras cobriam a Europa oriental de um lado ao ou-tro. Em
campanhas que duraram várias estações, venceu os He-ruís. Os que não se
submeteram, deslocaram-se para sejuntar às tribos ocidentais com o mesmo
nome. Aestii e Vendi eram presas mais fáceis para Ermanaric. Insaciável,
levou os seus exércitos pa-ra norte, para além das terras que seu pai
tornara tributárias. No fim, uma ampla zona desde o rio Elba até áfoz do
Dnieperreconhe-ceu~ como seu senhor.
Nestas lides, Tliarasmund ganhou nome e saques de guerra. No entanto,
não gostava da crueldade do rei. Acontecia frequente-mente nas
assembleias levantar~ em defesa não só dôs direitos da sua própria
tribo, mas também dos de outras, em nome dos di-reitos antigos. Então,
Ermanaric via-se obrigado a recuar, embo-ra de mau humor. Os teurings
eram ainda demasiado poderosos, ou ele ainda não era suficientemente
poderoso para os antagoni-zar. E era ainda mais certo que muitos godos
receariam levantar armas contra uma casa, à qual o estranho antepassado
ainda fa-zia visitas de tempos a tempos.
O Viandante estava presente quando deram o nome à tercei-ra criança de
Tharasmund e Ulrica, Solbern. O segundo morrera no berço, mas Solbem,
assim como o seu irmão, cresceu forte e bo-nito. Oquarto filho foi
umarapariga, aquem chamaram Swanhild. Também para ela o Viandante
apareceu, embora por pouco tempo, e a partir daí não foi visto durante
anos. Swanhild tornou-se mui-to bela e tinha uma natureza doce e alegre.
Ulrica deu à luz mais três filhos. Foram nascimentos muito es-paçados e
nenhuma das crianças viveu muito tempo. Tharasmund passava a maior parte
do tempo longe de casa, lutando, comercian-do, aconselhando-se com
homens
importantes, dirigindo os seus teurings nos negócios comuns. Ao
regressar, dormia geralmente com Erelieva, a mulher que tomara para si
pouco tempo depois do
nascimento de Swanhild.
139
Ela não era nem escrava nem de baixa linhagem, sendo filha de um
agricultor bem sucedido. Na realidade, pelo lado materno, descendia
também de Winnithar e Salvalindis. Tharamund conheceu-a nas suas visitas
entre os homens das tribos, em que era seu hábito, quando andava por
fora, ouvir os problemas que os preocupavam. Ele prolongou a sua estada
naquela casa e eles an-davam bastante tempojuntos. Mais tarde enviou
mensageiros pa-ra lhe perguntarem se aceitaria partir com ele. Eles
levaram ricos presentes para os pais, bem como promessas de honrarias
para ela e ligação entre as duas famflias. Era uma oferta dificil de
recusar e a rapariga desejavao ardentemente, por isso, em breve partiu
com os homens de frharasmund.
Ele cumpriu a sua palavra e tratou-a com todo o carinho. Quando ela deu
à luz um filho, Alawin, deu uma festa tão esplen-dorosa como fizera com
Hathawulf e Solbem. Ela teve poucos fi-lhos a seguir e todos eles foram
levados pela doença em tenra ida-de, mas não ficou a gostar menos dela
por isso.
Ulrica tornou~ amarga. Não era por Tharasmund manter outra mulher. A
maioria dos homens com meios para isso faziam-
-no, e elejá mais que cumprira a sua parte. O que irritava Ulrica era a
importância que ele dava a Erelieva -segunda, logo a seguir a si
própria, no lar e em primeiro lugar no seu coração. Era dema-siado
orgulhosa para provocar uma luta que tinha a certeza de per-der, mas os
seus sentimentos eram óbvios. Em relação a Tharas-mund tornou~ fria,
mesmo quando ele procurava a sua cama. O que resultava em que ele
raramente o fizesse, e unicamente com esperanças de novos descendentes.
Durante as suas longas ausências, Ulrica deu~ ao trabalho de troçar de
Erelieva e de dizer coisas cortantes acerca dela. A mulher mais jovem
corava, mas suportava tudo calmamente. Já conquistara muitos amigos. Foi
Ulrica, aprepotente, que começou a ficar isolada. Portanto, dava muita
atenção aos seus filhos; eles cresceram estreitamente ligados a ela.
No geral, eram rapazes espertos, rápidos a aprender tudoo que um homem
necessitava, recebidos com agrado em todo o lado. Eram pouco parecidos,
Hathawulf era mais fogoso, Solbern mais reflectido, mas ligados por
laços de ternura. Quanto à irmã, Swanhild, todos os teurings - Erelieva
e Alawin incluldos - a amavam.
Durante esse período, passavam-se anos entre as visitas do Viandante e
mesmo então eram muito curtas. O que fez que as pes-soas ainda o
temessem mais. Quando a sua forma inconfundível aparecia caminhando
sobre os montes, os homens transmitiam um aviso através das cornetas, e
de Heorot partiam cavaleiros a saudá-lo e a escoltá-lo. Ele estava ainda
mais calmo que antes.
140 Era como se uma mágoa secreta pesasse sobre ele, embora nin-
guém se atrevesse afazer perguntas. Essamágoa era mais eviden-te sempre
que Swanhild passava com o seu encanto em botão, ou aparecia orgulhosa e
trémula quando a sua mãe lhe permitia levar vinho aos convidados, ou
quando se sentava entre as crianças a seus pés, enquanto ele contava
histórias e ditos cheios de sabedo-ria. Uma vez murmurou ao pai dela:
- Ela é tão parecida com a sua bisavó...
O guerreiro audaz estremeceu. <Há quanto tempo é que essa mulher jazia
morta?»
Numa visita anterior, oViandante ficara surpreendido. Desde a sua última
passagem, Erelieva viera para Heorot e tivera um fi-lho. Timidamente,
ela mostrou obebé ao antepassado. Ele perma-neceu silencioso durante um
bocado até perguntar:
- Como se chama?
- Alawin, senhor - respondeu ela.
-Alawin! -O Viandante levou a mão à testa. -Alawin?-E murmurou: - Mas tu
és Erelieva. Erelieva... Erp... sim, talvez seja assim que serás
recordada, minha querida! -Ninguém com-preendeu o que ele queria dizer.
Os anos passaram. Durante esses anoso poder do rei Ermana-ric aumentou.
Bem como a sua ganância e crueldade.
Quando ele e Tharasmund estavam no seu quadragésimo Inverno, o Viandante
voltou a aparecer. Foram ter com ele com ex-pressões tristes e parcos de
palavras. Heorot estava a ser inunda-da por homens armados. Tharasmund
saudou o convidado com uma alegria desanimada.
- Antepassado e senhor, veio em nosso auxflio? Como quan-do expulsou os
Vândalos da antiga terra dos Godos?
O Viandante ficou imóvel, como se fosse uma escultura em pedra.
- O melhor é contarem-me desde o principio qual éo proble-ma - acabou
ele por dizer.
- Para que tornemos as coisas mais claras nas nossas ca-beç as? Mas está
tudo claro. Bem... sejafeita a sua vontade. -Tha-rasmund ponderou. -
Permita-me que chame mais dois.
Estes dois eram um par estranho. Liuderis, forte e grisalho, era o homem
de maior confiança do chefe. Servia como mordomo das terras de
Tharasmund e como capitão dos guerreiros, quando Tharasmund estava
ausente. O segundo era um jovem ruivo de quinze anos, sem barba mas
robusto, com umaraiva imprópria dos seus anos a transbordar de uns olhos
verdes. urharasmund apresentou-se como Randwar, filho de Guthric, não um
teuring, mas um greutung.
Os quatro retiraram-se para uma sala onde podiam falar sem serem
escutados. Um curto dia de Inverno estava no seu fim. Havia lamparinas
para dar luz e uma braseira para aquecer, embo-
141
ra os homens se sentassem envoltos em peles e os seus bafos fu-massem
brancos através da penumbra. Era um quarto ricamente mobilado, com
cadeiras romanas e uma mesa com embutidos de madre-pérola. Havia
tapeçarias penduradas nas paredes e as por-tadas dasjanelas estavam
esculpidas. Criados tinham trazido um jarro de vinho e copos de vidro
por onde beber. Sons da vida em re-dorrepercutiam-se através de um
soalho de madeira de carvalho. O filho e neto do Viandante tinham
prosperado muito ao longo dos tempos.
No entanto, Tharasmund tinha uma expressão zangada, remexia-se no seu
assento, corria os dedos por entre caracóis cas-tanhos mal cuidados e
por entre uma barba espessa, antes de se voltar para o seu visitante e
dizer em voz áspera:
-Vamos a cavalo ter com orei, uns quinhentosfortes e valorosos. A sua
última afronta é mais que qualquer um pode suportar. Exigiremos justiça
para os chacinados, ou então o galo vermelho cantará no seu telhado.
Ele queria com isso significar fogo: revolta, guerra de godo con-tra
godo, derrota e morte.
Ninguém podia dizer se o rosto do Viandante se alterara. As sombras
tremeram, no espaço entre eles, quando as lamparinas tremeluziram e a
escuridão alastrou.
- Contem-me o que ele fez - disse ele.
Tharasmund acenou rigidamente para Randwar.
- Conta-lhe tu, rapaz, o que nos contaste.
Ojovem engoliu em seco. A fúria ergueu-se através da timidez que sentia
na presença dele. Bateu com o punho nojoelho, uma e outra vez, enquanto
relatava em voz áspera:
- Saiba, meu senhor, embora pense que já sabe, que o rei Er-manaric
tinha dois sobrinhos, Embrica e Fritla. Eram filhos de um seu irmão,
Aiulf, que caiu na guerra contra os Anglos no norte. Em-brica e Fritla
sempre foram grandes guerreiros. Aqui no sul, há dois anos, lideraram
uma tropa para leste contra os aliados alâni-cos dos Hunos:Regressaram a
casa com um rico saque, pois pilha-ram um local onde os Hunos juntavam
os tributos de muitas re-giões. Ermanaric ouvir falar disso e declarou
que lhe pertencia a ele, como rei. Os sobrinhos responderam que não,
pois tinham rea-lizado aquela incursão por sua própria iniciativa. Orei
pediu-lhes que fossem ter com ele para discutirem o assunto. Foi o que
fi-zeram, mas primeiro esconderam o tesouro. Embora tivesse garantido a
segurança deles, Ermanaric prendeu~s. Quando se recusaram a revelar-lhe
o sitio onde estava escondido o tesouro, primeiro mandou~>s torturar e
depois matar. A seguir mandou ho-mens inspeccionar as suas terras em
busca do tesouro. Eles falha-ram a sua missão; mas provocaram estragos
imensos por todas as
142
redondezas, queimaram as casas dos filhos de Aiulf, mataram as
suas famílias, tudo isto para dar uma lição de obediência, segun-do ele
disse. Meu senhor - gritou Randwar -, acha que isto foi justo? É
frequentemente a forma de proceder dos reis - o tom de
voz do Viandante parecia uma lâmina de aço. - Qual é a tua par-te neste
assunto?
-O meu... meu pai era também filho de Aiulf, morreujovem. O meu tio
Embrica e a sua mulher criaram-me. Eu estava fora nu-ma longa caçada.
Quando voltei, a casa era um monte de cinzas. As gentes contaram-me como
os homens de Ermanaric abusaram da minha mãe adoptiva antes de lhe
cortarem a garganta. Ela... des-cendia desta casa, por isso me dirigi
para cá.
Mundou-se na cadeira, esforçou-se por não chorar, atirou com o copo de
vinho.
- Sim - disse Tharasmund pesadamente -, ela, Matha-swentha era minha
prima. Sabe que as grandes famflias muitas vezes casam fora das suas
linhas tribais. Randwar éjá um paren-te mais distante; no entanto,
partilhamos algum do sangue que foi derramado. Além disso, ele sabe onde
está o tesouro, afundado no leito do Dnieper. Ainda bem que Weard fez
que ele estivesse fora e portanto o poupou à captura. Esse ouro daria ao
rei demasiado poder.
Liuderis abanou a cabeça.
-Não compreendo -murmurou ele. -Mesmo depois de tudo o que ouvi, ainda
não compreendo. Por que razão se comporta Ermanaric desta maneira?
Estará possuído por um diabo? Ou es-tá simplesmente maluco?
- Penso que não se trata de nada disso - disse Tharasmund.
-Penso que, em certamedida, o seu conselheiro Sibicho, que nem sequer é
um godo, mas um vândalo ao seu serviço, lhe segreda o mal aos ouvidos.
Mas Ermanaric estavajá predisposto a ouvir, oh, se estava. - Dirigind-se
ao Viandante: - Há anos que têm vin-do a aumentar as taxas que temos de
pagar, e têm levado mulhe-res livres para o seu leito, quer elas queiram
ou não, oprimindo as pessoas de todas as formas. Eu penso que ele
pretende quebrar a vontade dos chefes que se atrevem a enfrentá-lo. Se
aceitarmos es-te último acto, estaremos mais aptos ainda a tolerar o
próximo.
O Viandante acenou.
-Sim, náo há dúvida de que tens razão. Eu diria ainda que Ermanaric
inveja
o poder do imperador romano, e ambiciona o mes-mo para si próprio pelo
domínio dos Ostrogodos. Além disso, tem ouvido noticias de Frithigen a
crescer para se opor aAthanaric en-tre os Visigodos e pretende anular
qualquer rival que se atreva a disputar-lhe o reino.
- Partimos para exigir quejustiça seja feita - declarou Tha-rasmund. -
Ele deverá dar uma compensação dupla e jurar na
143
Grande Assembleia, sobre a Pedra de Tiwaz, que cumprirá daíem diante os
antigos costumes e leis. Senão, levantarei todo o reino contra ele.
- Ele tem muita gente do seu lado - avisou o Viandante. -Alguns por
promessas que lhes foram feitas, outros por avareza ou medo, outros
ainda porque acham que devem ter um rei forte pa-ra defender as
fronteiras, numa altura em que os Hunos se estão novamente a reunir como
uma cobra, enrolandose para atacar.
-Sim, mas orei nãoprecisa de ser Ermanaric! -clamou Ran-dwar,
calorosamente.
A esperança iluminou as feições de f"harasmund.
- Senhor - disse ele ao Viandante -, esmagou os Vândalos, apoiará
novamente os seus?
A perturbação pesava sobre a resposta.
-Eu ... não posso travar as vossas batalhas. Weard não o dese-ja assim.
Tharasmund ficou silencioso durante um bocado. Por fim, perguntou:
- Poderá ao menos vir connosco? Seguramente que orei o es-cutará a si
com toda a atenção.
O Viandante ficou novamente silencioso, até que falou em voz arrastada:
- Sim, verei o que posso fazer. Mas não faço promessas. Estão a ouvir-me
bem? Não faço promessas.
E assim ele viajou com os outros, à cabeça do grupo.
Ermanaric mantinha várias residências por todo o reino. Ele e os seus
guardas, conselheiros e criados viajavam entre elas. Ti-nham chegado
notícias que, logo a seguir às mortes, ele se muda-ra provocatoriamente
para uma distância de três dias de viagem de Heorot.
Foram três dias de escassa alegria. A neve cobria a terra como uma
crosta. Abria rachas sob os cascos. O céu estava pesado e de um cinzento
monótono, o ar parado e agreste. As casas dobravam--se ao peso dos
telhados de colmo. As árvores estavam despidas, excepto onde os abetos
formavam uma mancha. Ninguém falava muito e ninguém cantava
absolutamente nada, nem mesmo à vol-ta da fogueira antes de se
arrastarem para os sacos de dormir.
Mas, por fim, chegaram ao seu objectivo. Tharasmund tocou a sua corneta
e eles chegaram num galope rápido.
As pedras do caminho falavam, os cavalos relincharam quan-do os teurings
puxaram das rédeas para parar no pátioreal. Guar-das em número
semelhanteformavam alas em frente dacasa, com o punho das lanças a
brilhar, embora as flâmulas estivessem bai-xas.
- Queremos falar com o vosso amo! - bramiu Tharasmund.

144
Fora um insulto deliberado, uma palavra usada como se aque-
les homens não fossem livres, mas mantidos em servidão como os cães ou
os romanos. O capitão corou antes de responder aspera-mente:
- Alguns de vocês terão autorização para entrar, mas antes disso os
outros deverão recuar.
- Sim, recuem - murmurou Tharasmund para Liuderis.
O velho guerreiro berrou:
-Recuaremos, visto perturbarmos as vossas tropas, mas nao para longe e
não ficaremos passivos durante muito tempo até ter-mos a certeza de que
os nossos chefes estão a salvo de traições.
- Viemos para falar - disse o Viandante apressadamente. Ele, Tharasmund
e Randwar desmontaram. Porteiros afasta-ram-se para os deixar passar.
Mais guardas enchiam o interior. Contra ouso comum, estavam armados. A
meio da parede, a leste, rodeado pelos seus cortesáos, Ermanaric
aguardava sentado.
Era um homem alto que se mantinha rigidamente erecto. Ca-racóis negros e
uma barba em bico rodeavam uma face enrugada e severa. Estava
esplendorosamente vestido, com pesadas faixas de ouro sobre a testa e
pulsos; a luz das lamparinas brilhava sobre o metal. As suas vestes eram
de tecidos estrangeiros tingidos, or-lados a marta e arminho. Na mão
segurava um copo de vinho, não de vidro mas de cristal lapidado; e os
seus dedos brilhavam com rubis.
Mantevose silencioso até os três recém~hegados, cansados da viagem e
cobertos de lama, chegarem ao seu trono. Fixou~s fu-riosamente ainda
durante uns momentos antes de dizer:
-Bem, Tharasmund, andas em companhia de pessoasbastan-te estranhas.
- Sabes quem eles são - respondeu o chefe teuring -, e qual deve ser a
nossa missão.
Um homem esquelético, de uma palidez de cinzas, à direita do rei,
Sibicho, oVândalo, murmurou-lhe ao ouvido. Ermanaric ace-nou.
- Sentem-se, então - disse ele. - Vamos beber e comer.
-Não -disse Tharasmund. -Não tomaremos nem sal nem água sagrada à tua
mesa, antes de teres feito as pazes connosco.
- Estás a exagerar a tua ousadia, sabes.
O Viandante levantou a sua lança. Fez-se um silêncio, que tor-nou o
crepitar do fogo mais alto.
- Se fores sensato, rei, escutarás este homem - disse ele. -Atua terra
sangra. Lava essa ferida e p~lhe ervas curativas pa-ra que ela não inche
e adoeça.
Ermanaric enfrentou-lhe o olhar e respondeu:
-Eu não tolero zombarias, velho. Escutarei se ele tiver cuidado com a
língua. Diz-me em poucas palavras o que queres, Tharasmund.
145
Aquilo foi o mesmo que uma bofetada na cara. O teuring teve de engolir
três vezes até rugir as suas exigências.
- Logo vi que querias algo de parecido - disse Ermanaric. -Fica a saber
que Embrica e Fritla morreram devido aos seus próprios actos.
Escamotearam ao seu rei aquilo que legalmente lhe pertencia. Ladrões e
homens desleais são foras-da-lei. No entanto, sou clemente. Estou
disposto
a pagar uma compensação pelas suas famflias e terras... depois do
tesouro me ser entregue.
- Quê? -gritou Randwar. -Atrevese a falar assim, seu assassino?
Os guardas agitaram-se. Tharasmund pousou umamão de aviso sobre o braço
do rapaz. Para Ermanaric disse:
- Exigimos uma compensação dupla como reconhecimento do mal que fizeste.
Não podemos aceitar menos e conservar a nossa honra. Mas quanto à posse
do tesouro, deixa que a Grande Assembleia decida; e qualquer que seja a
decisão, apertemos as mãos em sinal de paz.
- Eu não regateio - respondeu Ermanaric, num tom gélido.
- Aceitem a minha oferta e váose embora... ou recusem-na e
saiam antes que os faça arrependerem-se da vossa insolência.
O Viandante deu alguns passos em frente. Levantou novamen-te a lança
para impor silêncio. O chapéu ensombrecia-lhe a face, tornandoo
duplamente estranho; o manto azul caía dos seus om-bros como asas.
-Escuta-me - disse ele. -Os deuses sáojustos. Aqueles que se riem da lei
e oprimem os desprotegidos, os deuses trarão desgra-ça. Ermanaric,
escuta atentamente antes que seja demasiado tar-de. Pensa bem, antes do
teu reino ficar completamente destruído.
Um murmúrio e um restolhar atravessou o salão. Os homens remexiam-se,
faziam sinais, agarravam-se ao cabo da espada em busca de consolação. Os
olhos rolavam brancos por entre o fumo e a penumbra. Era o Viandante que
falava.
Sibicho puxou pela manga do rei e murmurou qualquer coisa. Ermanaric
acenou. Inclinou-se para a frente, o dedo apontado co-mo uma faca, e
disse alto e bom som, de forma a ecoar pela sala:
-Já tens sido antes meu convidado noutras casas, velho. Mal te fica
ameaçare~me. E também és insensato... não importa quais os filhos,
velhas ou velhos decrépitos te sigam, és insensato se pen-sas que tenho
medo de ti. Sim, eles dizem-me que tu és o próprio Wodan. Que me
interessa isso? Eu não confio em nenhuns deuses insignificantes, confio
apenas na força que é minha.
Levantou-se. A sua espada rodou brilhante.
- Queres lutar comigo, velho caquético? - gritou ele. - Podemos
encontrar-nos imediatamente num campo de luta. Enfrenta-me aí, de homem
para homem, e eu quebrar-to-ei essa tua es-146 pada em duas e
expulsar-teei de lá aos uivos!
O Viandante não se moveu; a sua arma vacilou um pouco.
- Não é essa a vontade de Weard - quase murmurou. - Mas aviso~te com
toda a gravidade, pelo bem de todos os godos, sela a paz com estes
homens a quem ofendeste.
-Farei apaz seelesofizerem também -disse Ermanaric, sor-rindo
maliciosamente. - Ouviste a minha oferta, Tharasmund. Aceitas?
O teuring preparou-se, enquanto Randwar grunhia como um lobo
prisioneiro, o Viandante permanecia imóvel como se fosse um ídolo e
Sibicho inclinava-se do banco.
-Não - disse ele em voz baixa e áspera. -Não posso aceitar.
- Então vão-se embora, vocês todos, antes que eu os mande chicotear até
aos vossos canis.
Ao ouvir isto, Randwar desembainhou a espada. Tharasmund e Liuderis
puxaram pelas deles; via~ o ferro a brilhar por todos os lados. O
Viandante disse em voz alta:
-Vamo-nos embora, mas só em consideração pelos godos. Reflecte bem, rei,
enquanto ainda és rei.
Incitou os seus companheiros a sair. Ermanaric começou a rir. O seu riso
perseguiu~s ao longo de todo o salão.

1935

Laurie foi passear comigo para o Central Park. Março erguia--se


tempestuoso à nossa volta. Ainda se mantinham algumas manchas de neve,
mas em geral a erva começava a crescer. Os ar-bustos e as árvores
estavam em flor. Para além destes arbustos, as torres da cidade
brilhavam como novas, lavadas pelo tempo, er-guendose altas num azul
onde algumas nuvens disputavam uma regata. O frio era apenas o
suficiente para estimular a circulação.
Perdido no meu Inverno privado, mal reparei nisso.
Ela agarrou-me na mão.
- Não devias ter feito isso, Carl.
Eu senti como ela compartilhava aquela dor, tanto quanto era possível.
- Que outra coisa podia fazer? - repliquei no meio da
escuri-dão. -Tharasmund pediu-me para o acompanhar,já te disse. Co-mo
poderia eu recusar e conseguir dormir sossegado alguma vez depois disso?
- Achas? - ela abandonou rapidamente aquela questão. -Está bem, talvez
tivesses agido bem, dentro dos limites permiti-dos, se tivesses
oferecido o consolo possível através da tua presen-ça. Mas tu falaste.
Tentaste evitar o conflito.
147
- Abençoados sejam os pacifistas, foi o que me ensinaram na catequese.
- Esse conflito é inevitável, não é? Nesses mesmos poemas e fábulas que
foste lá atrás estudar.
Encolhi os ombros.
-Fábulas. Poemas. Até que pontoéque são factuais? Ah, sim, ahistória
sabe o que aconteceu a Ermanaric nofinal. Mas seráque Swanhild,
Hathawulfe Solbem morreram como conta a saga? Se algo no estilo tivesse
acontecido, se não é simplesmente a imagina-çáoromântica de séculos
posteriores, que um cronista tomoucomo verdadeira, teria necessariamente
de ter acontecido a eles? -Tossi para limpar a garganta. - O meu
trabalho na Patrulha éajudar a descobrir os factos que realmente
existiram, os quais de-vem ser preservados.
- Querido, meu querido - suspirou ela -, mas estás a sofrer tanto. O teu
raciocínio fica distorcido. Pensa... Eu pensei... mas nem imaginas como
tenho pensado... e é claro que nunca lá estive, mas talvez isso me
permita ter uma perspectiva que... tu decidiste não ter.
~Tudo o que relataste, através de todo este processo, todos os
acontecimentos parecem apontar para um único objectivo. Se tu, como
deus, tivesses conseguido forçar orei a uma reconciliação, tê-
-l~ias sem dúvida feito. Mas não, não é essa a forma do conti-nuum.
-No entanto, ele tem flexibilidade! Que diferença pode fazer as vidas de
uns poucos de bárbaros?
- Carl, estás a delirar, sabes muito bem. Eu também... fico muito tempo
acordada, com medo daquilo em que tu te poderás meter. Estás novamente
demasiado próximo do que é proibido. Talvez até já tenhas ultrapassado o
limiar.
- As linhas temporais ajustar-~iam. Sempre o fizeram.
- Se isso fosse verdade, não precisaríamos da Patrulha. Tens de
compreender o risco que tens estado a correr.
Eu compreendia. Obriguei-me a enfrentá-lo. Pontos de cone-xão existem,
onde é importante a forma como os dados caem. Mui-tas vezes nem sequer
são os mais óbvios.
Um exemplo surgiu-me, como um cadáver afogado subindo àsuperfície. Um
instrutor da Academia dera~ como apropriado pa-ra cadetes da minha
época.
Enormes consequências advinham da segunda guerra mun-dial. Uma das mais
importantes foi os Soviéticos ficarem com o controlo de metade da Europa
(as armas nucleares eram indirec-tas; elas apareceriam mais ou menos
nessa altura, independentomente da guerra, visto os princípios serem
conhecidos). Em última análise, essa situação político-militar levou a
acontecimentos que afectaram o destino da humanidade durante centenas de
anos pos-
148
teriores - portanto, para sempre, porque esses séculos tinham as suas
próprias conexões.
E, no entanto, Winston Churchili tinha razão quando chamou à guerra de
1939-1945 a «Guerra Desnecessária». A fragilidade das democracias foi
importante no seu desenvolvimento, é verda-de. Apesar disso, não teria
havido uma ameaça que as fizesse tre-mer, se não fosse o Nazismo ter
tomado o poder na Alemanha. O aparecimento desse movimento,
originalmente pequeno e despre-zado, mais tarde estigmatizado (embora
demasiado brandamente) pelas autoridades de Weimar - esse movimento não
poderia che-gar ao poder no país de Bach e Goethe, senão através do
génio ímpar de Adolf Hitler. E o pai de Hitler nascera como Alois
Schicklgruber, filho ilegítimo, o resultado do encontro casual en-tre um
burguês austríaco e uma criada do seu...
Mas se evitássemos essa ligação, o que poderia ser feito com to-da a
facilidade sem magoar ninguém, então abortávamos toda a história que se
lhe seguiu. Digamos que, em 1935,0 mundojá se-ria diferente. Talvez se
tornasse melhor que o original (em alguns aspectos e durante algum
tempo) ou talvez se tornasse pior. Po-deria, por exemplo, imaginar que
os homens nunca teriam saído para o espaço. Seguramente não o teriam
feito tão cedo; poderia talvez ter acontecido demasiado tarde para
salvar uma terra de-vastada. Não consigo imaginar uma utopia pacifica
comoresulta-do de tudo isso.
Não interessava. Se os acontecimentos se modificassem
signi-ficativamente no tempo dos Romanos por minha causa, eu ainda
continuaria a existir nesse tempo; mas quando regressasse a este ano, a
minha civilização nunca teria existido. Laurie nunca teria existido.
-Não... concordo que tenha corrido riscos - argumentei. -Os meus
superiores leram os meus relatórios, que são relatórios ho-nestos. Eles
avisar-m~áo se estiver a ultrapassar os limites.
«Honestos?», interrogava-me eu. Bem, sim, relatavam o que observava e
fazia, sem quaisquer mentiras ou encobrimentos, embora em estilo
sintético. Mas a Patrulha não pretendia derra-mamentos emocionais, não é
verdade? E não se esperava que eu contasse todos os pormenores mais
Infimos e triviais, não era? De qualquer forma, era impossível fazêlo.
Respirei fundo.
- Olha - disse eu -, conheço o meu lugar. Sou simplesmen-te um estudioso
literário e linguístico. Mas sempre que puder aju-dar, com toda a
segurança, tenho de ajudar. Não achas?
-Tu ésoque és, Carl.
Continuámos a passear. Até que ela exclamou:
- Eh, homem, estás de licença, férias, lembras~te? Devíamos
relaxar-nos e gozar a vida. Tenho andado a fazer planos. Ouve só.
149
Vi lágrimas nos olhos dela, e fiz o meu melhor para correspon-der à
alegria com que ela as cobria.

366472

Tharasmund levou os seus homens de volta para Heorot. Eles separaram-se


e procuraram cada um a sua casa. O Viandante des-pediu-se.
- Não se precipitem a actuar - foi o conselho dele. - Sejam pacientes e
esperem pela vossa vez. Quem sabe o que pode acon-tecer?
- Eu penso que o senhor sabe... - disse Tharasmund.
- Não sou nenhum deus.
- Já me disse isso mais de uma vez, mas nada mais. En-tão que é?
-Não posso revelá-lo. Mas se esta casa me deve alguma coisa pelo que
tenho feito ao longo dos anos, reclamo agora essa divida e peç~te que
ajas lenta e cuidadosamente.
Tharasmund assentiu.
-Era o que faria de qualquer modo. Com tempo e trabalho reu-niremos
homens suficientes numa irmandade a que Ermanaric não possa resistir.
A verdade é que a maioria deles preferia sentar-se nas suas quintas e
esperar que os sarilhos não fossem ter com eles, embo-ra pudessem
atingir outros.
- Entretanto, o rei provavelmente não se arriscará a uma ruptura
completa, pelo menos enquanto não se sentir preparado. Terei de me
manter à frente dele, mas sei muito bem que um verda-deiro homem pode
andar até mais longe do que ele pode a correr.
O Viandante pegou-lhe na mão, como se fosse falar, mas pes-tanejou com
força, deu meia volta e afastou-se. A última visão que Tharasmund teve
dele foi o 'chapéu, o manto e a lança, descendo pe-la estrada invernal.
Randwar instalou~ em Heorot, uma memória viva das injus-tiças. No
entanto era demasiado novo e transbordante de vida pa-ra se lamentar
durante muito tempo. Depressa ele, Hathawulf e Solbem eram grandes
amigos, andandojuntos na caça, desportos, jogos e todo o tipo de
folguedos. Também se dava muito com a ir-mã, Swanhild.
O equinócio trouxe o derreter da neve, botões, flores e folhas. Durante
a estação fria, Tharasmund visitara muitos teurings das vizinhanças até
bastante longe, para falar em privado com homens
150
importantes. Na Primavera ficou em casa e atarefou~ como tra-
balho das terras; e todas as noites ele e Erelieva se desfrutavam
mutuamente.
O dia chegou em que ele gritou alegremente:
- Já arámos e plantámos, limpámos e reconstruimos; já aju-dámos a dar à
luz as crias dos animais ejá os enviámos para os pastos. Vamos celebrar
a liberdade por algum tempo! Amanhã ca-çamos.
Nessa madrugada beijou Erelieva na fronte em frente de todos os homens
que iam com ele, antes de saltar para a sela e partir àfrente deles. Os
cães ladravam, os cavalos relinchavam, os cascos batiam no solo, as
cometas inactivas. No limite da visão, onde a es-trada dava uma curva em
redor de um bosque, virou-se para trás e acenou para eia.
Ela voltou a v~lo ao fim do dia, mas então era já um cadáver
ensanguentado.
Os homens queo transportaram para dentro de casa, numa ma-ca feita de um
manto enrolado em duas lanças, contaram em voz lúgubre o que acontecera.
Ao entrar na floresta que começava a ai-guns quilómetros dali,
encontraram o rasto de umjavali selvagem e lançaram-se na sua peugada.
Longa foi a perseguição até apa-nharem o animal.
Era poderoso, com bigodes prateados, presas do tamanho de lâ-minas de
punhal curvas. Tharasmund gritou de contentamento. Mas a valentia deste
porco era tão grande como o seu corpo. Não ficou parado enquanto alguns
cavaleiros desmontaram e outros o incitavam a atacar. Atacou
imediatamente. O cavalo de Tharas-mund relinchou, caindo ao ser atingido
nas patas, ficando com a barriga esventrada. O chefe caiu pesadamente.
Ojavali viu e de-pressa caiu sobre ele. As presas dilaceraram-no, por
entre grunhi-dos monstruosos. O sangue jorrou.
Embora os homens tivessem rapidamente morto a besta, mur-muravam que
podia bem ser um demónio, estar enfeitiçado ou ter sido enviado por
Ermanaric ou pelo seu astuto conselheiro Sibicho. Fosse como fosse, as
feridas de Tharasmund eram demasiado pro-fundas para conseguirem
estancar o sangue. Ele mal teve tempo para levantar os braços e pegar
nas mãos dos seus filhos.
As mulheres choravam-no no salão, bem como as casas meno-res - excepto
Ulrica, que se mantinha pétrea, e Erelieva, que se afastou para chorar
sozinha.
Enquanto a primeira lavava e deitava o corpo, como era seu di-reito de
esposa, amigos da segunda apressaram~ a levá-la para longe dali. Pouco
depois conseguiram casá-la com um proprietá-rio, um viúvo cujos filhos
necessitavam de uma madrasta, e que vi-via bastante longe de Heorot.
Embora com apenas dez anos de idade, o seu filho Alawin agiu de forma
varonil e não partiu. Ha-thawulf, Solbem e Swanhild protegiam-no dos
piores efeitos do
151
rancor da mãe, recebendo por isso, em troca, o seu amor sem reser-vas.
Entretanto, as novas da morte do pai delesjá se espalhara. As pessoas
acorriam à casa, onde Ulrica honrava o seu marido e se honrava a si
própria. O corpo foi transportado de uma casa de ge-lo onde ficara
conservado, ricamente vestido. Liuderis chefiou os guerreiros que o
colocaram numa sepultura de troncos de árvore, juntamente com a sua
espada, lança, escudo, elmo, cota de malha, tesouros de ouro, prata,
âmbar, vidro e moedas romanas. Hathawulf, filho da casa, matou o cavalo
e os cães que seguiriam Tharasmund pela estrada do Inferno. O fogo rugia
no santuário de Wodan enquanto os homens empilhavam terra sobre a
sepultura até a campa se erguer imponente. Depois disso, andaram a
cava-lo em seu redor, batendo com uma lâmina no escudo e uivando o ui-vo
do mocho.
Seguiu-se umafesta fúnebre que se prolongou por três dias. No último
dia,
o Viandante apareceu.
Hathawulf cedeu-lhe o lugar principal. Ulrica troux~lhe vi-nho. No
silêncio que cafra na penumbra cintilante, ele bebeu ao fantasma, à mãe
Frija e à prosperidade da casa. Pouco mais falou. Até que chamou Ulrica
de lado e lhe falou ao ouvido. Abandonaram ambos o salão e foram para a
sala de trabalho das mulheres.
A poeira entrava azul-acinzentada pelas janelas abertas, es-curecendo a
sala. O frio transportava cheiros de folhas e terra, o trinar de um
rouxinol, mas esses sons pareciam a Ulrica longín-quos, algo irreais.
Ela olhou fixamente durante algum tempo pa-ra o pano semiacabado no
tear.
- Que mais irá Weard tecer? - perguntou ela em voz baixa.
- Uma mortalha - disse o Viandante -, a não ser que envies o vai-vêm
noutra direcção.
Ela virou a face para ele e replicou, quase como se estivesse a fazer
troça:
- Eu? Mas sou apenas uma mulher. Éo meu filho Hathawulf quem governa os
teurings.
- O teu filho. Ele éjovem e viu muito menos do mundo que seu pai quando
tinha a idade dele. Tu, Ulrica, filha de Athanaric, mu-lher de
Tharasmund, tens não sóo conhecimento como aforça, bem como a paciência
que as mulheres têm de aprender. Podes darbons conselhos a Hathawulf, se
assim o quiseres. E... ele está habitua-do a seguir os teus conselhos.
- E se eu voltar a casar? O seu orgulho levantará um muro en-tre nós.
- Não me parece que o faças...
Ulrica contemplou o crepúsculo.
- Não é esse o meu desejo, não. Já me chegou. - Ela voltou-
152
-se para a
cara escondida pelas sombras. - Ped~me que fique
aqui e mantenha a influência que puder sobre ele e o seu irmão. Bem, e
que lhes hei-se dizer, Viandante?
-Fala sensatamente. Dificil será para ti engolir o teu próprio orgulho e
não prosseguir com a vingança sobre Ermanaric. Isso ainda será mais
difícil para Hathawulf. No entanto, com certeza que compreendes, Ulrica,
que sem Tharasmund para liderar, o feudo só pode ter um desfecho. Faz
que os teus filhos compreendam que, a não ser que evitem os conflitos
com o rei, esta família esta-rá condenada.
Ulrica ficou silenciosa durante muito tempo. Por fim disse:
- Tem razão, e eu vou tentar. - Mais uma vez os olhos dela procuraram os
dele por entre a escuridão que se adensava. -Mas será por necessidade,
não por minha vontade. Se alguma vez tiver-mos oportunidade de
prejudicar Ermanaric, eu serei a primeira a incitá-los a que a
aproveitem. E nunca nos inclinaremos perante esse palerma, nem
sofreremos humildemente novos insultos. -As suas palavras atacavam como
um falcão em mergulho. -Com-preende isso. O seu sangue corre nos meus
filhos.
- Eu disse o que era meu dever - suspirou o Viandante. -Agora tu farás o
que puderes.
Voltaram para a festa. Na manhã seguinte ele partiu.
Ulrica seguiu-lhe o conselho fielmente, embora com alguma amargura. A
sua tarefa não era pequena, fazer que Hathawulf e Solbem concordassem.
Eles gritaram, clamando pela sua honra e o seu bom nome. Ela diss~lhes
que audácia não era o mesmo que insensatez.
Jovens, inexperientes, sem treino de liderança, não tinham a mínima
hipótese de conseguir convencer godos suficientes arevol-tar-se.
Liuderis, a quem ela chamou, concordou, mas demau-gra-do. Ulrica disse
aos seus filhos que não tinham o direito de fazer que a destruição
desabasse sobre a casa de seu pai.
Em vez disso aconselhou~s a negociarem. Eles que apresen-tassem ocaso
perante a GrandeAssembleia e acatassem a decisão desta, se o rei fizesse
o mesmo. Os que tinham sido prejudicados, não eram parentes muito
chegados; os herdeiros poderiam usar melhor a compensação que lhes fora
oferecida que a vingança exe-cutada por outros; muitos chefes e
proprietários ficariam satisfei-tos poros filhos de Tharasmund se terem
refreado de dividir orei-no, e nos anos vindouros aceitá-lc-iam e
seguiriam os seus conse-lhos com respeito.
-Mas lembra~tedo que o pai receava - disse Hathawulf. -Se cedermos
perante ele, Ermanaric fará ainda maior pressão 50-bre nós.
Os lábios de Ulrica apertaram-se.
-Eu não disse que permitissem tal coisa -respondeu ela. -Se ele tentar,
então pelo Lobo que Tiwaz tornou prisioneiro, ele sa-
153
berá o que é uma luta! Mas a minha esperança é que seja demasia-do
perspicaz. Ele não avançará agora.
- Até ter o poder para nos derrubar...
- Oh, isso ainda vai demorar tempo e, entretanto, é claro que iremos
aumentando a nossa própria força. Lembrem-se de que são jovens. Pelo
menos, viverão mais tempo que ele. Mas é provável que não precisem de
esperar tanto tempo. Ao envelhecer, ele...
Assim, dia a dia, semana a semana, Ulrica argumentou com os seus filhos,
até eles acederem aos seus desejos.
Randwar ficou furioso por eles serem uns cobardes traiçoeiros. Quase
chegaram a lutar uns com os outros. Swanhild colocou-se entre os seus
irmãos e ele.
-Vocês são amigos! -gritou ela. Eles não puderam deixar de se acalmar,
resmungando.
Mas Swanhild consolou ainda mais Randwar. Eles passearam juntos por um
carreiro onde cresciam as framboesas, as árvores sussurravam e
reflectiam a luz do Sol, os pássaros cantavam. O cabelo dela era uma
torrente dourada, os olhos grandes e de um azul-celeste numa face de
feições delicadas, ela movia-se como um veado.
- Será que tens de estar sempre a lamentar-te? - perguntou ela. - Este
dia é demasiado adorável para isso.
- Mas os que me adoptaram - gaguejou ele -, continuam a não estar
vingados.
- Seguramente que eles saberão que tratarás disso assim que puderes e
eles são pacientes. Têm até ao fim do mundo, não é? Ganharás fama para
ti de forma a tornar também o nome deles re-cordado; espera e verás...
Olha, olha bem. Aquelas borboletas! Um pôr do Sol vibrante sob os nossos
olhos!
Embora Randwar nunca mais confiasse a Hathawulf e a Sol-bem tudo o que
lhe ia no coração, voltou a ter uma boa relação com eles. Afinal, eles
eram irmãos de Swanhild.
Homens que sabiam falar com diplomacia foram enviados de Heorot para
falar com o rei. Ermanaric surpreendeu~s cedendo mais que até à data.
Era como se sentisse que, uma vez desapare-cido o seu oponente
Tharasmund, se podia dar ao luxo de um pou-co de indulgência. Ele não
pagaria compensação dupla, porque is-50 seria admitir que agira mal. No
entanto, prometera que, se os que sabiam onde o tesouro estava escondido
o levassem à próxima Grande Assembleia, aceitaria que a Assembleia
decidisse quem seria o seu proprietário.
Assim se chegou a um acordo. Mas enquanto estas negociações prosseguiam,
Hathawulf, guiado por Ulrica, tinha outros homens a fazer visitas por
todo o lado; ele próprio falou a muitos proprie-tários. Isto continuou
até à reunião seguinte, depois do equinócio
154
doOutono.
Nessa altura, o rei apresentou a sua pretensão ao tesouro. Há muito
tempo que era costume, disse ele, que o que quer que um vassalo ganhasse
de valor a lutar em serviço do seu senhor, deve-ria reverter para esse
senhor, que distribuiria esse saque como presentes aos que o merecessem
ou àqueles de cujo auxílio ele pre-cisasse. Senão a guerra tornar-~ia
numa luta em que cada tro-pa lutaria por si própria; a força da hoste
ficaria diminuída, visto que a cobiça seria mais forte que a luta pela
glória; as disputas so-bre os saques dilacerariam as fileiras. Embrica e
Fritla sabiam bem disso, mas decidiram não cumprir a lei.
Depois disso, porta-vozes, que Ulrica tinha escolhido, toma-ram a
palavra, para grande surpresa do rei. Ele não esperara que fossem em tão
grande número. De formas diferentes, apresenta-ram o mesmo raciocínio.
Sim, os Hunos e os seus vassalos alânicos eram inimigos dos Godos. Mas
Ermanaric não lutara com elesnes-se ano. O assalto fora um acto que
Embrica e FritIa executaram por si próprios, como acontecia com os
riscos comerciais. Eles tinham ganho o tesouro e pertencia-lhes.
Longa e acalorada foi a discussão, tanto no conselho como nas tendas
montadas nos campos. Tratava-se de mais que de uma questão de lei;
tratava-se de que vontade é que prevaleceria. As palavras de Ulrica, na
boca dos seus filhos e dos seus mensageiros, tinham convencido homens
suficientes, apesar de Tharasmund ter desaparecido, sim, exactamente
porque Tharasmund desapa-recera, melhor para eles seria se o rei fosse
disciplinado.
Nem todos concordavam ou se atreviam a admitir que concor-davam. Por
fim, os Godos acabaram por votar numa divisão do tesouro em três partes
iguais, uma para Ermanaric e uma para ca-da um dos filhos de Embrica e
Fritla. Visto que os homens do rei os tinham chacinado a todos, dois
terços foram parar às mãos do filho adoptivo, Randwar. De um dia para o
outro, ficou rico.
Ermaneric saiu da Assembleia lívido e a resmungar. Só muito tempo depois
é que alguém se atreveu a dirigir-lhe a palavra. Si-bicho foi o
primeiro. Mastou-se com ele e conversaram durante ho-ras. O que
disseram,
ninguém ouviu; mas depois disso Ermanaric ficou com uma disposição
melhor.
Quando se soube disso em Heorot, Randwar murmurou que, se aquela doninha
estava satisfeita, era um mau presságio para os pássaros. No entanto, o
resto do ano passou-se tranquilamente.
Aconteceu uma coisa estranha no Verão seguinte, que também fora pleno de
paz. O Viandante apareceu na estrada que vinha do ocidente, como sempre
acontecia. Liuderis seguiu à frente de ho-mens encarregados de o receber
e escoltar.
- Como passa Tharasmund e a sua família? - saudou o re-ce'm~hegado.
- Quê? - replicou Liuderis, abismado. - Tharasmund mor-
155
reu, senhor. Já se esqueceu? O senhor esteve connosco à beira da sua
sepultura...
O Cinzento ficou encostado à sua lança como que atingido por um raio.
Subitamente, os outros sentiram que o dia parecia menos quente e
soalheiro que antes.
-Claro- acabou ele por dizer, em voz tão baixa que quase não se
ouvia. -Não me fiz entender. -Sacudiu os ombros, olhou pa-ra os
cavaleiros e continuou, em voz mais alta e mais rapidamen-te: - Tenho
tido muito em que pensar. Perdoem-me, mas afinal não vos posso fazer uma
visita desta vez. Dêem-lhes as minhas saudações. Virei v~los mais
tarde... -deu meia volta eregressou pelo caminho por onde viera.
Os homens ficaram a olhar pasmados, fazendo sinais contra os espíritos
maléficos. Um pouco mais tarde, um pastor ao regressar a casa contou que
o Viandante o encontrara num prado e lhe fize-ra imensas perguntas sobre
a morte de Tharasmund. Ninguém compreendia o que é que tudo isto
prenunciava, embora uma criada cristã da casa dissesse que era uma prova

de que os velhos deuses eram falíveis e estavam a desaparecer.


Apesar disso, os filhos de Tharasmund receberam o Viandan-te com toda a
deferência quando ele os voltou a visitar no Outono. Não se atreveram a
perguntar-lhe qual o problema que se levan-tara antes. Pela sua parte,
ele estava mais expansivo que habitual-mente e em vez de um ou dois
dias, ficou um par de semanas. As pessoas notaram como ele prestava
atenção especial aos jovens Swanhild e Alawin.
É claro que era com Hathawulfe Solbem que tinha as conver-sas sérias.
Aconselhou~s vivamente a viajarem os dois, ou pelo menos um deles, para
ocidente, no ano seguinte, como fizera o pai deles na sua juventude.
- Ser-vo~á altamente proveitoso conhecer os países roma-nos e cultivar a
amizade com os vossos parentes entre os Visigodos
-disse ele. -Eu próprio poderei acompanhar-vos paravos guiar, aconselhar
e servir de intérprete.
-Receamos não poder-respondeu Hathawulf, pesadamen-te. - Por enquanto
não. Os Hunos estão a aproximar-se cada vez mais fortes e ousados.
Começaram outra vez a atacar as nossas fronteiras. Embora não seja do
nosso agrado, vem~nos obrigados a concordar com oRei Ermanaric quanto à

declaração de guerra para o próximo Verão; e Solbern e eu não nos


queremos atrasar a responder à chamada.
- Não - disse o irmão -, e não só por motivos de honra. Por enquanto o
rei tem-se abstido de nos hostilizar, mas não é segre-do nenhum que não
nos tem em grande estima. Se ficarmos com a fama de cobardes ou de
preguiçosos, e depois se erguer uma amea-
156
ça, quem se atraverá ou se
incomodará em ficar do nosso lado?
O Viandante pareceu ficar mais entristecido com isto que se-ria de
esperar. Finalmente, disse:
-Bem, Alawin terá doze anos, será demasiado novo para par-tir com vocês,
mas com idade suficiente para vir comigo. Dêem au-torização.
Eles concordaram e Alawin ficou louco de alegria. Ao v~lo aos pulos pelo
chão, o Viandante sacudiu a cabeça e murmurou:
- Como ele ainda se parece tanto com Jorith. Mas é claro que a sua
ascendência tanto materna como paterna está muito próxi-ma dela. - Disse
incisivamente p~a Hathawulf: - Tu, Solbern e ele, até que ponto é que se
dão bem?
-Bem, muito bem mesmo -respondeu o chefe, admirado. -É bom rapaz.
- Nunca há discussões entre vocês e ele?
- Oh, nada mais que as provocadas pela sua impetuosidade
ocasional. -Hathawulfacariciou abarba sedosa dejovem. -Sim, a nossa mãe
tem má vontade contra ele. Foi sempre uma pessoa cheia de rancores. Mas
apesar do que muitos idiotas proclamam, não domina os seus filhos. Se o
seu conselho nos parece sensato, se-guim~lo. Senão, não o fazemos.
-Agarrem~ bem à amizade que têm uns pelos outros. -O Viandante parecia
implorar, mais que aconselhar ou ordenar. -Acreditem que é uma coisa
rara neste mundo.
Cumprindo a sua palavra, regressou na Primavera. Hathawulf fornecera a
Alawin roupagens apropriadas, cavalos, seguidores, ouro, bem como peles
para comerciar. O Viandante mostrou os presentes preciosos que levava,
que deveriam ajudar a ganhar as boas graças das gentes por onde
passassem no estran-geiro. Despedindose, abraçou ambos os irmãos e a
respectiva irmã.
Eles ficaram durante muito tempo a ver a caravana afastar--se. Alawin
parecia tão pequeno e o seu cabelo ao vento tão bri-lhante, contra o
cinzento e azul que ia a seu lado. Eles não falaram sobre o pensamento
que lhes ocorreu: como aquela visita lhes fa-zia lembrar que Wodan era o
deus que levava as almas dos mortos.
No entanto, um ano mais tarde, regressaram todos sãos e sal.-vos. As
pernas e braços de Alawin tinham crescido, a voz engros-sara e estava
delirante por contar o que vira, ouvira e fizera.
Hathawulf e Solbern tinham notícias menos animadoras. A guerra contra os
Hunos não correra bem no último Verão. Tendo sempre sido considerados
temíveis guerreiros a cavalo, devido àsua perícia e estribos, os homens
das planícies tinham agora aprendido a lutar sob aforte disciplina de
uma chefia arguta. Não conseguiram vencer os Godos em qualquer das
batalhas renhidas que travaram, mas infligiram-lhes pesadas baixas e não
se podia
sequer dizer que tivessem sofrido qualquer derrota. Atormentados
157
por ataques insidiosos, esfomeados, sem quaisquer ganhos de sa-ques, a
hoste de Ermanaric acabou por ter de se arrastar até casa, através dos
pastos intermináveis. Ele não faria nova tentativa es-te ano - pura e
simplesmente porque não podia.
Foi por isso um alívio escutar Alawin, serão após serão, quan-do as
pessoas estavam reunidas a beber. Os fabulosos remos de Ro-ma povoavam
os seus sonhos. No entanto, algumas das coisas que ele contava
provocavam um franzir de sobrancelhas de Hathawulf e Solbem, estranheza
em Randwar e Swanhild e um esgar furio-50 em Ulrica. Por que teria o
Viandante viajado daquela forma?
Não levara o seu grupo primeiro pelo mar até Constantinopla, comofizera
com Tharasmund. Em vez disso levara~s por terra até aos Visigodos, onde
ficaram durante meses. Prestaram as suas ho-menagens ao ateu Athanaric,
mas estiveram mais tempo na cor-te do cristão Frithigern. E verdade que
este último era não só mais novo, como contava com um número maior de
apoiantes que o pri-meiro, apesar de Athanaric ainda perseguir os
cristãos nas zonas por ele governadas.
Quando finalmente o Viandante se despediu para entrar no Império,
atravessando o Danúbio e entrando na Moesia, mais uma vez se demorou
entre os Godos cristãos, a colónia de Ulfilas, e enco-rajou Alawin a
fazer também aqui amizades. Mais tarde o grupo visitou Constantinopla,
mas não por muito tempo. O Viandante passou uma grande parte desse tempo
a explicar os costumes ro-manos ao jovem. Voltaram para norte no fim do
Outono e passa-ram o Inverno na corte de Frithigern. O visigodo queria
que ele se baptizasse e Alawin talvez o tivesse feito, depois das
igrejas e ou-tras grandiosidades que vira ao longo do Chifre Dourado. No
fim recusou, desculpando~se polidamente, explicando que não deveria
causar diferendos entre ele e os seus irmãos. Frithigern aceitou is-50
de boa vontade, dizendo apenas:
- Que chegue depressa o dia em que as coisas sejam de uma forma
diferente para ti.
Com a chegada da Primavera, a lamajá secara nas estradas e o Viandante
conduziu ojovem e os seus homens para casa. Mas não ficou lá.
Nesse Verão, Hathawulf casou com Anslaug, filha do chefe Tailfal.
Ermanaric tentara evitar esta aliança.
Pouco tempo depois, Randwar procurou Hathawulfe pergun-tou-lhe se
poderiam ter uma conversa em particular. Selaram cavalos e foram dar um
passeio pelas pastagens. Estava um dia ventoso, com o vento a lançar~
sobre quilómetros de vegetação fulva. As nuvens navegavam, de um branco
esplendoroso, através das profundidades que os cobriam; as suas sombras
corriam em disputa à volta do mundo. O gado sadio pastava em manadas
dis-
158
persas pelas planícies. Aves de caça metiam~~lhes debaixo dos
pés e lá no alto planava um falcão. O vento frio estava permeado pelo
cheiro da terra aquecida pelo sol e da pujança da vegetação.
- Calculo o que queres - disse Hathawulf sagazmente.
Randwar passou com a mão pela sua crina ruiva.
- Sim. Swanhild como minha mulher.
- Hum. Ela parece contente com a tua proximidade...
- Nós ficaremos juntos! - gritou Randwar. Dominou-se. -Seria vantajoso
para ti. Sou rico; e tenho vastos acres de terra in-culta à minha
espera, nas terras dos greutungs.
Hat,hawulf franziu a testa.
- E muito longe. Aqui podemos manter-nos unidos.
-Amaior parte dos proprietários dar-m~áo asboas-vindas. Não perderás um
camarada, ganharás um aliado.
Mas Hathawulf continuava a recuar, até Randwar explodir com:
- Irá acontecer, independentemente. É o que os nossos co-rações pedem. E
melhor seguires a vontade de Weard.
- Sempre foste impetuoso... - disse o chefe, não sem bonda-de, apesar de
algo preocupado. -Atua crença em que os sentimen-tos entre um homem e
uma mulher sáoo suficiente para fazer um casamentoestável, não é umaboa
prova datua sensatez. Sozinho, que actos insensatos não poderás ainda
cometer?
Randwar engoliu em seco. Antes de ter tempo de ficar zanga-do,
Hathawulfpousou uma mão no ombro dele e continuou, sorrin-do um pouco
tristemente:
- Não era minha intenção insultar-te. Só quero que penses duas vezes.
Não tens esse hábito, eu sei, mas peç~te que tentes. Pelo bem de
Swanhild.
Randwar provou que se conseguia manter calado.
Quando voltaram, Swanhild apressou-se a chegar ao pátio. Tocou no joelho
do seu irmão. A sua ansiedade explodiu:
- Oh, Hathawulf, está tudo bem, não está? Disseste que sim, eu sei que
disseste. Nunca antes me deste um a alegria tão grande.
O resultado foi a realização de uma enorme festa de casamen-to, que
ecoou e rodopiou por Heorot nesse Outono. Para Swanhild só uma nuvem a
ensombrava: o Viandante não ter aparecido. Ela partira do princípio que
ele os abençoaria. Não era ele o protector da família?
Entretanto, Randwarjá enviara homens para as suas proprie-dades no
Oriente. Ergueram uma nova casa no mesmo local onde estivera a de
Embrica e rechearam-na bem. Ojovem par viajou até lá com um grande
séquito. Swanhild atravessou a porta de entra-da com os ramos de
sempr~viva que traziam as bênçãos de Frija. Randwar deu uma festa em
honra da vizinhança e assim se insta-laram.
No entanto, tinha de se ausentar durante dias seguidos, ape-
159
sar de amar muito a sua noiva. Viajava pelas terrasgreutungs, pa-ra
conhecer os seus habitantes. Quando encontrava um homem que parecia
pensar como ele, Randwar falava-lhe a sós e tratavam de outros assuntos
além do gado, do comércio ou até dos Hunos.
Num dia sombrio antes do solstício, quando alguns flocos de neve calam
ainda levemente sobre a.terra gelada, ouviram-se os cães a ladrar fora
de
casa. Randwar pegou numa lança e avançou para ver de que se tratava.
Seguiram-no dois camponeses igual-mente armados. Mas quando ele espiou a
forma alta que entrava no seu pátio, Randwar largou a sua arma e gritou:
- Salve! Bem-vindo!
Compreendendo que não havia nenhum perigo, Swanhild apressou-se a sair
também. Os seus olhos e cabelo, por debaixo da touca de mulher casada, e
o vestido branco que cingia a sua silhue-ta esbelta, eram as únicas
coisas alegres que se viam em redor. A alegria esfusiante explodia dela:
- Oh, Viandante, querido Viandante, sim, bem-vindo sejas!
Ele aproximou-se até ela poder ver a cara que se escondia por debaixo do
chapéu. Ela levou a mãos aos lábios abertos de surpre-sa.
-Mas que dor tão grande-murmurou ela. -É verdade, não é? Que desgraça é
que aconteceu?
- Desculpem-me - respondeu ele em palavras que cafram como pedras. -
Algumas coisas devem manter-se secretas. Eu mantiv~me afastado do vosso
casamento porque não quena en-tristecer-vos. Vejamos... Bem, Randwar,
viajei por uma estrada acidentada. Deixa-me descansar e depois falaremos
disso. Beba-mos qualquer coisa quente e recordemos o passado.
Um pouco do seu interesse antigo alegrou o serão, quando um homem cantou
uma balada sobre a última campanha na Terra dos Hunos. Em paga, ele
contou novas histórias, embora de uma for-ma menos viva que
anteriormente, parecendo que se flagelava a si próprio para o fazer.
Swanhild suspirou, feliz.
- - Estou desejosa que as minhas crianças se sentem a ouvi-lo disse ela,
embora ainda não estivesse à espera de nenhuma. Fi-cou um pouco
perturbada ao v~lo vacilar.
No dia seguinte, ele afastou~ com Randwar. Passaram horas sozinhos a
falar. Mais tarde ogreutung disse à mulher:
-Avisou-me repetidamente do ódio que Ermanaric tem por nós. Aqui,
estamos na terra da própria tribo do rei, disse ele, e não nos devemos
esquecer de que o nosso poder é pequeno, constituin-do a nossa fortuna
uma tentação permanente. Ele queria que pe-gássemos em tudo e nos
fôssemos embora para ~onge, para longe da terra dos Godos ocidentais, e
bem depressa. E claro que eu não podia fazer isso. Quem quer que seja o
Viandante, o direito e a honra
160
são mais poderosos. Então ele
disseme que sabia que eu anda-
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va a sondar os homens sobre uma possivel aliança contra o rei, pa-ra
fazerfrente à sua prepotência e, se houvesse necessidade disso, para
lutar. O Viandante disse que eu não tinha qualquer possibi-lidade de
manter isso secreto e que era uma perfeita loucura.
- E que respondeste tu a isso? - perguntou ela meio assus-tada.
- Bem, eu disse que os godos livres têm o direito de se abrir uns com os
outros. E disse que os meus pais adoptivos nunca ti-nham sido vingados.
Quando os deuses náofazemjustiça, entãoos homens deverão faz~la.
- Devias seguir os conselhos dele. Ele sabe mais que nós ai-guma vez
saberemos.
- Bem, na-o vou fazer nada de temerário. Esperarei pela mi-nha
oportunidade. Pode nem sequer ser preciso mais. Muitas ve-zes, os homens
morrem inesperadamente; se acontece a homens bons como frharasmund, por
que não haveria de acontecer a tipos como Ermanaric? Não, minha querida,
nunca fugiremos destas nossas terras, que pertencem aos nossos filhos
por nascer. Por is-50, devemos preparar-nos para defend~las, não é
verdade? -Randwar tomou Swanhild nos braços. -Vem -riu ele-, que tal
começarmos por fazer algo quanto a essas crianças?
O Viandante não conseguiu faze-lo mudar de ideias e uns dias mais tarde
despediu~.
- Quando voltaremos a ve- lo? - perguntou Swanhild já àporta.
-Acho... -a voz faltou-lhe. - Oh, rapariga, que tanto te pa-reces com
Jorith! -Abraçou-a, beUou-a e largou-a, apressando--se a partir.
Chocadas, as pessoas ouviram-no chorar.
No entanto, de volta por entre os teunngs, ele parecia de aço. Muito
tempo passou ele lá nos meses que se seguiram, tanto em Heorot como
entre os agricultores em redor, capatazes, vulgares trabalhadores do
campo ou marinheiros.
Mesmo vindo dele, o que recomendava vivamente era-lhes di-fícil de
aceitar. Queria que estreitassem as ligações com o ociden-te. Não era
apenas por terem muito a ganhar com o incremento do comércio. Se a
desgraça os atingisse aqui, trazida, digamos, pelos Hunos, teriam um
lugar para onde ir. No Verão seguinte, que enviassem homens e
mercadorias para Frithigern, que os prote-geriam; e que mantivessem os
barcos, carros, material e manti-mentos preparados; e que muitos deles
aprendessem como eram as terras que os separavam do oeste e como as
atravessar sãos e sal-vos.
Os Ostrogodos admiravam-se e murmuravam. Estavam bas-tante cépticos
quanto a um crescimento tão grande do comércio a
distâncias tão vastas, estando portantorenitentes em apostar nis-50
muito trabalho ou riqueza. Quanto a abandonarem as suas ca-
161

L.B.F.~156-11
sas, isso era inimaginável. Estaria o Viandante a falar verdade? Mas
afinal quem era ele? Muitas vezes consideravam-no um deus e parecia
andar por ali há muito tempo; mas ele próprio nunca o admitira. Podia
ser um palerma, um feitiçeiro de magia negra, ou, diziam os cristãos, um
diabo enviado para desencaminhar os ho-mens. Ou podia meramente estar a
ficar senil com a idade.
O Viandante continuou a insistir. Alguns dos seus ouvintes consideravam
que as suas palavras mereciam uma reflexão mais atenta; e alguns, os
novos, ficavam entusiasmados. Entre estes úl-timos destacava-se Alawin,
em Heorot, embora Hathawulfcome-çasse a ficar convencido e Solbern se
mantivesse reticente.
De um lado para o outro, o Viandante desenvolveu uma grande actividade,
falando, planeando, ordenando. Por alturas do equinó-cio do Outunojá
conseguira um esqueleto do que desejava. Ouro, mercadorias, homens para
cuidar de tudo estavamjá na capital de Frithigern, no ocidente; Alawin
iria até láno ano seguinte para d~ senvolver o comércio,
independentemente dos seus poucos anos; em Heorot e em numerosas outras
casas, os habitantes podiam partir rapidamente, se a necessidade
surgisse.
- Esgotou-se a trabalhar por nossa causa - disse-lhe Ha-thawulf no fim
da
sua última estada em sua casa. - Se pertence aos Anses, então, eles não
são incansáveis.
-Não - suspirou o Viandante. - Eles também perecerão no naufrágio do
mundo.
- Mas isso ainda está muito longe no futuro, seguramente.
- Mundo após mundo tem desaparecido em ruínas até ao pre-sente, meu
filho, e o mesmo acontecerá nos anos e milhares de anos vindouros. Eu
fiz por vocês aquilo que me era possível.
Amulher de Hathawulfentrou para se despedir. Ao peito ama-mentava o seu
primeiro filho. O Viandante contemplou durante bastante tempo obebe.
-Ali reside o amanhã... -murmurou ele. Ninguém percebeu o que ele queria
dizer. Depressa se afastava, ele e a sua lança~or-dão, descendo pela
estrada onde as folhas recentemente caídas ro-dopiavam levadas pelo
vento frio.
E pouco tempo depois, chegaram a Heorot as terríveis notícias.
Ermanaric, o rei, anunciara que tencionava fazer uma incur-são na terra
dos Hunos. Não seria um guerra declarada, como a que ocorrera antes.
Portanto, ele náorecrutaria guerreiros, mas avan-çaria apenas com os
seus guardas de cavalaria, algumas centenas de guerreiros bem conhecidos
e fiéis a ele. Os Hunos estavam no-vamente a atacar as fronteiras. Ele
puni-los-ia. Um golpe rápido e profundo mataria pelo menos uma parte
substancial do seu ga-do. Com sorte, poderia surpreender um ou mais dos
seus acampa-mentos. Os godos acenavam com a cabeça quando recebiam estas
162
notícias. Que ajudassem a engordar os corvos no leste e talvez os
vagabundos da estepe regressassem ao local onde os seus antepas-sados os
deram à luz.
Mas quando as suas tropas estavam reunidas, Ermanaric não foi até tão
longe. Subitamente, estava na casa de Randwar, en-quanto as casas dos
amigos de Randwar ardiam de um lado ao ou-tro do horizonte.
Escassa foi a luta, tão grande era a força armada que o rei trouxera
contra um jovem incauto. Empurrado, com as mãos amarradas atrás das
costas, Randwar cambaleou pelo pátio. O sangue escorria e secava-lhe na
cabeça. Matara três dos homens que o atacaram, mas as ordens que tinham
eram de o capturar vi-vo e bateram-lhe com paus e cabos de lança até ele
cair.
Foi um fim de dia triste, em que o vento uivava. Farrapos de fu-mo
misturavam-se com a chuva de escombros. O crepúsculo con-sumia~. Alguns
defensores mortosjaziam sobre o pavimento de pedra. Swanhild estava
atordoada, agarrada por dois guerreiros, junto de Ermanaric que montava
o seu cavalo. Era como se ela não compreendesse o que tinha acontecido,
como se nada fosse real, a não ser a criança que transportava no seu
ventre dilatado.
Os homens do rei levaram Randwar para a frente deste. Ele in-clinou-se
para observar o prisioneiro.
- Bem - saudou ele -, que tens a dizer em tua defesa?
Randwar falou em voz rouca, embora mantivesse a sua cabeça ensanguentada
erecta:
- Que não ataquei sediciosamente quem não me fez mal.
- Bem,~vejamos - os dedos de Ermanaric pentearam uma barba já a começar
a embranquecer. - Bem... Será que é bom conspirar contra o seu senhor?
Será que é bom andar por aí furti-vamente a conspirar?
- Eu... não fiz nada disso... Eu queria apenas salvaguardar a honra e a
liberdade... dos Godos... - A garganta seca de Randwar não conseguiu
articular mais nada.
-Traidor! -vociferou Ermanaric e lançou-se numa grande ti-rada. Randwar
manteve-se curvado, provavelmente sem ouvir a maior parte do que ele
dizia.
Quando Ermanaric se apercebeu disso parou.
- Já chega - disse. - Enforquem-no pelo pescoço e abando-nem-no aos
corvos, como um ladrão vulgar.
Swanhild gritou, debatend<>se. Randwar lançou-lhe um olhar desfocado
antes de se virar para o rei e responder.
- Se me enforcares, vou ter com o meu antepassado Wodan. Ele... me
vingará...
Ermanaric atirou-lhe com um pontapé que o atingiu na boca.
- Pendurem-no!
Um barrote para levantar o feno sobressaia de um celeiro. Os
homensjá tinham pendurado nele uma corda. Rodearam o pesco-
163
ço de Randwar com o laço, penduraram~oe esticaram acord~ Ele debateu-se
muito tempo até balançar inerte ao vento.
-Sim, oViandantevai apanhar-te, Ermanaric!-gritou Swa-nhild. -Eu
lançc>~te a praga da viúva, assassino, e chamo Wodan para te punir!
Viandante, levao para acaverna mais gelada do In-ferno!
Os greutungs estremeceram, fizeram sinais e agarraram-se aos talismãs. O
próprioErmanaric não parecia à vontade. Sibicho, inclinado na sela do
cavalo ao seu lado, uivou:
- Ela chama polo seu antepassado feiticeiro? Não permitam que ela viva!
Que a terra se purifique do sangue que ela transporta!
- Sim - disse Ermanaric num lampejo de vontade. E gritou 'essa ordem.
O medo mais que qualquer outra coisa fez que os homens se apressassem.
Os que seguravam em Swanhild espancaram~a até ela tropeçar, e deram-lhe
pontapés até a deixarem no centro do pátio. Ficou inerte sobre as
pedras. Os cavaleiros aproximaram--se, forçando os seus cavalos que
relinchavam e escouçeavam a pisá-la. Quando se afastaram, nadarestava
senão uma massa ver-melha e lascas brancas.
A noite caiu. Ermanaric levou as suas tropas para casa de Randwar para
uma festa de celebração da vitória. De manhã en-contraram o tesouro e
levaram-no com eles. A corda rangia no lo~ cal onde Randwar oscilava
sobre o que tinha sido Swanhild.
Tais foram as notícias que os homens levaram a Heorot. Eles ti-nham
enterrado os corpos apressadamente. Amaioria não se atre-veu a fazer
mais que isso, mas uns poucos greutungs sentiam~se com ânsias de
vingança, como todos os teurings.
Raiva e dor apossaram-se dos irmãos de Swanhild. Ulrica era mais fria,
mais fechada em si própria. No entanto, quando eles se perguntaram o que
podiam fazer, embora homens da tribo não pa-rassem de chegar de todos os
lados... ela falou à parte com os seus filhos e falaram até a escuridão
inquieta cair.
Entraram os três no salão. Disseram que já tinham tomado uma decisão. O
melhoreraripostar imediatamente. E verdadeque orei estaria preparado
para isso e manteria a sua guarda em aler-ta durante uns tempos. No
entanto, pelos relatos de testemunhas que os tinham visto passar, o seu
grupo não seria maior que o que enchia esta noite este edifício. Um
ataque de surpresa levado aca-bo por homens corajosos poderia vence-los.
Esperar, equivalia a dar a Ermanaric tempo do qual ele precisava e que
indubitavel-mente contava ter - tempo para esmagar todo e qualquer godo
oriental que se quisesse manter livre.
Os homens rugiram a sua disponibilidade. Ojovem Alawinjun-tou~ a eles.
Mas, subitamente, a porta abriu-se e apareceu o
164
Viandante. Severamente, pediuqueoúltimofilhodeTharasmund
permanecesseem casa, antes de se perder novamente na noite e no vento.
Destemidamente, Hathawulf, Solbern e os seus homens parti-ram a cavalo
ao nascer do dia.
1935

Eu fugira para casa, para Laurie. Mas no dia seguinte, quan-do abri a
porta, depois de um longo passeio, ela nãoestava áminha espera. Em seu
lugar, Manse Everard levantou~ da minha pol-trona. O fumo do seu
cachimbo tornara o ar enevoado e com um cheiro acre.
- Hum? - exclamei eu apenas.
Ele aproximou~. Senti-lhe os passos. Tão alto como eu e de estrutura
mais pesada, erguie-se imponente. As suas feições es-tavam totalmente
inexpressivas. Ajanela atrás deleenquadrava-o contra o céu.
-Laurieestábem-dissemaquinalmente. -Pedi-lhequese ausentasse. Já vai ser
bastante duro para si, sem que ela o veja e fique chocada e magoada.
Pegou~ne no cotovelo.
- Sente-se, CarI. Está perfeitamente destroçado, é óbvio. O melhor seria
tirar uma férias, não acha?
Deixei~ne enterrar no sofá e olhei fixamente para o tapete.
- Tenho de ter... - balbuciei. - Oh, tenho de verificar algu-mas pontas
soltas, mas primeiro... meu Deus, foi horroroso!
-Não.
- Quê? - levantei o olhar. Ele enfrentava-se de pé, com os pes
afastados,
punhos nacintura, imponente. -Digc~lheque não posso.
- Pode e fará - vociferou ele. - Vai voltar comigo para a ba-se.
Imediatamente. Dormiu esta noite. Bem, não dormirámais en-quanto não
acabarmos com isto. E nada de tranquilizantes. Vai ter de sentir
totalmente o que vai acontecer. Vai precisar de estar
aler-~constantemente. Além disso, nãohá nadacomo a dor para man-ter uma
lição bem viva na memória. O mais importante, talvez, se não
permitirqueessa dor passe através de si, como é próprio dana-tureza,
nunca se verá realmente livre dela. Será um homem per-seguido.
APatrulhamerecemelhor. E Laurie também. E atémes-mo você.
- Mas de que raio é que está a falar? - perguntei, enquanto o horror se
erguia como uma maré à minha volta.
-Tem de terminar o que começou. Quanto mais depressa, me
165
lhor, principalmente para si. Que férias é que iria ter se soubesse que
ainda tinha esta tarefa à sua frente? Destrrn-l~ia? Não, fa-çao
imediatamente, veja~ pelas costas nesta linha do seu mun-do; então já
poderá descansar e começar a recompor-se.
Abanei a cabeça, não como uma negação, mas de espanto.
- Errei? Como? Eu entreguei os relatórios regularmente. Se estava
novamente a pisar a linha por que é que ninguém me cha-mou a,atençáo e
me explicou o que devia fazer?
- Eo que estou a fazer, Carl. - Um fantasma de bondade per-passou no tom
de voz de Everard. Sentou~ à minha frente e ata-refou~ com o cachimbo.
- Alterações casuais são muitas vezes coisas extremamente subtis - disse
ele. Apesar do tom suave, estas palavras chocaram-
-me ao ponto de ficar intensamente atento. Ele acenou. -Sim. Es-tamos em
presença de um. O viajante no tempo tornou-se a cau-sa exactamente do
acontecimento que se propôs estudar ou tratar de qualquer outra forma.
- Mas... não, Manse, como? - protestei eu. -Não esqueci os princípios.
Nunca os esqueci, nem no terreno nem noutro sítio qualquer. Claro que me
tornei parte do passado, mas uma parte que se encaixava no que já
existia. Examinámos tudo isso no in-quérito... e corrigi os erros que
andava a fazer.
O isqueiro de Everard fez um dique a acender-se que ecoou pe-la sala.
- Eu disse que podem ser muito subtis - repetiu ele. - Exa-minei o seu
caso com mais profundidade, essencialmente devido a um pressentimento, a
uma sensação de que havia ali algo de erra-do. Envolveu muito mais que
ler os seus relatórios... que,já agora, são bastante satisfatórios. São
apenas insuficientes. A culpa não é sua. Mesmo com uma longa
experiência, era muito provável que lhe tivessem passado despercebidas
as implicações, em virtude de estar tão pessoalmente envolvido nos
acontecimentos. Eu vi-me obrigado a encharcar-me em conhecimentos sobre
esse meio e va-gueei de um lado para o outro, repetidamente, até
compreender claramente a situação.
Puxou uma fumaça do seu cachimbo.
- Não se preocupe com os pormenores técnicos - continuou
ele. -Basicamente, o seu Viandante tornou-se mais poderoso que você
pensou. Acontece que os poemas, histórias, tradições que fluíram durante
séculos, transmutandose, cruzandose, influen-ciando as pessoas... uma
série delas tinham-no a ele como fontes. Não o Wodan mítico, mas a
pessoa física e presente, você próprio.
Eu compreendera onde ele queria chegar e reuni a minha de-fesa.
- Era um risco calculado desde o início - disse eu. - Bastan-
166
te
frequente. Quando ocorrem trocas mútuas como essa, não é ne-
nhum desastre. O que a minha equipa está a investigar são ape-nas as
palavras, orais e escritas. As inspirações originais não são relevantes.
Nem fará qualquer diferença para a história subse-quente... se, por
exemplo, um homem estava ou não lá em certa al-tura, e que fosse tomado
como um dos deuses pela população... des-de que o homem não abusasse da
sua posição. - Hesitei. - Não é verdade?
Ele destruiu a minha vaga esperança.
- Não, necessariamente. Seguramente que não neste caso. Uma alteração
casual e incipiente é sempre perigosa, sabe. Pode provocar ressonância e
as alterações na história decorrentes dela podem multiplicar-se
catastroficamente. A única forma de não fa-zer perigar as coisas
éfechá-la. Quando o Dragão Ouroboros mor-de a sua própria cauda, não
pode devorar mais nada.
- Mas... Manse, eu deixei Hathawulf e Solbern dirigirem-se para a
morte... Está bem, admito que tentei evitá-lo, não imagi-nando que
tivesse alguma importância para a humanidade no seu todo. E falhei.
Mesmo num pormenor tão ínfimo, o continuum é de-masiado rígido.
- Como sabe que falhou? A sua presença através de gerações, o verdadeiro
Wodan, fez mais que introduzir os seus genes na fa-mília. Encorajou os
seus membros, inspirou~s a tornaram-se grandes. Agora no fim, a vitória
na batalha contra Ermanaric pa-rece garantida. Com a convicção de que
Wodan está do lado deles, os rebeldes poderão muito bem ganhar.
- Quê? Quer dizer... Oh, Manse!
- Tal não deve suceder! - disse ele.
A agonia submergiu-me ainda mais.
- Por que não? Quem é que se ralará, umas décadas mais tar-de, já para
não falar num milénio e meio mais tarde?
-Mas, exactamente você e os seus colegas - declarou a voz im-placável e
cheia de piedade. - A sua missão era investigar as rai zes de uma
história específica sobre Hamther e Sorli, recorda-se? Já para não falar
nos poemas de Eddica e dos escritores de sagas antes de você, e sabe
Deus mais quantos contadores de histórias antes deles, que foram
afectados de várias formas menores, mas que podem juntar-se e no final
constituir um grande número. No entanto, e principalmente porque
Ermanaric é uma figura histó-rica, proeminente na sua época, a data e
maneira como morreu es-tão registadas. O que se passou imediatamente a
seguir abalou o mundo.
»Náo, não se trata aqui de uma pequena onda na corrente do tempo. E um
furacão em evolução. Temos de o evitar e a única for-ma de o fazer é
fechar aquela alteração causal, fechar o anel.
Os meus lábios formaram a pergunta inútil, desnecessária.
«Como?», que a garganta e a língua se recusavam a emitir.
167
Everard pronunciou o veredicto:
- Lamento mais do que possa imaginar, Cari. Mas a Volsun-gasaga relata
que Hamther e Sorli estavam prestes a vencer, quando, por razões
desconhecidas, Odin apareceu e os traiu. E ele era você. Não podia ser
mais ninguém...

372

A noite descera há pouco. A Lua, tendo iniciado a fase de min-guante,


ainda não se levantara. As estrelas emitiam uma clarida-de sobre os
montes e vales onde as sombras se escondiam. A gea-da começarajá a
brilhar sobre as pedras. O ar estava frio, sereno, excepto peloressoar
de muitos cascos de cavalos em corrida. Elmos e punhos
delançasbrilhavam, elevavam~ e afundavam-secomo vagas numa tempestade.
Na maior das suas casas, o rei Ermanaric estava sentado a beber com os
seus filhos e a maioria dos seus guerreiros. Os fogos chamejavam,
guinchavam, estalavam nas suas valas. A luz das lamparinas brilhava
através dofumo. Hastes de veados, peles, ta-peçarias, esculturas
pareciam mover-se ao longo das paredes e pi-1 ares, com o movimento das
trevas. O ouro brilhavaem braços e em redor de pescoços, oscopos
entrechocavam-se, as vozes produziam um barulho contlnuoe cavo. Escravos
serviam à mesa, atarefados. Por cima, a escuridão colave-se às vigas e
enchia o vértice do te~ lhado.
Ermanaric gostaria de estar alegre. Mas Sibicho não o largava:
- Senhor, não devemos ficar inactivos. Concordo que um ataque directo
sobre o chefe teuri~~ seria perigoso, mas podemos começar imediatamente
a minar a sua posição entre eles.
- Amanhã, amanhã - disse orei impacientemente. - Será que tu nunca te
cansas de intrigas e troques, será? A noite hoje es-tá reservada para
aquela saborosa escravajovem que comprei.
As cornetas clamaram lá fora. Um homem entrou a cambalear no vestíbulo
do edifício. Tinha a cara manchada de sangu~
-Inimigos... ataque... - Uma algazarra submergiu o seu grito.
-A esta hora? - gemeu Sibicho. E de surpresa? Devem ter morto os
cavalos a viajar a téaqui... Sim, e destruido pelo caminho todos os que
os poderiam ter ultrapassado!
Os homens saltaram dos bancose dirigiram-se às suas cotas de malha e
armas. Com os que se prepararavam na ante-sala, veri-ficou~ um repentino
acotovelamento de corpos. Ouviam-se jura-
168
mentos, levantavam-se punhos.
Os guardas que se tinham man-
tido equipados apressaram~ a formar uma protecção em frente do rei e dos
seus familiares. Ele mantinha sempre um grupo com-pletamente armado.
No pátio, os guerreiros reais perderam as suas vidas, dando tempo aos
seus camaradas no interior para se prepararem. Os re-cém~hegados
cafram-lhes em cima em número esmagador. Os machados trovejavam, as
espadas tiniam, os punhais elançasen-terravam-se a fundo. Nessa
confusão,
nem sempre os soldados mortos ca~am no chão imediatamente; os feridos
que ca~m nun-ca mais se levantavam.
A cabeça doataque, um homem grande ejovem gritava:
-Wodan do nosso lado! Ah! -A sua lâmina voava assassina. Apressadamente,
os defensores já preparados tomavam luga-res na porta da frente. O homem
grande ejovem foi o primeiro a atacá-los. A direita e à esquerda, os
seus seguidores começaram a penetrar, esmagando, desferindogolpes,
dandopontapés, empur-rando, rompendo a linha de defesa e pisando tudo no
seu caminho.
A medida que o seu ímpeto penetrava até à sala principal, as tropas
desarmadas recuavam mais. Os atacantes pararam, of~ gantes, quando o seu
líder chamou:
-Esperem pelo resto de nós! - O barulho da refrega desvane-ceu-se no
interior, embora ainda subsistisse lá fora.
Ermanaric saltou para o seu trono e olhou por cima dos elmos dos seus
guarda~tas. Mesmo na penumbra 4e luz incerta, ele viu quem estava à
porta.
-Hathawulf, filho de Tharasmund, que novos crimes éque es-peras
perpetrar? - atirou ele ao longo da sala.
O teurLng levantou bem alto a sua espada a pingar.
-Viemos para limpar a terra da tua presença - ouviu~lhe dizer.
- Tem cuidado. Os deuses odeiam os traidores.
- Sim -respondeu Solbern por detrás do ombro do irmão -esta noite Wodan
vem~te buscar, perjuro, e levar-te-á para a ca-saque mereces.
Os invasores continuavam a entrar; Liuderis obrigou~ a for-mar fileiras
irregulares.
- Em frente! - urrou Hathawulf.
Ermanaric dera as suas próprias ordens. Os seus homens pode-riam não ter
elmo, cota de malha, escudo e arma de lâmina com-prida. Mas todos eles
tinham pelo menos uma faca. E os teurí~~s também não usavam muito ferro.
A maioria eram agricultores, que não tinham meios que lhe permitissem
adquirir mais que um chapéu de metal e uma protecção de couro
endurecido, indo apenas para a guerra quando orei faziareceutamento.
Aqueles que Erma-naric juntara eram guerreiros de profissão; todos eles
possuíam
uma propriedade ou um barco ou qualquer outra coisa, mas eram
169
essencialmente, e em primeiro lugar, guerreiros. Estavam bem treinados
em lutar lado a lado com os seus companheiros.
As tropas do rei pegaram nos cavaletes e nas pranchas que es-tavam sobre
eles. Utilizaram-nos para se proteger. Os que tinham machados, tendo
recuado antes da invasão, cortavam à machada-da cacetes para os seus
colegas a partir de lambris e pilares. Além das facas, uma haste de
veado retirado da parede, a ponta fina de um copo de chifre, um copo
romano partido, um tição das fogueiras, tudo isso constituía uma arma
mortal. Numa luta que se tornara corpo-a-corpo num espaço
restrito -carne contra carne, amigo no caminho de outro amigo,
empurrando, tropeçando, escorregando no sangue e no suor-, a espada ou o
machado pouca ajuda davam. As lanças e espadas de lâmina larga eram
inúteis, excepto para os guardas armados que rodeavam o lugar do rei e
de onde podiam desferir golpes para baixo.
Então a luta tornou-se caótica, cega, como a fúria do lobo àsolta.
No entanto, Hathawulf, Solbem e os seus melhores homens abriam um
caminho em frente, empurrando, espezinhando, derrubando, esfaqueando,
por entre gritos e urros, estrondos e choques, sempre em frente,
verdadeiros tuf-ses -até que, porfim, chegaram ao seu objectivo.
Ali empunharam escudo contra escudo, aço contra aço, eles e as tropas de
guarda do rei. Ermanaric não estava na linha da frente, mas manteve-se
valorosamente em pé sobre o seu assento, à vis-ta de todos, empunhando
uma lança. Trocava frequentemente um olhar com Hathawulf e Solbem e
então cada um ria com um ódio imenso.
Foi o velho Liuderis quem conseguiu furar a linha. O sangue da vida
jorrava-lhe da anca e do braço, mas o seu machado desferia golpes para a
direita e para a esquerda, atingindo a bancada era-chando ao meio o
crânio de Sibicho. Ao morrer, sibilou:
- Sempre é uma víbora a menos.
Hathawulfe Solbem passaram por cima do corpo dele. Um filho de Ermanaric
atirou-se para a frente do seu pai. Solbém abateu o rapaz. Hathawulf
feriu mais longe. O punho da lança de Erma-naric defendeu~. Hathawulf
atacou novamente. O rei foi atirado contra a parede. O seu braço direito
estava pendurado, meio sepa-rado do corpo. Solbem desferiu um golpe
baixo, à perna esquerda e paralisou~. Ele caiu impotente, ainda a rugir.
Os irmãos avan-çaram para o golpe final. Os seus seguidores faziam
esforços para conservar os últimos guardas reais longe deles.
Mas alguém surgiu.
Uma paragem da luta alastroú por todo o salão como uma on-da, quando uma
pedra cai no lago. Os homens estavam assombra-
170
dos e ofegantes.
Através da penumbra conturbada, ainda mais
densa devido à grande quantidade de gente que enchia o salão, mal
conseguiam ver o que planava por cima da cadeira real.
Num cavalo esquelético, cujas pernas eram de metal, estava sentado um
homem de barba grisalha. O chapéu e um manto es-condiam-lhe
completamente a cara. Na sua mão direita empunha-va uma lança. A sua
cabeça, por cima de todas as outras armas e delineada contra o escuro do
tecto, emitiu uma chama- um come-ta, um prenúncio de desgraça.
Hathawulf e Solbem deixaram cair as suas armas.
- Antepassado - murmurou o mais velho no meio daquele inesperado
silêncio. - Veio em nosso auxílio?
Aresposta rolou com uma profundidade inumana, impiedosa e por todos
ouvida:
- Irmãos, a morte pesa sobre vocês. Enfrentem-na corajosa-mente e os
vossos nomes serão lembrados.
»Ermanaric, ainda não chegou a tua vez. Envia os teus homens pela
retaguarda e apanha os teurings por detrás.
»Váo, todos vocês, para onde Weard quer que vao.
E já lá não estava.
Hathawulf e Solbem ficaram petrificados.
Ferido, ensanguentado, Ermanaric ainda conseguiu gritar:
- Obedeçam! Mantenham-se firmes contra o inimigo. E os restantes vão por
aquela porta, dêem a volta... e obedeçam às or-dens de Wodan!
Os seus guarda~ostas foram os primeiros a compreender. Gritaram a sua
alegria e caíram sobre os inimigos. Por seu lado, os outros recuaram,
desmoralizados, parao turbilhão renascido. Sol-bem ficou para trás,
estirado por debaixo da cadeira real, num mar de sangue.
Os homens do rei saíam pelas pequenas portas traseiras, da-vam a volta
ao edifício e voltavam a entrar pela frente. Amaior par-te dos teurings
tinham entrado. Osgreutungs aniquilaram os que ainda se encontravam no
pátio. Quando não tinham melhores ar-mas, arrancavam as pedras do solo e
atiravam-nas. Uma lua-nas-cente dava-lhes luz suficiente.
Urrando, os guerreiros limparam a seguir a sala de entrada. Armaram-se e
atiraram-se aos invasores por ambos os lados.
Violenta foi a batalha. Sabendo que morreriam, acontecesse o que
acontecesse, os teurings lutaram até cair. Hathawulf, sozinho, ergueu
uma muralha de mortos à sua frente. Quando caiu, poucos restavam para se
alegrar com o facto.
O próprio rei não teria sobrevivido, se a sua gente não se tivesse
apressado a estancar-lhe as feridas. Mesmo assim, levaram~o, quase
inconsciente, para fora do salão, onde apenas habitavam os mortos.
171

1935

- Laurie, Laurie!

372

A manhã trouxe chuva. Batida por um vento uivante, gélida e dura como
granizo, escondia tudo excepto a povoação que se ani-nhava por debaixo
dela, como se o resto do mundo tivesse pereci-do num naufrágio. O troar
da chuva no telhado ressoava por toda a Heorot vazia.
A escuridão parecia ainda aumentada pelo vazio. Os fogos ar-diam> as
lamparinas brilhavam no meio das trevas. A atmosfera estava cortante.
Trêsfiguras encontravam~ perto do centro. O que diziam não as deixava
sentarem~. Q bafo salabranco-fantasma dos seus lá-bios.
- Mortos? -murmurou Alawin atordoado. - Todos? Não es-capou nenhum?
O Viandante assentiu.
-Sim -repetiu ele-, embora a desgraça seja tão grande pa-ra osgreutuugs
como para os teurLngs. Ermanaric está vivo, mas aleUado e coxo e perdeu
dois filhos.
Ulrica lançou-lhe um olhar arguto.
-Se isso aconteceu na noite passada -disse ela-, não caval-gou nenhum
cavalo terreno para nos trazer a notícia...
- Sabes quem sou... - respondeu ele.
- Será que sei? - ergueu para ele dedos repuxados como garras. A sua voz
transformou-se num guincho. - Se és na reali-dade Wodan, ele é um deus
miserável, que não quis ou não pôde ajudar os meus filhos quando
precisavam dele.
- Espera, espera - implorou Alawin, enquanto lançava um olhar temeroso
para o Viandante.
Este último disse suavemente:
-Eu estou de luto com vocês. Mas a vontade de Weard não po~ de ser
alterada. Amedida que a história do que aconteceu se espa-lha para o
ocidente, é provável que oiçam que eu estive lá e que foi Ermanaric quem
eu salvei. Saibam que contrao tempo, até ospró-prios deuses nada podem.
Eu fiz o que me estava destinado fazer.
172
Lembrem-se de que, ao perecerem da forma que lhes estava desti-
nada, Hathawulf e Solbern redimiram a honra destacasa e ganha-ram uma
fama que será recordada enquanto a sua raça existir.
-Mas Ermanaric continua vivo sobre a terra -contrapôs Ul-rica. - Alawin,
o dever da vingança passou para ti.
-Não- disse o Viandante. -A tarefa dele é mais importan-te que isso. E a
de salvar o sangue da família, a vida do clã. E por isso que aqui vim.
Virou-se para ojovem, que olhava para tudo com uns olhos es-bugalhados.
-Alawin - continuou ele-, eu tenho o dom da presciência e acredita-me
que é um fardo pesado. No entanto, às vezes, posso utilizá-lo para
evitar desgraças. Ouve bem, pois será esta a últi-ma vez que me ouves.
- Viandante, não ! - gritou Alawin.
Ulrica respirou por entre dentes cerrados.
O Cinzento levantou a mão que não empunhava a lança.
- O Inverno depressa chegará - disse ele -, mas a ele se se-guirá a
PrimaveraeoVeráo. Aárvore da tua linha está despidade folhas, mas as
suas raízes mantêm forças latentes e voltará a fio rescer... se um
machado não a derrubar.
-Apressa-te. Embora esteja ferido, Ermanaric irá tentar, de uma vez por
todas, acabar com a tua raça insolente. Tu não conse-guirás reunir uma
força tão grande como a dele. Se permaneceres aqui, morrerás.
»Pensa bem. Estás preparado para viajar para ocidente, e uma boa
recepção te aguardajunto dos Visigodos. Será ainda mais ca-lorosa devido
à derrota queAthanaric sofreu este ano infligida pe-los Hunos, no rio
Dnestr; estão bem precisados de almas frescas e esperançosas. Dentro de
alguns dias, podes iniciar a viagem. Os homens de Ermanaric, quando aqui
vierem, encontrarão apenas as cinzas desta casa, à qual pegarás fogo
para que não lhe caia nas mãos e será uma pira ardente em honra dos teus
irmãos.
»Náo será uma fuga. Não, partirão para forjar um amanhã mais poderoso.
Alawin, és agora o único depositário do sangue dos teus pais. Guarda~
bem.
A fúria desfigurou a face de Ulrica.
- Sim, sempre teve palavras convincentes - disse ela em voz
trémula. -Não sigas os seus conselhos traiçoeiros, Alawin. Man-tém-te no
teu lugar. Vinga os meus filhos... os filhos de Tharas-mund.
O jovem engoliu em seco.
- Quer realmente... que eu parta... enquanto o assassino de Swanhild,
Randwar, HathawulfeSolbern... aindavive?-gague-jou ele.
- Não deves ficar aqui - disse o Viandante em voz grave. -Seficares,
sacrificarás aúltimavida que existia no teu pai... dá-la-
173

-ias ao rei,juntamente com a do filho e mulher de Hathawulf e a da tua


própria mãe. Aretirada não é desonra nenhuma quando se está em grande
inferioridade numérica.
-S~im... eu podia contratar uma hoste visigoda...
-Não terás necessidade disso. Escuta. Daqui a três anos, ouvi-rãs
notícias sobre Ermanaric que te alegrarão. Ajustiça dos deu-ses cairá
sobre ele. Dou-te a minha palavra de honra!
- Que valor tem ela? - escarneceu Ulrica.
Alawin encheu os pulmões de ar, endireitou os ombros, ficou imóvel por
uns momentos e depois disse calmamente:
- Madrasta, fique calada. Eu sou o homem da casa. Seguire-mos o conselho
do Viandante.
O rapaz que ele ainda era, irrompeu por um momento:
- Oh, mas senhor, antepassado... é verdade que nunca mais o veremos? Não
nos abandone!
- Sou obrigado a isso - respondeu o Cinzento. - É necessá-rio para vocês
que isso aconteça. - Subitamente acrescentou: -Sim, o melhor é ir-me
embora imediatamente. Boa sorte. Boa sorte para sempre!
Atravessou a escuridão, saiu pela porta, para a chuva e o vento.
43

Aqui e ali, em várias épocas, a Patrulha do Tempo mantém lo-cais onde os


seus membros podem repousar. Entre eles conta-se o Havai, antes de os
Polinésios terem chegado. Embora essa estân-cia exista durante milhares
de anos, Laurie e eu considerám~nos afortunados por conseguirmos alugar
uma casa por um mês. Na realidade, suspeitámos que Manse Everard mexera
os seus corde-linhos em nosso favor.
Ele não falou nisso quando nos fez uma visitajá para o fim das
nossasférias. Foi simplesmente afável, acompanhou-nos num pi-quenique e
fez surfconnosco, atacando seguidamente ojantar, que Laurie preparara,
com o apetite que merecia. Só mais tarde é que nos falou do que nos
esperava nas nossas linhas de vida, e do que acontecera no passado.
Sentámo~nos num terraço junto à casa. O lusco~fusco descia frio e azul
sobre o jardim e para lá dele, através da floresta flori-da. A leste, a
terra descia Ingreme até onde o mar brilhava pratea-do; para oeste, a
estrela da noite tremeluzia por cima do Mauna Kea. Um riacho
cantarolava. Era a paz que curava.
- Então, sente-se em estado de regressar? - perguntou Eve rard.
174
- Sim - respondi. - E vai ser muito mais fácil. O trab~ho de basejá foi
feito, a informação básica coligida e assimilada. Te-nho apenas de
gravar as canções e as histórias à medida que são compostas e que
evoluem.
-Apenas! -exclamou Laurie. A sua troça era terna e tornou--se um consolo
quando pousou a sua mão na minha. - Bem, pe-lo menos estás livre da tua
dor.
Everard perguntou em voz baixa:
- Tem a certeza disso, CarI?
Mantive-me calmo ao responder.
- Sim. Ah, é claro que haverá sempre recordações dolorosas, mas não é
esse o eterno destino do homem? Há muitas mais que são boas e já consigo
recordá-las novamente.
- E claro que cQmpreende que não deve voltar a deixar-se ob-cecar desta
forma. E um risco que muitos de nós corremos e mui-tas vezes não
impunemente... - Teria o seu tom vacilado, muito levemente?
Aligeirouse. - Quando tal acontece, a vítima tem de o ultrapassar e
restabelecerse.
-Eu sei -respondi, e sorri um pouco. -Não sabe que eu sei?
Everard puxou uma fumaça do seu cachimbo.
- Não exactamente. Visto que o resto da sua carreira parece livre de
distúrbios, além dos naturais para um agente de campo, não
poderiajustificar o gasto de tempo de vida e de recursos da Pa-trulha
numa investigação mais aprofundada. Não estou aqui com carácter oficial.
Vim como um amigo, que gostaria simplemente de saber como está. Não me
diga nada que não queira.
- E um querido e velho urso, isso é que é! - disse~lhe Laurie.
Não me podia sentir inteiramente à vontade, mas um golo do meu rum
Coilins ajudou.
- Mas, sim, claro, é com o maior prazer que lhe darei as infor-mações -
começei eu. - Tomei o cuidado de me assegurar de que Alawin ficaria bem.
Everard agitou-se.
- Como... - perguntou.
- Nada de preocupante, Manse. Procedi cautelosamente, na maior parte do
tempo indirectamente. Diferentes identidades em diferentes ocasiões. Das
poucas vezes que me viu de raspão, não re-conheceu nada. - Os meus dedos
passaram sobre o queixo bem es-canhoado, estilo romano, bem como o meu
cabelo cortado curto. -Quando necessário, um patrulheiro tem tecnologia
avançada ao seu dispor para qualquer disfarce. Oh, sim, deixei o
Viandante em Paz Óptimo! - Everard voltou a recostarse na cadeira. - Que

aconteceu a esse miúdo?


- Refere-se a Alawin? Bem, ele levou um grupo de tamanho
razoável, incluindo a sua mãe Erelieva e a sua nova famflia, para
175
ocidente, para se juntara Frithigern. (Ele levá-los-ia daí a três
séculos. Mas estávamos a falar no nosso inglês nativo. A língua temporal
tem os modos apropriados.) Foi acolhido com todas as honrarias,
principalmente depois de se ter baptizado. Por si só, esta era uma razão
para o Viandante desaparecer. Como poderia um cristão manter-se próximo
de
um deus pagão?
- Hum... Pergunto a mim próprio que é que ele terá pensado dessas
experiências, mais tarde.
- Tenho a impressão de que manteve a boca fechada. Naturalmente que se
os seus descendentes... ele casou bem, se os seus descendentes
mantiveram alguma tradição sobre o assunto, te-riam suposto que era uma
espécie de fantasma que andava à solta no antigo país.
- No antigo país? Ah, sim. Nesse caso, Alawin nunca regressou à
Ucrânia, é isso?
- Não, de facto não. Gostaria que lhe contasse em traços lar-gos a
história?
-Faça favor. Estudei-a um pouco, em relação com o seu caso, mas quase
nada em relação às consequências. Além disso,já foi há bastante tempo,
na minha linha de vida.
<<E muito deve te deve ter acontecido desde então», pensei eu. Em voz
alta:
- Bem, em 374 o povo de Frithigern atravessou o Danúbio, com
autorização,
e instalou~ na Trácia. Athanaric seguiu-o pouco tempo depois, embora
fosse para a Transilvânia. A pressão dos Hunos tornara-se excessiva.
»Os oficiais romanos abusaram e exploraram os Godos, por outros
palavras, agiram como um Governo, durante vários anos. Finalmente, os
Godos decidiram que já estavam fartos e revoltaram-se. Os Hunos
tinham-lhes dado a ideia e a técnica de desen-volvimento da cavalaria,
que eles tornaram pesada; na batalhade Adrianople em 378 venceram os
Romanos. A propósito, Alawin distinguiu-se nessa batalha, que o lançou
no
caminho dafama que depois atingiu. Um novo imperador; Teodósio, assinou
a
paz com os Godos em 381 e a maior parte dos seus guerreiros entraram ao
serviço dos romanos como foederati, aliados, diríamos nós.
~Depois multiplicaram-se os conflitos, batalhas, migrações... o
Volkerwanderung estava lançado. Resumi-lo-ei ao meu Alawin, dizendo que,
depois de uma vida turbulenta, mas basicamente feliz, ele morreu, numa
idade avançada, no reino que por essa aí-turaosVisigodosjá tinham criado
para si próprios na Gáliado sul. Os descendentes dele tiveram um papel
importante na fundação da nação espanhola.
»Portanto, está a ver como posso deixar essafamília prosseguir o seu
caminho e continuar o meu trabalho.
176
A mão de Laurie apertou a minha com força.
O crespúsculojá se tornara noite. As estrelas brilhavam. A brasa do
cachimbo de Everard emitiu o seu clarão vermelho. Ele parecia um forma
negra, como a montanha que se erguia no horizonte a ocidente.
- Sim - cismou -, estou a recordar-me, em parte. Mas tem estado a falar
dos Visigodos. Os Ostrogodos, os conterrâneos ori-ginais de Alawin, não
conquistaram a Itália?
- Eventualmente - respondi eu. - Mas primeiro sofreram horrores. - Fiz
uma pausa. O que eu ia dizer a seguir tocava em feridas que ainda não
estavam completamente saradas. -O Viandante falou verdade. Swanhild foi
vingada...

374

Ermanaric estava sentado sozinho sob as estrelas. O vento lamentava-se.


Ouviam os lobos ao longe a uivar.
Depois dos mensageiros trazerem as notícias,já não conseguia aguentar o
horror e a conversa que se lhe seguia. Obedecendo às suas ordens, dois
guerreiros tinham~no ajudado a subir as escadas até ao terraço da sua
casa. Sentaram-no num banco junto do pa-rapeito e cobriram-lhe os ombros
descaídos com um manto de peles.
-Vãe-se embora! -rugiu ele e eles foram-se, perseguidos pelo medo.
Elecontemplara o crepúsculo a desvanecer-se a oeste, enquanto nuvens de
tempestade se aglomeravam azuis-negras a leste. Essas nuvens cobriam
agora um quarto dos céus. Os relâmpagos brincavam através das suas
cavernas. Antes do nascer do dia, a tempestade desabaria aqui. Mas por
enquanto apenas se sentia o vento prenunciador de um frio de Inverno em
pleno Verão. No res-to do céu, as estrelas ainda brilhavam em hordas.
Eram minúsculas, estranhas e desapiedadas. O olhar de Er-manaric tentou
fugir da visão do carro de Wodan, onde ele rodava à volta do Olho de
Tiwaz, que vigia sempre a partir do norte. Mas voltava sempre atraido
para o sinal do Viandante.
-Não segui os vossos conselhos, deuses -murmurou ele uma vez. - Confiei
na minha própria força. Vocês são mais traiçoeiros e cruéis do que eu
pensava.
Aqui estava ele, sentado, ele, o poderoso, manco de pé e mão, sem poder
fazer nada a não ser ouvircontar que o inimigo atraves-sara o rio e
esmagara debaixo de sio exército que tentava opor-lhe.
Ele deveria estar a pensar no que iria tentar a seguir, dando or-
177
dens, organizando a sua gente. Mas a cabeça do rei parecia oca.
Oca, mas não vazia. Os homens mortos enchiam esse salão constituído por
ossos,os homens que caíram com Hathawulfe Sol-bem, a flor dos Godos
orientais. Se eles ainda estivessem vivos nes-tes últimos dias, juntos
teriam rechassado os Hunos, com Erma-naric à sua frente. Mas Ermanaric
também morrera, no mesmo morticinio. Nada restava a não ser um aleijado,
cujas dores in~mi-tas cavavam buracos no seu cérebro.
Não podia fazer mais nada pelo seu reino, senão abandoná-lo, com
esperanças de que o seu filho mais velho, ainda vivo, pudes-se ser mais
digno, pudesse ser vitorioso. Ermanaric arreganhou os dentes para as
estrelas. Bem de mais sabia ele como essa espe-rança era vá. Perante os
Ostrogodos erguie-se a derrota, rapina, matança, submissão. Se alguma
vez voltassem a ser livres, seria muito tempo depois de ele já se ter
tornado em pó.
Ele, como tal, seria abençoado, ou apenas a sua carne? Que des-tino o
aguardaria para lá das trevas?
Puxou do punhal. A luz das estrelas e dos relâmpagos refulgiu no aço.
Por momentos, tremeu-lhe a mão. O vento soprava.
-Acaba com tudo! -gritou. Mastou abarba para o lado ele-vou a ponta do
punhal ao canto direito da sua garganta. Os olhos ergueram-se novamente,
como se tivessem vontade própria, para o carro do Viandante. Viu algo
branco a brilhar lá longe... um farra-po de nuvem ou Swanhild cavalgando
atrás do Viandante? Er-manaric reuniu toda a coragem que lhe restava.
Fez força com a lâ-mina para dentro e enterrou-a na garganta.
Sangue espirrou da garganta dilacerada. Curvou-se e caiu no chão do
terraço. A última coisa que ouviu foi o ribombar dos trovões. Parecia o
som dos cascos dos cavalos em direcção ao oci-dente, trazendo as trevas
dos Hunos.

E
Varagan encolheu os ombros,
como um gato.

-Tem pelo menos de reconhecer que o meu impéno se revestiria


de uma certa magnificência tenebrosa.

O saltitão materializou-se subitamente


e pairou a seis metros de altura.

O seu cavaleiro sorriu maliciosamente


e apontou a arma de fogo
que transportava. Da sela do seu cavalo,
Merau Varagan acenou ao seu eu
viajante no tempo.
Everard nunca chegou a perceber bem
o que aconteceu a seguir. Sem saber bem
como, conseguiu escapar da confusão
e chegar ao chão.
Então, um feixe atingiu-o.

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