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PARENTESCO

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ginais locais; é o que lhe confere um papel de primeiro plano no estudo de certos grupos sociais
colocados também em espaços, tempos e regiões bastante diversas entre si (cf. rempo/temporali-
dade, regido), onde muitas vezes festas, cerimoniais, lutos, vestuário, inimizades e formas de

c~laboraçAo \cf. fesr~, cerimonial, iniciaçdo, luto, puro/impuro, poder) encontram um código de
leitura própno no sistema de parentesco que regula por detrás de uma máscara a circulação
de bens e homens no interior de uma sociedade. FAMíLIA

Todos sabem, ou julgam saber, o que é a família. Ela inscreve-se tão


fortemente na nossa práúca quotidiana que surge implicitamente a cada um
de nós como um facto natural e, por extensão, como um facto universal.
De resto, neste caso concreto, a crença popular no fundamento naturalmente
universal da família não remete para uma entidade abstracta susceptível de
tomar formas variáveis no tempo e no espaço, mas de maneira muito pre-
cisa para um modo de organização que nos é familiar enquanto membros
da civilização ocidental, e cujos traços mais significativos são a família con-
jugal baseada na união socialmente reconhecida de um homem e de uma
mulher, a monogamia, a residência virilocal, um certo reconhecimento da
filiação e da tranSmissão de nome atr8.vésdo homem, a autoridade niasculina.
Se actualmente é visível _ graças li curiosidade intelectual, à atrllcção do
exotismo e à implantaçãOdos meios tnodermos de conhecimento - llue exis-
tem algures usos diferentes dos nossOs, estes são considerados ou como mar-
cas de um mundo selvagem ou como vestígios arcaicos e, de qualqúer modo,
como aberrações relaúvamente a uma norma. Se existe uma marca cultural
verdadeiramente universal, esta é sem dúvida a certeza etnocêntrica parti-
lhada por todos os membros de um grupo humano de que as suas institui-
ções são leis da natureza, consequentemente quase automáticas, e que de
certo modo não podem existir outras. A nossa civilização não pode escapar
com facilidade a esta regra, dado que cobre uma larga parte do mundo,
\
engloba milhões de indivíduos e que, levada pelo seu próprio peso, pela
força das armas, da religiãO e do comércio, soube impor as suas certezas
\ aos povos sobre os quais se estendeu a sua sombra. .
I
É preciso reconhecer que, no q\'le respeita à família, entendid~ antes de
mais como a união mais ou menos duradoura e socialmente ap~ovada de
um homem, de uma mulher e dos seus filhos [Lévi-Strauss 1956), a crença
\
de que se trata de um facto natural impõe-se tanto mais que esta unidade
social parecer ser, de facto, um fenómeno praticamente universal. Encontra-
-se tanto nos povos mais «desenvolvidos••como nos mais «primitivos»: assim
_ observa Lowie [1948) _, os grupos veda do Ceilão "ocupam muitas vezes
\ o mesmo abrigo cavado na rocha, mas cada família elementar utiliza estrita-
mente uma parte do abrigo, como se estivesse separada das outras por uma
espécie de barreira visível»; essa é a unidade de base das famílias poli-
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gamas em que diversas unidades deste tipo partilham do mesmo cônjuge, entre vivos, que o genitor dos filhos seja normalmente o pai no quadro da
e das famílias alargadas em que tais células familiares coexistem, numa resi- união conjugal e, finalmente, que a família conjugal (pai, mãe, fllhos) cons- .
dência comum, ao longo de várias gerações. titua a unidade residencial e econ6mica elementar através da qual passam
Todavia, há exemplos de sociedades altamente elaboradas onde estas asso-
a educação e a herança. Ora, a experiência etnol6gica demonstra que nenhum
ciações quase-permanentes de um homem e de uma mulher não existem.
destes princípios é universalmente aceite.
~ o caso dos famosos Nayar da costa do Malabar na lndia. O estilo de vida
Em çertas populações africanas existe um casamento legal entre mulheres.
guerreira dos homens proibia-lhes fundar uma família. As mulheres - ainda
~ o CllSPdos Nuer sudaneses, patrilineares (o reconhecimento da flliaçito
que casadas nominalmente - tinham os amantes que queriam, e os fIlhos
nascidos destas uniões temporárias pel1el1ciamà linhagem materna. A auto- passa clfclusivamente pelos ho~ens) em que a fJ1ha ne~ sequer é conside-
rada coJilOpertencendo verdaderramente ao grupo do pat (ela é uma unrela-
ridade e 11 gestão das terras estavam n/ls mãos não já do marido evanes- ted person, segundo a terminologia de Evans-Pritchard), salvo se for estéril:
cente, mas dos homens da linhagem materna, irmãos das mulheres, eles pró- neste caso - de que ela dá provas depois de longos anos de casamento
prios guerreiros e amantes ocasionais ,das mulheres das outras linhagens; ordinário - é considerada e conta como um homem da sua linhagem de
a terra era, pois, cultivada pelos memb~os de uma casta inferior. Todavia, origem. O casamento legal entre os Nuer é sancionado pelo pagamento de
este tipo ~e grupo constitui em si mesDl~uma família, se bem que não reco- um dota em gado ou «preço da noivllll, efectuado pelo marido ou pela famí-
nheça o modelo conjugal; chamar-lhe-emos por comodidade família matri- lia do marido aos parentes do lado do pai da esposa que o dividem entre
cêntrica. Esta é a expressão de uma form~ extrema de diferenciação dos esta-
tutos e dQs papéis masculinos e feminiQ~s. Outros exemplos desta situação si. A mjJlher estéril recebe deste modo, como «tio» paterno, uma parte d~s
dotes recebida pelas suas sobrinhas, as filhas dos seus irmãos. Com este capI-
podem sell'fornecidos na nossa própria ~iedade, mesmo que sob uma forma tal ela pode por seu turno pagar o «preço da noiva» por uma jovem com
embrionária e não socialmente reconhedda.
qu~m ela casa legalmente e por quem ela cumpre os rituais oficiai~ do casa-
Deste Plodo, se a união conjugal est~vel não existe em toda a parte, ela mento. Em seguida, será ela a escolher um homem, um estrangerro pobre,
não pode' ser uma exigência natural. E,. na verdade, fora da relação física geralmente um dinka, para coabitar com ela e gerar fllhos. Este homem
de gestaç~l); parto e aleitamento (e isto llpenas nas sociedades em que o alei- não é mais do que o criado da mulher-esposo e cumpre por sua vez as tare-
tamento IIrtificial não existe), que une ~I mãe aos seus fIlhos, nada é natu- fas habituais de um criado. Os fllhos que nascem desta «união da sombra»
ral, necessário, biologicamente fundadQ, na instituição familiar. são os da mulher-esposo: chamam-lhe «pai»e ela transmite-lhes o seu nome
Assim, IItéo pr6prio elo biol6gico mã~/mhos nem sempre tem como resul- e os seus bens. A sua esposa chama-lhe «meu marido», deve-lhe respeito
tado que li mãe tenha o encargo de educar os fIlhos. Entre os lndios Tupi- e obediência e serve-a como serviria um verdadeiro marido. Ela pr6pria admi-
-Kawahib do Brasil (Lévi-Strauss 1956], onde um homem pode casar quer nistra a sua casa e o seu gado, distribui as tarefas e fiscaliza a sua execução,
com várias irmãs quer até com uma' mãe e com as filhas que esta tiver tido como um homem o faria. ~ ainda ela quem fornece aos filhos o gado neces·
de um outro homem, os fIlhos são educlldos pelo conjunto das co-esposas, sário ao casamento deles. No casamento das suas filhas, recebe a título de
sem que cada uma delas se preocupe de modo particular com os seus pr6- «pai» o gado do dote delas e entrega por cada uma delas, ao genitor natu-
prios filhos. Entre os Mossi do Alto VolW [Pageard 1969], nas grandes famí- ral a vaca que constitui o preço (diferido) da sua procriação. O genitor não
lias poligípeas, estabelece-se, ap6s o desmamar, uma repartição dos fIlhos de:empenha qualquer papel além daquele para o qual foi requerido e não
entre as d~erentes co-esposas: mesmo llquelas que são estéreis ou que per- obtém deste papel de companheiro sexual-cobridor qualquer satisfação mate-
deram os Seus filhos devem educar crianças que não são suas, que elas amam rial moral ou afectiva ligada ao mesmo papel efectuado no âmbito do casa-
como se fossem suas e que não conhecem outra mãe senão ela antes da sua merito. Neste caso, evidentemente, a mulher-esposo é apenas um substituto
entrada na idade adulta; s6 nesse instante é que lhes dão a conhecer o elo do homem porque é estéril, e este casamento legal permanece totalmente
biol6gico que as une a uma outra mulher do pai. dentro dos cânones da ideologia masculina.
Para ilustrar a artificialidade fundamental desta instituição, representaria Entre os Ioruba (Ekiti e Yagha) da Nigéria, é uma mulher rica, uma
pela célula social fundada na união conjugal - na multiplicidade das res- comerciante, e não uma mulher estéril, que pode legitimamente desposar
postas culturalmente dadas às necessidades e aos desejos fundamentais do outras mulheres e ter, através do mesmo processo de substituição, descen-
indivíduo e da espécie (desejo sexual, desejo de reprodução, necessidade de dentes que são seus ou obter um benefício de tipo capitalista. Uma comer·
manter e de educar os fIlhos, em particular) -, recordaremos, pois, algu- ciante rica casa-se legalmente através do pagamento do dote com uma ou
mas daquelas que nos parecem ir de maneira radical contra a evidência do com várias raparigas, virgens de preferência, e envia-as a fazer comércio nas
bom senso, a coisa que no mundo é considerada, a par da família, como aldeias vizinhas. Elas têm toda a liberdade para se unirem, sem pagamento
universalmente partilhada. de dote, com quem quiserem, mas devem prevenir a sua mulher-esposo.
Assim, parece absolutamente evidente que os membros de uma união Quando têm fllhos e estes chegam à idade de cinco ou seis anos, a mulher-
conjugal sejam de sexo diferente, que esta união não se estabeleça senão -esposo apresenta-se perante os genitores e reclama-lhes os filhos que são legal-
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mente dela, bem como as esposas. Frequentemente, o homem enganado da mãe. Os irmãos co-maridos são considerados como uma única e mesma
aceita pagar uma compensação financeira para poder ao menos conservar carne, e é por esta razão que este tipo de casamento pode ser considerado
os seus fllhos. Estes tipo de união, no qual os fllhos pertencem à mulher- como uma simples variante da família monogâmica; os contratantes, de qual-
-esposo legal, ou lhe trazem beneficio, é decalcado do modelo praticado pelos quer modo, não se preocupam com a realidade da sua paternidade indivi·
comerciantes muçulmanos de sexo masculino, que enviam as suas próprias dual, em benefício da sua paternidade comum. Um ponto importante: a pro-
esposas operar como reprodutoras, de fllhos ou de capital, em populações priedade familiar, gerida pela esposa comum que reina como patroa na sua
vizinhas animistas. ~ absolutamente de excluir nestas uniões - que têm por casa, é sempre transmitida colectivamente aos fllhos.
objectivo quer a constituição de uma fam1lia normal (caso dos Nuer), quer Passemos agora a situações aparentemente menos estranhas. Nas socie-
a frutificação de um capital (caso dos Yoruba) - uma qualquer forma de dades matrilineares a filiação é contada e reconhecida pelas mulheres, mas
homossexualidade feminina. Em contrapartida, existem uniões homossexuais o principio de residência pode variar segundo as sociedades: umas vezes são
masculinas entre os Navaho e os Zuni, com repartição de tarefas segundo os homens que se deslocam para irem viver com as suas esposas e' a paren-
o modelo corrente. I tela uterina feminina destas últimas; outras, são as mulheres que se deslo-
Tão frequente como o casamento entre vivos, o casamento-jantasmd legal cam para irem viver junto dos seus 'maridos (o grupo matrilinear, enquanto
(sempre entre os Nuer) sÓ'pode dizer respeito a um morto sem descehdên- unidade residencial, é neste caso cônstituído pelos homens). Em' todos os
cia. Deste modo se cria uma fanúlia cujos protagonistas são o morto~ que casos, a autoridade primordial e a transmissão da herança não se exercem
é o marido legal, a mulher desposada em nome do morto por um dos seus de pai para fllho, mas de tio matenlo para os filhos da irmã. Um grupo de
parentes, o marido substituto e os fllhos que nascerem desta união. Estas
? fdiação matrimonial, linhagem ou clÁ- ou seja, um conjunto de ihdivíduos
crianças são socialmente e legalmente as do morto,' pelo simples faào de que descende J)õi- -parte das mulherts de uma mesma antepassada- possui
o companheiro sexual da mulher ter retirado do gado do defunto o imon- bens que não podem ser transmitid,t>spara fora do grupo: ora, um homem
tante do dote que pagou o seu nome. Um homem pode desposar mu~heres e o seu flIho pertencem a grupos distintos de filiação, porque o tl1ho des-
em nome de um tio paterno, de um irmão, e até mesmo de uma irmã esté- cende do gupo matrilinear da sua mãe ao qual pertence também o irmão
ril, falecidos sem fllhos. A viúva de um homem morto sem descendência da mãe. Neste caso, a fam1lia conjugal existe apesar de tudo, mlls é o tio
- se não puder ela própria conceber para ele frutos de um cunhado em materno, e não o pai, quem manda e é temido: é ele quem detém plenos
união levirática - pode igualmente casar com uma mulher em norbe do poderes sobre os seus sobrinhos, recolhe o fruto do trabalho deles, provi-
marido. Contrariamente ao caso precedente, o pai dos fllhos é desta vez o
marido morto e não ela. Os fllhos têm conhecimento do seu estatuto de dencia o seu estabelecimento.
neste contexto, uma unidade Esta (anúlia conjugal nem sequer é, por vezes,
residencial.
fllhos do morto e traçam a sua genealogia a partir desse pai; consoaIhe os Entre os Senufo da Costa do. MlU'frm- matrilineares e poligâmicos -
casos, consideram o seu genitor (e tratam-no) ou como um tio paterbo ou
como um irmão da mãe. A genealogia familiar não tem, pois, nada que ver cada que
gem um dos cônjuges
é então permanece
a verdadeira ~pós doméstica
unidade o casamentode na sua fam.i1iade
produção. Ao cairori-
da
com a geração biológica, e isso tanto mais que o marido substituto pode noite, os maridos vão ter com cadrt uma (uma por dia) das suas diferentes
por sua vez morrer sem progenitura, se não tiver tido os meios de dotar mulheres que cozinham para eles é lhes prestam os serviços ordinários do
uma esposa por sua conta: essa progenitura própria ser-lhe-á asseguradaeven- casamento, mas' não residem nunJa de maneira permanente clÍm uma de
tualmente por um irmão mais novo ou por um sobrinho (e talvez," aliás , entre elas nem com os fllhos que delas tiverem tido. Esta institui~ão é conhe·
cida pelo nome de visiting husband ~maridovisitador'. Também aqui se trata
por um fllho que ele tivesse gerado em nome do seu irmão!). I
O exemplo destas fam1lias-fantasma mostra-nos que nem o sexo, nem a de uma forma de família matricêJ1uica, mas diferente da praúéada pelos
i~entidade dos membros nem a paternidade fisiológica têm importârida por Nayar, dado que, entre os Senufor !l noção de par conjugal existe, mesmo
SI mesmo. Tal como no adágio romano (<<is est pater quem nuptiae demons- que o par não corresponda a uma funidade residencial ou económica e não
trant»), o que conta é a legalidade do casamento, demonstrada com apaga- opere em conjunto na educação e criação dos seus próprios fllhos, e tam-
mento do «preço da noiva,,; e isto é um traço não natural mas entinente- bém porque o marido é o único p~rceiro sexualmente autorizado da esposa
mente cultural e social. e é o pai dos seus flIhos. ,.
A recusa da importância da paternidade fisiológica encontra-se igualmente Concluiremos, pois, de maneini l1parentemente paradoxal, qUe a família
nos Tibetanos, que praticam o casamento poliândrico. Quando o mais velho é certamente um dado universal, lhas apenas no sentido de que não existe
de vdrios irmãos desposou legalmente uma mulher, esta casa sucessivamente nenhuma sociedade desprovida de uma instituição que desempenHe em toda
com cada um dos irmãos do marido a intervalos regulares de um ano. Os a parte as mesmas funções: unidade econóIDÍcade produção e consl.uno, lugar
homens praticam o comércio a longa distdncia e organiznm-se de m/mcira privilegiado do exercício da sexualidade entre parceiros autorizatlos, lugar
a nunca se encontrar mais dd que um marido em cala. 01 filhoR s40 atri· da reproduçllo biológica, da criação e da socialização dos fJ.lhos. Neste
buídol ao mail velho: chamam-lhe «pai. e chamam «tio. 101 outrol marldoR Ambito, ela obedece sempre às mesmas leis: existência de um estatuto matri-
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monial legal que autoriza o exercício da sexualidade entre pelo menos dois em função de uma certa repartição das tarefas entre os sexos. Numerosos
membros da família (ou que prevê os meios de a isso suprir), proibição do exemplos etnol6gicos demonstram que esta repartição usual não é baseada
incesto (relação sexual ou casamento), divisão do trabalho segundo os sexos. em imperativos fisiológicos (Gough 1975; Uvi-Strauss 1956]. Entre os Pri·
No entanto, mesmo que o modo conjugal monogâmico, com residência matas, cada sexo subvém normalmente à sua pr6pria subsistência, e as
comum dos cônjuges, seja o mais difundido, a extrema variedade das regras fêmeas podem combater quando não têm de ocupar-se da sua prole. Esta
que contribuem para o estabelecimento da família, para a sua composição repartição decorre, pois, de uma ordem arbitrária cuja única explicação é
e para a sua sobrevivência, demonstra que esta não é - nas suas modalida- a de ter como efeito tornar os dois sexos dependentes um do outro e, por-
des particulares - um facto natural, mas, bem pelo contrário, um fen6meno
tanto, levar os seus representantes a associações d~adouras entre indiví-
altamente artificial, construído, um fer)6meno cultural portanto. duos li uma espécie de contrato de sustento, ou seja, ao casamento, para
Mas então, porquê a família? Que prop6sito se~e .e1a para ser u~ver- que ;les possam sobreviver sem terem de entregar-se às actividades do sexo
sal, qualquer que seja a forma segundo a qual a mstltuíram as múltiplas oposto.
sociedades do mundo, actuais ou passa4as? A resposta a estas interrogações A este contrato de sustento entre parceiros dotados de capacidades cul-
passa pelll resposta a uma questão mai~ geral, e da razão de ser das leis turalmente diferentes e complementares, vem juntar-se a regulamentação das
que se encontram em toda a parte associadas ao estabelecimento da família:
prestações sexuais, que faz do casamento o lugar privilegiado. da reprodu-
a forma legal do casamento, a proibiçãd do incesto, a repartição sexual das ção biol6gica. Mas a associação destas duas ordens de necessidade (o sus-
tarefas. Também não se pode dizer destas leis que elas sejam fundadas a tento mútuo e a relação sexual) também não nasce de qualquer imposição
partir de exigências naturais. Deste modo, a qualidade de consanguíneos natural. Murdock sublinha [1949, capo I] a existência de relações entre
interditos Pela proibição do incesto é extrçmamente variável segundo as socie- homem e mulher que fazem intervir uma divisão de trabalho sem gratifica-
dades; quanto às tarefas, as que nos parecem mais femininas (a costura,
ção sexual: entre irmão e irmã, entre senhor e serva, ou entre paU:ãoe .secre-
por exemrlo, tomada no seu s~ntido ~gar, e não como criação da moda) tária. A priori, nada - pelo menos nenhuma razão de ordem fiSl~16glcao~
podem ser 'noutro lugar as maIS masculinas (são os homens que talham o biológica - impediria também que este tipo de contrato de um upo partI-
vestuário e 'o cosem nos países da Afr~ca Ocidental). Mas o que conta e
cular que implica o sustento mútuo e a relação sexual se passasse entre con-
levanta problemas, se bem que elas não sejam fundadas in natura, isto é,
estritamente em realidades de ordem fisiol6gica, o que conta e constitui pro- sanguíneos provenientes do mesmo grupo. Deste modo~ ~ partir de. agrega-
dos humanos matricêntricos (segundo o modelo familiar dos Prunatas),
blema é a universalidade da sua aplicação.
associações matrimOlrlaisque implicam o sustento mútuo, o comércio sexual,
Todas as sociedades estabelecem uma diferença entre um tipo de união
a produção e criação dos fIlhos poder-se-iam organizar entre parentes: mãe
legal, sancionado juridicamente de uma maneira ou de outra - ou seja, o
e ftlho irmão e irmã, pai e ftlho. A humanidade estaria, deste modo,
casamento -, e relações sexuais de ocasião, quer estas sejam admitidas e até
prescritas antes do casamento, toleradas ou condenadas depois dele; ou mesmo povoad~ de grupos consanguíneos fechados sobre si próprios~ ~ugar da sua
entre o casamento e o concubinato, união estável mas de natureza diferente própria reprodução biol6gica, hostis por defInição aos seus VIZinhOS~reda-
dores: quando os parceiros sexuais não existissem em número sufiCiente,
do casamento. Não existe, evidentemente, nenhuma razão biol6gica para tudo
seria necessário obtê-los pela força nos outros grupos (para falar apenas deste
isto. A única necessidade biol6gica que comporta relações de longa duração
entre dois indivíduos é a maternidade, ou seja, o par mãe/fIlho. Nos Prima- tipo de predação). Daqui decorreria que nenhuma forma estável de sociedade
seria poss(vel. Parece que a humanidade terá compreendido bastante cedo
tas, sobretudo nos chimpanzés, encontram-se estas soéiedades matricêntri-
cas, que agrupam não apenas uma mãe e um fIlho, mas uma mãe e o.sseus que lhe era necessário escolher entre famílias b~ológicas isoladas e. justapos-
fIlhos, na medida em que são precisos sete a doze anos para que os Jovens tas como unidades fechadas, perpetuando-se a SImesmas, submergldas pelos
atinjam a maturidade e a autonomia sexual e de subsistência [Gough 1975; ,
seus terrores 6dios e ignorâncias, e .. , a instituição sistemática das cadeias
de intercasamentos que permitem edificar uma sociedade humana autêntica
.
Reynolds 1968; Sahlins 1959]. A presença do pai, de um homem, ao lado
da mãe e da criança, a afeição do pai pela progenitura não são factos de natu- a partir da base artificial dos laços de afInidade, a despeito da influência
reza, tal como o não é a obrigação de uma relação sexual estável entre par- isoladora da consanguinidade e até contra ela [Lévi-Strauss 1956].
ceiros associados para toda a vida. Todavia, a união conjugal estável e publi- De facto todos os grupos consanguíneos arcaicos parecem ter resolvido
camente reconhecida é atestada em toda a parte, mesmo nas sociedades que da mesma ~aneira o problema da coexistência com os seus vizinhos, pondo
eram supostas desconhecer o papel fisiológicodo homem na procriação (como , em prática numerosos recursos (pelo que se pode pensar com pertinência
em Bellona, nas ilhas de Salomão [Monberg 1975]), mas que estabeleciam terem sido concebidos ao mesmo tempo que o aparato simb6lico da lingua-
através do casamento a paternidade social. gem tomava forma):
Se examinarmos todas as formas conhecidas de casamento, o elemento
comum parece residir na prestação de serviços mútuos entre os cônjuges
I) uma regulamentação das relações sexuais faz do seu exercic~od.entro
do casamento uma coisa diferente da pura satisfação de mstlDtos;
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2) um princípio de fl1iaçãodivide os consanguíneos, designados por ter- fundamento mínimo de uma sociedade estável; o casamento é o instrumento
mos que definem a sua posição e o seu papel, em diversos grupos deste contrato de aliança, as mulheres, as reprodutoras, constituem o mate-
e classifica-os em duas séries: os casáveis e os não-casáveis. Deste rial. Concebida desta maneira, a instituição familiar, que exige incessante-
modo, por exemplo, a filha da irmã de um homem pode pertencer mente a cooperação de grupos distintos de consanguinidade para reconsti-
ao mesmo grupo de fl1iação que ele (trata-se neste caso de fl1iação tuir uma geração após outra (duas famaias devem cooperar para poderem
matrilinear) e ser-lhe ipso facto proibida em casamento; mas, num sis- fundar uma terceira), renova indefinidamente o contrato social. A fam!lia
tema de filiação patrilinear, ela pertence a um outro grupo (nomea- é o que permite à sociedade existir, funcionar, reproduzir-se. Ela fá-Io, de certo
modo, de maneira implícita: através da sua própria existência, ela é disso
1 damente
casos ao do seu
permitida empai) e, se bem que consanguínea, é-lhe em certos
casamento; a simples transcrição concreta elementar.
Deveremos concluir, pois, que a famaia - universal e aparentemente
3) adoproclamação de um aprincípio
incesto, segundo de aliança,toda
qual é incestuosa que aseunião
baseiacom
na pro;biçãO
patentes necessária à construção e à manutenção da vida em sociedade - é por esta
não-casáveis, em primeiro lugar com membros do grupo segundo a mesma razão uma instituição que não pode desaparecer? Como 'entender
regra de fl1iação. Este princípio de aliança proíbe que grupos biológi- então o tão actual tema da famaia em crise?
cos consanguíneos se fechem sobre si próprios e obriga os seus mem- Procedamos em primeiro lugar a uma extensão da palavra 'fatn11ia', já
bros a ir procurar parceiros no exterior, no conjunto dos consanguí- não entendida como uma unidade, geralmente residencial, formada por um
neos casáveis ou dos não-consanguíneos. Em certos casos, tal prihcípio homem e uma mulher cuja união é Socialmente aprovada com os seus filhos,
pode mesmo orientar de maneira específica as escolhas possíveíll para mas sim como o «conjunto das pessOasdo mesmo sangue» (Littré).Já vimos
qualquer indivíduo. Assim, as unidades consanguíneas encontram-se que regras de filiação em número finito (as mais correntes são as modalida-
estreitamente dependentes umas das outras no que respeita à sua des patrilinear, matrilinear, bilinear e cognáticafmdiferenciada)têm por objec-
sobrevivência, através da regulamentação da troca dos parteiros tivo dividir e classificar os parentes e~ grupos distintos, classificaçãde divisão
sexuais, atribuindo a regra de fl1iaçãoo seu lugar aos filhos ser:t;lpos- que estabelecem para um dado indivíduo a gama dos seus direitos e das
sibilidade de contestação. suas obrigações. relativamente aos 'seus consanguíneos. Em qualquer dos
casos, o reconhecimento do parentclsco faz·se por meio da genealogia, real
Mas tudo isto não basta; para que a aliança entre ~~ grupos tenha' um ou fictícia. O reconhecimento da pUra relação genealógica de cortsanguini-
sentido, ~ necessário que as relações entre os parceiros sejam as maill está- dade existe sempre, a despeito dos .feitos da classificação segundo as regras
veis possíveis. Que significaria de facto a relação de aliança efectuadaentre de filiação. '
grupos através da aproximação de dois indivíduos, se essa relação fosse I,
Na sociedade ocidental, cognátida, onde todos os laços são reconhecidos
quebrada imediatamente depois do contrato e o substituíssem por outro? como equivalentes através dos antepassados dos dois sexos, onde, portanto,
A repartição sexual das tarefas intervém neste ponto, tornando dependen- não se encontra o equivalente dos grupos estáveis unilineares, se :bem que
tes uns dos outros e complementares não já os grupos mas os próprioll indi- exista, no entanto, uma notável imIkrtância patrilinear (transmissão do ape-
víduos, os parceiros sexuais. No âmbito da relação individual surgem então lido, muitas vezes da herança fundiária, patrivirilocalidade acentuada no meio
prestações e serviços diversos de simples comércio sexual. Homens e ,mulhe- rural, etc.), esta famaia construída genealogicamente, ou parentela, coexiste
res são impelidos pelas suas respectivas incapacidades artificialmenté esta- fortemente com a fam11iaconjugal. Os seus limites variam, mas ela inclui
belecidas a associaçõesduradouras baseadas num contrato de sustento mútuo, em primeiro lugar os pais e os avós do casal, em seguida os seus colaterais,
contrato a que só falta ser sancionado por uma instituição jurídica que esta- bem como os cônjuges desses colal~rais (tios e tias, irmãos e irmãs, sobri-
beleça a sua legalidade: o casamento. nhos e sobrinhas, etc.).
As modalidades da regulamentação, contratual do casamento sãdextre- Laços de consanguinidade e laçp~ de aliança existem em todas as socie-
mamente variáveis conforme as sociedades, como já vimos. Mas inlplicam dades humanas, mas o que é importante perceber é a relação entré os diver-
sempre, simultaneamente, métodos de classificação dos parentes biQlógicos sos níveis de fidelidade que eles e:ldgem aos seus contratantes, segundo os
(segundo as linhas de reconhecimento da filiação) em casáveis e en1 não- tipos de sociedade em que se martifestam.
-casáveis, e regras precisas sobre a escolha do cônjuge, quer esta~ tegras A análise das diferentes formas, de sociedade humana mostra que con-
designem expressamente o tipo de parceiro que convém desposar, quer elas sanguinidade e aliança exogâmica, listo é, realizada fora do grupo de con·
proíbam conjuntos globais e consanguíneos. Para este objectivo, a noção de sanguinidade segundo o modo como ele se defme pelas regras de filiação,
incesto é fundamental e a sua definição ultrapassa largamente, em nhmero- apontam necessariamente para direcções diferentes (Schneider). Partiremos
sas sociedades, aquela que é a nossa. do princípio que, onde a tónica retai na importância do laço conjugal e da
Daqui deriva que, em qualquer sociedade, o contrato de aliança entre solidariedade entre os esposos, din1inui a importância dos laços da consan-
grupos de consanguinidades regidos por uma regra de filiação constitui. o guinidade: em caso de conflito, a solidariedade conjugal sobrepor-se-á à soli-
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dariedade parentaI. Inversamente, onde a tónica é posta sobre o primado entre elas as mães e as flIhas e mais geralmente as mulheres que partilham
da consanguinidade, limites específicos são atribuídos aos direitos e obriga- os mesmos laços de consanguinidade uterina - parece-nos particularmente
ções conjugais: em caso de conflito, a solidariedade do sangue sobrepor-se- importante. A sociedade ocidental não é patrilinear, apesar de durante séculos
-á à solidariedade conjugal, a ponto por vezes de a romper totalmente. ter funcionado de maneira muito próxima da que acima foi descrita. No
O exercício destas solidariedades é diferente segundo os sexos e os tipos entanto, ainda hoje se encontram vestígios desta solidariedade afectiva entre
de organização social. mulheres detectada em várias áreas, incluindo a das escolhas matrimoniais
Uma das fórmulas sociais mais consl;guidas - pelo facto de veicular as secundárias [Héritier 1977]. Ao falar do apoio dado pelos pais aos jovens
mais fracas ambiguidades possíveis - é aquela que se baseia no princípio casais, Agnés Pitrou nota [1975] que eles atribuem no entanto um lugar
da fIliação patrilinear acompanhada d" patrivirilocalidade. A pertença ao privilegiado à casa das suas fIlhas e não à dos seus fJ1hos. O que aqui é
grupo só é transmissível através dos hoipens; as fIlhas nascidas dos homens pertinepte é que a ajuda - em sentido estrito - é sobretudo uma ajuda
do grupo pertencem a esse grupo, mas n~o as crianças nascidas destas fIlhas. feminina: os serviços esperados e dispensados consistem especialmente numa
O modo 4e filiação patrilinear, que só reConhece, portanto, os machos como substituição pontual da mãe pela avó em caso de necessidade nos encargos
vectores 4a flliação, é normalmente acofIlpanhado de uma forte autoridade da maternidade, e não numa ajuda propriamente concedida pelos pais.
do homerp sobre a mulher, enquanto J~ai, irmão ou marido, e até mesmo É também aqui que se vêem despontar na nossa sociedade os efeitos desta
sol~dar~edade~ãe/fJ1ha, e mais geralmente entre mulheres consanguíneas,
filho (se bemdos
unicamente quesistemas
- acrescente-se - o, poder
patrilineares). masculino
tral fórmula não seja
é também específico
seguida por solidarIedade mdependente da solidariedade de linhagem na óptica patrili-
grupos rellidenciais organizados em torpo dos consanguíneos machos que near, que é ao mesmo tempo uma das válvulas de segurança do sistema
vivem eIllconjunto e muitas vezes tr,balham juntos numa propriedade familiar e conjugal (enquanto estas relações não entrarem em competição
comum: (l corolário é a obrigação por parte das esposas de abandonarem com o exercício da aut.oridade masculina não são consideradas perigosas),
- tanto no sentido geográfico como no s.cntidoestatutário do termo - a sua mas talvez também o bicho na fruta. Levado às últimas consequências, este
família de origem para residirem na do ,eu cônjuge. O predonúnio da mas- tipo de solidariedade totalmente diferente dos outros (solidariedade consan-
culinidade faz com que as fIlhas, que devem ir viver para outro lugar e pro- guínea, solidariedade conjugal de que atrás falámos) pode ser o motor de
criar algures fllhos que não pertencerão à família de origem da sua mãe, uma mudança radical dos modos de pensamento e de vida, da organização
não passem nesta óptica de membros de segunda categoria para o seu grupo social e do tipo de sociedade.
de origem: não é de facto através delas que ele se perpetua. Os grupos patri- É ~ossível, como "pensa Kath1een Gough [1975], que a família conjugal,
lineares, dada a obrigação da exogamia, não têm qualquer interesse em man- essencial no dealbar da humanidade para a constituição da sociedade e da
ter uma forma de controlo da linhagem sobre as suas fllhas depois do casa- cultura, não possa sobreviver verdadeiramente na civilização industrial. Com
mento destas, uma vez que, reciprocamente, não têm interesse em que os efeito, é verosímil que, nas sociedades ocidentais caracterizadas pelas suas
outros grupos, que lhes fornecem as esposas reprodutoras ao mesmo tempo grandes dimensões, pela importância do modo de vida urbano, pelo regime
que uma força de trabalho, exerçam esse mesmo controlo sobre as suas pró- capitalista de produção e pela competição profissional e omnipotência do
prias fllhas. É, pois, geralmente nas sociedades patrilineares que se encon- Estado e da administração, o abandono de certos traços característicos da
tram formas matrimoniais rigorosas que visam a estabilidade da união atra- instituição familiar - considerados como embaraçosos ou menores - esteja
vés da opressão das mulheres; estas encontram muito dificilmente apoio junto na origem das tensões actuais no interior da família. A tomada de consciên-
dos parentes, ou seja, junto do pai e dos seus consanguíneos machos do cia da alienação feminina realizou-se com a entrada das mulheres no jogo
mesmo grupo, em caso de crise conjugal, especialmente se o casamento delas da produção e da rendabilidade económica, devido às necessidades da eco-
foi objecto de transacções de dotes pagos pela família do marido que seria nomia de mercado, e a sua saída, por este motivo, do puro campo domés-
necessário devolver em casos de divórcio. Enquanto para o marido os laços tico onde estavam tradicionalmente confmadas pela divisão sexual das tare.
de flliação e de solidariedade de linhagem permanecem sempre prioritários, fas. A desaparição da noção de residência comum da linhagem num
uma vez que ele vive no seio da sua família, as esposas desligadas das suas determinado território, uma vez que esta é incompatível com um desenvol-
próprias famílias constituem outras tantas peças soltas que só conseguem vimento económico intenso, fez com que deixasse de existir harmonia entre
estabelecer intensos laços afectivos com a sua própria progenitora e, sobre- a sociedade e a família, a ponto de se chegar a falar desta última, consanguí-
tudo, com as suas fllhas. E tais laços acentuam ainda mais, se é que isso nea ou conjugal, como de um refúgio contra a sociedade para os indivíduos
é possível, a sua dependência relativamente aos maridos, dado que em caso apanhados por um mundo indiferente ou hostil. As sociedades tradicionais
de divórcio os fllhos pertencem, sem qualquer hipótese de recurso, ao pai patrilineares (e aqui, estou sobretudo a referir-me a modelos da África Oci-
e à sua linhagem. dental) não permitiam esta antinomia. As linhagens patrilineares - que agru-
Este ponto - a solidariedade afectiva e já não estatutária (uma vez que pam famílias conjugais, monogâmicas ou poligíneas - constituíam outras tan-
esta não é parte constitutiva do sistema, se bem que dele derive) que une tas unidades residenciais dotadas de um territ6rio de cultura pr6prio, de uma
FAMILIA 92 93 FAMILlA

organização hierárquica que as colocava sob a tutela de um decano, de uma não residem definitivamente na unidade doméstica, conheceu alguns casos
organização comunitária do trabalho e do consumo dos bens produzidos. de actualização, como vimos atrás, mas respeitando sempre o princípio da
Mas, colocado no interior destas dependências respeitantes à sua linhagem, divisão sexual das tarefas e o da preponderância do sexo masculino. O desa-
o indivíduo também era apanhado numa rede complexa e apertada de obri- parecimento do laço legal do matrimónio e o da repartição sexual das tare-
gaçOes de aldeia que uniam entre si as linhagens e de que ele conhecia as fas implicaria, pois, também que a sociedade reconhecesse, não em termos
regras desde a infância. A separação estrita do que releva da competência de «valores»ou de moral, mas em termos de interesse, a igualdade dos sexos,
da linhagem e do que releva da competência da aldeia, a repartição dqs car- por um lado, e, por outro, que a rltProdução e a socialização das crianças
gos colectivos entre linhagens, a organização eventual das classes de idade são actividades primordiais tal comO'a produção. Desde modo, tornar-se-ia
que atribuem durante toda a vida ao indivíduo outras tantas tarefas, papéis impensável e, por consequência, impossível que todo o peso da reprodução
e estatutos diversos consoante os níveis que elas tiverem, os circuitos com- recaísse exclusivamente sobre as mulheres e se transformasse na sua des-
plexos de trocas matrimoniais, o encargo pela colectividade dos cohflitos vantagem social. Para se chegar a istp, seria necessário uma alteraçlo consi-
intralinhagens e os rituais religiosos ou profanos eram outros tantos inodos derável do sistema de valores e, portanto, do sistema educativo act6al. Isto
requintados de articulação entre o domínio do poder familiar e a necessi- implicaria o desaparecimento de noções aceites como «naturais» e, em pri-
dade conjunta de uma vida social tão harmoniosa quanto possível. I Estas meiro lugar, daquela que coloca à cabeça o instinto maternal ligado auto-
sociedades, embora não sendo um paraíso -lógicas consigo mesmas-,
tinham montado um sistema equilibrado entre as imposições da vida domés- maticamente
instinto sexual,
à gestação
que leva eà ao
reproduç'ão
parto fiosdafllhos.
espécie,
Possivelmente,
e o instinto, enquanto
que leva oà
tica (regulamentada pela consanguinidade) e as imposições da vidil social protecção dos jovens, são fenómenoll naturais para ambos os sexos, o ins-
(regulamentada pela coexistência de grupos consanguíneos); inversâmente, tinto maternal - no sentido em que esta expressão é utilizada geralmente
as nossas sociedades conservaram os princípios que eram úteis ao seU desen- para justificar a servidão das mulheh:s, e apenas delas, à progenitura - é
volvimento, ou que não-eram contraditórios em relação aos imperativos deste um fenómeno adquirido, inculcadollas mulheres através da educação que
desenvolvimento, ao mesmo tempo que suprimiram ou utilizaram aO con- Ihes é contiríuamente dispensada e através dos modelos de realização pes-
trário os aspectos corolários do conjunto da instituição familiar cohsidera-
soal que lhespara
às mulheres são as
propostos. Esse
manter nas in,stinto
tarefas é apenas dos
de educação a justiflcação pferecida
fllhos e, por conse-
dos inúteis ou incómodos. É na ignorância e na rejeição da lógica ihterna
das articulações, cuja complexidade na criação da instituiÇão familiar já quência, nas tarefas da vida doméSlica, e tudo isto com o consentimento
demonstrámos, que é necessário procurar efectivamente as razões da crise delas, dado que não há condicionainento mais conseguido do cjtie aquele
da família e, a partir desta, a da civilização. em que o submetido reivindica ele próprio os fundamentos da sua sujeição.
Enquanto as mulheres deram à luz fIlhos ao longo de toda a sua v;ida gera-
A partir deste momento, pode conceber-se como possível, anunc~ pelos
sinais de recusa do casamento e pela permanência das solidariedadels afecti- tiva e tiveram uma esperança de vida que POl,ICO ultrapassava esseperíodo,
vas consanguíneas femininas, a aparição de famílias matricêntricas, nas quais a noção do instinto maternal e da dtpendência que dele resulta por predis-
os fllhos nascem de parceiros regulares ou ocasionais da mãe, e onde se posição natural para as diversas tart(as da maternidade tinham ntcessaria-
mente um efeito poderoso. Na socie'd~deocidental, com o controlo dos nas-
regista a ausência de residência comum com os genitores, de qualquer casa-
mento estável e legal e de troca consentida entre grupos. No entanto, 6 difícil cimentos e o prolongamento da dJ~ação de vida, esta noção ji'l1ão pode
ter o mesmo efeito de sujeição completa e permanente das mlilheres.
ir às últimas consequências possíveis de uma mudança radical das ifl.stitui-
Modiflcar os termos da flliação (e com isto modificar o estatuto da pro-
ções. É difícil, por exemplo, prever as regras de residência, especialmente
priedade e da herança), modiflcar a' relação de poder entre os sexOs, supri-
para os homens reduzidos aos estatutos de mho ou de irmão, amputados
do estatuto de marido e talvez de pai. Seja como for, pode encarar-~e a pas- mir a r~partição sexual das tarefasl assacar a toda a soci~dade d encargo
econÓffilCO da reprodução e da produção, transformar radIcalmente as for-
sagem a formas mais ou menos instilpcionalizadas de miação mattilinear.
mas de educação das crianças, ate~tar contra as ideias vigentes ele toda a
Tal situação não implicaria necessariamente uma mudança da relaçã6 de for-
espécie que fundamentam na naturerza as desigualdades: são estas as condi-
ças entre os sexos: nas sociedades matrilineares, são os homens ehquanto
ções da morte da família na sua fOnDaactual. Nada disto é impossível, e já
irmãos que detêm a autoridade sobre as suas irmãs e os filhos das suas irmãs.
muitas alterações se estão a verificar. Resta no entanto saber quais são os
Para que esta relação de forças fosse nitidamente modillcada, serianecessá-
modelos de realização individual que podem ser rnventados e propostos como
rio suprimir o contrato mútuo de sustento baseado na repartição seXual das susceptíveis de justificar a vida de cada um. [F. H.].
tarefas. Que haveria de diferente na relação dos sexos se (para perlnanecer
na terminologia convencional), em vez de «alimentar» os seus fIlhos, o
homem alimentasse os seus sobrinhos, se, em vez de sustentar no plano Gough, K.
doméstico um marido, a mulher sustentasse um irmão? De facto, o modelo 1975 The Origin of the Family, in R. R. Reiter (org.), Toward an Anlhropology of Women,
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FAMILlA 94

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1975 A l'ombre des grand parenlS, in «Autremento, m, pp. 104-12. O antropólogo Reo Fortune [1932] retoma mais ou menos em termos aná-
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1959 17Iesociallife ofmonkeys, apes and primilive man, in I. N. Spuhler (org.), 17Ie Evolu- xão. A própria noção de relação sexual implica a ideia de um comércio carnal
rion of Man 's Capacity for Culture: Six Essays, Wayne State UIÚversity Press, Detroit, entre dois parceiros de sexo diferente. Aliás, o incesto é exactamente perce-
pp. 54-73. bido neste sentido quer na linguagem popular quer na erudita; a «união ilí-
cita", de conteúdo totalmente neutro, é entendida como comércio carnal ilí-
cito entre pessoas aparentadas no grau proibido pelas leis ou pelos hábitos
sociais.
o ~ cenamente um dos lugares.comuns (cf. lugar-comum) mais divulgados a pretensa natura·
lidade da famOia (cf. natureza/cultura), que se pretende baseada em necessidades naturais (cf. A escolha destes termos por parte de Fortune não é fruto do acaso, na
necessidade) da reprodUfão da espúie (cf. nascimenlo), da manutenção e educação da prole, e da medida em que o pensamento antropológico estabeleceu desde sempre uma
sexualidade (cf. amor, eros). De tal conjunto de necessidades naturais decorreria o casamenlo ligação directa entre a proibição do incesto e a lei exogâmica, que orienta
como célula fundamental da sociedade, e base da sua eSlrutura. Deste ponto de vista a fam1lia para o exterior a escolha do cônjuge. A proibição do incesto, que a priori
constitui o supone original da comunidade, o lugar no qual estio estabelecidos, deflIÚdos quase
diz respeito a todas as relações sexuais em níveis ou situações proibidas,
de uma vez para sempre, todos os papéis (cf. papeVeslalulo, poder/aUloridade): no 4mbito da
e não apenas ao casamento, serve todavia para distinguir, no seio do cír-
própria fam1lia, na área do grupo conjugal alargado (d. parentesco), por extensllo na esfera geral
das relações homem/mulher (cf. masculino/feminino), e fmalmente, enquanto simbolo total, rela· culo vizinho e em particular no grupo dos consangufueos, entre aqueles que
tivamente ao modo de conceber o passado (cf. antigo/moderno), o presente e o futuro (d. gerações). se podem escolher como parceiros sexuais em sentido lato, e como cônju-
Na realidade, parece que o consenso ocidental (cf. emocentrismos), e não apenas ooi~ental, ges em sentido restrito, e aqueles que não se podem escolher como tais.
terá feito de uma escolha um facto natural. Até o traço mais divulgado, a proibição do Inceslo, Desta assimilação de facto com a aliança que deriva do casamento resulta
mais do que uma proibição de natureza biol6gica, constitui um modo de evitar o fechamento imediatamente que o incesto é percebido como um comércio carnal ilícito
de qualquer grupo sobre si próprio (cf. exclusão/inlegração) e de contrair laços de alianç~ (cf. entre parceiros de sexo diferente. Mas veremos se se trata única e exclusi-
economia, Irabalho, público/privado, lroca). De resto, em mais de um caso, eIll; cenas socleda· vamente disto.
des, parece que até a f6rmula monogâmica homem/mulher seja passível de mterpretações e
de aplicações diversas. '. Trabalhos antropológicos recentes [Needham 1971; Schneider 1976]
Desta f6rmula geral, mas não Ilnica na sua tipologia, do casamento monogAmico exAgA. negam à· proibição do incesto, no sentido acima considerado, toda e qual-
mico (cf. endogamia/exogamia) e das regras estabelecidas para a escolha do cônjuge, emergem quer pertinência como facto científico único ao qual se poderia aplicar uma
solidariedades e afectos a que as Iradiçtles atribuíram uma rigidez, especialmente em relaçAo
teoria geral, dada a extrema heterogeneidade e variabilidade dos factos que
A mulher, tomando como elemento natural da civilização aquilo que apenas se configura como
se podem reunir sob este tema. Para citar alguns, verifica-se que as situa-
1111I1 enlre 18 escolhas possíveis. . .
TodAvia, a própria crise da família (cf. repressão), a erosllo que está a sofrer a par ~a ms~.
ções de parentes abrangidas pela proibição do incesto são muito diferentes
IlIj~Atl(d'. illlliluittles) do casamento que é a sua forma legal (cf. direito, no~), a pr6p~ v~e- segundo as sociedades em que se encontra esta proibição. O incesto não
.1•• 1. ,Ir in'litlliçlles que caracteriza antropologicamente o problema da famOia nas várias socle· suscita sempre e em toda a parte reflexos intensos de repulsa ou de horror;
.1•• 1, •••• illtlVlçlles trazidas actualmente pela indllstria na área das relações humanas e, a punição social do incesto vai da simples troça à morte; nem em todas as
•••••• III>.lIIrllle entre homem e mulher, constituem outros tantos elementos para faze~m. d~- sociedades se encontram proibições nitidamente afIrmadas e regulamenta-
1'1'"'' •• ,. rrl.çAo das formas habituais; e, também, para libenarem a mulher da dlScnmlna-
I"" ,I. '1"' ria ~ ohjecto em nome da .natureza. e da .civilizaçlo •. das; num certo número de sociedades bem conhecidas (Egipto antigo, Havai,
INCESTO 96 97 INCESTO

reinos bantus) as uniões incestuosas são procuradas no seio da classe diri- tica não são observáveis em larga escala, apresentam caracteres pouco espe·
gente, e ainda em maior escala (para o Egipto ptolomaico, por exemplo) culadores e não são observáveis ou demonstráveis senão através de requin-
no seio do grupo dos funcionários, artesãos e comerciantes urbanos. Pode- tadas análises de laboratório, como poderiam os grupos primitivos alarmar-
, ,
ríamos enfim citar alguns exemplos de sociedades, as quais, longe de conhe- . -se perante perigos tão pouco manifestos a ponto de ediflcarem, todos,
cerem a proibição do incesto, fariam das uniões incestuosas a sua regra: serIa a mesma proibição com o objectivo de defenderem a sua sobrevivência? Além
nomeadamente o caso da antiga Pérsia [Slotkin 1947, 1949; Goodenough disso, a união entre consanguíneos não implica apenas o aparecimento de
1949]. . caracteres recessivos nefastos; também são consolidados eventuais caracte-
Todavia, a experiência etnológica mostra que existe unive~almente, se res positivos para a espécie. Por outro lado, a selecção natural leva em geral
não uma autêntica proibição do incesto, pelo menos uma tendênc18Pllfa regu- ao desaparecimento do carácter perigoso, o qual, de recessivo, passou a mani-
lamentar, de uma maneira ou de outra, as relações sexuais entre [larentes festo com o efeito de fazer desaparecer os seus portadores. É efectivamente
chegados. Esta simples constatação permite-nos considerar o conjuhto dos isto que se pretende na selecção voluntária de espécies puras animais ou
factos registados sob a entrada «incesto» como constituindo uma classe. Em vegetais. Enfim, numerosas sociedades humanas praticam regularmente (até
vez de se negar a estes factos qualquer pertinência, seria oportuno saber mais de 30 por cento dos casamentos, por exemplo) uniões entre consan-
se existe, a qualquer nível, um tipo de abordagem do fenómeno da. proibi- guíneos, as quais seriam por nós consideradas incestuosas, como é o caso,
ção do incesto que explicasse a variabilidade das suas manifestações *gundo por exemplo, do casamento preferencial com a fllha do irmão da mãe. Se
as sociedades, os seus aspectos contraditórios (como nos casos .de .ihversão se tivessem feito sentir efeitos perigosos para a sobrevivência do grupo,
nas famílias reinantes) e ainda - por que não? - a sua ausênc18, se é ver- parece-nos razoável supor que essas Sociedades teriam há muito renunciado
dade que se têm provas da existência de sociedades de uma total rromis- a uma prática tão deletéria. !
cuidade sexual. No exemplo da antiga Pérsia, relatado por Slotkin, parece As teorias fundamentadas nas cau$as eficientes biológicas giram em tomo
que o casamento por excelência seria o de um homem. ~om a própria ~l1.ha, da ideia de que existiria, no homem, um horror instintivo e natural pelo
e de uma mulher com o próprio fllho. Goodenough CrItica as fontes utihza- incesto. A proibição representaria, pois, uma simples ritualização cultural
das (pós-zoroástricas) e também a terminologia: os termos traduzidos por desta aversão inata. Na sua forma mais popular, esta ideia corresponde à
'fllho' e 'fllha' reenviam expressamente a fllhos pelo sangue ou antes a fllhos «voz do sangue», enquanto na mais elaborada [Westermarck 1889], e nada
de tipo classiflcatório? Acrescentemos a isto que este casamento por exce- negligenciável, trata-se de uma repulsa sexual que se desenvolve entre indi-
lência não poderia constituir a regra, na medida em que é, por definição, víduos que viveram em estreita rela~ão durante a infância ou que convivem
um casamento secundário, dado que ocorre sempre que um hOIÍlem case lado a lado num contexto familiar de!longa duração. A isto pode contrapor-
com uma mulher que não seja sua fllha para dela poder ter uma fllha que -se (Fortune) que, se irmãos e irmãs fossem encorajados durante a infância
será posteriormente sua mulher. , à familiaridade sexual, não existiam provas para aflrmar que Urnll aversão
Numerosas teorias foram elaboradas para explicar a existência dll proibi- sexual se desenvolveria posteriormenie entre eles. Na verdade, eles são enco-
ção do incesto (este termo é aqui utilizado em substituição e ~o seq.tid~ de rajados a evitar-se desde a infância; em certas sociedades, trata-s4 mesmo
regulamentação das relações sexuais entre parentes), esse fonrudável mlsté- de evitarem-se totalmente a nível físiço, o que deveria levar à atracção sexual
rio disse Lévi-Strauss [1947], para o pensamento antropológico. Podemos nos próprios termos da teoria de Wéstermarck. De qualquer form~, apela-
pe:reitamente - à semelhança do que fez Bischof [1975] - class~cá-las e~u:e
as teorias que se interrogam sobre a causa final - por que enste a prOlbl- -se extrair
se à realidade
a teoria
de uma
de uma
relação
aversão
familiar
sexual
culturalmente
natural no não
seio sexual,
da faniília.
'para daí
Por seu lado, em Totemism andHxogamy (1910) Frazer, retomado por
ção do- incesto?
dade? ou entãoque âmbitos
entre as queserve? qual aresponder
se propõem sua utilidade para a4a~
à questão I,lumani-
causas Freud [1912-13], fornece um argumento notável contra esta teoria: «Não
eficientes: quais são os mecanismos \>iológicos, psicológicos ou sociológicos se compreende bem porque é que um instinto humano profundamente enrai-
que agem de forma a que a proibição seja respeitada? , ': zado teria necessidade de ser reforçàdo por uma lei. Não existem leis orde-
Na Europa, a crença popular concilia-se com a teoria fmal qiológica nando ao homem que coma ou que. beba ou que proíbam de pôr as mãos
segundo a qual a proibição do incesto se explica com o perigo, desde sem- no fogo. .. o que a própria naturezdproíbe e castiga não tem necessidade
pre reconhecido, de um aumento provável de caracteres homozigóti~os, e em de ser proibido e castigado pela lei. ~or isso, em vez de deduzirmosl da proi-
especial dos caracteres recessivos perigosos, quando se verificam uniões entre bição legal do incesto que existe uma aversão natural pelo incesto, ..devería-
consanguíneos: atraso no crescimento, baixa estatura, fertilidade reduzida, mos antes concluir que há um instmto natural que leva ao incesto» (trad.
fraca imunidade e também menos esperança de vida seriam caracteres it. pp. 127-28). Para Freud, aliás, a ej(periência psicanalítica mostraria pelo
observados experimentalmente nos animais (repare-se que não se trata de contrário uma tendência natural para o desejo incestuoso no seio da famí-
taras nem de monstruosidades). A esta teoria podem ser levantadas várias lia. Todavia, estudos recentes sobre 1\ educação das crianças nos kibbutz [cf.
objecções. Tendo em conta que os casos de verdadeira desvantagem gené- Bischof 1975] tenderiam a demonstrar o oposto da teoria freudiana,
I
INCESTO 98 99
INCESTO

ou seja, que depois de uma fase de expressão de uma livre sexualidade no


período edipista se desenvolveria por seu turno durante a puberdade a aver- grupo, definido segundo regras específicas, por fol'lÍla a tomá-Ias disponí-
são pelo incesto, devido à familiaridade de uma educação fraternal. veis para a troca. É portanto incestuosa qualquer união com parceiros con-
sanguíneos, segundo a definição local de consanguinidade.
Não é possível expor a totalidade das teorias sociol6gicas finalistas que
foram elaboradas para explicar a proibição do incesto. Façamos uma rápida Posto isto - partindo do mesmo quesito do próprio Lévi-Strauss (pro-
mudança de perspectiva: o pai opõe-se ao desejo incestuoso dos fIlhos pela curar as causas profundas e omnipresentes que fazem com que em todas
mãe (Freud); para manter a hierarquill entre as diferentes gerações e a dis- as sociedades e em todas as épocas exista uma regulamentação das relações
ciplina necessária à coesão familiar, importa eliminar as práticas incestuosas entre os sexos) e aceitando a necessidade da troca como fundamento de qual-
no seio da família porque elas dão origem a ciúmes e competição, em lugar quer spciedade -, parece não ser contradit6rio considerar, intimamente
da autor~dade e da cooperação [Seligman 1950]. O incesto tornou-se natu- ligado ao aspecto finalista, um sistema de explicação ideol6gica (causa efi-
ciente?) que apresentaria o incesto e a sua proibição como intimamente liga-
ralmente_difícil, se não impossível, devido às condições demográficas desfa- dos, em cada cultura, a conjuntos totais de representações respeitantes à
voráveis pos prim6rdios da humanidade,l as quais faziam com que, por exem-
plo, houvesse poucas probabilidades dp uma mulher ser ainda viva e figurar pessoa, ao mundo, à organização social e às múltiplas inter-relações entre
entre as possíveis parceiras do seu pr6pqo filho quando este atingisse a matu- estes três universos. Se ao instaurar a ordem social a proibição do incesto
ridade sexual [Slater 1959], etc. . é a cultura, ela toma-se ipso facto e simultaneamente objecto de representa-
ção; se esta proibição tem uma finalidade universal apesar das diferentes
A ún~ca teoria finalista sociol6gica ~ue não pode, a nosso ver, ser refu-
tada, é aquela que é elaborada por Léyi-Strauss nas Structures élémentaires modalidades de realização, por que não obedeceria também a sua represen-
tação a grandes esquemas universais de organização?
de Ia parenté, depois dos trabalhos de Tyfor e Fortune. ,<ComoTylor demons-
trou há q:rca de um século, a explicação,última é provavelmente que a huma- Gostaríamos agora de tentar - mediante o exame escrupuloso deste
nidade muito cedo se apercebeu de qQ~, para poder libertar-se de uma luta aspecto olvidado da proibição do incesto, ou seja, a sequela de representa-
selvagem-pela existência, deveria escolher muito simplesmente entre "o casar- ções que o acompanha por toda a parte - elaborar uma teoria etnol6gica
-se fora, pu ser-se morto fora I'. A altefnativa era entre famílias biol6gicas que complete a teoria finalista de Lévi-Strauss e de fornecer uma explica-
ção que dê conta de forma totalizante da variedade contradit6ria dos factos
isoladas e justapostas como unidades fechadas, perpetuando-se por si pr6-
prias, submersas pelos seus medos, 6dios e ignorâncias, e a instituição sis- observados, seja dos casos negativos seja dos positivos, e de oferecer ainda
temática, graças à proibição do incesto, de laços intermatrimoniais entre elas, uma definição do incesto que possa compreender o conjunto das definições
elaboradas por diversos povos.
permitindo assim construir uma sociedáde humana autêntica sobre a base
artificial dos laços de afinidade, a despeito da influência isoladora da con- Tomando Les structures élémentaires de Ia parenté [1947] como ponto de
sanguinidade, e mesmo contra ela» [Lévi-Strauss 1956, trad. it. p. 168]. partida de uma reflexão possível, far-se-ão duas observações. Lévi.Strauss
centrou a sua demonstração no funcionamento das estruturas elementares
Assim, s6 a proibição do incesto, esse passo dialéctico que transpõe o limiar
natureza/cultura, permite sair dos pequenos grupos consanguíneos fechados do parentesco que apresentam a vantagem de evidenciar a reciprocidade na
sobre si mesmos e construir uma sociedade viável. As mulheres, tal como troca restrita ou na generalizada segundo modelos cuja estrutura de con-
a linguagem, funcionam então como objectos de troca recíproca entre os junto é facilmente demonstrável. Por outro lado, o autor refere-se à exis-
homens, e «a proibição do incesto deixa de ser tanto uma regra que proíbe tência da regra como «a própria essência da proibição do incesto» (trad. it.
o casamento com a mãe, a irmã ou a filha, passando a ser mais uma regra p. 75); todavia, se para demonstrar as pr6prias teses se baseia em argumen-
que obriga a dar a outrem mãe, irmã ou fIlha» [Lévi-Strauss 1947, trad. tos específicos respeitantes às representações simb6licas que acompanham
it. p. 617]. a regra em todos os lugares, partindo destes temas parciais, ele não tenta
Os Arapesh não compreendiam o sentido das perguntas que Margaret pôr em evidência uma sistemática ideol6gica que poderia ser, tal como a
Mead lhes fazia a prop6sito do possível incesto com a irmã. Parecia-14es própria regra, universal. Neste ponto específico, a questão posta será a
evidente a estupidez da façanha: «Então não compreendes que, se te casa- seguinte: será lícito postular a existência de um fio condutor, discernível
res com a irmã de outro homem, e outro homem se casar com a tua irmã, no seio de todos os discursos simb6licos sobre o incesto, que por um lado
terás pelo menos dois cunhados, e que se te casares com a tua pr6pria irmã explicaria os factos e as crenças diversas citadas pelo pr6prio Lévi-Strauss,
não terás nenhum? E com quem é que irás caçar? Com quem é que farás e por outro permitiria estabelecer, sintacticamente, o profundo parentesco
plantações? Quem é que visitarás?» [ibid., p. 621]. Não se pode explicar de que existe entre eles para lá da sua evidente heterogeneidade? Assim, Lévi-
modo mais vivo o interesse do trabalho de socialização que consiste em dar -Strauss menciona, entre outros factos, a crença existente em Madagáscar
a outrem a pr6pria irmã e em receber de outrem a pr6pria esposa. Segundo de que há uma relação incestuosa entre os cônjuges quando um casal é estéril
diferentes modalidades é, portanto, necessário proibir a apropriação sexual [ibid., p. 48]; a crença dos Navajos [p. 85] num quarto mundo do qual os
das mulheres de determinado grupo pelos membros masculinos do mesmo sexos são separados e os "monstros são fruto da masturbação à qual cada
sexo se encontra reduzido; a afirmação de um grupo siberiano segundo
INCESTO 100 101 INCESTO

a qual os casamentos partrilineares fazem as águas tornar às suas fontes; homem, já que, recebida em troca do gado da linhagem, a mulher de um
o risco de cegueira ou de mutismo que o olhar do pai aleuta faz pesar sobre buli é a mulher de todos [ibid., p. 100]. Do mesmo modo, dois agnatos,
a sua pr6pria filha no momento do seu primeiro fluxo menstrual [p. 63]; dois membros de uma mesma linhagem, podem cortejar e conviver com a
o desencadear da trovoada e da tempestade nos povos da Malásia por um mesma mulher, o que é proibido a dois cognatos: Evans-Pritchard sublinha
conjunto de actos heter6clitos que compreendem o incesto, os discursos UTe- que estes agnatos têm a mesma identidade de linhagem They have a lineage
(<<

flectidos, os jogos barulhentos, a imitação dos gritos das aves, etc. [p. 633]. identity»), o que não se verifica no caso de um tio materno e seu sobrinho.
Ora se Lévi-Strauss analisll este conjunto de proibições malaias e lhe~ con- No entanto, as esposas de outros agnatos são atingidas pela proibição: o adul-
signa um denominador comum (o abuso da linguagem: "As pr6prias mulhe- tério com uma esposa do pai diferente da mãe é particularmente chocante
res são tratadas como signos, dos quais se abusa quando não se lhes dá a na medida em que o pai tem relaçÕes sexuais com as suas duas l!sposas e
utilização destinada aos signos, que é a de serem comunicados» [pp. 63+35]),
poremos uma questão diferente: porque é que o abuso que constitui o incesto transmite
Dois irmãosassim à mãetão-pouco
gertnanos algo do contacto sexual do
podem partilhar fIlhoesposas,
as suas com a nac\l-esposa.
medida
tem o poder de desencadear uma tempestade na Malásia e o que é qu~ esta em que essas relações parecem implicar sexualmente de alguma fo~ma a sua
crença tem a ver com a crença malgaxe na esterilidade dos casais incestuo- mãe comum. Para Evans-Pritchard, o conjunto destas regras tem como fun-
sos, e, mais em geral, com o conjunto dos factos relevantes associatlos à ção impedir a confusão entre as diferentes categorias de parentescll; assim,
relação incestuosa em diferentes sociedades? se um homem não se pode casar corp.a irmã da sua falecida mulher, tendo-
Será dada uma resposta a esta questão, mas deve ficar claro que neste -lhe esta deixado fIlhos, é porque a irmã da mulher, para os fIlhos, seria
momento não se pretende dar a única resposta possível, mas sim cl1amar também a mulher do pai, confusão de estatutos inconcebível para Um Nuer.
a atenção para estes problemas e suscitar possíveis análises a partir de qutros Veremos que é possível uma outra e:txplicação.Apercebemo-nos e~tretanto,
documentos segundo as mesmas linhas de pesquisa. De facto, o 101lg0e através deste exemplo bem conhecido, da complexidade da categoria tradu-
árduo traoalho que consistiria em isolar em cada sociedade conhecida os tra" zida pelo tertno 'incesto', estendida 'a estes diferentes tipos de rela~ões ilíci-
ços pertinentes da estrutura social, o corpus das situações reprovadas ou proi- tas. Poderíamos descrever situações análogas relativamente aos Gusü '[Le Vine
bidas, o das crenças e das representações relativas a estas situações, ll~ suas 1959], aos Baulé [Etienne 1972; 1975], aos Ashanti [Goody 1956] ~os Mossi
consequências e às sanções que comportam, esse trabalho não foi feito de [Pageard 1969], aos Samo [Héritid 1976], e ainda a muitos outros.
uma fortna sistemática. As hipóteses de base nasceram do meu conhecimento O segundo ponto respeitante ao ~étodo adoptado é que foram conside-
pessoal dos Samo do Alto Volta e foram corroboradas por comparaç~s com radas como fortnas intimamente ligádas a estas diferentes formas de adulté-
factos tirados ao acaso de outras descrições etnográficas. rio entre cônjuges ou de relações s~xuais ilíci~as entre ~ndivíduos ~,~ãOapa-
Devem no entanto sublinhar-se dois pontos atinentes ao método d~ tra- rentados - fortnas que acabámos: de exammar - nao s6 as: liltuações,
balho adoptado. O primeiro consiste no interesse incidente sobre a sEde de representações e crenças que dizem :respeito ao incesto, mas tamb~in as que
actos que diferentes populações designam com um termo idêntico, àquele se relacionam com a menstruação, cpm as relações sexuais com filhas impú-
que se refere ao que n6s chamamos nortnalmente incesto: assim, certas for- beres, com mulheres menstruadas ou em período de lactação, corb as rela-
mas de adultério entre familiares, ou as relações sexuais perpetuadas por ções que existem entre os humores (esperma, sangue, leite) elj.$ funções
dois consanguíneos pr6ximos (pai/fIlho, mãe/fIlha, irmão/irmão, irmi/irmã) do corpo. Esta atitude é válida, na, medida em que essas configUrações se
com o mesmo parceiro. Assim, Evans-Pritchard [1949] descreve uma situa- relacionam com a sexualidade, são aPercebidas, através do discurso dos infor-
ção de exemplar complexidade passada junto dos Nuer: antes do máis, são madores, como correlacionadas e são geralmente evocadas em conjunto, de
incestuosas (rual) as relações com a irmã da esposa, e o casamento cóm esta uma maneira ou de outra, nos relatórios antropológicos. '
não é possível senão depois da morte da mulher, e s6 no caso de esta mor- No seu célebre artigo de 1897, Durkheim explica assim a proibição do
incesto como sendo uma espéCiede~\Ibproduto da regra exogâmicll, ela pró-
rer troca
de sem deixar fIlhos.
de gado, masEvans-Pritchard
também porqueanalisa
~la fazesta situação
parte emproibição
de uma termos~sOciais
mais pria fundamentada no horror religioso do sangue menstrual. Este hdrror faria
geral, segundo a qual um homem não pode manter ao mesmo tempo rela- parte da categoria mais geral do ho.ttor pelo sangue, por sua vez originada
ções sexuais com duas niulheres consanguíneas. Do mesmo modo, um pela crença na consubstancialidade,'dos membros do clã com o seu totem.
homem não pode ter relações sexuais com a mulher de um parente pró- No seu conjunto, o argumento foi, 10ngamente debatido, mas Durkheim,
ximo enquanto este for vivo, pois isto incide sobre a proibição mais Igerll1 com admirável argúcia, realçou al~ pontos muito interessantes, aos quais
que impede dois parentes próximos de terem relações com a mesma mulher. será necessário voltarmos, e sobretúdo faz um inventário dos factl)s e cren·
No entanto, esta regra rígida não se aplica, de fortna aparentemente sur- ças relativos ao sangue e à menstniação, à cura medicinal e ao pbder. Ele
preendente, a certos agnatos entre os mais próximos; por exemplo, as mulhe- indica as estritas semelhanças que existem entre as proibições relativas às
res dos meio-irmãos do pai, dos meio-irmãos, dos primos paralelos patrila- mulheres durante a menstruação ou o parto - proibições explicadas pelo
terais,daqueles a quem os Nuer chamam bulls, são parceiros lícitos para um terror e pela repulsa que suscitam as impurezas por elas expulsas - e as
INCESTO 102 103 INCESTO

que se referem à vida quotidiana dos soberanos mais sagrados, mesmo implica uma debilidade particular do parceiro masculino e a perda da sua
quando nada neles pode suscitar em outrem as mesmas repulsões. Estas duas virilidade. Em Mount Hagen o sangue menstrual é conhecido como desfa-
situações extremas de repugnância e de veneração encontram-se, para Durk- vorável à «gordura» masculina (o mesmo termo designa o sémen do homem).
heim, associadas, porquanto se traduzem ambas pelo tabu. Assim, um pouco Se um homem o ingere, através do pénis ou na sua alimentação, «a sua pele
por todo o mundo, sob formas ligeiramente diferentes, em várias popula- perderá a "gordura", tornar-se-á seca, e o corpo macilento» [Strathern 1971,
ções, as raparigas são hermeticamente isoladas durante as suas primeiras p. 162]. Para os Bobo, como em Ponape, o incesto implica a seca, já não
menstruações e mantidas longe não só· do contacto com os homens, mas a seca metafórica do corpo ou dos humores, mas a seca meteorológica:
também do contacto com a terra e com o sol, que teria «uma atracção espe- acredita-se que a chuva deixará de cair no país bobo se os parceiros de um
cial» [Durkheim 1897, p. 42] para esta, jovens mortais. Em certos casos, casal Úlcestuosoou os seus filhos forem sepultados após a morte. Em Ponape,
esta reclusão pode durar vários anos. As mulheres que se encontram no uma seca que se fez sentir em 1971 sobre uma ilha do distrito foi atribuída
período menstrual e as parturientes s~o normalmente também objecto de a uma maldição sobrenatural, consequência directa das práticas incestuosas
proibiçõe~ que se explicam pela influên~ia nefasta que elas exercem à sua da população que vivia naquela ilha. Para os Palawan das Filipinas [Mac-
volta. Mas «esta mesma regra que proíjJe a jovem, atingida a puberdade, donald 1977], consequência [do incesto] mais vulgarmente aceite é a des-
«a

de tocar o solo ou de se expor aos raiOs solares, aplica-se também a reis truição das colheitas - nomeadamente de arroz - após uma chuva ou um
e sacerdo~es venerados. O mikado, no ~apão, não deve calcar o solo com calor excessivo», com consequentes inundações ou secas. Em nota [ibid.,
os seus prÓprios pés: caso contrário, incorreria na degradação; além disso, p. 103], Macdonald acrescenta que, segundo vários informadores, tanto um
não deve permitir que os raios solares cheguem perto dele, nem expor a incesto com a mãe provoca um excesso de chuva, quanto aquele que é per-
sua cabeça ao ar livre. Na Colõmbia, o herdeiro do trono de Bogotá deve, petrado com a irmã provocaria um excesso de calor, enquanto qualquer tipo
a partir dos dezasseis anos, viver num j:luarto escuro onde o sol não pene- de incesto provoca indiferentemente dilúvio ou canícula. Para os Kaguru
tre. No Peru, o príncipe destinado a· tornar-se um inca tinha de jejuar matrilineares, a proibição mais rigorosa diz respeito às relações sexuais entre
durante ~m mês sem ver a luz» [ibid'l p. 56]. membros do mesmo matriclã; segue-se depois a proibição que concerne as
Já se pôs anteriormente a questão de saber o que poderiam ter em comum relações entre indivíduos cujos pais pertencem ao mesmo matriclã (eles estão
certas sanções sobrenaturais do incesto, como nos exemplos de esterilidade em posição simétrica em relação aos membros desse clã). Mas o delito mais
e do desencadear da tempestade presentes em diversos lugares. Em ambos comum, mahasa, consiste em infringir a norma que estabelece que dois
os casos e de idêntico modo é o conteúdo das proibições, e não a proibição irmãos de clã não devem casar com duas irmãs de um outro clã, e ainda
em si, que põe o problema: porque é que a rapariga menstruada, tal como que um homem não deve seduzir ou cortejar duas irmãs, sejam elas celiba-
os soberanos japoneses ou incas, ou ainda o senhor samo da chuva, não
tárias ou não. Não se trata portanto de um adultério banal, uma vez que,
podem ser levianamente postos em presença do sol?
tal como para os Nuer, os parceiros podem ser os três celibatários. Segundo
Se considerarmos a cura médica, Durkheim mostra que o sangue femi-
Beidelman, esta variedade particular de incesto é considerada deste modo,
nino que corre, porquanto seja perigoso - principalmente o das primeiras
pois ameaça a solidariedade dos grupos matrilineares, instaurando uma com-
menstruações ou do parto de uma primípara -, é também dotado de pro-
petição entre as mulheres pelo afecto ou fidelidade dos amantes ou even-
priedades curativas excepcionais. Este factor é comprovado na própria Europa
até à Idade Média. Mas a lista das doenças curadas através de unções na tuais maridos. Independentemente da verosimilhança desta explicação de teor
funcionalista, o que parece importante sublinhar é que a sanção sobrenatu·
pele feitas com este sangue não é de somenos importância: furúnculos, sarna,
usagre, febre do leite, inflamação das glândulas salivares, lepra. A inflama- ral de todas as variedades de incesto, mahasa inclusive, se aplica às mulhe·
ção das glândulas salivares, para nos atermos apenas a esta, compreende tam- res, «impuras», que se encontram ameaçadas pela esterilidade ou de terem
bém as escrófulas ou alporcas que os reis de França curavam por imposi,rão uma progenitura anormal, e aos seus consanguíneos de matriclã. O sangue
das mães (reencontramos, pois, a relação entre sangue menstrual e sagrado, dos consanguíneos, segundo Beidelman, é estragado, aquecido, possível fonte
já não nas proibições que eles fazem nascer, mas nas suas qualidades pro- de doença e de esterilidade; isto pode mesmo chegar a atingir os rebanhos,
fundas), «humores frios», afirma Littré, nascidos, segundo Ambroise Paré, ou as colheitas, sendo assim a própria terra aquecida e estragada [cf. Need·
de um «abcesso corrompido e podre». Mais do que designar as crostas lác- ham 1971]. O simples facto de se saltar por cima de um parceiro sexual-
teas, o usagre designa uma espécie de alporcas cavalares. Mas porque é que mente proibido, quando este se encontra sentado de pernas estendidas ou
são justamente as doenças de pele, quentes, frias, ressumbrantes ou secas, deitado, se não tem efeitos desastrosos para o grupo, tem-nos para os pró-
que são curadas pelo sangue menstrual? prios indivíduos, provocando o aparecimento de úlceras na superfície do
Em Ponape, pensa-se que os indivíduos que cometeram incesto apresen- corpo. Para os Muria, no gotul, uma rapariga culpada de um incesto, seguido
tam sinais físicos de esgotamento, nomeadamente olheiras muito carregadas de gravidez com um rapaz pertencente ao mesmo clã do que ela, é por isso
[Fischer e Ward 1976]. Para os Bobo, a relação sexual com uma fllha impúbere punida com uma «abundante hemorragia» [Elwin 1959, p. 230]. As mulhe-
INCESTO 104 105 INCESTO

res culpadas de adultério comprometem, por sua vez, a colheita do ano; linhagem, ou seja, de filiação agnatícia: é proibida toda e qualquer união de
os seus corpos e os dos seus parceiros «cobrem-se de chagas e de inchações Ego com membros femininos dos seus grupos aganatícios, qualquer que seja
e uma hidropisia condu-Ias a uma morte miserável» (ibid., p. 391]. o seu grau real de consanguinidade com Ego.
Quer se trate, pois, das consequências directas inscritas nos corpos dos Em seguida enunciam-se proibições, que não fazem necessariamente
culpados e nas suas funções biol6gicas, ou de perturbações da natureza e recurso à lei exogâmica entendida nos seguintes termos de linhagem: 1) exten-
dos ecossistemas, poderíamos prosseguir infindavelmente este inventário etno- ção da proibição a todos os consanguíneos agnatícios durante três gerações,
gráfico das sanções imediatas do incesto, pormenores citados geralmente de dado que o antepassado comum às uniões proibidas é posto na geração +4;
passagem que remetem todos às mesmas interrogações: a do sentido, a das 2) extensão da proibição aos afros. Voltaremos mais adiante ao primeiro ponto;
relações de sentido que subtendem as relações sociais, a da inscrição (tal- debrucemo-nos agora sobre o segurldo.
vez) das relações de sentido numa 16gica universal. É proibido um homem escolher uma esposa nas linhagens nas quais um
É aqui postulado que as diversas crenças relativas ao incesto, enumera- «pai» (um homem da sua linhagem; pertencente à geração do seu pai) ou
das ou' não neste artigo, não devem ser consideradas como superstições absur- um «irmão» (um homem da sua linhagem, da sua pr6pria geração) tenham
das, privadas de todo e qualquer outro interesse que' não o de sublinhar já escolhido uma esposa. Simetricamente, é portanto impossível uma mulher
triunfantemente, devido à sua própria insensatez, a necessidade da tegra casar-se numa linhagem na qual u~a «irmã» (mulher da sua linhagem, da
social; que as crenças simbólicas de todos os grupos humanos relativás ao sua geração) ou uma «irmã do pai» (mulher da sua linhagem, da geração
incesto, aos seus efeitos, às suas sanções, se encontram ligadas às crenças do seu pai) se tenham já casado. Por extensão, isto implica também (regra
relativas às relações entre os sexos, à organização e ao funcionamento biol6- explicitamente formulada pelos Samo) a proibição de toda e qualquer rela-
gico e, muito verosimilmente, a outros sectores de representações, tais como ção sexual adúltera com a mulher de um agnato durante a vida deste, sendo
a relação dos elementos, a organização e o funcionamento do mundo; que o levirato não apenas possível mas ~esejável, uma vez que a mul~er dada
em casamento a uma linhagem constitui um bem da linhagem. Esta relação
qualquer corpus étnico de representações, relativo à· organização do corpo,
adulterina tem o nesmo nome (dyilibra) que a relação incestuosa entre con-
do mundo, da sociedade e às suas múltiplas inter-relações, se refere a cer-
sanguíneos verdadeiros. Sempre por extensão da regra segundo a qual dois
tas leis fundamentais, universais e subjacentes a um grande esquema uni-
agnatos não devem cortejar nem casar no mesmo lugar, é proibido com mais
versal de organização, geralmente implícito, mas do qual encontraremos por
vezes fragmentos de explicitação crua nos discursos dos informadores refe- razão
esposa,umirmã
homem casar ou mas
de linhagem, simplesqlente
também com conviver com parente
qualquer uma «irmã» da sua
pertencente
ridos pela etnologia.
às linhagens da mãe, mãe do pai, e' mãe da mãe da sua esposa. Simetrica-
Não se trata de pretender demonstrar estes três pontos de forma porme-
mente, isto implica que duas parentes cuja relação geneal6gica podê ser des-
norizada, mas talvez não seja demasiado absurdo mostrar nas suas grandes
crita e, com mais razão, duas irmãs ,não s6 não podem casar com.,o mesmo
linhas o percurso de um raciocínio. homem, como ainda não devem ter relações sexuais com ele. A mtllher que
Para o fazer, partiremos dos sistemas semicomplexos de aliança, isto é, venha a saber que o seu marido con'J'Íveclandestinamente com unUl parente
dos sistemas ditos crow-omaha, e de certas particularidades das proibições sua, deixa-o. Estamos em graus divl!rsos, ao nível das sanções e das conse-
matrimoniais que aqui se encontram. Referir-nos-emos mais particu1arn\ente quências, no domínio do dyilibra (iJnpudência). Estes factos lembtam, cla-
ao exemplo dos Samo do Alto Volta, exemplo que provém dos sistbmas ramente, factos análogos citados atlflis, no caso dos Nuer ou dos Kaguru.
omaha [Héritier 1976]. A partir de uma análise sucinta destas particularida- Mas gostaríamos de insistir sobre unl ponto: o princípio da não-reduplicação
des, tentaremos demonstrar que elas se referem a um simbolismo elemen- da união, que parece tão evidente nl\s',regras samo e que seria típi~~ dos sis-
tar do idêntico e do diferente. Tentaremos em seguida demonstrar que!,este temas semicomplexos de aliança [Lé\71-Strauss1947], não esgota tO,doo sig-
simbolismo elementar do idêntico e do diferente é universal, quaisqub· que nificado destes factos, pois não se trata apenas de aliança proibida, mas tam-
bém simplesmente de relações sexudill proibidas: a c6pula com os,parentes
sejam os aspectos
diferentes povos, eexteriores particulares~sob
variável segundo os cada
o génio de quaispovo,
ela é cujas
encaradal pelos
combina- da esposa como com as esposas dos agnatos vivos é proibida tal como o casa-
ções permitem o desenrolar do fio coerente dos discursos simbólicos sobre mento. Independentemente das expUcaçõesque possam ser dadas recorrendo
o incesto. à recusa da competição afectiva (Baidelman), ou à preocupação de não mis-
turar indevidamente as categorias de parentesco (Evans-Pritchard), parece
É sabido que os sistemas omaha se caracterizam por conjuntos dei proi- - considerando o conjunto destas ~roibições e o que sobre elas tlizem os
bições matrimoniais mais ou menos vastas que variam entre dois e quatro pr6prios informadores, sem tentar r,duzi-los ao nosso ponto de vista - que
clãs ou linhagens patrilineares proibidas. Para os Samo, existem quatro: as somos induzidos a propor uma segunda definição do incesto. Já não se
linhagens de Ego, da sua mãe, da mãe do seu pai, e da mãe da sua mãe. trata da relação que une dois consarlguíneos de sexo diferente numa relação
A regra de proibição fala em nome de um Ego masculino e em termos de sexual proibida, mas da relação que une dois consanguíneos do mesmo sexo
INCESTO 106 107 INCESTO

que partilham um mesmo parceiro sexual. Os consanguíneos do mesmo sexo, Mas a relação incestuosa que convém suprimir para restabelecer os a~tigos
na relação de irmão/irmão, irmã/irmã, pai/filho, mãe/filha, são os que se laços é a de mãe e fllha, e não a verificada entre a fllha e o marido da mãe.
encontram em posição incestuosa por via do seu parceiro comum e que lhe Nas nossas próprias sociedades ocidentais, certos factos abonam a favor
suportam os perigos. No mahasa dos Kaguru, os perigos de esterilidade e da hipótese segundo a qual esta segunda variante do incesto não é estranha
de doença por inflamações visam as duas mulheres consanguíneas implica- às nossas mentalidades. Parece-nos entrever isto na definição dada por Lit-
das na relação comum com um mesmo homem e as suas consanguíneas de tré. Nas confissões registadas pelo inquisidor Pierre Fournier a Montaillou
matriclã. Entre os Samo, quando urna mulher casada vem a saber que o [Le Roy Ladurie 1975] aparece por diversas vezes, a páginas 55-56, 162-63,
marido tem relações sexuais com urna dllSsuas primas, afasta-se com medo 182, 198-99, a hist6ria de um homem que persegue urna mulher que acon-
e encolerizada contra o marido e a parente que a fazem correr riscos. Entre tece ser a amante, não a esposa, de um dos seus primos germanos, e que
os Gusii, «quando dois homens do mesmo clã tiveram relações com a mesma renuncta ao alvo das suas perseguições quando a mulher o põe ao corrente
mulher casada, quer ela seja mulher de um, deles quer não, pensa-se que a visita da situllÇão particular em que ela se encontra «(tu não deves tocar carnal-
de um ao outro quando este último se epcontra doente tem por consequên- mente O corpo de um primo germano nem mesmo através do corpo inter-
cia directa a morte do doente» [LeVine 1959, p. 972], o que tem alguma posto de um amante comum, pois aquele já te toca naturalmente» (trad.
importância nas relações quotidianas entre irmãos, meio-irmãos e primos. it. pp. 198-99)). Do mesmo modo, se procurarmos atentamente os motivos
Neste caso também não se trata nem dq:incesto nem de adultério propria- pelos quais se considera corno incestuosa a relação entre um padrasto e a
mente ditos, mas do simples encontro num mesmo objecto sexual de dois fllha da· sua mulher, ou entre um homem e a irmã da sua mulher (foi ainda
consanguírteos situados numa relação, Rue não é indiferente, de germani- recentemente um dos casos jUrídicosde incesto na Inglaterra), seremos obri-
dade ou de geração. Entre os Baulé [Etienne 1972; 1975], são radicalmente gados a admitir a validade desta interpretação ou, pelo menos, a não recusá-Ia
proibidos li poliginia sororal e o sor6rio e ainda as relações sexuais de um sem um exame mais aprofundado. E exactamente porque é que Fedra é a
homem com duas irmãs ou duas primas uterinas. Acaso isto venha a ser tragédia do incesto por excelência? Dizer que a relação sexual com parentes
do conhecimento geral, «as duas raparigas são obrigadas a submeter-se aos por afinidade é um incesto porque estes, mediante o casamento, se situam
mesmos rituais que sancionam o incesto entre urna prima e um primo ute- no mesmo quadro conceptual dos consanguíneos - e então a relação sexual
rinos. São elas que dessecam o cabrito ou o carneiro; são elas que se ferem com os parentes por afinidade constitui um factor de distúrbio e de confu-
nuas com as duas partes do animal, 840 elas que são objecto de chacota são dos papéis - é urna justificação, não urna causa. De resto não é certo
da assistência, é a elas, enfim, que é administrado o sacramento da purifi- que, na ausência de casamento juridicamente consagrado, a consciência popu-
cação. O rapaz não é de modo algum implicado nestas cerim6nias» [Etienne lar não considere incestuosa a relação sexual entre um homem e a fllha da
1972, p. 41]. Pierre Etienne, tanto qUlUltosabemos, foi o primeiro antro- sua companheira.
p610goque põs a hipótese do incesto como «relação entre pessoas do mesmo Devemos ainda sublinhar que esta interpretação é perfeitamente conve-
sexo que usufruíram do mesmo objecto de satisfação sexual» [ibid., p. 106]. niente para explicar as razões pelas quais certas formas de adultério, nomea-
Ele procura a explicação para isto não corno tessela de um mosaico ideoló- damente com as esposas de parentes, são consideradas, denominadas e tra-
gico que transcende o quadro local, mas na estrutura das relações entre , tadas corno incestuosas por numerosas populações, e até mesmo por vezes
sexualidade feminina e sexualidade masculina, o que não deve ser posto de corno um incesto dos mais detestáveis. Ela é adequada igualmente para dar
parte apesar de esta via ter sido negligenciada no presente artigo. Entre os conta, de urna maneira rápida e simples, da homologia de natureza entre
Antemoro do baixo vale do Faraony [segundo Dubois, citado in Etienne diversas formas de relações sexuais adulterinas proibidas. Goody [1956], con-
1972] o ritual da fafy intervém para sancionar certos casos de incesto: este trariamente às teses de Evans-Pritchard e de Malinowski, separa totalmente
tem por efeito quer o cancelamento da relação de parentesco para dar l~ar o incesto da exogamia. Ele torna corno prova o facto de a lei da exogarnia
à relação sexual quer, inversamente, o cancelamento da relação sexual para não poder de modo algum explicar que o adultério com as esposas dos con-
dar lugar à relação de parentesco. Dubois mostra que existe urna relação sanguíneos de linhagem seja designado e tratado corno incesto, uma vez que,
incestuosa entre consanguíneos do mesmo sexo que têm ou tiveram um por definição, as esposas destes consanguíneos entram necessariamente na
mesmo parceiro sexual, mas estes consanguíneos do mesmo sexo encontram- categoria geral das esposas permitidas. Ele estabelece corno consequência
-se, neste caso malgaxe, numa relação não de germanidade, corno no caso urna tipologia dos delitos sexuais para dar conta dos factos observados junto
baulé, mas de geração. Assim, se um homem tem relações sexuais com a de diversas populações africanas: 1) relações com um membro do próprio
filha da sua esposa, a filha com este acto destr6i aquilo que fazia mãe a grupo de flliação, ou incesto; 2) relação com a esposa de um membro do
sua mãe e coloca-a em situação de impureza. A fafy, aspersão purificadora grupo, ou adultério consanguíneo; 3) relações com urna mulher casada, fora
de sangue executada pela filha sobre " corpo da mãe, tem por objectivo do grupo, simples adultério. Mas isto não lhe permite, a bem dizer, justifi-
renovar a relação mãe/filha suprimindo o efeito das relações sexuais. car absolutamente as utilizações terminol6gicas locais nem situar de forma
INCESTO 108 109 INCESTO

segura as relações adulterinas com a mlle ou a irmll da esposa. Se conside-


rarmos o que os informadores ashanti metem na mesma categoria atwebene-
sie (segundo Rattray [cf. Goody 1956, p. 305], adultério com a mulher de Gerações
um irmlIo, de um fIlho, com a mãe da mulher, a mulher de um tio, a mulher proibidas
de um companheiro de fekuo, a mulher de um companheiro de uma asso- sem limitação
ciação, a mulher do próprio escravo, a mulher do pai que não a mãe, a irmlI do número
da esposa, seja ela celibatária ou casada), verificaremos efectivamente que de linhagens
Area
uns são adúlteros com as esposas dos membros do grupo (em sentido lato,
aliás: matriclã, abusua, ou patriclã, ntoro; e ainda metonímico: esposa de de consanguinidade
um consanguíneo, por classe de idade, ou de um escravo), enquanto outros cognatícia·
Quatro linhagens· proibidas,
(com a mãe ou a irmã da esposa) ocorrem fora do grupo. Mas, do nosso ftliação apenas por m masculina
ponto de vista, os informadores ashanti designam muito logicamente com sem limitalfão
o mes~o no
adulténo no~e a~uelas
mtenor ou norelações~
extenorsem
do se preocuparem
grupo, com «adulténos»
porque estes a difer~nça Ulces-
tentre de profundidade gFneracional
tuosos re:netem explicitamente para a mesma situação formal, a do incesto
do segundo tipo. Num caso, o incesto existe entre dois consanguíneos' mas- marido e mulher, e obrigar os cônjdges a envergar durante toda ,aIvida um
culinos, verdadeiros ou assimilados, que partilham a mesma parceira s'exual bracelete especial que lembre aos outros e a eles pr6prios a particularidade da
(pai/fJ1ho, irmão/irmão, tio/sobrinho, sendo a relação senhor/escravo uma sua união. Isto s6 é possível, evidentemente, para um certo númerd de posi-
relação de paternidade; a relação de camaradagem, uma relação de fraterni- ções de consanguinidade, aquelas qu:esão consideradas como as mais distan-
dade); no outro, o incesto subsiste entre duas consanguíneas femininas que tes, em função da maneira pela qual:é hierarquizado o campo do pàrentesco
partilham entre si o mesmo parceiro sexual (mlle/fJ1ha, irmã/irmão): por parte daqueles que o vivem. Acrescentemos que esta extensão se deveria
Este último incesto tem um ponto fundamental em comum com o incesto
encontrar
matrimonial necessariamente em todas/as
de proibições omaha, sempresociedades de terminOlogia.e
que seja proibido o casamentosistema
com
j do primeiro
oposição entretipo, na medida
idêntico em que
e diferente. é, tal como
Poderíamos, pois,este, fundamentado
encarar na
as duas V$rÍan- a prima paralela matrilateral (isto é,; a fIlha da irmã da mãe). Se I:$ta prima
tes do incesto como as duas ramificações possíveis do mesmo substratbideo- é interdita, a razão de ser disto encoIltra-se no facto de ela pertencer 'por filia-
l6gico. Mas, primeiro, devemos voltar à extensão das proibições o~ha a ção patrilateral a uma linhagem que lpe é proibida. Eis a explicaçãd que a este
todos os consanguíneos cognáticos durante três gerações, extensão está que propósito nos é fornecido pelos Sam<l:estas duas primas encontr~",se ambas
mais acima tínhamos deixado provisoriamente de parte. ' como as mesmas sobrinhas uterinaseln relação aos tios maternos" :Eles são,
São assim proibidos, para um Ego masculino samo, não s6 o casllrnento pois, proibidos entre si como parcefros no casamento e nas relações sexuais,
com mulheres que pertençam por nascimento através da ftliação agnatícia porque têm em comum a mesma liJ1hagemmaterna e ocupam, pdr isso, as
às. suas linhagens proibidas, como ainda qualquer casamento com parentes mesmas posições em relação aos membros desta linhagem. .
cognáticos até ao sexto grau (segundo o modo consuetudinário de cálculo, Se admitirmos, como princípio ~e uma ordem geral, que qua1quer sis-
quaisquer que sejam as suas linhagens patrilineares de pertença). É-lhe por tema social particular tem um dever de coerência interna, por forma a per-
exemplo impossível casar com a filha da prima paralela matrilinear dJl sua mitir a aprendizagem do sistema ppt parte daqueles que devem praticá-lo
mãe. (Duas primas encontram-se em situação paralela quando nascom seja e reproduzi-lo, então deve admitir-se que, se os exemplos omaha conheci-
de dois irmãos seja de duas irmãs; e eÍD situação cruzada quando Mscem dos mostram a proibição da união 'entre os fJ1hosdas irmãs, este simples
respectivamente de um irmão e de uma irmã). ;
r .
facto implica que a noção de partilhar uma mesma linhagem materna é um
critério pertinente do modo pelo quál são elaboradas as proibições (segue-
Esta configuração
encontra-se não os
também entre é uma particularidade
Mossi, no Alto Volta,específica dos eSarllq;
entre os Bete ela
o~ Baulé -se que estas não se devem única e'exclusivamente ao princípio da miação
na Costa do Marfim, entre os Mkao Mgobendi nos Camarões, etc. toda- unilinear). Por extensão, quando existem mais de duas linhagens {lU subli-
via, na maior parte destes povos é possível que, quando a relação inces- nhagens proibidas, este mesmo pridcrpio deve ser aplicado ao conjunto dos
tuosa é descoberta post facrum e se por acaso não existem outros parceiros consanguíneos cognáticos, isto é, ligados a estas linhagens proibidas por inter-
possíveis, o casamento seja válido ou permitido, sob condição de se efec- médio das mulheres, segundo percursos genealógicos defmíveis no espaço
tuar um ritual que tenha como objectivo cortar o parentesco existente entre de três gerações. Neste caso tratar-se-á ·de consanguíneos cognáticos com
a av6 ou a bisav6 em comum.
110 111 INCESTO
INCESTO

parentesco: ,<Aprópria natureza provê a que o amor fraterno se reconheça


até ao sexto grau de parentesco nas entranhas humanas e exale como que
o odor da comunidade natural que existe entre parentes". Para além da
sétima geração, «quando a família baseada no parentesco vem a faltar, ao
mesmo tempo que as palavras para a designar, a lei do casamento aparece
imediatamente e restabelece os direitos do antigo amor entre homens novos"
[citado in Migne, Patrologia latina, CXLV, cols. 191-208].
Consideremos um outro testemunho. Para os Samo, o primogénito de
uma mulher não é o mho do marido legítimo da mãe, que é o pai social,
mas o mho de um amante oficialmente reconhecido; a criança nascida nes-
No entanto, verifica-se [Héritier 1976] que os Samo escolhem de prefe- tas condições deve sempre ignorar a identidade do seu genitor. As proibi-
rência o cônjuge na quinta geração (sendo a primeira aquela na qual se situa ções matrimoniais que lhe são impostas são as provenientes da mãe e do
o antepassado masculino comum às duas linhagens de descendência); não pai social, o que se coaduna com o princípio durkheimiano segundo o qual
entre o conjunto dos primos propriamente cognáticos do oitavo grau, isto qualquer repressão do incesto pressupõe relações de parentesco reconheci·
é, de todos aqueles que descendem de duas irmãs, filhas do antepassado das e organizadas pela própria sociedade. No entanto, se um homem deseja
comum (existem ao todo dezasseis casos de combinações possíveis para um casar-se (ou frequentar como amante oficial) com uma rapariga que nenhuma
Ego masculino, e naturalmente outro tanto para um Ego feminino), mas, proibição matrimonial, de uma parte ou de outra, separa dele, mas que seja
e de forma· muito significativa, entre primos ligados através das mulheres na verdade sua meia-irmã agnática pelo sangue - quer se trate de uma rapa-
a uma das linhagens patrilineares proibidas de Ego, a começar por aqueles riga que o amante da sua mãe, o seu genitor, gerou no interior do casa-
que se encontram ligados à sua própria linhagem paterna (quatro combina- mento ou não com uma outra mulher, ou de uma rapariga que o próprio
ções possíveis para um Ego masculino: Fa Fo Fo IPPP, Fa Fa Fo IPPP, pai gerou enquanto amante em benefício de um outro homem - então dá·
Fa Fo Fa IPP, Fa Fa Fa IPPP (Fa=Filha, Fo=Filho, I=Irmã, P=Pai), ·se-lhe a conhecer, e neste caso apenas, o laço biológico que os une. É evi-
e ainda às que se encontram ligadas à linhagem paterna da própria mãe, dente que isto levanta um problema: se é, como parece, apenas o laço social
etc. É, pois, evidente que a extensão da proibição aos consanguíneos cog- que predomina nas exclusões matrimoniais e que conta para o reconheci-
náticos até três gerações não é necessária ao bom andamento de um sistema mento do parentesco; porquê impedir este casamento que só é consanguí-
que funcionará de preferência com o encerramento a todas as cinco gera- 1 nco de uma maneira biológica? Não pode ser senão por causa daquela «qual-
ções, uma vez que não são os primos puramente cognáticos do oitavo grau quer coisa" que se estabelece entre os indivíduos através da miação e da
que se casam entre si. Pelo contrário, o encerramento à quinta geração pode qual um escrúpulo, a sombra de uma dúvida, reconhece a presença no sim-
ser descrito tendo unicamente em conta o facto de que as regras das proibi- ples conceber: é a isto que chamamos a noção de idêntico.
ções relativas às linhagens são levantadas ao cabo de três gerações, sob con-
dição de haver perfeita simetria entre a situação do Ego masculino e a do Duas coisas idênticas possuem uma mesma definição e características
Ego feminino. comuns. Por exemplo, dois primos paralelos matrilaterais têm como carac-
Qual é então o motivo recôndito desta extensão aparentemente inútil das . terísticacomum a de estarem na mesma situação em relação à sua linhagem
proibições relativas aos parentes cognáticos, ou seja, àqueles que se limitam materna; do ponto de vista desta linhagem, eles são idênticos. O filho da
a ter em comum as mesmas linhagens maternas ou da avó, e isto até à ter- minha mãe sou eu, característica que partilho com os meus irmãos. Os cri-
ceira geração? térios que servem para separar o idêntico do diferente variam naturalmente
A verdade é que passa através dos indivíduos «qualquer coisa" que nlo segundo as sociedades, e cada cultura constrói para si própria a este propó-
desaparece por intermédio dos homens e que leva três gerações para diluir- sito o seu próprio sistema simbólico. Para além disso, existem certamente
, -se e perder-se no momento em que, por intermédio das mulheres (cf. infra, gradações, específicas de cada cultura, nas defInições da identidade e da dife-
p. 118), pelo menos uma vez, passa qualquer coisa que proíbe a união entre rença. Uma vez admitido isto, é possível sublinhar alguns pontos constan-
os seus portadores enquanto a sua diluição não for completamente realizada. tes, cuja observação é de resto muito banal, uma vez que eles giram em
No século Xl, segundo o direito canónico, era necessário que sete gerações torno da identidade ou da diferença de sexo e das relações paralelas ou cru-
tivessem decorrido antes que, passando através dos homens ou das mulhe- zadas que se instauram, seja por filiação seja por colateralidade.
res (o sistema é cognático e não patrilinear como o anterior), se extinguisse Na colateralidade é uma lei geral, como Lévi-Strauss faz notar [1974],
definitivamente esta afinidade entre diferentes ramos provenientes de um «a ideia de que a relação irmão/irmã é idêntica à relação irmã/irmão, mas
mesmo antepassado, que Pier Damiani, Padre da Igreja, chama «o odor" do que uma e outra diferem da relação irmão/irmão e da relação irmã/irmã, que
113 INCESTO
INCESTO 1I2

por sua vez são semelhantes entre si» (trad. it. p. 194). É este o principio, bem ções raras e incertas. O sistema paralelo, apesar de pouco cómodo, é em
conhecido depois das observações de Radcliffe-Brown, da identidade dos ger- contrapartida seguramente mais viável do que o sistema alternado, no qual
manos do mesmo sexo. O idêntico mais forte é o do gémeo do mesmo sexo, os direitos e os estatutos se transmitiam apenas de macho a fêmea e de fêmea
a macho.
e em seguida, no âmbito dos germanos (irmãos e irmãs com pelo menos um
genitor comum), o germano do mesmo sexo; no âmbito dos primos, o paralelo É evidente que, como já foi dito anteriormente, concatenações diversas
e complexas da noção de idêntico existem conforme as populações; conca-
\I elementar
do mesmo da sexo,
diversidade,
etc. Com atoca-se
negaçãoverosimilmente
impossível da no
diferença
nó da reflexão
dos sexos,
dosmarca
gru- tenações ideológicas que estão no próprio coração das escolhas paradigmáti-
cas estabelecidas por cada sociedade na constituição da sua organização social,
I pos humanos sobre si mesmos, a partir da qual se constitui qualquer organiza-
ção social e qualquer ideologia. Isto parece evidente a partir do momento em em sentido lato. Mas o interesse global da ausência de realização (ou a repre-
que consideramos algumas ausências curiosas no leque das possibilidades lógicas sentação muito débil) de fórmulas que existem logicamente e com as quais
das organizações de parentesco. Assim, se nos referirmos aos critérios de deter- nos poderíamos divertir a tentar inventar as regras de funcionamento, é sim-
minação dos grandes tipos de estruturas terminológicas fundamentadas na deno- I plesmente o de demonstrar, se nece$sário, que os grupos humanos pensa-
minação dos germanos e dos primos, apercebemo-nos de que falta uma, e uma ram todos segundo as mesmas grandes linhas as suas categorias de idêntico
só, posdbilidade lógica. Encontram-se satisfeitas, e mesmo abundantemente e de diferente, pelo menos de forma negativa: não há exemplo no qual a
pela quarta de entre elas, as configurações lógicas seguintes: noção de idêntico, como categoria ideológica global, tenha sido construída
Paralelos = cruzados = germanos havaianos sobre o primado absoluto da similitude dos parentes cruzados.
Paralelos'" cruzados'" germanos sudaneses Poderíamos preparar um inventário de resumos etnográficos que puses-
[Paralelos = cruzados] '" germanos esquimós sem em relevo, de forma mais ou menos directamente ligada à proibição
I' [Paralelos=germanos] "'cruzados iroqueses, crow, omaha, do incesto, a noção de idêntico. De qualquer modo, a questão é levantada
muito frequentemente, pelo menos de uma maneira incidental e Justifica-
mas não parece que se possa citar o exemplo da realização de uma estru- tiva. Existem no entanto textos nos quais a noção de idêntico, em relação
à proibição do incesto, é examinada de forma mais explícita nas sUas rela-
=germanos]
I tura "'paralelos.
terminológica de conjunto concebida sobre a . equação [cruzados= ções com as representações da pessda e em particular com as que I se refe-
rem à constituição do indivíduo e aO$contributos respectivos dos genitores.
ela mesma o paralelismo das situações; estes dois traços são universalmente
A noção como
de idêntico Huntington [1978] mostra assim as ratões pelas quais, para os Bara de Mada-
1 percebidos sendo concentra-se na comunidade de sexo, que engendra
da mesma natureza.
gáscar, o incesto mais abominado nã6 é aquele que une germanos ou outros
Quando é o conceber que é privilegiado, e não a relação de germani-
dade, para a determinação do idêntico, a comunidade de sexo continua ainda parentes primários, mas especificame~te os filhos de irmãs e por vátias gera-
a ser o critério fundamental: as relações mãe/fllha e/ou pai/fllho são conce- ções; isto porque provêm do «mesmo coração», da «mesma matriz», do
bidas por algumas sociedades particulares como suportes privilegiàdos da «mesmo estômago». Os meio-irmãos 'lIgnáticos, embora pertençam 1mesma
identidade, relativamente às relações cruzadas pai/fJ1ha,mãe/filho. Verificam- linhagem, são apenas considerados como «quase-irmãos».A sua proximidade
-se também a este nível algumas ausências curiosas no campo das possibili- é mais social do que verdadeiramente ,íntima. Os fIlhos dos dois irmãos pode-
dades lógicas dos modos elementares de flliação. Needham [1971] ehumera rão, portanto, casar-se se executarem o ritual apropriado. Quanto ao casa-
seis, das quais quatro têm actualizações garantidas: mento preferido, será o dos primos cruzados. Vê-se bem neste casd,a forma
pela qual uma sociedade constrói a sua própria gradação do idêntico, enca-
m -+ m patrilinearidade rada como comunidade paralela de se~o, seja colateral, como neste ckso espe-
f -+ f matrilinearidade
cífico, seja por fIliação. Esta construção está necessariamente de acordo com
(m -+ m)+(f -+ f) pilinearidade, combinação dos modos os traços elementares da organização ,social (filiação, casamento, poder, etc.).
precedentes na definição de cada esta-
tuto Em Tokelau [Huntsman e Hooper 1975], os germanos completos são con-
cebidos como seres idênticos (tutuha 'os mesmos') e esta identidade com-
m/f -+ m/f sistema cognático,
porta atitudes diferentes segundo os seus expoentes sejam do mesmo sexo
mas as duas últimas ou de sexo diferente. A separação entre irmão e irmã em domínios tão deli-
cados como a partilha da mesma residência, a alimentação em comum ou
(m -+ f) + (f -+ m) sistema alternado a brincadeira de ordem sexual é completa.
(m -+ m) // (f -+ f) sistema paralelo Isto conduz-nos ao ponto seguinte: a proibição do incesto em geral não
não poderiam provavelmente servir de princípios de transmissão e de inte- tem necessidade de ser decretada como regra social senão a partir do
momento em que o principio do idêntico deixa de ser tão fortemente estru-
gração regulares exclusivas, embora se possam assinalar algumas aproxima-
INCESTO 114 115 INCESTO

turado, ou seja, normalmente quando são postos em relação consanguíneos Convém acrescentar que, interrogado sobre este ponto, Lévi-Strauss confll'-
de sexo diferente, dado que a mais forte estruturação do idêntico passa ao mou a hip6tese segundo a qual os primos paralelos têm o mesmo estatuto
primeiro lugar, em virtude da comunidade de sexo. Isto é verdadeiro no que os germanos e a impossibilidade de qualquer tipo de relaçllo de tipo
caso do incesto do primeiro tipo e é evidente em si mesmo, se tivermos homossexual entre si. Pelo contrário, os cunhados/primos cruzados silo soli·
em conta a definição heterossexual clássica do incesto. No entanto, no caso dários e sexualmente pr6ximos uns dos outros, antes do casamento de um
com a irmã do outro. Os·jogos homossexuais parecem ser-Ihes reservados.
I do incesto do segundo tipo já aqui analisado, a proibiçãO incide sobre a rela-
"ção homossexual entre consanguíneos, Il1ediatizadaatravés do mesmo objecto Isto significa portanto, vulgarmente falando, que nesta sociedade os indiví-
\ sexual. Debrucemo-nos sobre este pOllto. duos observam uma proibição do incesto homossexual e heterossexual entre
Na teoria etnol6gica, como na prátiça corrente, nossa ou de outras socie- I indivíQuos concebidos como idênticos (Lévi-Strauss diz «semelhantes»),
dades, o ip.cesto parece dizer respeito; em primeiro lugar, às relações hete- , a saber, os primos paralelos e os germanos (irmãos e irmãs), e abandonam-
rossexuais; e em seguida às relações he~~rossexuaisque comportam um risco -se em contrapartida, em temporalidades diferentes, ao jogo homossexual
de fecundação. Assim, no direito franc~s, a violação refere-se apenas à rela- ou à aliança matrimonial com parceiros considerados como diferentes,
ção forçada por via vaginal; o incesto enquanto tal s6 é susceptível de puni- a saber, os primos cruzados. Nesta sociedade, o critério mais forte do idên-
ção como circunstância agravante da violação de um menor: consequente- tico não passa pela comunidade de sexo, mas pelo carácter paralelo das rela-
mente, trata-se apenas da penetração heterossexual através da qu~ é ções de parentesco oposto ao carácter cruzado.
concebível, se a idade o permitir, um fruto da união. Margaret Mead tinha Consideremos um outro exemplo de Schneider, aqui citado por extenso:
claramente visto este aspecto da questão: «A ênfase que se pôs sempre na «Os Etoro da Nova Guiné crêem que o sémen é necessário para o cresci-
relação existente entre a proibição do incesto e a regulamentação do casa- mento normal e a manutenção dos rapazes: aquele é-lhes, consequentemente,
mento teve como resultado o facto de se negligenciar sempre o incesto directamente ministrado, por via oral, tantas vezes quanto pareça ser neces-
homossexual» [1968, p. 118]. sário. O inseminador ideal é o marido da irmã do pai do rapaz, mas outros
Não estamos em condições de discutir de forma aprofundada a realidade homens de uma certa idade também podem cumprir perfeitamente esta fun-
do desejo homossexual incestuoso em termos psicanalíticos, a frequência da ção. Kelli declara que as definições do incesto e as proibições ma~rimoniais
realização deste desejo quer se trate de jogos, de carícias ou de uma relação são isomorfas às proibições que incidem sobre a inseminação dos rapazes,
completa. Barry e Johnson [1958] dizem ter tido conhecimento nas suas pes- com a diferença que num caso se trata de pares de parentes dos dois sexos,
quisas de um certo número de casos de incesto mãe/filha e av6/neta. Maisch e no outro de pares do mesmo sexo. Schieffelin relata a mesma crença entre
[1970, p. 186] disse ter antes tido conhecimento na sua amostragem de inces- os Kaluli da Nova Guiné. Ele indica que o inseminador escolhido pelo pai
tos homossexuais pai/filho, avô/neto. Mas é conveniente sublinhar duas coi- é um homem com o qual geralmente é aparentado (talvez o marido da irmã,
sas: em primeiro lugar, que a possibilidade existe, que é conhecida, e que embora isto não seja claro) ou um homem mais velho com o qual não tem
casos individuais se encontram registados; em seguida, e principalmente, laços de parentesco. Em ambos os casos, quer para os Etoro quer para os
que existem casos evidentes e socialmente reconhecidos de homossexuali- Kaluli, uma relação deste género entre pai e fl1ho ou entre irmãos é consi-
dade consanguínea absolutamente lícita entre determinado tipo de paren- derada incestuosa e é proibida» [1976, p. 151].
tes. Se eles existem entre um certo tipo de parentes, e não entre todos Que o marido da irmã do pai seja primo çruzado ou não, este exemplo
indiferentemente, é porque, para os outros, aqueles para os quais a homos- mostra claramente a homologia da estrutura das proibições homossexuais
sexualidade não é permitida, é levantada uma barreira sobre cuja natureza e heterossexuais. Por outro lado resultam, do exemplo precedente, duas coi-
nos devemos interrogar. : sas: que pode existir um certo tipo lícito de relações homossexuais; que o
De facto, Lévi-Strauss refere que entre os Nambikwara o cunhado poten- critério mais forte do idêntico é agora deslocado da comunidade de sexo
cial de um homem é o primo cruzado com o qual, «desde adolescente, se para o carácter paralelo da relação de parentesco, quer em filiação quer em
entrega a jogos homossexuais, dos quais permanecerão sempre traços no com- , colateralidade.
portamento mutuamente afectuoso dos adultos». E acrescenta: «Os irmãos , Bastaria reter apenas estes dois exemplos precisos na literatura antropo-
são parentes entre si, mas são-no pela sua semelhança ... os cunhados pelo 16gicacomo prova da pertinência das noções de idêntico e de diferente para
contrário são solidários entre si e possuem uma eficácia funcional em rela- i compreender as proibições do incesto. Estas noções variam claramente em
ção uns aos outros. . . desempenham o papel do outro sexo nos jogos er6ti- compreensão, em amplitude e em intensidade segundo a forma pela qual
cos da infância» [1947, trad. it. p. 620]. a relação entre os sexos, em particular no seu papel respectivo quando do
Que significa tudo isto? Neste texto, Lévi-Strauss nada diz acerca do gerador de um novo indivíduo, é encarada por cada sociedade. Parece no
estatuto dos primos paralelos; ele precisa que os irmãos são pr6ximos «pela entanto que, para além destas variações, a visão simbólica do idêntico
sua semelhança» e não faz alusão a possíveis jogos homossexuais entre eles. apresenta-se por toda a parte e sempre segundo a mesma simplicíssima con-
117 INCESTO
INCESTO 116

catenação estrutural, em todos os domínios onde esta simb6lica é utilizada na nossa sociedade, recomendava-se outrora às raparigas que não mergu-
de maneira evidente, por exemplo, nas curas medicinais ou na escolha do lhassem as mãos ou os pés em água fria durante os ciclos menstruais, para
cônjuge. Não existe escolha, na realidade, senão entre duas possibilidades evitar fazer refluir o sangue no corpo; as mulheres que estão com a mens-
segundo os resultados, bons ou maus, que elas são supostas produzir: ou truação são supostas deslaçar a maionese, o creme inglês, as emulsões, etc.):
1) em primeiro lugar, em algumas condições, os contrários atraem-se e nou-
I de
se procurará
justapor ou
o cúmulo
de combinar
do idêntico
elementos
(o que
diferentes),
implica como
ou então
corolário
o cúmulo
a recusa
do , tras repelem-se; 2) em segundo lugar, um bom equilíbrio dos cohtrários é
I idêntico será proibido (com a consequente procura sistemática de justaposi- necessário para a harmonia do mundo, do individuo, da ordem social. Para
I ção ou combinação de elementos diferentes). No que concerne a escolha do o pensamento grego, que se aperfeiçoou especialmente na questão do equi-
cônjuge, não é raro que estas escolhas sejam acompanhadas por considera- líbrio dos elementos [Lloyd 1964],á maior perfeição visa a combihação em
ções de ordem genética, como é o caso dos Mkao que concebem a mistura justas proporções da maior parte possível dos contrários. Em conttapartida,
de sangues idênticos - no todo ou em parte - como um incesto que pro- , o cúmulo do idêntico provoca sempre uma perda de equilíbrio, um excesso.
voca a fraqueza e a morte. Em contrapartida, a mistura de sangues diferen- Este excesso pode ser procurado, pOr exemplo, em certas curas medicinais,
tes traz a força e a vida [Copet 1977]. Encontramos considerações seme- ou em rituais de inversão, ou em condutas de inversão pr6prias de aristo-
lhantes na nossa pr6pria cultura. cratas ou de soberanos em diversas partes do mundo (as princesas shilluk,
que têm uniões livres com os seus parentes, inclusive com os meio-irmãos
\ idêntico
As regras
tal como
que ele
proíbem
é concebido
o incesto,
por cada
que sociedade
proíbem em(segundo
suma omodelos
cúmulocujo
do agnáticos, devem ser estéreis, como ás mulheres do clã aristocrático dos Vun-
recenseamento seria conveniente estabelecer, ou pelo menos das suas prin- gara junto dos Zande, entre outras êoisas com fama de serem lésbil:as, como
cipais configurações), não têm necessidade de ser explicitamente proclama- as princesas nyoro, etc. [Heusch 1958]).
das a não ser quando a noção de idêntico vacila nas fronteiras com a dife- Chegamos assim ao último ponto fundamental do raciocínio, a saber,
rença, isto é, quando a diferença dos sexos intervém no interior de uma a pertinência do sistema global de i\epresentações das sociedades, ordenada
relação paralela de consanguinidade (em colateralidade ou em filiação) - segundo os cânones desta lógica muito geral cujas grandes linhas acabam
como é o caso mais frequente - e quando a dicotomia paralelo/cruzado inter- de ser expostas, para compreendermos a instituição da proibição do incesto.
vém no interior da comunidade de sexo - como é o caso dos Nambikwara, Este prop6sito será ilustrado pela análise sucinta do sistema de representa-
dos Etoro ou dos Kaluli. Corre-se então um risco devido ao cúmulo do idên-
ções samo [Héritier 1973; 1978], r1?-aspoderia igualmente sê-Io por outros
tico, e isto tanto para os indivíduos como para as sociedades. Quanto ao materiais etnográficos. É evidente que o conteúdo, a definição e a sistema-
resto, regra alguma é necessária para especificar ao homem: tu não copula- tização específicas dos traços ideol6gicos pertinentes dos Samo não são neces-
rás com o teu filho nem como o teu irmão nem (como para os Nambik- sariamente os mesmos alhures; mas a 16gica geral, baseada nasrctlações do
wara) com o teu primo paralelo, mas apenas com o teu primo cruzado. São idêntico e do diferente tal como acabam de ser expostas, é-o por:hipótese.
coisas que se resolvem aparentemente por si próprias no Supereu Social Para os Samo, a categoria dualista central, relevável na linguagem vul-
(repare-se neste ponto no grande mutismo dos textos sobre uma possível
gar, nos discursos, nos mitos, nos"rituais, é a do calor e do frio, com os
homossexualidade incestuosa feminina). Tudo se passa como se a ordem do
seus corolários do seco e do húmido. (Eventualmente, pode diZer-se que,
idêntico e do diferente, através da comunidade de sexo e do paralelismo
a julgar pela abundância da literatura que aborda este assunto,·' se trata de
que se lhe segue, adquirisse todo o seu sentido na orientação da sexuali-
uma categoria igualmente eminente' no pensamento de muitos outros povos;
dade para o outro sexo segundo os fms da espécie e a regulamentação desta
assim, descobre-se facilmente a sua pertinência na nossa cultura se se fizer
orientação segundo os fins da construção social.
não s6 a análise do discurso comum, presente ou passado, mas também do
A procura ou a recusa do cúmulo do idêntico explicam-se através de discurso erudito dos médicos e dos Ihigienistas dos séculos XVIII e XIX sobre
alguns traços formais. o sexo, o corpo e a doença). ProvQc'llro encontro de dois caracteres quen-
Idêntico e diferente, enquanto categorias polarizadas, são noçõe~ que tes (pôr quente sobre quente) tem como efeito a seca; pôr frio kobre frio
implicam conjuntos de caracteres contrastados que se apresentam I sob a tem como efeito o desencadear dos Ullxos, de água (chuvas torrenciais, inun-
forma de categorias dualistas, de pares de axiomas contrários, tais tomo dações), de sangue (hemorragias), de humores (disenteria). Os efeitos des-
direita/esquerda, claro/escuro, macho/fêmea, superior/inferior, altoibaixo, ses cúmulos do idêntico, seja qual for o registo em que se verifiquetn, fazem-
quente/frio, seco/húmido, etc., implicando, talvez, por outro lado, uma -se sentir num outro dos registos fueteorológicos, biológico ou social. Um
ordem segundo p610s negativo e positivo. delito social - como a sepultura do corpo de um zama (pária conhecido
A esta bipolarização corresponde. um equilíbrio entre duas ideias qUe se como necrófllo), que é pôr quente sobre quente [Héritier 1979] .,...tem con-
encontram mais ou menos expressas em todas as sociedades, eventualmente sequências meteorológicas, impede a chuva de cair: os três registos estão
sob formas atenuadas, profundamente submersas em crenças isoladas (assim, intimamente ligados.
INCESTO 118 119 INCESTO

o homem pertence à categoria do quente, porque produz, permanente- gue, calor e vida do seu próprio pai. Mas são as «águas das articulações»
mente, com a transformação interna das suas «águas do corpo» localizadas que os fúhos recebem dela que recriam de maneira permanente o sangue
na medula óssea e nas articulações, o esperma, elemento considerado extre- nos machos e o leite nas fêmeas. Serão, pois, necessárias três gerações (ef.
mamente quente porque forma particularmente condensada do sangue que supra, p. 109) para que desapareça na sua descendência cruzada com outros
veicula o calor do corpo [Héritier 1977]. A introdução do esperma no útero troncos este sinal particular de linhagem que os seus irmãos transmitem inte-
feminino fornece a necessária quantidade de sangue à criança, rapaz ou rapa- gralmente em patrifúiação. A contradição inerente à noção de idêntico é que
riga; o sangue da mãe, por seu lado, sc:rve para a constituição do corpo o carácter de idêntico se transmite de maneira igual por geração elou mia-
da criança. Assim, o pai deverá continuar a ter relações sexuais com a mulher ção, mas que necessita em seguida de se diferenciar segundo o sexo. Na
grávida até ao sexto mês de gravidez, poijco mais ou menos [Héritier 1978], realidade, todas, ou quase todas, as sociedades têm velhos fantasmas parte-
para que a criança seja perfeitamente fQrnecida de sangue. Se as relações nogenéticos.
continuam depois desta data, a criança forre o risco de sobreaquecimento Par~ os Samo, tal como em Madagáscar, a união incestuosa é uma união
no útero. Que o sémen veicula o sangu~ ou que é uma forma particular- estéril. Quando um casal não tem fIlhos, os adivinhos consultados desco-
mente depuradora e concentrada de sang'Ue,é também uma crença popular brem frequentemente uma relação consanguínea esquecida entre os cônju-
entre nós: falar de mistura de sangues á propósito da união de um homem
ges, descoberta essa que autoriza uma ruptura válida da união, caso esta
e de uma mulher não implicará, com efeito, que o sémen masculino tem seja legítima. É uma união estéril, devido à acumulação de dois calores idên-
o poder de' canalizar o sangue? .
ticos que causam a consumpção, a secura dos fluidos vitais. O incesto aquece,
A mulhér pertence à categoria do frip, principalmente porque não pro-
dyi/ibra a lu/an ma. De igual modo, a copulação com uma rapariga impú-
duz sangue ela mesma: com a transformllção das suas «águas do corpo», ela
bere, que ainda não perdeu nada do seu calor primeiro, é perigosa porquanto
produz leif~, que pertence também à cllfegoria do quente, como o sémen.
faça correr a um e outro dos dois parceiros o risco de dessecação dos seus
Leite e sémen são nesse sentido equivalentes. Além disso, ela perde perio-
fluidos vitais, da sua substância, podendo provocar a morte. Segundo a
dicamente,o'seu sangue, e, uma vez cas~f;ia,aquele que o seu marido intro- mesma lógica, ter ainda relações sexuais regulares, para uma mulher com
duz nela, quando ambos não servem para fazer uma criança. Mas a mulher
a menopausa, significa acumular calor sobre calor sem haver a possibilidade
está em situação quente durante a infância no seu estado impúbere, durante
as gravidezes e depois da menopausa. de «refrescar-se» regularmente com os ciclos menstruais ou brutalmente no
momento do parto (as parturientes são aquecidas com banhos quentes e um
Estas concepções sobre as características dos fluidos vitais explicam a proi-
bição referente às relações sexuais depois do parto. O leite, homólogo do fogo permanente) e consequentemente correm ainda um grande risco de
esperma, é quente como este. A introdução do esperma no útero de uma serem acusadas de feitiçaria. A mulher que está com os ciclos menstruais
mulher que amamenta equivale a meter quente sobre quente. Isto tem como está a perder o seu calor e atrai para si o calor exterior; ela estragará a coze-
efeito esgotar (secar) o leite, e também esgotar a capacidade viril de produ- dura do veneno (elemento quente) se por acaso passar próximo do lugar
zir do esperma, ou de estragar o leite. Diz-se que os bebés rejeitam o leite onde os homens o preparam em silêncio, às escondidas, no mato: ela absorve
da mãe em dois casos: quando esta teve uma relação sexual com o marido, este calor. Para a mulher grávida, pelo contrário, a acumulação de calor
ou quando se encontra novamente no período menstrual, apesar de ama- provocada nela pela sua passagem fortuita próximo do local de fabrico do
veneno fá-Ia imediatamente abortar.
mentar (as menstruações podem reaparecer seis meses depois). Assim, esta
proibição que em princípio visa a protecção da criança no seio, visa tam- ,Existem pois «curto-circuitos»devidos à presença simultânea de dois idên-'
bém a protecção das capacidades viris do marido. Os Mossi [Pageard 1969, ticos, e isto não apenas no domínio sexual. Assim, os cabelos do senhor
da chuva (/amutyiri) e a sua cabeça têm a obrigação de fazer vir a chuva.
p. 128] acreditam que uma gota de leite da mãe que caísse sobre o sCfo
do fúho destruiria irremediavelmente a sua virilidade. O' senhor da chuva é um personagem extremamente marcado pelo sinal do
Já vimos que a mulher, à qual é explicitamente associado o carácter frio quente, e o seu calor está particularmente concentrado nos cabelos. O quente
(e húmido; o homem é quente e seco), pertence de facto à categoria do atrai o frio e o húmido; portanto a cabeça cabeluda do /amutyiri deve con·
quente durante vários e talvez os mais longos períodos da sua vida. Ela é ter a carga de calor necessário à vinda da chuva em quantidade suficiente
dotada de um calor próprio, que perde regularmente com os ciclos mens- [Héritier 1973]. Mas se os seus cabelos, que são cortados apenas uma vez
truais, que lhe vem do seu pai elou da sua pertença de linhagem (existem por ano, tocam por acaso a terra nua, que é quente e masculina, isto pro-
algumas hesitações sobre este ponto), calor idêntico em natureza e quali- duz curto-circuito que provoca a seca, os ventos quentes portadores de epi-
dade àquele que possuem os seus irmãos. Quando ela concebe um fúho, demias, a falta de germinação das gramíneas, etc. Assim o /amutyiri dos lon·
é o sangue que recebeu do seu pai que se tornará no corpo e nos órgãos gos cabelos caminha com precaução, pelo menos nas ocasiões cerimoniosas,
do bebé, o qual por sua vez receberá a sua dotação de nascimento em san- senta-se à parte em esteiras de palha, e durante a juventude (ele é escolhido
INCESTO 120 121 INCESTO

antes do nascimento) e a adolescência não pode lutar, como fazem tradicio- a díspar série dos fen6menos citados no início deste artigo segundo as obser-
nalmente os rapazes e os jovens em geral. Em certas aldeias, ele não pode
sair de dia ou de cabeça descoberta; evita pois o contacto com os raios sola- \ qual
vaçõesfordea natureza dos seus
Lévi-Strauss: eles efeitos. Algures,
explicam-se por aum
terraexcesso
pode ser
de fria, o quente
idêntico, seja
res, tal como o mikado e outros príncipes nos exemplos referidos por Durk- sobre quente provocar inundações e não a seca, uma outra categoria dua-
heim. Poder-se-á sugerir que ele, como estes, se encontra fortemente mar- lista ocupar o lugar proeminente que o calor e o frio têm para bs Samo,
cado pelo sinal do quente? E que, se expusessem a cabeça nua ao sol, se mas isso em nada afectaria, parece-nos, a 16gicade conjunto que àcabamos
seguiriam indubitavelmente catástrofes de secas sobre o povo deles? l de descrever. '
e, I A noção det~u!!O:~ci~c~ít()}implica também a decontági(), que encontra- Ele permite também compreender a utilização do sangue menstrual ou
mos em Durkheim [1897]: «As propriedades de um ser propagam-se conta- do sangue do parto (e sobretudo dot>timeiro sangue!) em certas curas medi-
giosamente sobretudo quando são de uma certa intensidade» e «n6s,deixa- cinais: este sangue frio atrai os humores frios das escr6fulas; antÍtético do
mos algo de n6s pr6prios por onde quer que passemos». Assim, um lidmem leite, ele estanca a sua difusão; seca os fluxos de destilação dos furúnculos
não pode descer a um poço, ou seja, ao seio da terra quente, quando a sua ou dos abcessos provocados por inflamações.
mulher está grávida: ele fá-Ia-ia, por contágio, abortar. Em contrapartida, O sol exerce uma atracção partÍl;ular sobre as jovens mortais que estão
o homem que morre durante uma gravidez da mulher, ou seja, durahte o menstruadas, e convém que elas se protejam dele (como algures convém
período em que ela retém particularmente o calor, tem, por contágio~ todas que se protejam da água fria), seja porque a excessiva força de attacção do
as características altamente perigosas das mulheres mortas durante a gravi- calor solar pode fazê-Ias sofrer de Uma hemorragia contínua, seja porque
dez ou de parto: ele será sepultado entre elas, a sua casa será destruída, essa mesma força, concebida como r~pulsiva, impede o seu sangue de correr.
os seus bens confiscados em benefício dos coveiros especiais, que ~lio os A masturbação é um cúmulo do idêntico, talvez o mais perfeito'de todos.
únicos que tocam nestes cadáveres maléficos. I Na Europa, na crença popular (I: mesmo no discurso médico até ao

que deve ser compreendida a correlação incestuosa de dois consangUíneos século


os a provoca
XIX), ela
Navaho masturbação
uma faz definhar ecompletamente
fecundidade emagrecer os anormo!
rapazinP0s. Para
(nascem
I através do mesmo parceiro
É verosimilmente sexual,
através destaso incesto
noções do
de· segundo tipo. Isto
curto-circuito e depode tam-
contágio monstros), semelhante àquela que ás crenças populares francesas atribuem
bém permitir-nos compreender algumas anomalias já aqui assinaladas dtl pas- às uniões consanguíneas e, com rqllis razão, ao incesto. f

sagem. Se um homem samo mantém relações sexuais com uma «Íl1tJ.ã»ou


uma parente consanguínea da sua esposa, ou com a mulher do ÍrqlãO da Se para
mulher os Ashanti,
casada no matosegundo Rattrayentre
é classificada [cf. Goody 1956],
as ofensas a violaçãp
sexuais mais de uma
graves,
sua esposa (duplo curto-circuito), esta última abandona-o imediatam~qte se daquelas que, julgadas a nível trillllÍ, implicam a morte do culpado, isto
vem a saber do caso e não volta senão quando todos os procedimerttos de sucede porque - pomos como hipÓtese - é um acto quente cometido em
reintegração forem feitos. Não se trata portanto da expressão de umarepro- zona quente (o mato é quente; a ald~ia é fria), e as suas consequancias cli-
vação moral, mas de uma questão de risco, pois ela é posta em cdntacto matol6gicas e epidemiol6gicas implic;am uma desgraça para o país inteiro.
carnal com a sua pr6pria substância, a que partilha com a sua pllrente, É um crime contra o grupo e não coNra uma mulher nem contra um homem
e de forma igualmente perigosa, embora por intermédio de duas mediações lesado nos seus direitos nem mesmo.,contra a instituição social do casamento,
sexuals, com o seu irmão. Assim, para os Nuer, s6 a maior identidade~ a dos dado que, para que a violação seja assim punida, é necessário que tenha
homens consanguíneos agnáticos, é concebida como uma perfeita troca. Um sido cometida no mato. '
é igual ao outro. Não há portanto mal algum em ter-se relações sexu,!! com . A visão simb6lica do incesto, q*' assenta em pilares s6lidos do idêntico
a mulher de um bull. No entanto, uma proibição pesa sobre a rela~o do
filho com a mulher do pai ou com a mulher do irmão. Neste caso, Wr con· 'I e do diferente, geneal6gica;
propriamente não está necessariamente ligada com
supõe pelo contrário umaa relação
consanguiJ1idadereal,
l6glaa, sintác-
tágio, trata-se de um incesto do primeiro,tipo por razões que os Nuer dfPõem tica, que une entre si diversas ordans de representações: as representações
perfeitamente através do relat6rio do seu etn6grafo: o fJ.lhoé posto em con- das pessoas e das suas partes, as representações genéticas das trllnsforma-
tacto carnal com a mãe, caso tenha relações sexuais com uma outra tnulher ções verticais ou horizontais que se oPeram entre indivíduos por via de mia-
do pai, uma vez que o pai se une carnalmente com ambas as espos~s e dá ção ou de contágio, as representações da relação dos sexos e do mundo do
à mãe algo da substância do fJ.lho. Se, nos Nambicuara, a relação dos pri- parentesco, mas também as representações do mundo natural e da ordem
mos cruzados cessa depois do seu casamento recíproco com a irmã do outro, social nas suas relações íntimas c~I\1 o homem biol6gico. Essa relação é
isso passa-se apenas para que não haja confusão dos papéis sociais e tam- baseada na troca e no movimento otgânico dos fluxos, que se deve regular.
t bém porque cada irmão seria assim posto em contacto carnal, por contágio, Portanto, o facto de se ter tentado: explicar o incesto pela manipWação do
com a pr6pria irmã. simbólico não nos parece ser uma interpretação contradit6ria com a demons-
É nos termos desta problemática, entendida no sentido das articulações tração de Lévi-Strauss. Regulamentando as trocas de cada ordem, trata-se
16gicas que existem entre diferentes processos, que podemos compreender sempre de construir a sociedade. [F. H,].
INCESTO
122 123
INCESTO

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sanguíneos provocaria (cf. hereditariedade, gene, genótipolfenótipo) o empobrecimento das carac-
INCESTO 124

terísticas gen~ticaa e a transmissAo dos caracteres negativos. Outros associaram essa norma com
a necessidade de socialiJIaçtJo inerente a cada grupo, para o qual s6 atrav~s desta proibição pode
ser praticada a troca das mulheres (cf. mulher, homem/mulher) que estende a série das relações
para uma área mais vasta, e isto para tomar possível a criação da sociedade. No entanto deve
dizer-se que semelhante proibição diz respeito não s6 ao domínio matrimonial, mas também
ao da sexualidade. Aqui os factores biológicos e a subdivisão dos grupos (eC. parentesco) muitas
vezes não coincidem, repondo assim o problema da natureza do incesto. Uma soluçlo consiste
em aludir ao sistema geral dos conhecimentos (cf. conhecimento) que é representado quase por
toda a parte por um modelo do tipo idêntico/diferente (eC. identidade/diferença), no qual o idêntico ENDOGAMIAIEXOGAMIA
representa') domínio proibido e o diferente o domínio lícito. O que varia ~ o valor (cf. 'Valo-
res), o significado (cf. sentido/significado), o simbolismo atribufdo por cada cultura (eC. cultura/cul-
turas, emocenlrismos, natureza/cultura) aos termos idêntico e diferente, enquanto análogo per-
manece o sentido, cuja constante presença se põe como uma das mais importantes chaves para
penetrar nas linguagens (cf. linguagem) e na história do homem (cf. masculino/feminino).

Não é assim tão fácil tratar da endogamia e da exogamia enquanto noções


portadoras de uma defInição. De facto, trata-se de conceitos duplamente rela-
tivos, por um lado, porque não podem ser evocados isoladamente (em tal
caso seriam destituídos de sentido) e, por outro, porque, mesmo tendo em
conta esta relatividade, não remetem (pelo menos no estado actual dos nos-
sos conhecimentos cuja imprecisão impede que se estabeleça um acordo entre
todos os que utilizam a terminologia científica) para situações simples cuja
compreensão estaria coberta pelo próprio termo.
Voltemos ao primeiro ponto, sobre o qual nos devemos deter. Endoga-
mia e exogamia não podem ser evocadas isoladamente: procurar o cônjuge
<<fiO interior» ou «no exterior» implica imediatamente que sejam defInidas
a identidade e o conteúdo do grupo no interior ou no exterior do qual é
escolhido o cônjuge. Em poucas palavras, somos remetidos para uma defI-
nição que pode ser dada em diferentes termos, os quais podem ser conside-
rados separadamente ou em conjunto. .
Antes de mais, endogamia/exogamia podem ser considerados em termos
de parentesco. Encontramos então, desde o início, a necessidade de uma
análise do papel da proibição do incesto. Segue-se a análise da noção de
miação, conforme a regra de miação que defIne os grupos é un.ilinear (ou
seja, a transmissão de pertença ao grupo é feita unicamente por intermédio
dos homens - filiação patrilinear - ou por intermédio exclusivo das mulhe-
res - miação matrilinear - de tal modo que os indivíduos provenientes de
um grupo assim defInido - linhagem ou clã - possuem em comum pelo
menos um mesmo conjunto de parentes, que não se podem geralmente casar,
que são os membros do grupo), bilinear (os indivíduos pertencem simulta-
neamente a dois grupos, defInidos um pela fl1iação patrilinear, e o outro
pela miação matrilinear), ou cognáticalindiferenciada (todas as linhas de des-
cendência que implicam homens e mulheres ao longo das cadeias de suces-
são são reconhecidas com os mesmos direitos, dando lugar deste modo a
conjuntos flutuantes ou parentelas, variáveis para cada indivíduo, em fun-
ção· doconhedmento e da prática mais ou menos directos que ele possui
dos seus diversos consanguíneos). É evidente que a noção de exogamia não
indica a mesma coisa conforme estamos em presença de sociedades de gru-
pos unilineares constituídos a maior parte das vezes com base na residên-
l27 aNDOGAMIAIEXOGAMIA
ENDOGAMlAIEXOGAMlA 126

os grupos não proibidos: é o caso dos sistemas ditos crow-omaha (do nome
cia, com um aparelho jurídico-social que os torne facilmente identificáveis, das tribos índias em que foram identificados; uns - sistemas crow-
ou sociedades em que os grupos de parentesco (parentelas flutuantes) são encontram-se geralmente nas sociedades matrilineares; os outros - sistemas
constituídos de modo indiferenciado. omaha -, nas sociedades patrilineares). O número de grupos proibidos pode
Por I1ltimo, devemos ter em conta as regras de casamento em função variar segundo as sociedades que têm este tipo de sistema de parentesco
de três casos de figuras possíveis, consoante: e de aliança. Num caso amaha africano, o dos Samo do Alto Volta, são proi-
1) A escolha do cônjuge seja orientada pela regra social para um grupo bidas as linhagens patrilineares de Ego - portanto, do seu pai -, da mãe,
particular (é o que acontece com as organizações sociais dualistas) ou para da mãe do pai e da mãe da mãe. Para além disso, são proibidas todas as
uma categoria particular de parentes, por exemplo, a filha do irmão da mãe: linha~ens em que um «irmão» ou um «pai», reais ou classificat6rios, isto
MBd (as transcrições que se seguem leguem o sistema inglês: M =mother,
é, qu~quer consanguíneo pertencente à mesma linhagem do Ego masculino
B-brother S=sister, s=son, d=dauglteer, H=husband, W=wife. No nosso - da pr6pria geração ou da geração imediatamente superior à própria -,
caso: MBd =mother's brother's daught«r). Tal filha pode ser real ou classifi- tenha 'já tomado um cônjuge. Finalmente, são sempre proibidas a um homem
catória, em que por classificat6ria se entende que qualquer fllha da mesma as linhagens das mulheres anteriormente desposadas, bem como as das suas
categoria, designada pelo mesmo termoj pertence ao grupo do irmão da mãe. mães, mães de pai e mães de mãe. O resultado aparente é, pois, uma forte
,
Assim num sistema patrilinear, a moa do fIlho do irmão do. pai da mãe exogamia, fora do campo da consanguinidade e da aliança, que pertence ao
é indicada como MFBsd. A representação gráfica * é a segumte:

o
mesmo modelo estatístico de realização, presente nas estruturas complexas
de parentesco e de aliança.
A definição pode ser feita também em termos de residência, em primeiro
lugar porque as regras que fixam a escolha de residência para o casal que
acaba de casar não estão numa relação indiferente com as regras de miação
e de aliança, mas também porque existem numerosos casos em que a resi-
dência partilhada introduz entre indivíduos não aparentados uma relação de
Ego MBd Ego MFBsd parentesco particular, ou parentela de vizinhança, cujos efeitos exogâmicos
podem ser tanto ou por vezes mais constritivos que os laços de sangue. Titiev
Em ambos os casos estamos perante aquilo a que Lévi-Strauss chamou [1943] cita Granet e,o exemplo da exogamia chinesa de aldeia, onde a rela-
as «estruturas elementares» de parentesco, elementares porque permitem ção entre os membros de uma mesma aldeia acabava por ser uma relação
«determinar imediatamente o círculo dos parentes e o dos aliados» (1947, mais estreita do que se ela fosse simplesmente baseada nos laços de sangue.
trad. it. p. 11]. Inversamente, a aldeia pode ser uma unidade endogâmica, tanto mais fechada
2) Esta escolha seja apenas limitada por proibições, mínimas ou não, do quanto maior for o isolamento geográfico.
incesto que incidem sobre graus interditos de parentesco, ou seja, sobre indi- Enfim, a defmição pode formulu-se em termos de estatuto, e, portanto,
víduos que ocupam posições geneal6gicas defmidas. É o caso, nas nossas de ideologia: a etnia, a casta, a religião, o lugar na hierarquia social, a pro-
próprias sociedades ocidentais, da mãe, da fllha, da irmã, em confronto com fissão, a riqueza ...
um Ego masculino, mas também, no direito canónico, dos primos direitos Para muitos grupos étnicos, a designação dos membros do grupo é feita
e mesmo, até ao início do nosso século, dos fllhos descendentes de primos com um termo que quer simplesmente dizer 'os homens', o que implica
direitos e além disso um certo número de parentes por aliança (<<Ego»é o que os estrangeiros à etnia são de uma essência não humana: animal, fan-
termo de referência em relação ao qual se constroem todos os sistemas de tasmática, monstruosa. Unir-se a eles é do domínio do impensável. No sis-
tema das castas, na índia, ninguém pode casar fora de casta sem descer
i denominação. Uma longa tradição etnol6gica fez de ~go. um ser ma_s~lllino;
I ver-se-á como este estratagema etnológico não é indiferente à compreensão na escala social. Por outro lado, pode acontecer que casta, grupo de paren-
I dos factos sociais). Neste caso, falaremos de «estruturas complexas» de paren- tesco e grupo residencial estejam misturados. Sem que se possa propriamente
tesco, na medida em que a escolha do cônjuge parece obedecer a considera- falar de castas, existem, em particular, na Africa Ocidental, grupos «profis-
ções de ordem estatística e já não normativa. sionais» frequentemente endogâmicos: os ferreiros, os feiticeiros, ou grupos
3) Esta escolha, finalmente, seja limitada por proibições que incidem não cuja endogamia forçada é a consequência de um afastamento que resulta
sobre indivíduos definidos genealogicamente pela sua posição em termos de de uma falta de ordem sexual cometida por vezes pelos próprios indivíduos,
graus de parentesco, mas sobre grupos na sua totalidade, enquanto linha- mas cuja mancha, e consequente opr6brio, é a maioria das vezes herdada
gens ou clãs definidos por uma regra de flliação, sendo autorizados a priori por nascimento ou contraída por contacto sexual. É o caso dos Mossi yagh-
lentise, supostos culpados de bestialidade, ou dos Samo zama, imputados
de necrofilia.
• Neste esquema bem como nos seguintes
ro • relaçAo de fraternidade, 1= relaçAo de geraçAo, =
o significado dos símbolos é o seguinte: .4 = homem, O = mulher
= reJaçAode afinidade, casamento.
t
ENDOGAMIAIEXOGAMIA 128
129 ENDOGAMIAIEXOGAMIA

A religiAotambém desempenha o seu papel: para um mormon, é preferível


casar com a própria filha do que dá-Ia em casamento a alguém que não parti- a própria irmã significa não querer cunhados ••, responde o informador ara-
lha a verdadeira fé. Sutter [cf. Sutter e Tabah 1951) cita o caso de Orthez, pesh a Margaret Mead que o interroga sobre a possibilidade de uma união
uma aldeia protestante no interior de um país uniformemente católico, rigoro- com a irmã: «E então, com quem irei à caça? Com quem cultivarei a horta?
samente endogâmica desde a Reforma, de tal modo que a existência de um : Quem visitarei?•• [1935, trad. it. p. 109) .•• A exogamia ... afirma a existên-
gene causador de epilepsia, e que atingiu quase todas as farnflias, fez com que , cia social de outrem e só proíbe o casamento endogâmico para introduzir,
o termo 'epiléptico' passasse a ser, na região, sinónimo de protestante. e prescrever, o casamento com um oUtro grupo diferente da família bioló-
Em termos de hierarquia social, podemos encontrar duas situações radi- gica; e não decerto porque um perigo biológico esteja ligado ao casamento
calmente diferentes. Lévi-Strauss distingue a este respeito entre endogamia consanguíneo, mas sim porque de um casamento exogâmico resulta um bene-
I «verdadeira•• e endogamia «funcional••. A primeira «é tanto mais marcada fício social••[Lévi-Strauss 1947, trad. it. p. 616). Deste modo, não se podem
quanto a classe social que a pratica, ocupa um nível mais elevado: assim considerar exogamia e endogamia como duas instituições totalmente simé-
no antigo Peru, nas ilhas Havai, em certas tribos africanas•• [1947, trad. it. tricas: isto s6 é válido para a exogal1lia e a endogamia ••funcional••que lhe
p. 95). Contrariamente, trata-se de endogamia funcional sempre que! 11 rela- corresponde. Existe, evidentemente, uma distinção entre proibição do incesto
çAo está invertida, quando «a endogamia aparente diminui à medida que e regra exogâmica propriamente dita. Várias vezes se observou que as rela-
se eleva na hierarquia •• [ibid.). Ele cita o caso dos Kenyah e dos Kayan de ções incestuosas eram por vezes toleradas no interior da linhagem se se veri-
Boméu que estão divididos em três classes hierarquizadas e normalmente ficassem
. entre primos afastados, desde que fossem discretas e sem frutos '
endogâmicas: todavia, a classe superior deve praticar a exogamia de IIldeia. amda que, no entanto, o casamento lhes fosse vedado pelas normaS locais.
,<Comotambém na Nova Zelãndia e na Birmânia, a exogamia defme-se, pois, Mas é importante notar que o casamento obedece a finalidades que .não são
no topo da hierarquia social: ela é função da obrigação das famílias feudais apenas da ordem das gratificações sentimentais e sexuais. O que conta é
de manterem e alargarem as suas alianças. A endogamia das classes.ihferio- ~ue o casamento, enquanto fundador de laços entre grupos diferentes, enquanto
res é uma endogamia de indiferença e não de discriminação•• [ibid.)'. mstaurador de relações de ordem eltonómica, de ordem geneal6gica e de
Com esta distinção, proposta por Lévi-Strauss, entre endogamia verda- ordem social entre indivíduos e faIItilias, é proibido entre parceiros cujo
deira e endogamia funcional, tocamos um ponto muito importante. A.endo- incesto no interior do grupo é, no ~ntanto, tolerado.
gamia ,<verdadeira••tem uma formulação positiva em função dos dados cul- O modelo mais puro desta endog~mia funcional, reverso da regra exogâ-
turais: é a impossibilidade, que raia o impensável, sentida por todos, de mica e que é o único a pertencer verdadeiramente ao domínio do paren-
procurar um cônjuge fora de um conjunto cujos limites são definidos por tesco, é o casamento entre primos cnlzados. Em relação a Ego diferenciam-
caracteres concretos, variáveis segundo os grupos: aqui, o estrangeiro não- -se os prj!ll()s~germanos (primos em primeiro grau segundo o direito
-humano; ali, o bárbaro que não pratica a mesma religião; acolá, o excluído, canónico) em primos paralelos e prirhos cruzados. São paralelos os primos
cujo simples contacto sexual implica desonra para outrem e exclusão do nascidos de um conjunto de germanos (siblings) do mesmo sexo, ou seja,
grupo; além, o inferior para quem toda e qualquer aproximação llignifica os fIlhos de dois irmãos ou os filhos de duas irmãs; são cruzados entre si
rebaixamento; aqui, o habitante de uma região vizinha e cujos homens têm os primos nascidos respectivamente de um irmão e de uma irmã:
fama de ladrões e as mulheres de infiéis; ali, o órfão sem família chegada
§
+
que o sustente ... Encontram-se, como se vê, um certo número de tritérios

«princípio inerte de Cruzados


limitação•• [ibid., p. 99).
Á 166
6
+
Paralelos

f
Paralelos
Cruzados
Ego

\' examinados
Quanto àacima. A endoganlla verdadeira é apenas, para Lévi-Stral.tss, um
endogamia funcional, é o inverso da regra exogâmica. À proi- Á Á 6
biçãO do incesto não deve ser encarada como tendo um carácter pu,rámente
negativo. Para um homem, o facto de' se abster do acesso às mulheres que
lhe estão próximas pelo sangue tem como contrapartida, ao mesmo tempo,
a obrigação de cedê-Ias a outros homens e o direito de reivindicar para si ;";este tipo de casamento, a categori:t dos primos cruzados não é, propria-
o acesso às mulheres que os outros se proíbem. «A proibição equivale' a uma mente falando, uma categoria endo~ca: não são parentes que devem con-
obrigação, e a renúncia abre o caminho a uma reivindicação•• [ibid.J p. 98). trair aliança mas os primeiros no gr~nde conjunto dos consanguíneos (no
Portanto, ela equivale à instauração de um sistema de troca entre os gru- puro sentido geneal6gico do termo) 'que são cônjuges possíveis sendo os
pos, tomando possível li vida em sociedade, suprimindo o fechamento hos- , primos paralelos, por seu turno, assimilados aos irmãos e às ir~âS e, por
til dos grupos sanguíneos sobre si próprios e alargando, sob todos os pon- " essa mesma razão, impossibilitados dJ. casar entre si. Os primos cruzados são
tos de vista, as relações entre os grupos. Neste sentido, a proibição do incesto então considerados mais como aliados do que como consanguíneos. A ter-
funda a sociedade humana. ,<Como?Desposar a própria irmã?! ... Casar com minologia reforça a maior parte das vezes esta distinção entre primos parale-
los e cruzados, designando os primeiros pelos termos utilizados para desig-
ENDOGAMIAlEXOGAMIA 130 13l ENDOGAMIAIEXOGAMIA

nar os irmãos e as irmãs, e os segundos pelos termos de esposo e esposa; tauração das regras exogâmicas que impõem que se escolha o cônjuge fora do
de igual modo, o irmão da mãe, pai de uma esposa potencial para um campo do parentesco culturalmente definido por cada grupo humano. Pode
homem (o fllho da sua irmã), pode ser designado por este com o termo observar-se, todavia, que, em numerosos grupos humanos, os fllhos de dois
normalmente aplicado ao pai da esposa, mesmo na ausência de casamento irmãos e os de duas irmãs podem ser encarados, por razões que dizem respeito
entre os primos, sendo a irmã do pai inversamente designada po~ uma às representações que neles se ligam com a procriação, como sendo totalmente
mulher (a filha do seu irmão) como termo aplicado à mãe do mando. inseparáveis e permutáveis, a ponto de um ser igual ao outro. Entre o~ Samo
Vejamos, para melhor compreender o que se passa quando este mod~lo do Alto Volta, eles são considerados como sendo «li mesma coisa))(g '1';) 'um').
mais simples da endogamia funcional d acompanhado de uma troca restnta Entre os Bara de Madagáscar, descritos por Huntington [1978], a forma mais
entre grupos, quando a sociedade funciona com base numa organização dua- detest~da de incesto e de união totalmente impossível não diz respeito unica-
lista isto é com um sistema de metaClj:stal que é impossível escolher côn- mente aos irmãos e irmãs e outros consanguíneos de nível primário (mãe/filho;
juge' dentrd da metade a que se pertenfe e, inversamente, obrigat6rio ~sc~- pai/fllha), mas também aos ftlhos das irmãs, primos paralelos matrilineares
lher o cQnjuge na outra metade. Tom,~os o caso em que a regra de fihaçao durante várias gerações (ou seja, não apenas os primos germanos, nascidos de
é patrilinear (pertence-se de nascença ,ao grupo do pai) e a regra de resi- duas irmãs, mas também os nascidos de dois primos germanos paralelos matri-
dência é patriviril~cal (os novos casais esta.bel:cem a sua residência perto lineares, etc.), porque eles nasceram da mesma matriz e formam uma s6 carne.
ou em ca,sa do pai do esposo). Irmãos e irmas que pertencem à mesma O casamento entre primos paralelos patrilineares, concebido como absurdo,
metade (A) escolhem, pois, os seus côpjuges respectivos na mesma metade é possível, no entanto, em casos extremos, desde que um ritual especial seja
(B), donde, pelas leis de filiação patrilinear e de residência virilocal, os fllhos efectuado a fun de fazer desaparecer o parentesco. Em contrapartida, o casa-
de dois irmãos ou os fllhos de duas irmãs (isto é, os primos paralelos) per-
mento entre primos cruzados é o casamento preferencial, na ausência de qual-
tencem à mesma metade e não podem, portanto, casar entre si, enquanto quer organização dualista.
os fllho~de um irmão e de uma irmã (os primos cruzados) pertencem a Até aqui considerámos as noções de endogamia e de exogamia numa pers-
metades diferentes e se tomam por essa razão cônjuges possíveis. Na estra-
pectiva estritamente antropol6gica. Todavia, é necessário considerar a defi-
tégia da aliança eles são até os primeiros cônjuges possíveis, os cônjuges nição destes termos numa perspectiva genética. Recordaremos rapidamente,
preferidos. Observe-se que com uma troca de irmãs (que é a primeira forma retomando a expressão de Schreider, que o «horror instintivo ao incesto tem
de troca restrita: dois conjuntos formados por um irmão e por uma irmã
tão pouco fundamento como o horror ao vazio)) [1978, p. 548]. Efectiva-
casam entre si para formar dois casais) os casamentos preferenciais subse-
mente, os genetistasdevem efectuar laboriosos cálculos para determinar os
efeitos negativos ou positivos dos casamentos consanguíneos e dos casamentos
não-consanguíneos: as vantagens da hibridação não são mais evidentes que
as desvantagens imputadas às uniões consanguíneas. Donde se conclui que
não é a observação repetida, feita pelas populações primitivas, dos efeitos
desastrosos das uniões consanguíneas que pôde ter dado lugar à proibição
quentes entre primos cruzados efectuam-se entre primos duplamente cruza- do incesto nem à regra da exogamia.
dos ou primos cruzados bilaterais: a filha do irmão da mãe, com quem um
De um ponto de vista genético, o que conta seria mais o número de fllhos,
homem casa, é ao mesmo tempo a filha da irmã do pai.
portadores de diversas configurações genéticas, gerados pelos casais, do que

r6
.\1- i r1
à metade B
Indivíduos
que Indivíduos T
pertenoem
à metade A
pertencem
lB
a identidade dos cônjuges (o facto de casar com uma irmã, uma prima ou uma
estrangeira tem pouca incidência genética). Se, segundo Sutter [cf. Sutter e
Tabah 1951], 25 por cento dos pais dão 50 por cento dos fllhos na primeira
geração (tendo, portanto, os 75 por cento de restantes pais gerado os 60 por
cento dos restantes ftlhos nascidos, segundo esta hip6tese), na terceira geração
73 por cento da população provêm do quarto inicial, e na quarta geração este
número passa a 89 por cento. Este facto sublinha a importância da fecundi-
dade diferencial, que faz com que um mesmo carácter genético possa estender-se
a toda uma população mesmo sem casamentos consanguíneos.
Partindo da hip6tese genética da panmixia (população fechada às trocas
migrat6rias, com casamentos efectuados ao acaso sem qualquer proibição,
Haveria muito a dizer sobre as razões de ordem simb6lica que, em minha e sendo suposto que o comportamento da fecundidade seja idêntico para
opinião, explicam a distinção entre primos paralelos e primos cruzados, fun- todos os grupos), corrigindo-a para o homem através de cinco variáveis que
dando e reforçando assim o papel social da proibição do incesto e da ins- têm em conta a fecundidade diferencial de que acabámos de falar, a proba-
133 ENDOGAMIAIEXOGAMIA

ENDOGAMIAIEXOGAMIA 132
defInidos» [1958, p;-497]. E é no interior destes conjuntos de populações
bilidade de uniões consanguíneas, o problema da selecção por atracção, as parciais que funcionam as regras antropol6gicas defInidas pela análise do
mutações, a quantidade e os limites da população, os genetistas consegui- parentesco.
ram, segundo Dahlberg [1948], chegar à noção de 'isolado' isto é a zona Passemos agora ao segundo aspecto da relatividade dos conceitos de endo-
de «lnterC'lsamento»no
. interior da qual um indivíduo qualquer' pode, encon- gamia/exogamia a que se aludiu no início deste texto. Para tal, tomemos
trar um cônjuge. O cálculo é efectuado segundo a frequência dos casamen- alguns exemplos. O primeiro refere-se aos sistemas crow-omaha, defInidos
tos entre primos germanos (nas populações ocidentais, de tipo cognático/indi- por uma regra de flliação unilateral e por proibições matrimoniais que inci-
ferenciado). A hip6tese de Dahlberg para medir o isolado neste tipo de dem sobre grupos (linhagens ou clãli), mais ou menos numerosos. consoante
casamento é a de que, quando a escolha do cônjuge é limitada pelo fraco as.populaçõ~s que praticam este tip~ de sistema de parentesco e de aliança.
número de indivíduos casáveis, se deve esperar uma certa proporção de casa- Dissemos aCImaque o resultado aparente deste tipo de sistema era ufua repar-
mentos entre primos, desde que este tipo de união seja realizado por açaso. tição altamente probabilística da escôlha do cônjuge, reenviada o ntais longe
Sutter [1958] preferiu efectuar este cálculo sobre os casamentos entre pri. possível, da qual emergia um modelo estatístico, do género do que se julga
entrever para os sistemas complexOll,e não um modelo de tipo mecânico,
mos nascidos de germanos, partindo do princípio que eles têm mais hi~6te-
como nas estruturas elementares. Um sistema crow-omaha, proPliiamente,
ses d~ ser efect~ados ao acaso do que o casamento entre primos germanos deveria ser exogâmico, em termos de grupos de parentesco, todavia quando
proprIamente ditos, e tendo em conta a dimensão média da família. Se o
as unidades residenciais (a aldeia) sAode pequenas dimensões, comportam
nú.mero médio de fll.hos ~ dois, um indivíduo tem dois tios ou tias, q\1atro poucos grupos de parentesco diferqnciado, exogâmico, em termos de resi-
prImOSgermanos, seis prImOSde grau desigual e oito nascidos de gerrltanos.
dência. É esta aliás a sua defIniçãOIgeralmente aceite.
~e o número médio. é de sete fllhos por casal, estes números passam respec- Ora, de um trabalho que realiz~i minuCiosamente junto doS Samo do
tIvamente a doze, OItenta e quatro, trezentos e quarenta e seis e quinhentos
e oitenta e oito, dos quais metade deve ser eliminada (do mesmo sexo) bem Alto Volta (patrilineares como no sistema omaha), a partir de genealogias
como uma outra parte (devido à excessiva diferença de idades). ' elaboradas em três aldeias que constituem praticamente um isolado - defi-
As variações da dimensão do isolado em França vão de 520 (Pl1y-de- nido como aquele conjunto de pop\1lação de fronteiras incertas 116 interior
-Dôme) a 4580 (Allier). Mas o que é importante notar é que as regiões que das quais se circunscreve a escolha 'do cônjuge -, genealogias tratadas por
computador em função de hipóteses de pesquisa particulares, conclui-se -
possuem um grande ~entro urbano apresentam isolados relativamente p~que-
nos: é o caso da região do Sena (com Paris) com isolados de um tamanho o que à primeira vista pode ser cb~siderado como um escândalo para o
médio de 930 indivíduos, do·R6dano (com Lião) com isolados de um tama- espírito - que não s6 existe uma fbrtíssima endogamia de aldeia '(no inte-
nho médio de 740 indivíduos, etc. No departamento do Sena, a frequência rior do isolado ~ormado pelas três ltldeias), que vai de 60 a 80 pj>r cento,
dos casamentos consanguíneos é maior do que nos departamentos rurais' vizi.
nhos, e esta frequência é tanto mais considerável quanto as família$ ~êm ,I como também
da troca sistemas
restrita), de trocas
retomados vegulares
num sistema de entre duas linhagens
troca generalizada (dolinha-
entre tipo
inversamente, tendência para ser mais pequenas. Damos conta de que est; i gens. Encontra-se também, em prdporções que não podem ser devidas ao
género de cálculo contradiz as ideias geralmente aceites sobre a abertura acaso, um grande número de uniõc;s consanguíneas em cada qu~tro gera-
máxima da. escolha do cônjuge com exogamia consanguínea nas regiõeSlIIrba- ções (isto é.' entre primos nascidos( de fllhos de germanos). Encontramos,
nas cOm sistema de parentesco cognático/indiferenciado. I portanto, SImultaneamente, uma espécie de modelo mecânico que emerge
Deste tipo de cálculo passa-se, com Livi [1949], ao cálculo do etectivo das estruturas elementares, uma endogamia no parentesco consanguíneo rela-
tivamente afastado e uma endogantia de aldeia. .:
necessário e suficiente para assegurar a manutenção biol6gica. O fi?ínimo
I

viável pare~e si.tuar-se à volta das 500 pessoas. Entre 300 e 500 produz-se O .primeiro pon~o.(modelo mec~nico de troca) é tornado pqsllível pela
combInação das prOIbições - algumas das quais se anulam em vez de terem
um. desequilíbno que pode levar quer à estabilidade do grupo quer' à sua
extlnçllo. Mas este cálculo implica a monogamia e um total fechamento ao um efeito cumulativo - da poligamia'e de um aspecto desconhecidb do pro-
exterior; grupos humanos inferiores em quantidade podem sobreviver r~or- ble~a da simetria entre homens e dtulheres. De facto, entendeu·se sempre,
rendo à poligamia, a uniões muito diversas do ponto de vista das i~ades na lIteratura antropol6gica, que as regras de proibição se aplicavam igual-
\ à promiscuidade (ritual ou não, em determinados períodos) a escolhas d; mente aos dois sexos. Lévi-Strauss escreve [1947, trad. it. p.' 30] que
consanguinidade pr6xima. ' «a maneira mais c6moda de defInir 'um sistema crow-omaha é aquela que
Segundo Wright [1946], as populações apresentam uma distribuição con- diz que, sempre que se escolhe umal linha para obter dela um cônjuge, todos
os seus membros se encontram automaticamente excluídos do número dos
~nua nu~ grande ~s~aç~, e ?s .casamentos s6 são possíveis em imediações cônjuges disponíveis para a linha de referência, e isto ao longo de várias
clrcunscntas por distanCias lImitadas, de maneira que os indivíduos mais
distanciados uns dos outros não têm praticamente nenhuma hip6tese de se gerações». Ele faz notar ainda que (<li regra é válida para os dois sexbs» [ibid.,
casarem entre eles. p. 29]. É verdade que os relat6rios dos etn6grafos, que neste aspecto se-
Conclui-se, com Sutter, que «a população de uma nação está dividida guem o critério sempre androcêntrico utilizado pelos pr6prios informadores,
em populações parciais, em permanente transformação, e com contornos mal
ENDOGAMIAIEXOGAMIA 134 135 ENDOGAMiAlEXOGAMllA

permitem esta conclusão. Mas o que se verifica na realidade é que, se existe tence apenas à linhagem da mãe do pai do pai da sua: mulher, que não está
realmente uma simetria entre homens e mulheres, esta não funciona senão proibida.
num sentido muito especial: se dois irmãos não podem escolher uma esposa Assim, estes regimes omaha seriam realmente exogâmicos no sentido em
na mesma linhagem, isto implica ipso facto que duas irmãs não podem esco- que regras de proibição interditam a escolha de um cônjuge num certo mimero
lher um marido na mesma linhagem; se um pai e um filho não podem casar de grupos, mas a estratégia pr6pria à aliança, que implica o jogo sobre as
dentro da mesma linhagem, isto tem como consequência que a irmã de um regras, a poliginia e a simetria diferencial entre conjuntos unissexuados e con-
homem e a filha deste homem não podelTIcasar dentro da mesma linhagem. juntos bissexuados de consanguíneos acarretam de facto a endogamia local,
Esta simetria entre irmãos, que implica por outro lado uma simetria entre com um sistema de trocas regulares entre linhagens; do mesmo modo,
irmãs, não implica logicamente uma sim~tria de proibição de aliança no inte- o retorno imediato da escolha do cônjuge entre os consanguíneos (com inci-
rior de um mesmo grupo de filiação entre um irmão e a sua irmã. Do mesmo dência nos mais pr6ximos daqueles que são permitidos), uma vez que dei-
modo, a simetria entre o pai e o fIlho, que comporta por outro lado uma sime- xem de funcionar as regras de proibição de linhagem, acarreta uma endoga-

I
tria entre irmã do pai e ftlha do irmão, hão implica logicamente uma simetria mia c:onsanguínea. A única diferença com os sistemas elementares é que esta
das proibições de aliança, no interior d'o'mesmo grupo de filiação, entre um endoglUDiapreferencial se efectua com primos afastados e não com primos

o
i1 0-'1=
pai e a S4a filha, entre uma tia paterna e o filho do seu irmão.

A
b
B
B
B
chegaqos, estando estes, no intervalo de três gerações, reservados a outrem,
no jogp da aliança restrita entre linhagens que permitam a endogamia local.
Vemos, deste modo, dilufrem-se as noções de endogamia e de exogamia.
~ A pr6pria noção de linhagem resiste dificilmente à análise, enquanto uni-
~ ~ CAI A I dade totalmente pertinente ao nível da aliança. Permanece pertinente a mui-
tos outros níveis: político, econ6mico, residencial, ritual, e até também como
princípio de ordem e de simplificação, dado que a regra de ftliação unili-
near opera entre todos os consanguíneos cognáticos separações que têm por
objectivo ordenar e hierarquizar estes consanguíneos em relação a Ego. Toda-
via, no plano da aliança e da exogamia de grupo (linhagem ou clã), implí-
Assim, um homem A, em regime poligâmico, que recebeu uma mulher cita no sistema das proibições crow-omaha, ela deixa de o ser na medida
de um grupo B e uma mulher de um grupo C (não podendo estas duas em que na prática são proibidos (e, aqui, estamos a referir-nos não apenas
mulheres ser aparentadas), pode «restituir» ao grupo B, na geração seguinte,
a filha que ele tiver tido da sua esposa C (ou uma filha de um dos seus ) ao caso dos Samo
recentemente mas também
estudados, a outros
tais como sistemas
os Mossi, africanos
os Baulé, de tipo omaha
os Minianka, etc.)
irmãos cujas esposas não podem ser nem B nem C), sem infringir qualquer não s6 os primos que pertencem por ftliação patrilinear às linhagens proibi-
proibição. .
Nota-se igualmente, como se disse, uma frequência particularmente ele- se unem a estas mesmas linhagens por intermédio de mulheres, sem lhes
vada do casamento entre consanguíneolj na quarta geração. Com efeito, as
regras de proibição incidem nas linhagens de Ego, de sua mãe, da mãe ( li
\
pertencerem. Deste modo, Ego masculino não pode casar com FMBdd:
das (F, M, FM, MM), mas também todos os consanguíneos cognáticos que
do pai e da mãe da mãe: não sobre outras. Encontrar-se-ão, pois, uniões
preferenciais do tipo representado,. em que Ego masculino casa com uma
bisneta da irmã do seu .bisavô (FFFSssd). A esposa em questão não per-
\\\
tence, dada a regra de filiação, à linhagem de Ego; Ego, o marido, per-
-~
T I/ T
Ego FAlBdd

I'! do pai
ora estadepertence
Ego; inversamente, paralinhagem
apenas a uma esta esposa impossível,
aliada ( ) da Ego pertence
linhagem da ape-
mãe
nas a uma linhagem aliada da de sua mãe. De certo modo, podemos dizer
que estes sistemas que falam em termos de grupos agem como se tivessem
em consideração não s6 os grupos, mas também os graus geneal6gicos de
Ego PFFSssd parentesco, como fazem os sistemas cognáticos/indiferenciados.
ENlJUljilMJillJiXOGAMIA 136 137 ENDOGAMIAIEXOGAMIA

Tomemos um segundo exemplo numa sociedade de tipo cognático/indife- da importância do sexo': ••faz-se» um herdeiro em cada oustal - rapaz ou
renciado, como é a nossa. No século XI, um Padre da Igreja, Pier DanUa:ni, rapariga -, escolhendo o mais capaz de gerir os bens. É encargo dos pais
escreveu um texto para lutar contra uma heresia nascente, que consistia em ou do herdeiro dotar os irmãos e irmãs excluídos do patrim6nio. O que
interpretar em termos novos a regra can6nica que regulamentava a aliança importa é que dois herdeiros não se casem entre si (deste modo chegar-se-
na época: a proibição incidia então sobre todos os consanguíneos cognáti- -ia rapidamente a concentrações de riqueza incompatíveis com a vida social):
cos, isto é, unidos entre si por intermédio indiferentemente de homens e um herdeiro (masculino ou feminino) casa com uma filha (ou um fllho) mais
de mulheres, até à sétima geração a partir de um antepassado comum. nova que lhe traz um dote. Por outro lado, a análise das uniões cbnsanguí-
A heresia consistia em interpretar este número não em termos de gerações, neas realizadas com autorização eclesiástica mostra que as alianças no exte-
mas em termos de graus contados nas duas linhas de procriação: quatro de rior não correspondem a uma necessidade, mas a uma escolha: l:le facto,
um lado e três de outro. Do nosso ponto de vista é importante observar nenhum casamento consanguíneo se produz no interior de uma linhagem
duas coisas: 1) esta exogamia consanguínea absoluta fora da parentela devia patrimoIlial (linhagem fundada na transmissão do patrim6nio). Em contra-
duplicar-se através de alianças preferenciais entre consanguíneos na oitava partida, os casamentos consanguíneos praticam-se entre filhos mais novos
excluídos do patrim6nio e com dotes insuficientes para poderem casar com
um herdeiro; geralmente, a autoriZaçãO é-lhes concedida ••por motivo de
pobreza». Os herdeiros das linhagens patrimoniais não transgridem as proi-
bições can6nicas, porque a l6gica do sistema matrimonial prat~cado em
,i

Gévaudan assenta numa circulação i'de bens entre linhagens: a eildogamia


patrimonial impede que esta circulltção se faça. Os fllhos mais novos têm
um comportamento muito mais endogâmico, territorialmente falatldo, mas
também em termos de consanguinid~de, do que os herdeiros par~ quem o
raio da aliança é o cantão e não a aldeia. No entanto, observa Lamaison,
quando se estabeleceram laços matrimoniais durante várias gerações, entre
os diferentes grandes oustal, as famílias preferiram efectivamente atiar-se no
geração. Pier Damiani escreve: «Quando a família fundada no parentesco' exterior durante uma ou duas gerações antes de renovarem em seguida as
desaparece, ao mesmo tempo que as palavras para designar este, a ~ei do
alianças no interior do seu antigo cIrculo. Em suma, a partir do momento
casamento surge imediatamente e restabelece os direitos do antigo amol' entre em que as considerações geneal6gicas ligadas às proibições can6niças inter-
vêm simultaneamente com tudo aquilo que diz respeito ao património,
aqueles de que se tinha apoderado, o casamento lança imediatamente li sua o número de oustals imediatamente vizinhos, com os quais um proposant (um
) garra
os homens novos. .. Lá,
para reconduzir pois,
aquele queonde falta a[De
se afasta» mão do parentesco,
parentelae gradibus, que reunia
in Migne, herdeiro) se pode unir, diminui consideravelmente e incita à expgamia.
Patrologia latina, CXLV,col. 182]. Existia portanto aí também uma endo- Vemos, pois, praticar-se aqui urná estratégia da aliança que tem por objec-
gamia consanguínea diferida. 2) Se bem que não tenhamos os meiollpara
tivo uma exogamia local concebida fm termos de patrim6nio, mas para os
verificar esta hipótese (na ausência de estado civil), e tendo em conta a acen-
indivíduos portadores desse patrim611Íounicamente, e que as proi~ições não
tuação patrilinear/patrilocal da nossa sociedade, é quase certo que eram lem- fazem senão favorecer. Como é que se podem definir neste caSOjao nível
bradas mais facilmente as relações de consanguinidade que diziam ~obre- dos grupos familiares e não apenas dos indivíduos, os termos de ehdogamia
tudo respeito aos homens do que as que diziam respeito às mulheres., Por e exogamia, no entanto liberalmente utilizados? ';
outras palavras, pode presumir-se, de maneira correlativa e inversa do que Um exemplo, em certa medida oposto, é o das sociedades lawnares da
dissemos relativamente aos sistemas crow-omaha, que no caso em que a rilia- baixa Costa do Marfim, em particul~r. a sociedade aladiana [Augé 1,969], em
ção é indiferenciada, as falhas da memória humana deveriam fazersllrgir que a endogamia de linhagem, mais ek(lctamentea pseudo-endogamia de linha-
linhas privilegiadas de flliaçllo, de tal m~neira que esta exogamia, calçulada gem, é um luxo reservado aos ricos e aos fortes, isto é, aos representantes
em termos de graus, devia ter tendência para se confundir com uma exoga- eminentes das linhagens mais podellosas. Neste caso, a estratégia social vai
mia de grupos baseados em residências ou em patrim6nios comuns .. ao ponto de metaforizar o jogo das' alianças consanguíneas. Normalmente,
A noção de patrim6nio torna-se central no estudo que Lamaison t llJ77] existe um sistema de troca generalizaqo (casamento com a prima cruzada matri-
dirigiu sobre a aliança no Gévaudan do século XVII. Naquela época, as lateral) que, com acomodações e vuiantes, parece satisfazer no conjunto a
proibições iam até aos primos nascidos de germanos incluídos. Mos~,a ele troca entre linhagens nó âmbito de uma forte endogamia aldeã. Mas a inten-
que o importante é manter a integridade do patrim6nio, dos bens, db ous- sificação do comércio com os Europeus no século XIX, essencialmehte o trá-
tal, e até aumentar a riqueza (aliás, muito relativa) com os dotes trnúdos fico de 61eode palma - que implicava a mobilizaçãode uma considerável quan-
pelos cônjuges. Neste aspecto, este imperativo leva a uma negação parcial tidade de mão-de-obra -, criou problemas específicos aos chefes das gran-
ENDOGAMIAIEXOGAMIA 138 139 ENDOGAMIAIEXOGAMIA

des linhagens de comerciantes, sobretudo por causa do sistema de flliação Lévi-Strauss, C.


e de residência. De facto, os Aladianos eram matrilineares e patrivirilocais: 1947 Les slructures élémenlaires de la parenlé, Presses Universitaires de France, Paris (trad.
it. Feltrinelli, MiJano 19722).
se a herança ou a sucessão se fazia em linha uterina, a força de trabalho Livi, L.
era constituída pelos fIlhos dos homens da matrilinhagem residentes na corte 1949 ConsidéralÍons IhéoT'Ú/UeSel pratiques sur le concepl de .minimum de population., in .Popu-
do seu pai e encarregados até uma idade tardia de uma quantidade de tare- lation., IV, pp. 754-56.
fas cujo produto, quando se transformava em tesouro herdável (produto do Mead, M.
tráfico no século XIX, mais tarde, produto das plantações), não lhes era a 1935 Sex and Temperament in Three Primitive Socielies. Coming of Age in Samaa, Morrow,
New York (trad. it. 11 Saggiatore, MiJano 1967).
maior parte das vezes destinado, uma vez que era transmitido pela linha Schreider, E.
uterina. As tensões nascidas deste deseq'tilíbrio (porque nem todas as linha- 1978 Les uníons consanguines: mythes, réalilés, labous, in .La Recherche., IX, 90, pp. 544-51.
gens tinham o mesmo peso) parecem eSt~r na base da prática de uniões com Sutter, J.
mulheres çativas ou com mulheres estr~ngeiras nascidas de etnias patrili- 1958 Evolulion de Ia dislance séparant le domicile des fUlurs époux, in .Population., XIII,
pp. 227-52.
neares, o que permitiu aos representantelldas linhagens de comerciantes cons- Sutter, J., e Tabah, L.
tituir pod~rosas unidades integradas oJiqe pareciam reconciliar-se, não sem 1951 Les nolíons d'isolat el de populalWn minimum, in .Population., VI, pp. 481-98.
criar profl.lndas discriminações internas; ÍI. regra de fIliação e a regra de resi- Titiev,M.
dência. Casar com uma cativa é, de faQto, para um aladiano (a quem ela 1943 The influence of common residence on the unilateral classification of kindred, in «Ameri-
cao Anthropologist>, XLV, IV, pp. 511-30.
chama «p~i»), casar com uma mulher sem linhagem, o equivalente de uma Wright, S.
irmã, pelo facto de ela pertencer de direito à linhagem do seu comprador: 1946 Isolation by dislance under diverse syslems of maling, in «Genetics., XXXI, pp. 39-59.
os fllhos rtascidos desta união são simultaneamente, pelas obrigações que
lhes são impostas, «filhos» e «sobrinhos uterinos». A este propósito muitas
combinaçõc::seram possíveis: dádiva de prisioneiras a diversos dependentes, o .Em quase todas as sociedades humanas o casamenlo, acto fundamental na base da formação
uniões com descendentes de prisioneiras, uniões entre cativos ou entre des- e da estrutura elementar dos grupos sociais (cf. família), tem estado sempre associado a regras
cendentes de cativos e até uniões entre mulheres livres da linhagem e homens (cf. c6digo), entre as quais a mais divulgada e importante é certamente a proibição do inceslo.
cativos ... A .troca das mulheres que se instaurou entre os grupos para facilitar o casamento constitui
indubitavclmente um dos momentos mais relevantes na formação da sociedatk (cf. mulher, homem,
A exigência de constituir um grupq numeroso e autónomo encontrou
homem/mulher). A tendência para a exogamia que é aquela que geralmente prevalece não se
assim uma resposta numa particular política de fortalecimento da linhagem, efectua todavia num sentido estritamente biológico. Antes de mais, o cálculo das possíveis com-
que podemos considerar como o cúmulo da estratégia em matéria de endo- binaçOCs permitidas no interior do grupo (cf. comunidade) sofre variaçOCs segundo o sistema
gamia: se tomarmos como referência a noção de linhagem, podemos deste de parentesco vigente (cf. puro/impuro, sexualidade, 10lem, amar); com efeito, esse não surge de
modo algum regulamentado de uma vez por todas com leis e normas rígidas (cf. direito, lei,
modo opor a um primeiro pólo - o da consanguinidade verdadeira e da
norma, costume). Mas, sobretudo, as regras matrimoniais, longe de serem uma análise dos laços
endogamia perfeita que, como no caso da sociedade árabe (onde o casamento entre gerações, estão muito particularmente sujeitas ao modo de constituição do grupo conside.
preferido se faz com a fllha do irmão do pai, prima paralela patrilateral), rado (cf. casla, classes, iniciaçào, exclusào/integraçào, educaçào, discriminaçào, etnocentrismos), aos
parecem indicar o desaparecimento da noção de linhagem - o pólo da falsa seus valores (cf. cultura/culluras, religido, vida/mane, cosmologias), aos seus mitos e temores (cf.
milo/rilo, angústia/culpa, pecado, ética, caslraçào e complexo), ao seu modo de estabelecer rela-
consanguinidade que preside à constituição de linhagens fortes entendidas
ções com outros grupos (cf. conflito, guerra, festa, migraçào), quer no campo político quer no
como grupos plenamente orgânicos do ponto de vista social, económico e campo religioso e económico (cf. economia, comércio, troca, reciprocidadelredislribuiçào).
político. [F. H.].

Augé M.
1969 Le rivage al/adian, organisalion et évolulWn des vil/ages al/adians, ORSTOM, Paris.
Dahlberg, G.
1948 MathemalÍcal Melhods for Populalion Genetics, Karger, Basel- Interscience, New York.
Huntington, R.
1978 in .Bijdragen tot de Taal - Land • en Volken-
Bara endogamy and incesl prohibilion,
kund., CXXXIV, fosco I, pp. 30-62.
Lamaison, P.
1977 Parenté, palrimoine el slratégies malrimoniales sur ordinaleur. Une paroisse du Haut-
-Gévaudan du XVir au début du XiX' sitcle, Université René Descartes, Sorbonne,
Paris (tese de doutoramento).
141 CASAMENTO

(no C6digo Francês) uma deftnição universalmente aceitável. Esta diftculdade


de ordem intelectual é a mesma com que se confronta a antropologia, em que
a deftnição da instituição social que é o casamento conduz geralmente a expli-
cações de funcionalidade e de ftnalidade, sobre a sua razão de ser, sobre o que
«faz»,cuja principal característica é a tautologia. Como escreve excelentemente
CASAMENTO : Riviere [1971], se a função do casamento é legitimar a descendência, a legiti-
midade da descendência depende, pois, do casamento. Uma coisa não existe
, sem a outra, donde um raciocínio puramente circular.
A deftnição mais conhecida de casamento é, de facto, a da sexta edição
de Notes and Queries in Anthropology (1951), manual básico dos etn610gos
de campo que declara: «O casamento é uma união entre um homem e uma
Começaremos por uma constatação que poderá surpreender o leitor: no mulher realizada de tal modo que os fllhos que a mulher dá à luz são reco-
Código Civil Francês de 1905 não existe uma deftnição jurídica dd casa- nhecidos como sendo os ftlhos legítimos dos dois cônjuges». Independente-
mento, mas apenas uma lista das condições fortnais da sua existência e da mente da crítica fundamental acima expressa, esta deftnição não resiste à
sua vitalidade: análise de um certo número de ractos etnográftcos. Como demonstrou
I) implica a existência em comum dos cônjuges que deve durar normal- Edmund Leach [1951], se nos cingirmos a esta deftnição, não poderemos
mente toda a vida, com união física sexual (se bem que as relações sexuais considerar como casamentos - e isso em oposição ao sentimento e à con-
no casamento s6 sejam, de facto, previstas na lei negativamente: recusá-Ias vicção dos seus actores - as uniões contraídas sob o regime chamado da
torna legítimo o pedido de div6rcio de um dos cônjuges; o adultério é proi- L«poliandria adélftca», ou seja, aquelas em que uma mulher é a esposa de
bido); um grupo de irmãos, ou a esposa de um homem e dos seus fllhos nascidos
2) não pode ocorrer senão entre pessoas de sexo diferente, que tertham de outra esposa. É verdade que, nll maior parte dos casos conhecidos, os
atingido uma idade mínima de capacidade física; produtos das diferentes uniões são considerados como sendo fllhos do mais
3) deve obedecer a um certo número de interditos: o Código faz o irlven- velho, ou seja, daquele que contraIu a aliança em primeiro lugar. Mas a
tário das situações de consanguinidade e de aliança em que a união entre relação dos irmãos mais novos com esta mulher do irmão mais \'elho não
os indivíduos é considerada como incestuosa e, portanto, proibida ou ,uto- é um simples desregramento moral, htna simples tolerância. Por vezes, como
rizada com certas condições (deste modo, poder-se-á conceder uma adtori- no Tibete, existem tantos rituais dei casamento, a intervalos mais ,ou menos
zação de casamento entre sogro e nora quando o casamento que criava a regulares, quantos os irmãos que possam beneftciar das prestações sexuais
aliança tiver sido dissolvido por morte do esposo, mas não quando foi dis- e de outros serviços da esposa comu1D,e s6 beneftciam deles depOis da exe-
solvido por div6rcio); cução do ritual; cada um deles goza; I>orsua vez, sozinho, a esposa comum
4) deve obedecer a concepções culturais específicas: assim, ninguém Pode durante períodos determinados, durante os quais os outros irmãos se ausen-
casar se já tiver contraído matrim6nio e se essa união não tiver sidodissol- tam,' se bem que as crianças, consideradas, no entanto, fllhas comuns do
I
vida por morte ou por divórcio; a monogamia é, de facto, a única fOrma grupo de irmãos, tenham um único pai legal, o mais velho do grupo.
reconhecida de casamento na sociedade francesa (e mais geralmente nas ~ocie-
A união
tência com os
mútua, irmãos mais
privilégio novos,
sexual, ~ue implica
controlo cooperação
em comum econó~ca,
da educação assis-
dos fllhos,
dades de direito ocidental);
união que é reconhecida válida peloi'conjunto da sociedade, deve ser ou não
5) o casamento é considerado não existente se faltar o consentimento
considerada um casamento? Se admitirmos que se trata realmente de um
expresso publicamente pelos cônjuges 1]0 momento da cerim6nia dd ~asa- casamento, então a definição de NtJtes and Queries é insuftciente.
mento (o desaparecimento posterior do consentimento não dá direito ao
Ela também não se ajusta ao cas<ldos Nuer [Evans-Pritchard 1951], entre
div6rcio, no C6digo de 1804);
os quais, como já vimos (cf. os artigos «Família» e «Incesto»), uma mulher
6) por último, este consentimento deve ser recebido por um rePresen- estéril, que dispõe de riquezas em glÍdo, pode desposar, a título de I<marido»,
tante oftcial do Estado e inscrito nos registos de estado civil. outras mulheres que a servem e a ,honram, e que lhe dão, através de um
Deste modo, sabemos o que torna existente o casamento, mas não sabe- genitor-servidor interposto, fllhos de:que ela é o pai reconhecido, e que rece-
mos o que ele seja. Esta ausência de deftnição não é visivelmente uma dmis- bem dela, como pai, a sua legitimidade, o seu estatuto social e o seu direito
são involuntária. O legislador confrontou-se, sem dúvida alguma, tom a à herança na linhagem patrilinear.,
grande dificuldade de analisar objectivamente a instituiçllo do casamcnto c A definição de Notes afld Querie~não se ajusta também ao célebre caso
de lhe dar uma definição geral, embora nem sequer se procurasse dar aqui dos Nayar matrilineares (Gough), dnde cada mulher tem um marido esco-
lhido numa linhagem regularmenté associada à sua para fornecer parcei-
CASAMENTO 142 143 CASAMENTO

ros matrimoniais, mas não vive com ele; pode ter quantos amantes quiser, zas aos seus ftlhos e não aos sobrinhos (ftlhos dos irmãos do marido); os
que as crianças que nascerem pertencem unicamente ao grupo matrilinear grupos de primos teriam assim interesses económicos diferentes; existiriam
da mãe. No entanto, Gough afirma, pelo menos no seu mais recente artigo grandes hipóteses de que o património fundiário não ficasse intacto a longo
sobre o problema [1959], em que rebate as críticas de Leach, que a noção prazo. Mas ao partilharem uma esposa comum, dona da casa, os únicos her-
de paternidade não está ausente e que o casamento ritual tem por objectivo deiros dos irmãos como das suas esposas são os ftlhos nascidos desta esposa
fundamentar a legitimidade das criança~. comuIll. A poliandria deste tipo tem como resultado manter agrupada a pro-
O exemplo nayar ensina-nos que, mesmo onde a instituição parece ausente priedade, reforçar a solidariedade dos grupos de co-irmãos e até, ao que
(não existência de residência comum por parte dos cônjuges, de privilégio parece, reduzir a zero o ciúme sexual. As narrativas etnográficas mostram,
sexual, de cooperação económica, de cpoperação do casal na educação dos a queIll quer entendê-Ias, os resultados altamente morais de tais uniões.
filhos, e tratando-se de famflias matriaentradas, etc.), ela está no entanto Mali este exemplo demonstra-nos também outra coisa. Por que razão ape-
presente sob um aspecto que desconhecllmos na nossa cultura: o estabeleci- nas a IJC0pósitoda poliandria se põe o problema de saber se a palavra 'casa-
mento de laços de aliança duradouros, regulares, renovados e instaurados mento' continua a ser adequada, quando se trata de defmir as outras uniões
entre linhagens, entre grupos sociais. Os ,casamentos entre homens e mulhe- da esposa comum? A mesma questão não se põe quando se trata de poliga-
res perten!=entes,cada um pelo seu lado, 1I0Sgrupos em condições de aliança mia, entre irmãs ou não (o facto de um homem se casar com diversas mulhe-
matrimonial são de facto os suportes f~ctuais desta aliança, mas isso não res simultaneamente, e em particular com irmãs). A definição de Notes and
implica na9a daquilo que costumamos englobar na noção de casamento. Queries aplica-se perfeitamente a este caso: é exactamente da união de um
O exemplo nayar mostra também que a aliança entre grupos passa necessa- homem e de uma mulher que se trata - nunca nesta definição se fala da
riamente por uma união legal entre indivíduos de um e de outro sexo. Pode- união exclusiva e, portanto, de monogamia -, de tal modo que os filhos
ria ela ter. outras expressões? que a mulher tem são reconhecidos como ftlhos legítimos dos dois cônju-
Como faz notar Riviere, a única característica universal do casamento ges. Se o problema se põe no caso da poliandria é porque, a menos que
é a de que as unidades que o compõem são homens e mulheres. A catego- sejam organizadas sucessões suficientemente espaçadas e acompanhadas do
ria do sexo é a primeira, em todas as acepções do termo, entre todas as reconhecimento explícito da paternidade biológico-social de cada um dos
distinções sociais, e o casamento pode ser examinado antes de tudo como maridos (como parece ser o caso dos Toda), existe sempre uma ambigui-
uma das relações possíveis entre os elementos fundamentais da estrutura dade no que respeita à paternidade verdadeira de cada um dos maridos,
social, isto é, os homens e as mulheres. O problema será então o de saber e é, pois, necessário admitir a existência de uma noção de paternidade colec-
o que faz com que esta relação particular (possível entre outras, mas quan- tiva, estranha às nossas mentalidades, ou a atribuição de cada criança a um
tas outras?) tenha conhecido a fortuna que se sabe, uma vez que não exis- pai social, com o apagamento voluntário dos outros pais possíveis, no inte-
tem sociedades que sejam integralmente desprovidas desta instituição (cf. resse superior do grupo: o da permanecer unido.
o exemplo nayar). Em todo o caso, o exemplo nuer mostra-nos, por seu Não é tão facilmente que se anula a maternidade: a mulher é mãe sem
lado, que a representação dos papéis masculinos e femininos tem mais impor- qualquer contestação possível. Mas, em todos os casos - desaparecimento
tância do que o sexo real dos indivíduos. "O casamento entre mulheres" dos genitores em proveito de um pai social no interior do grupo de irmãos
dos Nuer (como é costume chamar-lhe) não é nunca um casamento de ou reinvindação da paternidade legítima tal como ela é demonstrada no casa-
mulheres, mas sim um casamento contraído por uma mulher que desempe- mento legal -, o que é importante é o controlo da fecundidade feminina,
nha um papel de homem com o consentimento do seu meio social, dados mediante a designação de um marido e de um pai para os filhos. Se o casa-
os aspectos simbólicos particulares que revestem as categorias do masculino mento é, estruturalmente, a união de um homem e de uma mulher (ou de
e do feminino. Uma mulher estéril, apesar da evidência do sexo, é social- pessoas investidas, uma de um papel masculino e outra de um papel femi-
mente um homem.' "I nino), a diferença biológica dos homens e das mulheres e a evidência da
O exemplo da poliandria adélfica demonstra-nos, se atentarmos nas aná- sua importância respectiva na reprodução dos grupos tem como consequên-
lises de Leach, que as noções de privilégio sexual reservado a um só par- cia diferenças fundamentais na sua situação recíproca no interior da relação
ceiro e de legitimaçào das crianças por parte de um único homem, que detém I conjugal. Dado que a fecundidade das mulheres é uma coisa essencial à
sozinho o estatuto de marido e de pai, podem ser aspectos secundários da sobrevivência dos grupos, ela será controlada pondo a mulher sob tutela e
instituição matrimonial - como também era o caso do exemplo nayar -, confinando-a o mais rapidamente possível ao papel de mãe.
a partir do momento em que outras exigências passam para primeiro plano. Emile Benveniste, numa extraordinária análise do vocabulário indo-
Numa sociedade onde as mulheres transmitem riquezas tal como os homens, -europeu sobre o parentesco [1969, em particular livro 11, capo IV], deu-
mas em que o ideal é conservar intacta a propriedade fundiária que é ape- -nos um exemplo concludente. Ele demonstra que não existe propriamente
nas transmissível aos herdeiros machos, é evidente que, se os irmãos tives- um termo indo-europeu para dizer «casamento", termo que é aliás de cria-
sem cada um as suas próprias esposas, transmitiriam as suas próprias rique- ção recente. Já AristóteIes o dizia: "Falta um termo exacto para indicar a
145 CASAMENTO
CASAMENTO 144

graças à proibição do incesto, de vínculos intermatrimoniais entre elas, per-


relação entre um homem e uma mulhere» [Po/(tica, 1253b, 10-11]. Para além mitindo edificar assim a construção, passando pelos laços artificiais do paren-
disso, demonstra ainda que as expressões antigas que encontramos diferem tesco, de uma verdadeira sociedade humana» [Lévi-Strauss 1956, trad. i1.
segundo o sexo: termos verbais para o homem, nominais para a mulher. p. 168].
Os termos verbais utilizados para o homem têm como raiz verbal wedh As componentes fundamentais de qualquer organização social são os
que quer dizer 'conduzir uma mulher a casa'. Ao lado destes verbos homens e as mulheres que a constituem, e são as mulheres que fazem filhos.
encontram-se aqueles que indicam a função do pai da rapariga, sobre a raiz A aliança entre grupos, entre famflias consanguíneas, só pode fazer-se atra-
verbal «dar». Assim, pois, o esposo conduz para casa dele a jovem que o vés da oferta da única riqueza, isto é, a capacidade de reprodução, ou seja,
pai dela lhe deu: negócio entre homens com um objectivo preciso. pela troca das mulheres. Cada grupo humano dá aos outros e recebe dos
Com efeito, não existe nenhum verbo que indique o facto de uma mulher outros hipóteses de sobrevivência. Todas as unidades se encontram estrei-
tamente dependentes umas das outras para a sua reprodução, através da troca
I se casar. Como diz Benveniste, «esta situação lexical negativa, a ausência de parceiros sexuais, existindo, pois, uma regra de fIliação que confere às
1 de um
um verbo
acto, próprio,
muda indica que
de condição» a jovem
[1969, trad.~oit. se
p. casa,
185],é ocasada. Não realiza
que também está crianças o seu lugar sem contestação possível.
expresso nos termos nominais que se encontram quer no indo-iraniano quer Mas não é suficiente. A fim de que a aliança entre os grupos tenha um
no latim. Assim, em latim, matrimonium significa literalmente «condição legal sentido, é necessário que as relações entre os parceiros sejam o mais estáveis
de mater», ou seja, de mãe, segundo o valor jurídico de todos os derivados possível. Que significaria a relação de aliança concluída entre grupos através
em -monium. «Portanto, matrimonium define a condição à qual a jovem tem da união de dois indivíduos, se esta devesse ser rapidamente rompida?
acesso: a de mater (familias). É isso que significa para ela o casamento, não
um acto mas um destino; ela é dada e levada ... in matrimonium» [ibid., objecto tornar dependentes e complementares não já os grupos mas os pró-
p. 186], isto é, para tornar-se mãe em casa de um homem que não é o seu \ prios
A repartição sexual
indivíduos. Na de tarefas,
relação corolário neste
homem/mulher sentido
surgem da exogamia,
outras prestaçõestem por
de ser-
pai. viços para além do simples comércio sexual. Homens e mulheres são, deste
Não se deve julgar que isto é específico da ideologia indo-europeia.
Evans-Pritchard [1948], ao analisar as cerimónias do casamento nuet, que
duram muito tempo, dado que a realização definitiva do casamento não é Iciações
modo,
duradouras baseadas num coiltrato de manutenção mútuo que só falta
levados por
ser sancionado por uma
incapacidades
instituição attificialmente
jurídica e ritualestabelecidas a diar
que estabeleça li sua asso-
lega-
a união carnal mas o nascimento da criança, demonstra que é apenas quando lidade. Temos assim o casamento, t:nlve mestra de qualquer organiza~ãosocial,
a esposa vem depor o seu bebé. no pátio do sogro (até aí ela viveu em casa na medida em que articula entre si elementos tão fundamentais comb a neces-
dos pais dela) que é considerada mulher e que vai viver defmitivamente com sidade de exogamia para construir. Uma sociedade viável, a proibição do
o marido. Evans-Pritchard acrescenta que ela vai para casa do marido (e dos incesto, a repartição sexual das tarefàs. Compreender-se-á, assim, que o casa-
sogros), não enquanto esposa mas enquanto mãe cujos seios alimentaram mento não possa ser, nem seja nurlca, totalmente deixado ao acaso e que,
uma criança da linhagem deles. pelo contrário, a escolha do cônjuge' seja objecto de regras precisas, que for-
Entre os Samo do Alto Volta, tal como no indo-europeu, os termos mam o âmago de qualquer estudo sobre o parentesco. [F. H.).
variam segundo designam o acto de tomar uma mulher ou de entrar numa
casa como esposa. Uma esposa não se torna mulher, isto é, não está com-
pletamente realizada, senão quando nasce o primeiro fIlho; antes, é sempre
uma rapariga, suru. Uma mulher estéril será considerada durante toda a sua Benveniste, E.
vida uma rapariga e não uma mulher. Em contrapartida, toda a esposa'legí- 1969 Le vocabulairedes insrirurions indo~kropéennes, I. Economie, paremé, soeiéré, Minuil,
tima já é mãe quando se junta ao seu marido, que é o pai social de uma Paris (lrad. il. Einaudi, Torino 1.976).
Evans·Pritehard, E. E.
criança de que ele nAo é o genitor [H~ritier 1978].
1948 Nuer mamage ceremonies, in .Arrleu», XVIII, pp. 29-40.
Torna-se, portanto, evidente que o casamento enquanto imagem,.possí- 1951 Kinship and Marriage among rhelVuer, Clarendon Press, Oxford.
vel da relação entre os sexos, mas imagem universalmente adoptadíl, tem Gough, K.
por funçAo assegurar de maneira controlada a reprodução dos grupoa. Mas 1959 The Nayars and rhe definirion of 1Ifamage, in .Journal of lhe Rllyal Anthropological
de que grupos se trata? «Como Tylor mostrou há quase um século, a.expli- Instilule», LXXXIX, pp. 23-34.
Héritier, F.
cação última é a de que provavelmente a humanidade compreendeu muito
1978 Fécondiré e/ s/érili/é. La traducrion de ces norions dans le champ idéologique au srade
cedo que, para se libertar de uma luta selvagem pela existência, era obri. in E. Sullernl (org), l,e FIlir [émi1lill, Fuyard, Paris, pp. 387-96.
pré-seiemijiqllc,
gada a uma escolha muito simples: ou casar fora ou ser morto fora. A alte- Leaeh, E.
nativa era escolher entre famílias biológicas vivendo ente si e destinadas a 1951 The s/rue/ural implicarions of marrila/eral cross-cousin mamage, in .Journal of lhe Royal
permanecer como unidades fechadas, perpetuando-se a si mesmas, submer- Anthropological Institute», LXXXI, 1-2, pp. 23-55.
gidas pelos seus modos, ódios e ignorâncias, e a sistemática instauração,

10
CASAMENTO 146

Lévi-Strauss, C.
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1971 Marriage: in R. Needham (org.), Rethinking


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Tavistoch, London, pp. 57-74.

HOMEM/MULHER
o Geralmente o casamento é considerado como a união permanente entre dois parceiros de
sexo diferente (cf. sexualidade, mulher, homem, homem/mulher, masculino/feminino) que é reco-
nhecida e legalizada pela sociedade, seja no acto que a defme, seja pelas consequências que
dela derivam, sobretudo no que diz respeito à prole. Se, por um lado, é verdade que não
existem sociedades sem tal instituição (cf. instilUiç.w), por outro, verifica-se simultaneamente
uma grande dificuldade em dar uma defmição que ultrapasse a descrição do casamento. Quer 1. As relações entre os sexos e o problema da dominação masculina
a união de dois parceiros quer a simples legalização dos filhos não parecem, de facto, determi-
nantes. O amor ou o prazer não representam o motivo dominante da união a não ser a nível
individual. De resto, a própria identidade dos cônjuges está longe de ser unív0C3; estudos etno- Durante muito. tempo as desigualdades sociais que se verificam em múl·
gráficos most,am casos de mulheres com funções de «marido., enquanto do ponto de vista tiplas sociedades entre o estatuto dos homens e o das mulheres foram objecto
dos filhos m~itas vezes a paternidade em algumas populações (cf. população) é mais um facto de reflexões e de críticas por parte de minorias. Estas minorias, que nas
social do que biológico. O próprio estatuto de mulher não é tanto determinado pela relação
sexual com o cônjuge como pela sua possibilidade de tornar-se mãe: é a própria palavra matri-
sociedades europeias pertenciam ou às classes médias ou a uma vanguarda
mónio (função de mater) a revelá-Io. Portanto, parece que na raiz esteja o controlo da fecundi- do movimento operário, oscilaram entre duas interpretações opostas sobre
dade feminina mais do que a estabilidade da relação e a legalização dos filhos; problema não o facto da dominação masculina. Para uns - e neles se reconhece a posição
individual, mas de grupo que tende a individualizar as regras (cf. norma) para a própria conti- passada e ainda actual de certas correntes feministas - a dominação dos
nuidade medwue a inserção da fecundidade natural num sistema de controlo (cf. controlo social).
Neste âmbito, guerra ou troca constituíram a escolha perante a qual se encontrou a fam{lía
homens na vida social era considerada como a mais importante das formas
alargada, que se traduziu em endogamialexogamia. Daí todas as regras de parentesco (cf. incesto) de opressão e, por consequência, devia ser prioritariamente combatida. Para
concebidas para tornar mais certa e estável a relação matrimonial em todas as suas manifesta- outros a dominação masculina surgia, ao contrário, como a forma menos
ções (cf. nascimento, morte, luto, jogo).
importante de opressão social que teria a sua solução após se terem ganho
outras lutas contra a exploração de classe, o imperialismo e o racismo.
Actualmente nas nossas sociedades parece ter-se operado uma grande
mudança. Por um lado, o problema da. luta contra as desigualdades entre
os sexos é posto publicamente e, retomado por vastas organizações de mas-
sas e não por grupúsculos, é já objecto da criação de aparelhos burocráticos
para resolvê-Io, sendo exemplo disso em França o ex-Ministério da Condi-
ção Feminina. Por outro lado, parece que se foi impondo pouco a pouco
a ideia de que é necessário distinguir cuidadosamente os diferentes tipos
de opressão e de exploração que existem nas nossas sociedades. Sem negar
que a dominação masculina esteja ligada às relações de classe e às formas
de opressão que estas comportam, torna-se cada vez mais evidente que é
necessário distinguir claramente a natureza, a antiguidade, a origem e o modo
de evolução específico das formas de dominação entre classes, entre nações,
entre raças, entre sexos, a fim de compreender as suas articulações e efeitos
reais no funcionamento da nossa própria sociedade. Torna-se também evi-
dente que a desigualdade entre os sexos não é unicamente produto da socie-
dade capitalista, e que esta contradiçAo existe noutras sociedades e é talvez
muito mais antiga que as sociedades de classe.
Para analisá-Iaé, pois, necessário recorrer aos dados comparados da antro-
pologia e da história. Sobre a história diremos bem pouco, deixando a outros
a tarefa de o fazerem. Digamos apenas que existe também uma maneira
HOMEM/MULHER 148
149 HOMEM/MULlIliR

antropol6gica de ler a hist6ria, da qual daremos rapidamente um exemplo.


Estados Unidos referida por Irene Lezine. A um grupo de estudantes ame·
Na Grécia antiga, e em particular na Atenas clássica, possuir a terra da
ricanos foram a~resentados bebés dos dois sexos uma vez vestidos de rapa-
Cidade (polis), sacrificar aos deuses, defender com as armas na mão o solo
pátrio, exercer a magistratura e os outros cargos são acima de tudo privilé- rigas e outra de rapazes. Foi pedido aos estudantes que comentasse~ o com·
portamento dos bebés. Ora quando um deles chorava, os comentárIos eram
gios masculinos. Para um grego, ser plenamente homem significa, em pri- do seguinte estilo: se o bebé estava vestido de rapaz, as lágrimas eram um
meiro lugar, ser homem e não mulher, ser livre e não escravo nem meteco.
A mulher grega, livre, está vinculada pelos laços do casamento à familia sinal da sua fúria, a prova de como um rapaz age sobre o mundo; se. o
bebé estava vestido de rapariga, as lágrimas eram sinal de que alguma COisa
do seu senhor e esposo, de quem ela dirige em parte a economia domés-
°
tica. senhor dispõe a seu heI-prazer das suas escravas femininas em matéria não estava bem, que ela choramingava, etc. Fácil seria percorrer os co~-
portamentos simbólicos que todos os dias atestam a do~nação mascuh~a
sexual. Arist6teles define aliás claramente estas relações de sujeição quando
e contribuem para a sua divulgação. Mas que se passa, hOJe,nas outras socIe-
escreve na Po/(tica: ••Os elementos primitivos e indecomponíveis da família dades?
são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os fIlhos» [1253b,
6-7], e acrescenta: ••Hesíodo teve razão ao dizer no seu poema: "Na sua
essência a casa é a mulher e o boi que lavra", porque para os pobres o
3. Uma visão ••mundial» do problema
boi substitui o escravo» [ibid., 1252b, 10-12]. Adivinha-se aqui a relação
entre estrutura da família e estrutura do modo de produção, bem como os
Antes de mais, quantas sociedades existem hoje à superfície do globo?
fundamentos de uma dupla sujeição da mulher, por um lado na cidade, por Ninguém conhece o número aproximado. Por sociedade entende-se um grupo
outro, na fami1ia. É evidente que a sociedade grega era uma sociedade de
local que reconhece em si mesmo. uma identidade, uma hist6ria, uma cul·
classes e ainda por cima de tipo patrilinear como a nossa. Mas o mesmo tura específica distintas, ou seja, opostas às dos seus vizinhos. Propõe-se
não se pode dizer do resto da Europa ãiítiga e devemos lembrar-nos do
um número, mais de dez mil, a partir de informações obtidas sobre o número
espanto de Tácito quando, enviado em missão junto dos Britânios e dos
de línguas faladas em África, na Ásia, etc. Pensa-se, por exemplo, que na
Germanos, descobriu que as mulheres participavam no conselho dos guer- Nova Guiné, onde vivem três milhões de habitantes, foram recenseadas cerca
reiros. Igualmente espantados ficarão, dezasseis séculos J;J13Ís
tarde, os Ingle-
ses e os Franceses ao penetrarem nas florestas americanas e ao descobrirem de seiscentas línguas ou dialectos que devem ser falados cada um, n~
mínimo, por dois grupos. Para a África Negra, propõe-se o número aproxI-
que entre os Iroqueses e os Hurões eram as mulheres que nomeavatn os
sachem. mado de duas mil línguas ou diall:ctos. Ora os antrop610gos estudaram até
° problema que inevitavelmente se põe é o de saber se a subordi\'lação
das mulheres aos homens existe actualmente em todas as sociedades: e se
agora cerca de setecentas ou oitocentas sociedades, menos de um décimo
do número global que propomos. :Os dados sobre oitocentas e noventa des-
sempre existiu. °
exemplo dos Germanos e dos Iroqueses permitiria duvi-
tas sociedades estão hoje organizados num vasto ficheiro, os Human Area
Files, no qual se encontram, para cada população, as informações sobre as
dar disso. Vamos responder a esta questão de um ponto de vista antropol6-
relações homem-mulher, a divisão do trabalho, as relações de parentesco,
gico e a partir de materiais e de discussões antropol6gicas.
os mitos. Mas existem menos de einquenta monografias sérias que tenham
especificamente por objecto a an~ise das rel~ções ho~em-mul.her. É, ~?is,
a partir desta informação que se vão orgamzando hOJe em dia as analises
2. As três dimensões da dominaçdo masculina e do sexismo
e os debates dos antrop610gos.
Em primeiro lugar, o que é que se entende por subordinação feniihina?
Trata·se de uma realidade social de três dimensões: econ6mica, política, sim- 4. Etnocentrismo e androcentHsmo
b6lica. No plano econ6mico, basta olhar' à nossa volta para verificarmo~ que
na nossa sociedade as mulheres não têm acesso às mesmas profissões que
os homens ou nunca vão tão longe quanto os homens na mesma prdfissão. Esta pobreza de informação é a primeira limitação a pesa~ em tod~s
J.
No plano político, as mulheres que em França foram um pouco rriais de os debates. A segunda é o facto ,de estas informações terem SIdo recol~l-
das por Ocidentais, e a maior parte das vezes por homens. Elas são, pOiS,
metade da nação constituem menos de 10 por cento dos representantes do
parcialmente etnocêntricas e na sua maioria androcêntricas. Todavia, é
país na Assembleia Nacional. Finalmente, no plano simbólico, todos os dias entre os antropólogos, e pelo facto de esta profissão comportar desde o
os mas! media opõem as imagens contrastantes do homem e da mulher, do início muitas mulheres, que encontramos os primeiros grandes estudos fei-
homem-sujeito e da mulher-objecto, tal como desde a mais tenra idade se
tos por mulheres sobre as relações homem-mulher. Para além de alguns
aprendem estere6tipos que imediatamente estruturam a percepção da reali-
nomes célebres: Margaret Mead, ~uth Benedict, citaremos outros - Phillis
.dade social. Lembramos, a este prop6sito, uma experiência realizada nos
Kaberry, Eleanor Leacock, etc. - menos conhecidas do grande público.
HOMEM/MULHER ISO 1S1 HOMEM/MULHER

Os antropólogos homens trabalham como homens e muitas vezes anotam uma actividade privada, de segundo plano, doméstica. As mulheres toma-
nos seus blocos o que poderia ser encarado como uma visão masculina da vam parte activa nas discussões colectivas para decidir deslocar o acampa-
sociedade que estudaram. Mas as pr6prias antrop610gas são muitas vezes mento, fazer a guerra, combinar um casamento, etc.; divorciavam-se facil-
., tratadas como homens e também elas participam de uma visão androcên- mente, levando consigo ou não os fIlhos. Estes não estavam unicamente a
~jtrica da sociedade que estão a estudar. ~ Ilssimque Eleanor Leacock, fazendo cargo da mãe: as outras mulheres do grupo ocupavam-se deles e os homens
também, se bem que menos frequentemente. A vida social não estava, por
1938), construiu duas montagens que anresentavam a mesma sociedade des- conseguinte, centrada na famaia nuclear em que a mulher se consagra a
rita por um mesmo autor, quer como liominada pelas mulheres, quer como tarefas domésticas e à criação exclusiva dos fIlhos. De modo geral, reinava
~ma colagem
dominada pelosdehomens.
citaçõesPor
do outro
livro lado,!
de ~uth Landes, que
demonstrou Thea Ojibwa Woman
autora oscilava naqqela sociedade uma vontade de igualdade entre os indivíduos, e cada
inconscientemente entre um ponto de vlsta masculino e um ponto de vista um, I ~omem ou mulher, que tentasse impor aos outros a sua vontade era
feminino, e que, no que dizia respeito 'ao livro de Ruth Landes, a tarefa submetido a zombaria pública, à crítica, muitas vezes obscena, e ridiculari-
de estabelecer a relação real existente entl:e os índios do Canadá estava ainda zado. Não existia um chefe, mas, nas relações com outros grupos, um
homel1l servia de porta-voz - o melhor orador, o homem mais calmo. Se
em {arte por fazer.
, no entanto, o etnocentrismo a foi1te mais importante de deformações, bem que, segundo a minha opinião, este quadro não prove a ausência de
etnocentrismo que se resume no essenc,al à impossibilidade de um ociden- dominação masculina, sugere no entanto uma autonomia feminina bastante
tal compr~ender o funcionamento de sociedades sem classes, isto é, as for- superior à que podemos verificar na nossa sociedade.
mas de igp'a1dadesocial desconhecidas entre n6s. Certas antropólogas, como
Eleanor Leacock, June Nash, etc., esforçam-se por fazer compreender aos
seus colegas e ao público o que pode s~l' a situação das mulheres em certas 6. As sociedades «matrilineares»
sociedade~: Em geral, referem-se a dois: tipos de sociedades: sociedades de
caçadores-recolectores (Bosquímanos da África do Sul, Pigmeus do Zaire, As sociedades matrilineares hortícolas da América do Norte - como por
índios Montagnai do Canadá) e socieda4es hortícolas de organização matri- exemplo, os Iroqueses, vizinhos e inimigos dos Montagnai Naskapi - cons-
linear (Hurões, Iroqueses e outros grllPos matrilineares da costa leste e tituem o segundo exemplo privilegiado por Eleanor Leacock (e isto conti-
sudeste da América do Norte, ou aquilQ a que se costuma chamar a cintura nuando a tradição de Morgan e de Engels). Foi este exemplo que alimen-
matriline~r da África, zona que corta transversalmente a África Central). tou o mito de um matriarcado, de um poder dominante das mulheres na
sociedade.
Recorde-se antes de mais a grande diferença que existe entre sociedades
5. A autonomia das mulheres índias montagnai patrilineares e sociedades matrilineares. Nas primeiras a fl1iaçãoé contada
através dos homens e passa de pai para fl1ho; .a mulher está submetida ao
Eleanor Leacock, que viveu entre os Montagnai Naskapi do Canadá, veri- marido que tem autoridade sobre os seus fl1hos. Nas segundas a fl1iação
ficou a enorme autonomia de que gozavam aind3 em 1953 as mulheres passa de mãe para fIlha; é nisto que reside a prova de um matriarcado, da
daquela sociedade. Ora, por sorte, ela pôde comparar as suas observações dominação do poder feminino? Os antropólogos há muito que debateram
com o que tinha visto e anotado; em 1633, um jesuíta francês, Paul Le este problema, e todos, ou quase todos, responderam negativamente. Parece,
Jeune, que tinha passado um Inverno com os Montagnai a fim de os con- com efeito, que nas sociedades matrilineares, a mulher está igualmente subor-
verter e, posteriormente, dado conta da sua missão à ordem dos Jesuítas, dinada ao homem, mas não o está ao seu marido ou ao seu pai, mas sim
em Paris. Le ]eune tinha ficado surpreendido com o facto de as crianças ao seu irmão e ao irmão da mãe, que têm autoridade sobre ela e sobre os
não parecerem obedecer aos pais, as mulheres aos maridos e os grupof; a fl1hos dela. Estes não pertencem ao seu pai, mas à linhagem da mãe e
um chefe. Segundo ele, estes índios seriam mais facilmente convertidos ao encontram-se sob a autoridade dos tios maternos. O que parece inegável
cristianismo e pacificados se fosse possível impor-Ihes a atitude submissa é que a subordinação das mulheres aos homens é muito diferente nas socie-
das mulheres francesas para com os maridos ou dos súbditos do reino para dades matrilineares e menos dura em geral do que nas sociedades patrilinea-
com o rei de França. res. Numa sociedade matrilinear uma mulher está submetida a duas autori-
Leacock procurou as razões desta autonomia tão grande das mulheres dades: à do irmão e à do irmão da mãe por um lado, à da mãe e à das
montagnai e verificou em primeiro lugar que, no âmbito da divisão do tra- irmãs da mãe por outro, enquanto numa sociedade patrilinear a mulher está
balho, cada sexo assume as suas tarefas e toma as suas decisões sem que submetida primeiramente à autoridade do pai, e posteriormente à do marido.
o outro o controle. Por outro lado, mais profundamente, nesta economia Para voltar ao exemplo dos Iroqueses e dos Hurões, vejamos o que rela·
de caça-colheita, não existia uma verdadeira separação entre economia domés- taram os observadores do século XVI: a sua subsistência assentava na agri-
tka e qualquer economia social. O trabalho das mulheres não surgia como cultura e na caça, na pesca e nas colheitas. As mulheres ocupavam-se das
HOMEM/MULHER 152 153 HOMEM/MULHER

colheitas e da agricultura, os homens da caça, da pesca e da guerra. A socie- dência das mulheres em relação aos homens e dos ftlhos em relação à mãe
dade estava dividida em clãs matrilineares e os clãs em linhagens que viviam ocorreu no contexto da destruição dos laços económicos recíprocos no inte-
em compridas casas, cada uma das quais sob a autoridade das mulheres ido- rior das linhagens ou entre os clãs, bem como no âmbito da perda das posi-
sas da linhagem. As mulheres participavam no conselho do seu clã e ele- ções públicas ou de prestígio das mulheres na sociedade.
giam um chefe que era um homem, um dos seus irmãos. Desde o conselho É aliás a própria Eleanor Leacock quem demonstra que do século XVI
de clã até ao conselho da tribo, presidido pelo grande sachem, as mulheres ao século XVII os Montagnai passaram de uma estrutura matrilocal para uma
estavam presentes, pelo menos as matronas, em todos os níveis do poder. estrutura patrilocal, sob o efeito do desenvolvimento da economia de caça
Era através das mulheres que se transmitiam os direitos sobre as terras de com armadilha e do comércio de peles que estavam quase exclusivamente
cultura, e estas terras eram cultivadas colectivamente pelas mulheres sob nas mãos dos homens. No século XVII, estes índios viviam em grupos flui-
a autoridade das matronas. Estas controlavam a redistribuição dos produtos dos, praticando sobretudo a caça colectiva ao caribu, caça na qual coopera-
agrícolas que estavam armazenados nas reservas situadas em cada extremi- :' vam homens e mulheres. As relações de parentesco eram indiferenciadas,
dade das grandes casas; as mulheres podiam mesmo impedir o início de uma r de tipo cognático, no entanto, com uma inflexão matrilocal. Os grupos eram
guerra ou a sua continuação recusando-se a fornecer aos guerreiros os víve- unidades exogâmicas. Actualmente, são endógamos e patrilocais. Os homens
res necessários. As jovens escolhiam os seus amantes e uma vez casadas possuem a título individual direitos sobre as proporções de território comum
tinham a possibilidade de se divorciar. Este é, portanto, um outro exemplo onde colocam as suas armadilhas e transmitem estes direitos aos seus ftIhos.
de sociedade onde as mulheres gozavam de um prestígio e de um poder As famílias vivem cada vez menos da caça e da colheita de subsistência,
público inimagináveis nas nossas sociedades ocidentais. mas dependem das trocas com os e.rttrepostos comerciais dos Brancos, onde
É importante lembrar que esta sociedade se transformou rápida e pro- compram as espingardas, as munições, as armadilhas, o toucinho, a farinha
fundamente com o impacto da colonização europeia. No século XVI os Iro- para o Inverno, deixando nessa estação do ano os ftIhos quer na escola quer
queses sujeitaram-se cada vez mais ao interesse dos Brancos pela caça ao na missão que existe ao lado da feitoria. O quadro histórico é, pois, con-
castor. Depois, quando a sua caça se esgotou, serviram de intermediários fuso. Cada dia que passa é mais difícil reconstituir a situação das relações
entre a feitoria dos Brancos e as tribos do interior. Aliaram-se aos Ingleses entre homens e mulheres no período pré-colonial. Todavia, a evolução no
e lutaram contra os Hurões e os Montagnai, que se tinham aliado aos Fran- decurso dos últimos séculos e a confusão que esta produz parece sugerir
ceses. Pouco a pouco acumularam novas formas de riqueza, ligadas ao comér~ - segundo Leacock - uma lei da e\tolução cujo efeito teria começado a ope-
cio de peles, riqueza que permanecia nas mãos dos homens e que era acom- rar milénios antes do nascimento ~o capitalismo.
panhada de um desenvolvimento do individualismo económico e político.
A guerra, para servir os Ingleses, reforçou a autoridade dos homens em pro-
porções desconhecidas até então. Progressivamente, as regras de reciproci- 8. Uma visão global da evolução histórica das relações entre· os sexos
dade e de partilha desgastaram-se, a organização colectiva em compridas casas
desapareceu e já não existia quando Morgan, em 1851, consagrou um estudo Para Eleanor Leacock, a produção para a troca, a ruptura das solidarie-
aos Iroqueses. Este exemplo mostra como o quadro histórico das relações dades locais, os coní'litos de interesses entre os grupos ou entre as socieda-
homem-mulher se tornou cada vez mais confuso desde que, no século XVI, des são factores que, muito antes do capitalismo, foram a pouco e pouco
começou a expansão colonial dos povos europeus e dos seus sistemas eco- reforçando a posição social dos homens. Partindo das análises de Judith
nómicos e sociais. Brown, ela dá como prova a contrario o facto de entre os Bembaj.·~ociedade
matrilinear de Africa, as mulheres terem um 'estatuto ínfImo comparado com
o das mulheres iroquesas. Mas os Be'tnba estão organizados hierarquicamente:
7. Colonialismo, economia mercantil, trabalho assalariado e estatuto res- no vértice uma aristocracia domina 'as pessoas comuns, e as unidades fami-
pectivo dos sexos liares locais produzem riquezas qué ;se concentram nas mãos dessa aristo-
cracia. As dádivas de alimentos, longe de aumentarem o prestígio das mulhe-
No seu conjunto, as sociedades matrilineares decompuseram-se ,muito res, aumentam o dos seus maridos, !,e uma parte do produto é redistribuído
mais rapidamente do que as sociedades patrilineares, e as organizaçõés flui- segundo relações de classe e não segundo relações entre grupos de paren-
das, igualitárias, sem poder central resistiram menos ao choque do que ~cie- tesco ou entre sexos. Leacock prop/'ie, pois, uma visão de conjunto da evo-
dades hierarquizadas. Em Africa, por exemplo, a economia de plantàç~o e, lução histórica. Tomando os índios Naskapi como modelo dos caçadores-
O desenvol\timento das minas fIzeram apelo prioritariamente à mão-de~obra .-r~colectores primitivos, imagina lIma evolução que levaria .sociedades
masculina e ao trabalho assalariado. Pouco a pouco, a economia tradicio- igualitárias, onde homens e mulheres partilhassem os mesmos estatutos de
nal desapareceu, ou pelo menos centrou-se na família nuclear, que por sua autoridade pública e dispusessem da sua autonomia, a múltiplas formas de
vez assentava no trabalho dos homens e no seu salário. Uma nova depen- sociedades de classe em que, poucó a pouco, através da decomposição dos
HOMEM/MULHER 154 m , ' HOMEM/MULHER

laços comunitários, emergem hierarquias que favorecem o poder masculino. a inflexão patrilinear e a dominação masculina 1000 são realidades coniest81'
Uma dessas linhas de evolução é a nossa, que reforça sem cessar a apro- das pelos antropólogos. Para além disso, se deixarmos a Austrália e nos vol·
priação privada da terra e dos meios de produção; é neste contexto que se tarmos para outras sociedades de caçadores, descobrimos casos incontesta-
impõe e se consolida a família monogâmica. Leacock retoma, pois, por sua dos de sociedades patrilineares e patrilocais, como os Ona da Terra do Fogo
vez, a tese de Engels que liga a degradação dos estatutos da mulher ao apa- e os seus vizinhos, os Alakaluf, actualmente desaparecidos. Ninguém com-
recimento das desigualdades de classe, e que une a dominação da famaia parou até esse momento, sistematicamente, no que respeita às relações
monogâmica à dominação da propriedade privada. homem-mulher, a situação que existia ou existe ainda na trintena de socie-
dades de caçadores-recolectores que conseguiu sobreviver. Nada permite afIr-
mar que estas sociedades, umas manifestamente patrilineares, outras mani-
9. Elogios e reservas festamente não-lineares, outras, por fim, como os Bushongo, apresentando
traços de sistemas complexos crow-omaha que se encontram nos agriculto-
Estas análises e esta conclusão geral suscitam críticas, mas também elo- res, pertencem a uma mesmo tipo e que correspondem a um mesmo modo
gios, porque estamos perante um dos ellforços mais conseguidos e mais con- de produção «cinegético», como afirma Meillassoux. Também nada permite
vincentes para evidenciar a imensa vaqação dos factos de dominação mas- negar a existência nessas sociedades de verdadeiros laços de parentesco· e
culina. Eleanor Leacock insiste em' exemplos, que apresentam uma afirmar que o parentesco seja a superstrutura de um modo de produção
quase-igllaldade entre os sexos, descoJlhecida nas nossas sociedades, e que doméstico que se desencadeia com os desenvolvimentos da agricultura e da
contrastam violentamente com os casos extremos de subordinação feminina, criação de gado e que se manteve até aos nossos dias. Imaginar - como
de quase-escravatura, que conhecemos; pmlheres encerradas no harém, entre fez Marshall Sahlins e, depois dele, Meillassoux - a existêricia de um modo
os Muçulmanos, mulheres encarceradl\s com os pés enfaixados, incapazes de produção «doméstico» que sobrevivesse nas profundezas das sociedades
de trabalhar, junto dos mandarins da China. A sua análise força-nos igual- agrícolas e de criação de gado, quer elas fossem ou não de classes, é uma
mente a imaginar o que representa a autonomia feminina, individual e colec- hiPótese que não resiste à análise. Este ponto é de importância te6rica fun-
tiva, e a irmos procurar em toda a parte onde seja possível outras provas, damental e merece que nele nos detenhamos.
outros índices desta autonomia; ela pede que nos não precipitemos sobre Se é verdade - o que é contestado por poucos antrop610gos - que a
casos deslumbrantes de dominação masculina sem nos interrogarmos sobre composição dos grupos de caçadores-recolectores é a de indivíduos ligados
a realidade do que realmente se passa. As mulheres podem ter um poder por relações de parentesco, relações que servem de quadro à organização
que não é facilmente visível a um ocidental habituado ao androcentrismo. da caça e da colheita, à redistribuição dos produtos, à reciprocidade de acesso
Todavia, algumas críticas se impõem, porque, apesar da pobreza dos nos- aos recursos, neste caso, quando se verifIca entre os caçadores-recolectores
sos conhecimentos hist6ricos e antropol6gicos, da pequenez da amostra obser- a existência de vários sistemas de parentesco, de 16gicas diferentes, unili·
vada, do etnocentrismo e do androcentrismo das informações recolhidas, de neares ou cognáticas, deve supor-se a existência de vários sistemas econ6-
C' momento parece razoável supor que até 7~tão. os homens dominaram, em micos e sociais nas ditas sociedades, a menos que se possa demonstrar que
última ap.álise, o poder. Esta f6rmulasignifica que não existe apenas um estes sistemas pertencem a um mesmo tipo. Será então necessário explicar
poder na sociedade, mas vários; que as mulheres o têm, mas que em última esta diferença e partir dela para imaginar diversas linhas de evolução da
instância são os homens que se encontram no vértice da hierarquia dos humanidade com o aparecimento da agricultura e da criação de gado.
poderes. Segundo ponto importantíssimo: concentrando a atenção sobre a famí-
lia, como quadro das actividades econ6micas, esquecem-se as relações de
parentesco que produzem a estrutura dessa família. Ora as relações de paren-
10. A história «imaginada», a escolha do ponto de partida tesco podem funcionar directamente como relações de produção se através
delas a sociedade controlar os recursos e organizar a exploração da natureza
Na realidade, para estabelecer o ponto de partida imaginário, Eleanor e a redistribuição dos produtos do trabalho. Mas esta situação não é geral.
Leacock, tal como Richard Lee e outros, parte do exemplo dos caçadores Muitas vezes, e sobretudo na sociedade de classes, as relações de produção
naskapi, bosquímanos ou pigmeus. Todos deixam cuidadosamente de lado existem, pelo menos em parte, fora e para além das relações de parentesco.
o caso dos aborígenes australianos onde parece demonstrado que os homens Mas ao mesmo tempo a família, se ela for a unidade de produção e de con-
dominavam as mulheres, possuíam o essencial dos ritos religiosos de fertili- sumo directo, está submetida à sua estrutura e às relações de parentesco
dade das plantas e dos animais e das pr6prias mulheres, e onde os direitos e às relações de produção. É, pois, impossível substantivar, remcar como
sobre o territ6rio se transmitiam de geração em geração através dos homens. uma espécie social homogénea e invariável, um modo de produção domés-
Mesmo se o modelo de Radcliffe-Brown de grupos patrilineares e matrilo- tico. Uma das consequências modernas deste raciocínio é que, nos países
cais fundados na exploração da natureza é hoje fortemente contestado, socialistas, apesar da transformação das relações de produção, a subordina-
157 HOMEM/MULHER
HOMEM/MULHER 156

que os dois sexos podem exercer. Seria etnocêntrico e falso imaginar os caça-
çllo da mulher pode manter-se por bastante .temp? na medida em. que con- dores primitivos como Nemrods modernos que se vangloriassem dos seus
tinua a existir paralelamente a uma economia social uma econorma domés-
troféus de caça. Em toda a parte se verificou uma atitude de amizade e de
tica largamente a cargo das mulheres. Não é o modo de produção domés-
tico que continua, é a divisão da economia e da sociedade em várias esferas, respeito dos homens primitivos para com os animais caçados e que m~ta~
das quais a mais estreita está reservada às mulheres, que a ela estão confi- proporcionalmente às suas necessidades. Em toda a parte se encontra a Ide~a
nadas. de um contrato, de uma associação amigável entre homens, plantas e am-
mais de tal modo que o homem se' sente ameaçado de penúria e de fome
se m~tar sem precaução, se explorar Osrecursos sem cuidado. Os mitos co~-
lI. Um facto universal cujas formas foram e são extremamente variáveis tam infatigavelmente a hist6ria de qasamentos entre os homens e os am-
mais de contratos entre o senhor di>sanimais e o homem. São estas rela-
Vamos, pois, propor que se aceite provisoriamente a hip6tese de que, ções 'de «amizade respeitosa» que se encontram nos ritos ~as sdci~~ades
agrícolas e pastoris quando estas se preocupam em reprodUZir a fertilidade
em todas as sociedades, mesmo as mais igualitárias, uma hierarquia de pode-
dos seus campos e dos seus animais.
res exista, pertencendo estes últimos aos homens. Trata-se de uma genera-
Esta divisão do trabalho entre os sexos não é, portanto, o resultado directo
lização que em si mesma tem uma grande probabilidade. Neste caso, é pre-
ciso, também provisoriamente, dar uma explicação que dê conta de duas de imposições naturais; é o efeito sintético combinado dos limites das for-
coisas em simultâneo: a suposta universalidade da dominação masctdina e ças produtivas, intelectuais e materiais, de que estas sociedades dispunha~
para explorar os recursos da natureza circundante, e da dispersão l: da rar~-
a imensa variação verificada quanto ao conteúdo desta dominação, desde a dade relativa destes recursos. Apes~ da diversidade das adaptações locaiS
quase-igualdade dos sexos entre os Montagnai e os Hurões, até à quase-
do homem, na floresta, no deserto, no litoral marítimo, há um resultado
-escravatura nos haréns da Arábia Saudita. À partida, pode pensar-se que
comum, ligado aos limites dos meio$ de acção do homem sobre a natureza,
explicar tudo através de uma s6 causa é nã? e~plicar nada: várias cau~as e este resultado é uma divisão do ltabalho que faz ocupar aos homens o
se combinam hierarquicamente para prodUZir simultaneamente este efeito
primeiro lugar no processo de prodlÍção material. Certos .antrop610~os~nvo-
geral da dominação masculina e a variação das formas desta dominação.
cam os exemplos das sociedades onde as mulheres contrIbuem em,malS d,e
60 por cento para a subsistência do $rupo com os produtos das sulls colhei-
12. As origens da dominação masculina tas. No entanto, isto é esquecer que:o que pesa mais na organizaçll,oecon6-
mica das sociedades não é a divisão do trabalho na subsistência, mas as for-
mas sociais do controlo dos recursos ~ do produto, ou seja, as relações sociais
Qual é então a explicação provis6ria que se propõe? Com efeito, ê. neces-
sário partir, para imaginar as origens da desigualdade, do modo de VIdados de produção. Ora a precariedade n~~ativados recursos impunha formas de
apropriação comum que concediam direitos iguais aos indivíduos membros
caçadores-recolectores, uma vez que a humanidade viveu 99 por cento da
do grupo. O problema reside, pois, em compreender como os homens podem
sua evolução nesse quadro econ6mico e social. O homem selvageni trans-
forma pouco a natureza, dependendo dos recursos vegetais e animais que representar estes direitos comuns e!Ji maior medida do que astnulheres.
a natureza selvagem reproduz espontaneamente. É possível imaginar que este
modo de vida valorizavll socialmente a mobilidade individual e colectiva.
14. Poderes dos homens, poderk das mulheres

O problema está em compreender por que razão os homens que ocu-


13. Reprodução da vida e divisão do trabalho
4
pam um lugar mais valorizado no processo material da vida dclminam as
mulheres que ocupam um lugar eXOepcionalno processo de reprodução da
Ora, devido à sua função reprodutora, a mulher é menos m6vel db que vida. Aqui devemos voltar atrás e leIÍlbrar que, nas formas de pensamento
o homem: está grávida, pare e amamenta as crianças durante muito ,tempo,
simb6licas que legitimam a dominação masculina, o que é posto em pri-
porque antes da «invenção» da criação de gado e da agricultura, não' t!xi~t~a meiro plano é o controlo por parte dos homens das mulheres fecundas, da
substituto para o leite materno. Desde então parece possível que untá diVI-
fecundidade feminina. Não é desprovido de interesse voltar ao exemplo dos
são das tarefas se tenha imposto nas sociedades de caçadores: aos ~omens Hurões e dos Iroqueses e interrogarmo-nos porque é que as mulheres que
a caça aos grandes animais e a guerra, às mulheres a caça dos animais peque- elegem os chefes e têm a maior autoridade social são matronas, isto é, mulhe-
nos a colheita e a cozinha quotidiana. Parece também provável que um
res idosas, que já atingiram a menopausa. Em todas as sociedades, as mulhe-
sist;ma de valores diferentes se tenha ligado a estas tarefas, valorizando mais
res estéreis - seja porque já não podem ter fllhos, seja porque não os podem
as dos homens, na medida em que elas implicavam mais riscos de perda
ter -, gozam de um estatuto especial, inferior ou superior ao comum das
de vida ou maior gl6ria em tirá-Ia. Inversamente, a colheita é uma actividade
HOMEM/MULHER 158 159
HOMEM/MULHER

mulheres que são fecundas. A maior parte das vezes, verifica-se que as proibição do casamento entre certas mulheres e certos homens. Bem enten-
mulheres que partilham de certa maneira o estatuto dos homens são aque- dido, para os próprios intervenientes, esta proibição tem a sua origem em
las que estão excluídas da função de reprodução. princípios morais ou fl1osóficos, de origem natural ou sobrenatural.
Sem negar que princípios éticos, como o tabu do incesto, actuem real-
mente sobre a vontade dos indivíduos e dos grupos, pode procurar-se a ori-
15. O controlo das mulheres como produção da principal força produtiva: gem para além das razões que os próprios primitivos nos apresentam nos
o pr6prio homem seus mitos e na sua fl1osofia. Ora, o que é que se troca quando se «trocam»
as mulheres? Trocam-se menos produtores do que reprodutores menos uma
Os homens, que dominam o processo de produção material e que têm ajuda para sobreviver hoje do que um meio de existir ainda am~nhã. É certo
o monopólio dos conhecimentos complexos da caça e da utilização da vio- que por vezes a mulher que se recebe pode trabalhar melhor do que a mulher
lência armada, controlam as mulheres pão tanto enquanto produtoras, mas que se cedeu, e a inversa também é possível, mas de qualquer modo uma
enquanto reprodutoras da vida que pçolonga o grupo. Pode perguntar-se e outra desempenharão tarefas idênticas, no quadro da divisão sexual do
se o facto de, durante milhares de anos, e no interior dos modos de subsis- trabalho que reina na sua sociedade.
tência e dos sistemas económicos (moqos de produção) mais diversos, o tra- De facto, o que um grupo dá a outro ao «dar-lhe» uma mulher é outra
balho vivo, a força de trabalho directamente utilizável, ter prevalecido sobre coisa: é a possibilidade de ter uma descendência, um futuro, sobre os quais
o trabalho passado, a força de trabalhq acumulada, esse tal facto não estará ele cede parte ou a totalidade dos seus direitos. Cada grupo recebe, pois,
na origem de dois factos sociais fundamentais: por um lado, as relações de dos outros uma parte das condições do seu futuro, mas os outros por sua
parentesco, que em toda a parte são li forma social de reprodução da vida, vez devem-lhe o seu próprio futuro. Parece, portanto, que, para além da
funcionarem no todo ou em parte como relações de produção; por outro, consciência social e das suas representações, o que funda a exogamia - e
as mulheres estarem, no âmbito dessas relações, subordinadas aos homens. o tabu do incesto que é dela uma componente e uma condição subjectiva
É necessário, pois, interrogarmo-nos sobre realidades mais profundas, sobre simultaneamente - é a impossibilidade de as sociedades se reproduzirem
o facto de o homem não viver apenas em sociedade, o que é banal e sem duradouramente em estado de isolamento, sem cooperação pernianente; é ao
qualquer interesse, mas ser obrigado a produzir sociedade, a produzir-se como
ser social.
mesmo tempo a prioridade,
. que permanece ainda em muitas sociedades do '
presente, do que VIve, sobre o passado, sobre as forças produtivas acumu-
ladas anteriormente.
Ao comparar as sociedades de caçadores-recolectores, parece que a pró-
16. 0.1 frmdaml'll/M da proibição do i/lcl.'s/o pria natureza dos meios de intervenção sobre a natureza de que elas dis-
põem as obriga a dividir-se em grupos locais distintos e afastados uns dos
C"\'X'l\-S('nt'sl(' l'"nlo 1\ q\\('stA" dl\ l'l'\)ibiçAodo incesto, da exogamia outros que exploram a maior parte do tempo separadamente partes do ter-
c da nalurczu gcml Jus relaçôcs dc parcntcsco, porquc o problemn do incesto ritório. Mas estas sociedades são obrigadas de forma premente a ultrapassar
tem qualquer coisa a ver com o estatuto comparado do homem e da mulher. esta separação e a organizar formas variadas de cooperação. Qualquer que
É possível imaginar que a humanidade primitiva tenha praticado o incesto seja a forma dos «processosde trabalho», caça individual ou colectiva, colheita
em vez de o proibir: cada grupo teria então contado com as suas próprias individual, etc., estas sociedades são obrigadas a garantir aos seus membros
forças para reproduzir a vida e sobreviver no seu território. O resultado teria e aos grupos que as compõem um acesso recíproco à natureza e aos seus
sido o isolamento progressivo de cada grupo que se teria tornado sozinho produtos, a partilhar, a redistribuir entre todos os recursos que cada indi-
a sociedade, e ao isolar-se teria acumulado todos os riscos do seu próprio víduo ou cada grupo póde obter no domínio comum.
desaparecimento e, com isso, do desaparecimento da sociedade. O tab'b do Deste modo, na sua essência e no seu fundamento Ultimo, a dependên-
incesto estabelece uma proibição e obriga à aliança. Desde Lévi-Strauss que cia recíproca dos indivíduos e dos grupos não é um facto de origem moral
se aceita geralmente a ideia de que o contrário do incesto é a exogamia e nem evidentemente de origem sobrenatural, é um facto social simultanea-
a circulação de mulheres entre os grupos, se não entre os homens. Certos mente material e impessoal. E, no entanto, a reciprocidade e as obrigações
antropólogos insurgem-se contra a expressão «troca das mulheres» entre os assumem sempre a forma de obrigações e de relações pessoais.
homens porque denunciam uma visão etnocêntrica na qual se projectam as Se ligarmos a estas diversas análises, por um lado, a divisão das tarefas
representações e a lógica da nossa sociedade mercantil e de lucro. Seja como materiais entre os sexos e a valorização relativa dos trabalhos masculinos,
for, e reconhecendo que Lévi-Strauss nunca fez a teoria das razões pelas quais por outro, a prioridade da vida e da força de trabalho viva sobre o passado
os homens representariam o seu próprio grupo e por consequência os inte- e o trabalho acumulado e, finalmente, a impossibilidade geral em reproduzir-
resses da sociedade, pode admitir-se que em todas as sociedades existe uma -se no isolamento e no incesto, podemos formular a hipótese segundo a qual
HOMhJll/Jl'lULlIER 160
161 HOMEM/MULHER
..
o tabu do incesto e a organização geral das relações de parentesco em volta
desta proibição respondem a estas diversas obrigações de ordem material 18. Uma contradição mais antiga que a das próprias classes e que se tran-
e impessoal, mas modificando-Ihes completamente o carácter. forma com o seu aparecimento
Porque, e isto é fundamental, a troca das mulheres e a cedência recí-
proca de direitos aos seus descendentes abrem um campo de obrigações pes- As contradições entre os sexos são seguramente mais antigas que as con-
soais entre os grupos e entre os indivíduos. Ora, estas obrigações pessoais tradições entre as classes e não as originaram. As classes formaram-se a partir
são ao mesmo tempo obrigações morais, uma vez que nascem de actos colec- de hierarquias entre grupos sociais·que eram grupos de parentesco «total-
tivos e individuais de troca: impõem direitos e deveres individuais oucolec- mente equipados» de homens e de mulheres. Mas se as contradições entre
tivos. E é através desta rede que se cumpre a necessidade material, impes-
~oalpara os grupos e os indivíduos, de cooperar para sobreviver, de partilhar
os sexos '
. não originaram as contradições entre as classes desenvolveram-se
conJuntamente, sem por essa razão se confundirem, mas favorecendo-se
recursos comuns obtidos, todavia, através de esforços particulares, e de mutuamente. Na sociedade feudal, por exemplo, um plebeu ainda que livre
garantir o acesso recíproco a estes recursos comuns. Vemos como é ~r~ciso
compreender a importância das relações de parentesco nas sociedades pri- de disp?r de si próprio não podia geralmente desposar, nem sequer tocar,
uma anstocrata. E esta gozava de um estatuto social muito mais elevado
mitivas. Elas funcionam ao mesmo tempo como os canais objectivos e as
que o de um plebeu e, a fortiori, qt\e o de uma mulher do povo. Pelo con-
origens e motivações subjectivas da entreajuda, da partilha entre os grupos trário, um nobre, enquanto tal, tinha direitos sobre as mulheres dos seus
locais e entre eles, e também como condição de acesso recíproco dds gru- súbditos, direitos que vinham a somar-se aos que ele possuía sobre as mulhe-
pos aos recursos comuns. Mas toda a gente sabe que, se as relações de paren- res da sua própria linhagem, cujo aasamento era um elemento decisivo da
tesco são muitas vezes, nas sociedades primitivas ou nos estratos campone- sua estratégia para conservar o podl:r e aumentar as suas riquezas. Witold
ses das sociedades de classe, condições sociais de produção e de entreajuda, Kula demonstrou, por exemplo, que os senhores polacos do século XVIII
são tambéme uma barreira, dado que a acaba
solidariedade, se se defmeacaba,
e se qtodula intervinham directamente no casamento dos seus componeses, obrigando-
em termos em graus de parentesco, onde o parentesco E esta
-os a casar com mulheres dos seus 4qmínios, obrigando as viúvas ~m idade
solidariedade não é apenas material, é também política, religiosa, ideológica.
Para além, começa não já o universo do dom e da partilha mútua, das garan- d~ trabalhar a voltarem a casar o mai,s rapidamente possível para fazer fun-
CIonarplenamente a exploração agrílllolaque implicava a cooperaçl1ddos dois
tias recíprocas, mas o universo da incursão, do roubo, 'da guerra, da expro- sexos na produção. Cada vez mais a contradição entre os sexo!!'se trans-
priação. forma segundo a natureza das cont,radições entre as classes, e at~ entre as
raças: basta lembrar o tratamento 4ue os plantadores brancos da América
reservavam aos seus escravos negros, machos ou fêmeas.
17. Múltiplos fundamentos da dominação masculina
Eis-nos de volta ao nosso ponto de partida e às lutas actuais para abolir
nas nossas sociedades as desigualdad~s sociais entre os sexos. O conhecimento
Procurámos mostrar que existem várias razões que, combinando-se entre
das sociedades antigas ou diferentes das nossas está longe de ser suficiente
si, determinam em múltiplas sociedades a dominação, em última' análise,
masculina. Estas causas podem variar, e estas variações deveriam poder dar para poder fornecer um quadro objectivo das múltiplas condições femininas
que existiram ou que existem ainda e para reconstruir o essencial 'das causas
conta das variações imensas do estatuto da mulher na sociedade de hoje e
do aparecimento da desigualdade etltre os sexos nas sociedades ~em classes
de ontem. É uma investigação ainda em aberto; todavia, a hip6tese geral
de Engels, retomada hoje por Eleanor Leacock e por correntes feministas e. da sua permanência nas sociedadt~ de classes. No entanto, é claramente
não marxistas, parece conservar um valor global: a ideia de que novall capa- VIsível que as razões profundas nãq residem em qualquer conspitação dos
cidades de exploração da natureza trouxeram possibilidades de acuniulação h0':llens contra as mulheres, mas tafinão pode constituir uma boa razão para
se Ignorarem as responsabilidades dos homens na conservação e usúfruto das
diferencial de riqueza e com elas oposições de interesses entre os grupos,
vantagens de que gozam. Mais uma vez, é necessário encarar os sistemas ideo-
entre os indivíduos, que aboliram a pouco e pouco as estruturas sociais mais
l6gicos com que deparamos nas sociedades sem classes e de classes.
igualitárias onde a oposição entre uma esfera de interesses públicos e de
interesses privados não existia ou não existia da mesma maneira. Em suma,
a ideia de que os processos que provocaram a formação lenta ou rápida de
19. Violência, desvalorização e legitimaçoes ideológicas
hierarquias sociais estabilizadas, de classe e de poderes de Estado em geral,
desvalorizaram o estatuto feminino.
Em toda a parte se encontram representações que opõem o homem e
a mulher como o seco e o húmido, o alto e o baixo o puro e o impuro
etc., como difierenças não apenas complementares mas hierárquicas.
" Assiste-se
a uma espécie de lógica de desvalorização das tarefas femininas e de sobre-

1\
HOMEM/MULHER 162 163 HOMEM/MULHER

valorização das actividades masculinas. Alguns antropólogos evidenciaram mente de ter direito à palavra ou que consentisse muda todas as opressões
o carácter arbitrário, aparente, das legitimações da dominação masculina. económicas, políticas e ideológicas que ela suporta. É necessário, pois, avan-
Numa dada sociedade a tecelagem surge como apanágio das mulheres e çar a idcia de que não é a sexualidade que age como um fantasma na socie-
inconveniente para os homens; numa outra é o contrário, e a tecelagem é dade, mas antes a sociedade que, como um fantasma, age na sexualidade,
então exclusivamente reservada aos homens, a cerâmica às mulheres. Mas no corpo. As diferenças entre os corpos que nascem de sexo diferente são
o que é idêntico na lógica destas reprrsentações é o facto de tudo quanto constantemente solicitadas a testemunhar relações sociais e realidades que
o homem faz ser sempre sobrevalorizl1do em relação ao que a mulher faz. nada têm a ver com a sexualidade. Não apenas a testemunhar qualquer coisa,
Trata-se de saber se este trabalho de dlscriminação simbólica não tem qual- mas te~temunhar em favor de qualquer coisa, ou seja, a legitimar.
t
quer coisa a ver com a violência qu~ exercida sobre as mulheres e com É p'ossível imaginar que as transformações actuais das nossas socieda-
a afirmação muitas vezes feita de que ~ar a vida não vale tanto como caçar, des, as lutas contra as relações de opressão, de classe, de raça, de sexo,
fazer a guerra, arriscar a vida e matar .. Há toda uma função das representa- cessarão gradualmente de investir a sexualidade de tudo quanto ela está
ções simbólicas que parece destinada ~.compensar os homens pelo facto de encarregada de dizer e de legitimar; porque a sexualidade não é o sexo,
não serem eles a pôr no mundo novas vidas, uma vez que isso está reser- e pode pensar-se que virá um dia em que a diferença dos sexos não deverá
vado às mulheres. Podemos interrogar-nos se a análise de Freud - que atri- mais alienar-se, tendo de testemunhar qualquer coisa além de si própria.
buiu às mulheres o desejo de um pénis, que as imagina deste modo defini-
das, por natureza, através de uma falta, a falta do que os homens possuem,
do que eles são, falta que nunca poderá ser satisfeita - não é no fundo 21. Dominação masculina e resistência feminina

homens que vivem esta falta, a falta da capacidade criadora da vida que Nesta análise, enfim, deixámos de lado um aspecto essencial, porque é
':.1 I as
essencialmente etnocêntrica,
mulheres têm. É assim queuma
os vez que da
Baruya em Nova
numerosas
Guiné sociedades
reconhecemsãoque
os falso e perigoso acreditar que em todas as sociedades onde reina a domina-
as mulheres outrora inventaram OS arcos que hoje em dia não têm o direito ção masculina não existe ou não tenha existido a resistência feminina. Por
de utilizar; elas inventaram igualmente as flautas, meios de comunicação com toda a parte, o observador verifica formas individuais e colectivas de resis-
os espíritos, flautas essas que actualmente lhes são proibidas ver ou tocar, tência que não são devidas à difusão da Declaração dos Direitos do Homem
sob pena de morte. Mas as mulheres não utilizavam o arco no bom sentido por parte dos países ocidentais. Recusa de cozinhar, recusa de fazer amor,
e matavam demasiada caça e demasiada gente. Os homens apoderaram-se divórcio, oposição .,....seja física, seja com o assassínio - à autoridade e à
então do arco, voltaram-no na boa direcção e desde então a guerra e a vida violência masculina são formas habituais de resistência que se podem observar
estão bem reguladas; mata-se como deve ser e o que deve ser. Nesta mito- no mundo. Mas não se trata de uma oposição estática, uma vez que a opo-
logia são expressas a ideia de uma criatividade superior das mulheres e a sição feminina implica sempre formas variadas de repressão masculina.
ideia de que a ordem social implica que sobre elas se exerça uma .violência, Todavia, o segundo aspecto essencial a evidenciar é que muitas vezes
que as mulheres sejam subordinadas. Poder-se-ia obviamente imaginar que na sua oposição as mulheres não contrapõem um modelo próprio da socie-
isto é o eco no pensamento de um estado ultrapassado de matriarcado, de dade. Obviamente, quando recusam cozinhar, fazer amor ou se divorciam,
poder das mulheres; mas o que diz o mito é que ontem o poder das mulhe- elas consideram que têm motivos e apresentam-nos, mas entre uma apre-
res tinha gerado a desordem e que hoje e amanhã a ordem social deve assen- sentação que sustenta uma oposição e uma apresentação que propõe uma
tar na dominação de uma parte da sociedade por parte da outra, dominação mudança radical da organização social vai uma enorme distância. Para-
que comporta a violência, física e simbólica. ! fraseando Marx, podemos dizer que na maior parte das sociedades as
C}'f.J, .. ~q-· ideias do sexo dominante são as ideias dominantes, associadas e misturadas
com as ideias da classe dominante. Actualmente, nas nossas sociedades,
20. A «linguagem» do corpo desenvolve-se uma luta para abolir simultaneamente as relações de domina-
ção de classe e de sexo, sem esperar que a abolição das classes preceda a
É nesta perspectiva, em nossa opinião, que se deveriam analisar as lin- outra.
guagens do corpo e a maneira como as sociedades vivem e sofrem os seus
corpos. Não é por acaso que o sangue menstrual que as mulheres têm sem
que o tenham desejado desempenha muitas vezes a função de dizer perante 22. Para um futuro sem modelo
todos que as mulheres só têm o que merecem, isto é, são vítimas sem ino-
Pode imaginar-se que a sociedade que surgirá lentamente desta luta não
realiza-se totalmente o trabalho ideológico, porque bastaria a uma mulher será a reprodução de nenhum modelo: nem das sociedades primitivas e igua-
ver o sangue
\ cência. escorrer
Em última entre as
análise, na suas per.nas do
linguagem paracorpo
que ela deixasse
e dos definitiva-
seus fantasmas, litárias nem das sociedades onde as mulheres teriam tido mais poder do
HOMEM/MULHER 164

que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nos
orientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcance
das investigaçOesque os antropólogos devem prosseguir com os historiado-
res para reconstituir as razões e as formas objectivas das relaçOes entre as
classes e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a repro-
dução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca a
capacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.J. MULHER

o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações


de produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organização
da exploração da nalUreza e a redistribuição (cf. produçdoldistribuição) dos produtos do trabalho,
deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produçAo,
Dicionários e enciclopédias defmem alternadamente a mulher como fêmea
sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam para do homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica do
além das ~ de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto, termo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmiçOes,ape-
está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinaçAo sar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto natu-
das mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo das
mulheres. ralista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo femi-
Para além.destas observações existe um princípio «IIlIturaJ"(cf. masculino/feminino, nalUreza/cul- nino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de características
lUra), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivência próprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Bri-
da espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través do
tannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women
mecanismo das -proibições» e das discriminações (cf. discriminaçdo): basta pensar na proibiçAo
do incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinaçAo das mulheres é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»:
existe assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição, troca), simbólica o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objecto
(cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor, exclusda/inte- de uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o facto
gração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «pri-
mitivas» (cf. caça/colecta, primitivo, selvagem/bárbarolcivilizado) que no entanto elaboraram for-
de que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher,
mas de igualdade por nós desconhecidas. . é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como o
macho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de
existir uma reciprocidade entre os dois pólos.
Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto,
resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhora
da casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano,
de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem que
a engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto histó-
ria da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua parte
de poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher,
antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea,
que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferença
natural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural do
homem em relação a ela. As definições que a consideram em termos par-
ciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas,
na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve um
papel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade.
A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social,
e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica que
tente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Que
história se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na qual
a sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta

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