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EXISTE VIOLÊNCIA SEM AGRESSÃO MORAL?

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

A Roberto Cardoso de Oliveira, in memoriam,


com admiração, carinho e saudade.

Inicio este texto com uma provocação a res- segundo aspecto ou o tipo de violência encontra
peito da noção de violência: pode-se falar em vio- melhores possibilidades de fundamentação do que
lência quando não há agressão moral? Embora a a do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausência
violência física, ou aquilo que aparece sob este rótu- da “violência moral”, a existência da “violência físi-
lo, tenha uma materialidade incontestável e a dimen- ca” seria uma mera abstração. Sempre que se dis-
são moral das agressões (ou dos atos de desconsi- cute a violência como um problema social tem-se
deração à pessoa) tenha um caráter essencialmente como referência a idéia do uso ilegítimo da força,
simbólico e imaterial, creio que a objetividade do ainda que freqüentemente este aspecto seja tomado
como dado, fazendo com que a dimensão moral
* Trabalho apresentado em “Estado, Violência e Cida- da violência seja pouco elaborada e mal compre-
dania na América Latina: Jornadas Interdisciplinares”, endida, mesmo quando constitui o cerne da agres-
realizadas na Freie Universität Berlin, Alemanha, en- são do ponto de vista das vítimas. Pois é exatamen-
tre 23 e 25 de junho de 2005. A versão original tinha te a esta dimensão do problema que me detenho
como título “Direitos, insulto e cidadania: existe vio-
lência sem agressão moral?”. Agradeço ao convite de no contexto do debate sobre a relação entre direi-
Ruth Stanley, assim como seus comentários e dos de- tos, insulto e cidadania.
mais colegas durante o evento. Agradeço também às Nos últimos anos venho tentando compreen-
leituras de Roberto Cardoso de Oliveira, Caetano Ara- der os atos ou eventos de desrespeito à cidadania
újo, e Carlos Gomes de Oliveira. que não são captados adequadamente pelo Judiciá-
Artigo recebido em dezembro/2007 rio ou pela linguagem dos direitos, no sentido estrito
Aprovado em março/2008 do termo. Assim, procuro apresentar o conteúdo
RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008
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desses atos por meio da noção de insulto moral, como compreensão dos fenômenos. O insulto moral reve-
um conceito que realça as duas características prin- lou-se um aspecto importante dos conflitos nos três
cipais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressão contextos etnográficos e, em vista de sua aparente
objetiva a direitos que não pode ser adequadamen- “imaterialidade”, tendia a ser invisibilizado como
te traduzida em evidências materiais; e, (2) sempre uma agressão que merecesse reparação.
implica uma desvalorização ou negação da identi- Apesar de o insulto moral aparecer com ca-
dade do outro. racterísticas próprias e implicações diversas em cada
Para formular a noção de insulto vali-me prin- contexto etnográfico, está freqüentemente associado
cipalmente da idéia-valor vigente no Brasil expres- à dimensão dos sentimentos, cuja expressão desem-
sa a partir da dicotomia consideração/desconsi- penha um papel importante em sua visibilidade.
deração. Tal categoria remete a um tipo de atitude Nesse sentido, o material etnográfico estimulou in-
importante na definição das interações sociais e ar- dagações sobre a expressão ou a evocação dos sen-
ticula-se com pelo menos três tradições de refle- timentos e a mobilização das emoções dos atores
xão sobre o tema, as quais têm marcado o desen- na apreensão do significado social dos direitos, cujo
volvimento do meu trabalho: (a) discussão em torno exercício demanda uma articulação entre as identi-
da noção hegeliana de Anerkennung (reconhecimento) dades dos concernidos. Trata-se de direitos aciona-
e da sua ausência expressa na idéia de Mißachtung dos em interações que não podem chegar a bom
(desrespeito, desatenção), retomada contempora- termo por meio de procedimentos estritamente
neamente nos trabalhos de Taylor (1994) e Hon- formais e que requerem esforços de elaboração sim-
neth (1996); (b) debate francês sobre considération (e bólica da parte dos interlocutores para viabilizar o
seu oposto, déconsidération), que remonta a Rousseau estabelecimento de uma conexão substantiva entre
e que alguns desdobramentos recentes diretamente eles, permitindo o exercício dos respectivos direi-
relacionados com meu foco de interesse foram reu- tos (Cardoso de Oliveira, 2004a, pp. 81-93). A ati-
nidos numa publicação de Haroche e Vatin (1998), tude de distanciamento ou a ausência de deferência
em que o tratamento relativo à consideração é de- ostensiva situadas no pólo oposto desta conexão,
finido como um direito humano; e, (c) discussões quando percebidas como constituindo um ato de
associadas à noção maussiana de dádiva ou reci- desconsideração, provocam o ressentimento ou a
procidade, assim como têm sido articuladas pelo indignação do interlocutor, característicos da per-
grupo da Revue du M.A.U.S.S., especialmente nos cepção do insulto.
trabalhos de Caillé (1998) e Godbout (1992, 1998).1 Neste empreendimento, a fenomenologia do
Desse modo, analiso a relação entre as idéias fato moral assim como proposta por Strawson,
de respeito a direitos plenamente universalizáveis, acionando a experiência do ressentimento, parece-
tendo como referência o indivíduo genérico, e de me particularmente apropriada para caracterizar o
consideração ao cidadão, portador de uma identi- lugar dos sentimentos na percepção do insulto, dan-
dade singular. Tenho examinado essa relação em do visibilidade a este tipo de agressão, e sugerindo
três contextos etnográficos distintos – no Brasil, no uma distinção importante entre ato e atitude ou in-
Canadá (Quebec) e nos Estados Unidos – por meio tenção para a apreensão do fenômeno:
da análise de conflitos e de eventos políticos que
envolvem afirmação de direitos ou demandas por Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquan-
reconhecimento. A articulação entre as dimensões to tenta me ajudar, a dor não deve ser menos aguda do
que se pisasse num ato de desconsideração ostensiva à
legal e moral dos direitos ou da cidadania encon-
minha existência, ou com um desejo malévolo de me
tra-se então no primeiro plano da pesquisa nesses agredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundo
três países. Tanto nos processos de resolução de caso, um tipo e um grau de ressentimento que não
disputas no âmbito dos Juizados de Pequenas Causas sentiria no primeiro [. . .] (Strawson, 1974, p. 5).
em Massachusetts, como no debate público sobre
a soberania do Quebec, ou nas discussões sobre Ainda segundo Strawson, o ressentimento da
direitos quando da elaboração da Constituição de vítima nesse tipo de situação provocaria um sentimen-
1988 e nas reformas que se seguiram no processo to de indignação moral em terceiros que tivessem
de redemocratização do Brasil, as idéias de respei- presenciado o ato e capitado a intenção do agressor,
to e consideração mostraram-se fecundas para a dando assim substância ao caráter objetivo da agres-
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são. Evidentemente, quando falamos em sentimen- a análise de pequenas causas nos Estados Unidos
tos no plano moral, dirigimo-nos àqueles sentimentos (Cardoso de Oliveira, 1989, 1996a, 1996b, 2002);
social ou intersubjetivamente compartilhados. seja devido à dificuldade de formular um discurso
O insulto aparece então como uma agressão adequado para fundamentar direitos não universa-
à dignidade da vítima, ou como a negação de uma lizáveis, como sugere a resistência do Canadá an-
obrigação moral que, ao menos em certos casos, sig- glófono às demandas por reconhecimento do
nifica um desrespeito a direitos que requerem res- Quebec como uma sociedade distinta (Idem, 2002); ou
paldo institucional. Tomada como o resultado da ainda seja devido aos constrangimentos para a uni-
transformação da noção de honra na passagem do versalização do respeito a direitos básicos de cida-
antigo regime para a sociedade moderna (Berger, dania no Brasil, em vista da dificuldade experimen-
1983; Taylor, 1994), a dignidade é caracterizada tada pelos atores em internalizar o valor da igualdade
como uma condição dependente de expressões de como um princípio para a orientação da ação na
reconhecimento, ou de manifestações de conside- vida cotidiana (Idem, ibidem).
ração, cuja negação pode ser vivida como um in- A propósito, essa dificuldade brasileira indu-
sulto pela vítima, percebido como tal por terceiros. ziu-me a propor uma distinção entre esfera e espa-
Esta formulação tem sido aprimorada pelo diálogo ço públicos, como duas dimensões da vida social,
com abordagens que enfocam a dádiva ou as rela- vigentes nas sociedades modernas de uma maneira
ções de reciprocidade (ver La Revue du M.A.U.S.S.), geral, mas que no Brasil teriam a peculiaridade de
o qual me permitiu caracterizar direitos que dão apresentarem-se de forma desarticulada. Enquan-
precedência ao elo social e que colocam em segundo to a esfera pública englobaria “o universo discursi-
plano a dimensão dos interesses individuais ou a vo onde normas, projetos e concepções de mun-
idéia de direitos intrínsecos ao indivíduo. Assim, do são publicizadas e estão sujeitas ao exame ou
sugiro que o reconhecimento poderia ser concebi- debate público” (Idem, 2002. p. 12), seguindo Ha-
do como a outra face do hau do doador na elabo- bermas, o espaço público é caracterizado “como
ração de Marcel Mauss sobre as trocas recíprocas; o campo de relações situadas fora do contexto do-
e argumento que a sua expressão constituiria uma méstico ou da intimidade onde as interações sociais
das três dimensões temáticas presentes em quase efetivamente têm lugar” (Idem, ibidem). Tal noção de
todos os conflitos que desembocam no Judiciário: espaço público tem um campo semântico em al-
guma medida similar ao definido por DaMatta em
(1) a dimensão dos direitos vigentes na sociedade ou relação ao mundo da rua, mas procura realçar um
comunidade em questão, por meio da qual é feita uma padrão de orientação para a ação que combinaria a
avaliação da correção normativa do comportamento
perspectiva da impessoalidade com uma atitude
das partes no processo em tela; (2) a dimensão dos
interesses, por meio da qual o judiciário faz uma avali- hierárquica em face do mundo, trazendo para o
ação dos danos materiais provocados pelo desrespeito a cotidiano dos atores o que Kant de Lima define
direitos e atribui um valor monetário como indeniza- como “paradoxo legal brasileiro” (1995, pp. 56-
ção à parte prejudicada, ou estabelece uma pena como 63). O que salta aos olhos no caso brasileiro é a
forma de reparação; e, (3) a dimensão do reconheci- contradição entre a hegemonia das idéias liberais
mento, por meio da qual os litigantes querem ver seus
direitos de serem tratados com respeito e consideração
em prol dos direitos iguais na esfera pública e a
sancionados pelo Estado, garantindo assim o resgate da dificuldade encontrada pelos atores em atuar de
integração moral de suas identidades (Cardoso de Oli- acordo com essas idéias no espaço público, onde a
veira, 2004b, p. 127). visão hierárquica freqüentemente teria precedência.
Uma dificuldade a mais nos três casos etno-
A caracterização do insulto como uma agres- gráficos estudados deve-se ao fato de o reconheci-
são moral, de difícil tradução em evidências ma- mento e a consideração não poderem ser converti-
teriais, trouxe à tona uma dimensão dos conflitos dos em direitos protegidos pelo Judiciário, pois não
freqüentemente mal equacionada pelos atores em há como fundamentar legalmente a atribuição de
sociedades complexas, modernas (contemporâneas), um valor singular a uma identidade específica, e
onde vigora o direito positivo. Seja devido à gran- exigir o seu reconhecimento social. As demandas
de dose de impermeabilidade do Judiciário a de- por reconhecimento também não podem ser satis-
mandas de reparação por insulto, como demonstra feitas pela simples obediência a uma norma legal,
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na medida em que aquele que reconhece deve ser sistematicamente descritos como procedimentos de
capaz de transmitir um sinal de apreço ao interlo- caráter impositivo.
cutor – isto é, à sua identidade ou ao que ela repre- Assim, a filtragem das causas começa no bal-
senta. Nos casos em que o reconhecimento torna- cão do juizado, quando o autor tem sua causa “re-
se uma questão, a ausência deste sinal é vivida como duzida a termo” pelos funcionários que enquadram
uma negação da identidade do interlocutor, que se a demanda em categorias jurídicas e encaminham
sente agredido. É, nesse sentido, que o aspecto dia- administrativamente as causas. Em vez de atentar
lógico do reconhecimento se faz presente com to- para a perspectiva dos litigantes na disputa, os proce-
das as suas implicações. Isto também significa que dimentos de conciliação parecem procurar conven-
o reconhecimento é uma atitude ou um direito que cer as partes sobre a precedência da lógica judicial
precisa ser permanentemente cultivado, e que as e dos constrangimentos que impediriam qualquer
demandas a ele associadas não podem jamais ser equacionamento de outra ordem (Kant de Lima et
contempladas de forma definitiva. Mesmo quan- al., 2003, pp. 19-52). Na mesma direção, Alves fala
do elas são plenamente satisfeitas em um determi- de “acordos forçados” em sua pesquisa sobre os
nado momento, não há garantia de que o proble- Juizados Cíveis no Paranoá (2004, pp. 104-108),
ma não possa reaparecer no futuro. confirmando relatos que me foram feitos por alu-
O estudo de Juizados Especiais no Distrito nos de direito estagiando em Juizados Especiais,
Federal focaliza tanto as causas criminais como as segundo os quais esta atitude impositiva seria mui-
cíveis e, neste último caso, as causas por dano mo- to freqüente entre os conciliadores dos Juizados.
ral suscitam interesse especial. A literatura sobre os Ao vestirem uma pelerine, os conciliadores assu-
Juizados tem chamado a atenção para certas carac- mem plenamente o papel de autoridades e acen-
terísticas particularmente interessantes que dizem tuam ainda mais a distância em relação às partes.2
respeito à relação entre dádiva, insulto, direitos e Nesse sentido, é necessário investigar melhor,
sentimentos. Assim como em minha pesquisa so- com mais detalhe, a visão dos litigantes sobre o mo-
bre Juizados de Pequenas Causas nos Estados Uni- do pelo qual suas causas são processadas no Juizado,
dos, os Juizados no Brasil também parecem impor e em que medida eles vêem seus direitos, interesses
às causas que lhe são encaminhadas um forte pro- e preocupações contemplados ao longo da tramita-
cesso de filtragem, o qual tende a excluir aspectos ção da causa ou no desfecho no âmbito da instituição.
significativos do conflito vivido pelas partes, redu- Há sinais de que as diferenças entre conciliação, tran-
zindo substancialmente a perspectiva de um equa- sação penal e audiência de instrução e julgamento
cionamento adequado para suas demandas e preo- nem sempre são inteiramente claras para as partes
cupações. Desse modo, apesar de os litigantes terem (Gomes de Oliveira, 2005), e seria interessante in-
a oportunidade de resolver suas disputas por meio dagar sobre os significados atribuídos à negocia-
da conciliação ou de uma transação penal antes de ção nas duas primeiras modalidades de encaminha-
terem suas causas avaliadas pelo juiz numa audiên- mento e ao julgamento do juiz na última delas.
cia de instrução e julgamento, as duas primeiras não Confirmando-se o aparente descompasso entre a
constituem etapas ou possibilidades verdadeiramen- perspectiva dos litigantes e a dos operadores do
te alternativas à audiência judicial, pois parecem direito, como estes justificariam o padrão de trata-
orientar-se pela mesma lógica de equacionamento mento dado às causas no Juizado, e como perce-
exclusivamente jurídico das disputas. Enquanto nos beriam o significado dos aspectos das disputas ex-
Estados Unidos os serviços de mediação costu- cluídos do processo por meio da prática de reduzir
mam viabilizar a discussão de problemas que não a termo?
têm espaço nas audiências judiciais, ainda que fre- Aliás, o que o Judiciário costuma deixar de
qüentemente não consigam contemplar as deman- fora são todos aqueles aspectos das disputas asso-
das dos atores em relação à reparação por insulto, ciados à dimensão temática do reconhecimento,
no Brasil a conciliação e/ou a transação penal pro- conforme definido acima. Como procurar-se-á
curam produzir acordos que representam uma demonstrar em seguida, além de inviabilizar a com-
obediência estrita à lógica judicial, com o agravante preensão das causas onde o reconhecimento tem
de não manter a mesma preocupação com os di- um lugar significativo, o Judiciário acabaria cola-
reitos das partes ao devido processo legal, sendo borando para o eventual agravamento destes con-
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flitos. Na mesma direção, o material etnográfico ponto de vista da vítima. Não me refiro a processos
não apenas chama a atenção para a importância da terapêuticos em sentido estrito, como um padrão,
dimensão moral dos direitos, mas sugere também mas à necessidade de repor os déficits de significa-
que talvez não seja adequado falar em violência do provocados por agressões arbitrárias, vividas
quando não houver agressão de ordem moral, dan- como uma negação do eu ou da persona da vítima,
do sentido ao aparente paradoxo de que a “violên- e cujo caráter normativamente incorreto e merece-
cia física”, sem um componente simbólico/moral, dor de sanção social negativa tem que ser internali-
seria apenas uma abstração, invertendo, de fato, a zado pela vítima para que sua identidade de pessoa
equação entre os pares material/simbólico, de um moral, digna de estima e consideração, seja resgata-
lado, e objetivo/subjetivo, de outro. A discussão da. Como tem sido assinalado na literatura sobre o
de Simião (2005) sobre “violência doméstica” no problema do pagamento de cestas básicas como
Timor Leste é particularmente contundente em re- pena alternativa, que pode até mesmo punir as víti-
lação à precedência da dimensão simbólico-moral mas de baixa renda, uma vez que retira recursos
na constituição da violência. Entretanto, vale à pena significativos de sua unidade doméstica, a sanção
abordar outros exemplos para caracterizar melhor não guarda nenhuma relação com o aspecto mo-
a problemática do insulto antes de concluir com o ral da agressão. Além disso, há relatos de que o
exemplo do Timor Leste. próprio cumprimento da pena poderia ser enten-
São conhecidas as críticas à atuação dos Jui- dido como um agravante da agressão moral à víti-
zados Especiais Criminais (Jecrims) brasileiros nos ma, como nos “vários casos de autores chegarem
casos que envolvem agressões à mulher e a negocia- no cartório com o comprovante de pagamento da
ção de penas alternativas. Além da alta incidência e cesta e dizendo que se ele soubesse que seria tão
reincidência de casos de mulheres que são repeti- barato bater na mulher, ele bateria mais vezes” (Be-
damente agredidas por seus companheiros e não raldo de Oliveira, apud G. Debert, 2002). Tal afir-
encontram nos tribunais uma proteção adequada, mação, que provavelmente é repetida na frente da
o modo pelo qual suas causas são equacionadas vítima, imputa a ela a condição de um mero obje-
nos Juizados dirige-se exclusivamente à dimensão to, sujeito às idiossincrasias do agressor.
física da agressão, deixando inteiramente de lado o Entretanto, os casos de agressão à mulher são
aspecto moral que, de certo modo, machuca mais apenas os mais conhecidos e os mais numerosos
e tem conseqüências mais graves.3 Refiro-me ao atendidos pelos Jecrims. Problemas similares ocor-
processo de desvalorização da identidade da víti- rem em causas envolvendo demandas do consumi-
ma, levada a assumir a condição de total subordi- dor, ou em conflitos entre vizinhos e parentes, cujo
nação às idiossincrasias (agressivas) do companhei- potencial para desembocar em crimes graves é
ro. O discurso da perda da identidade é recorrente, muito maior do que geralmente se imagina. Isto é,
e os direitos agredidos neste plano não encontram se levarmos em conta dados recentemente publi-
respaldo no processo de resolução de disputa no cados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP,
âmbito do Judiciário. Embora os processos de con- indicando que 38% das agressões com arma de
ciliação e de transação penal critiquem, às vezes com fogo em Salvador e no Distrito Federal, por exem-
veemência, as agressões do companheiro, há forte plo, são protagonizadas por conhecidos, compa-
pressão para o acordo ou para a aceitação da pena nheiros ou familiares (Peres, 2004, p. 29).4 No que
alternativa negociada, sem que seja elaborado de concerne aos conflitos do consumidor, Ciméa Be-
forma adequada o significado moral da agressão vilaqua relata vários casos nos quais o sentimento
sofrida. Isto é, esta dimensão não é nem abordada, de terem sido desrespeitados por fornecedores é
o que inviabiliza sua reparação, dado que a sua per- um aspecto central das causas encaminhadas por
cepção ou sanção não pode ser automaticamente consumidores. Em uma delas, após ter seu pleito
embutida no acordo, transação penal ou decisão comercial plenamente contemplado pelo fornece-
focada apenas no aspecto físico da agressão. dor, o consumidor só concorda com o acordo ne-
Pois, se a ocorrência do insulto demanda es- gociado na frente do delegado quando o forne-
forços de elaboração simbólica para ganhar inteli- cedor se dispõe a pedir desculpas formais a ele
gibilidade, a sua reparação freqüentemente deman- (Bevilaqua, 2001, p. 319). O componente moral das
daria ainda processos de elucidação terapêutica do disputas, aqui expresso pela percepção do insulto,
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pode ganhar amplitude surpreendente, como no nizar Denílson, além de ter que prestar serviços à
conflito entre Anselmo, Denílson e Natalício, des- comunidade como pena alternativa. Embora re-
crito por Gomes de Oliveira (2005, pp. 90-93) em conheça a responsabilidade pelos estragos no car-
sua etnografia sobre Jecrims na cidade do Gama, ro, fica inconformado por não ter podido apre-
em Brasília. sentar sua demanda em relação às ár vores
A rigor, trata-se de conflitos sistematicamente arrancadas, já que o juiz teria se recusado a ouvi-lo,
repetidos entre estes três vizinhos, que vêm se agra- e não consegue entender a lógica do Juizado:
vando ao longo do tempo com a colaboração do
Judiciário, não encontrando um caminho adequa- [. . .] um cara que rancou casca de uma árvore foi pre-
do para equacionar as respectivas disputas.5 Apesar so [referindo-se à notícia de um camponês preso por
de esses conflitos compartilharem muitos dos pro- ter arrancado casca de árvore protegida para fazer chá
(LRCO)], eu vejo o cara quebrando uma árvore aqui
blemas identificados por Gomes de Oliveira em
não é crime, eu fui lá, fiz minha justiça, porque achei
outras causas que chegam aos Juizados, não deixa que se eu fosse lá e fizesse minha justiça o cara não ia
de ser curioso o fato de o Judiciário neste caso se mais mexer comigo, o juiz vai me obrigar a pagar o
mostrar incapaz de lidar com a seqüência de pro- carro, me obriga a prestar serviços à comunidade, mas
blemas entre as partes – um promotor (MP), por não obriga o cara a replantar as árvores (Idem, p. 92).
exemplo, sugeriu que um dos envolvidos mudasse
de endereço como forma de solucionar o proble- Além de reclamar da recusa do juiz, que lhe
ma! (Idem, p. 90), conselho aparentemente seguido havia sugerido dar entrada em outro processo,
por Denílson que não mora mais lá. Os três perso- Anselmo interpreta a pressa do Juizado como sinal
nagens são pessoas de classe média baixa e residem de indiferença e arbitrariedade de uma decisão sem
em casas vizinhas que compartilham a área verde sentido, afirmando: “Eu me senti um Zé ninguém,
em frente aos seus terrenos. Tal área não pode ser uma pessoa pequena, diminuída [. . .]” (Idem, p. 92).
cercada e, embora seja considerada área de transito Anselmo alega que deveria ter direito à reparação
livre, não deixa de representar projeções associadas por danos morais e sugere, em sua fala, que a mo-
a cada terreno, conforme padrão generalizado em tivação para fazer a sua justiça estava associada à
Brasília, emprestando certa ambigüidade a seu sta- tentativa de fazer com que Denílson não mexesse
tus no que concerne aos direitos das partes e ocupan- mais com ele. Isto é, não o desrespeitasse ou não o
do lugar de destaque nos conflitos entre elas. An- desconsiderasse mais. Como nenhuma de suas
selmo é pintor autônomo de carros, tem 38 anos, alegações recebera atenção do Juizado, Anselmo
reside com a companheira e não tem filhos; Nata- não apenas fica insatisfeito com o resultado, mas
lício tem 25 anos, está desempregado e reside com também concebe seu conflito com Denílson como
a mãe e os irmãos; Denílson tem 30 anos, morava uma questão em aberto, sujeita a ser retomada a
com a mãe na época dos conflitos e, atualmente, qualquer momento.
está residindo com a esposa em outra localidade. No segundo episódio envolvendo Anselmo,
O primeiro incidente relatado por Gomes de a disputa é com Natalício, mas a lógica do Juizado
Oliveira envolve Anselmo e Denílson, e teria sido continua igualmente distante da perspectiva das
detonado pela iniciativa de Anselmo de plantar ár- partes. Agora os dois litigantes alegam terem sofri-
vores na área verde sem respeitar os limites de sua do ameaças de parte a parte, e o juiz condena am-
projeção. A mãe de Denílson não gosta da idéia e bos a pagarem cestas básicas como pena alternati-
pede ao filho que solicite a retirada das árvores. Ao va. Os dois saem insatisfeitos do Juizado e Natalício
falar com Anselmo, Denílson avisa que ele mesmo faz críticas similares às que Anselmo havia feito an-
retiraria as árvores caso o outro não o fizesse. An- teriormente, indicando contrariedade com a falta
selmo toma a ameaça como uma ofensa, deixa tudo de espaço para discutir o caso. Como alega não ter
como está, e Denílson tira as árvores plantadas na condições de pagar as cestas básicas por estar de-
área verde associada ao seu terreno. Anselmo fica sempregado, fica sujeito a uma eventual ordem de
irado com essa atitude, prepara um coquetel mo- prisão do juiz. Assim como no primeiro episódio,
lotov e o arremessa contra o carro de Denílson o encaminhamento dado ao conflito no Juizado
após pular o muro de sua residência. É então pro- mantém a questão em aberto entre as partes, o que
cessado pelos danos ao carro e condenado a inde- sugere a possibilidade de que as ameaças se trans-
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formem em agressões mais graves no futuro. O dispusessem voluntariamente a contar toda a ver-
foco do Juizado na “redução a termo” das disputas, dade sobre os crimes políticos (em sentido amplo)
filtrando apenas a dimensão estritamente legal dos que teriam cometido durante o apartheid seriam anis-
conflitos, talvez permita pensarmos numa certa fe- tiados pela Comissão. Os depoimentos eram reali-
tichização do contrato – como categoria englobadora zados na presença das vítimas (quando vivas) ou
das prescrições jurídicas de todo tipo –, caracterís- de seus parentes e advogados, que poderiam fazer
tica do direito positivo, em que o espaço para arti- perguntas ao criminoso confesso. Com a possibili-
cular demandas é limitado ao que está estipulado dade de anistia, a ênfase do procedimento não es-
no contrato e no código penal (ou civil), como pres- tava na punição dos culpados ou responsáveis, mas
crições autocontidas, auto-suficientes e abrangen- na restauração da harmonia social, expressa por
tes o bastante para equacionar os conflitos que che- meio da categoria nativa Ubuntu. Além do caráter
gam ao Judiciário. Assim, a dimensão moral dos catártico dos depoimentos para vítimas e agresso-
direitos é totalmente descartada de qualquer avalia- res, o desvendamento de eventos carregados de
ção, e relações entre pessoas, portadoras de identi- simbolismo e emoção para as partes, em um con-
dade, são pensadas como relações entre coisas ou texto institucional muito significativo e amplamen-
autômatos com interesses e direitos prescritos, mas te compartilhado pela sociedade como um todo,
sem sentimentos, autonomia ou criatividade. acabou tendo um forte componente terapêutico,
Problemas desta ordem não são vividos com viabilizando a reparação de ofensas e sofrimentos
dramaticidade apenas nos Jecrims ou por litigantes que, segundo os atores, uma condenação judicial
como Anselmo, Denílson e Natalício, mas pare- jamais teria realizado.
cem representar um padrão de dificuldade para li- Há muitos relatos de parentes das vítimas nos
dar com direitos associados à dimensão moral das quais a oportunidade de tomar conhecimento so-
disputas, característico de tribunais onde vigora o bre o que teria de fato ocorrido quando do desa-
direito positivo, ou de instituições orientadas pela parecimento, ou assassinato, de seus entes queridos
mesma lógica, em diversas partes do mundo. Rela- é descrita como uma experiência de alivio e de re-
tos sobre a Comissão de Verdade e Conciliação estruturação da identidade da maior relevância.
estabelecida na África do Sul para lidar com as atro- Além da superação da angústia viabilizada pelo
cidades do apartheid ou o debate em torno da para- acesso à informação, as condições em que o pro-
nóia do querelante na Austrália são bons exemplos cesso se dá permitem uma reelaboração da perda
da abrangência do problema e da pluralidade de ou da agressão num novo patamar de inteligibili-
situações onde a invisibilidade dos respectivos di- dade, renovando o significado da experiência e da
reitos aos olhos do Judiciário e a importância do inserção social das partes. Desse modo, ao permi-
seu equacionamento do ponto de vista das partes tir que a experiência de agressão seja revivida com
emergem de maneira muito forte. maiores esclarecimentos e possibilidades de mobi-
Em uma análise interessante e criativa sobre lizar as emoções para restabelecer uma conexão
justiça transicional em três países africanos que pas- plena com os eventos vividos no passado, e con-
saram por regimes opressivos ou situações de guerra tando com o apoio institucional adequado, a Co-
civil, Simone Rodrigues (2004) apresenta um mate- missão seria um bom exemplo dos processos de
rial particularmente estimulante sobre a Comissão elucidação terapêutica mencionados acima. Em
de Verdade e Reconciliação instalada na África do poucas palavras, o processo de (re)discussão dos
Sul no período pós-apartheid. Sob a liderança do Re- crimes do apartheid no âmbito da Comissão, dra-
verendo Desmond Tutu, a Comissão foi instalada matizado nos depoimentos e na busca por esclare-
como alternativa aos tribunais judiciais que vinham cimento dos atores, cuja indignação e eventual ar-
julgando os crimes ocorridos durante o apartheid, rependimento (dos agressores) são “ritualmente”
inclusive aqueles que teriam sido cometidos pelo sancionados pelo Estado, produz uma ressimboli-
Congresso Nacional Africano. A Comissão reali- zação da experiência das partes e a renovação de
zava sessões públicas televisivas em canal aberto e suas identidades como pessoas morais, dignas do
mobilizou a sociedade. Uma de suas características respeito e da consideração que haviam perdido.
centrais, e que gerou muitas críticas no início dos Mas, se o exemplo da África do Sul revela
trabalhos, era o fato de que todos aqueles que se possibilidades efetivas de reparação para o insulto
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de ordem moral, a discussão sobre a paranóia do pessoa do mesmo gênero e faixa etária, cuja recla-
querelante na Austrália indica a dificuldade que as mação era similar em linhas gerais. Entre os 110
instituições modernas têm para lidar com este ti- casos selecionados 96 tiveram seus questionários res-
po de agressão. Os dados australianos foram retira- pondidos, sendo que 52 correspondiam a recla-
dos da edição de abril de 2004 do British Journal of mantes persistentes e 44 aos casos de controle.
Psychiatry, que traz os resultados de pesquisa realiza- Setenta e dois por cento dos persistentes eram
da sobre o tema por um grupo de psiquiatras aus- homens que, num universo equilibrado de acordo
tralianos. Segundo eles, a paranóia do querelante já com o gênero, indicava uma super-representação
teria ocupado um lugar de destaque na literatura, de homens no grupo persistente. O material foi
mas teria caído em descrédito na primeira meta- classificado segundo muitas variáveis comporta-
de do século XX, “atacada por críticas de que não mentais e constitui uma rica fonte de análise a ser
fazia mais do que patologizar aqueles com energia desenvolvida em várias direções. Em um manus-
e disposição para defender seus direitos” (Lester et crito ainda inédito, comparo de forma mais deta-
al. 2004, pp. 352-356). A pesquisa foi feita em seis lhada este material com dados etnográficos do Brasil
escritórios de Ouvidores, com o auxílio de pro- e dos Estados Unidos e sugiro que, ao não conse-
fissionais experientes no encaminhamento de re- guir entender adequadamente demandas de repa-
clamações apresentadas por cidadãos, cuja pri- ração por insulto, o Judiciário tende a interpretá-las
meira tentativa de resolver seus problemas nas mais como produto de alguma deficiência mental dos
diversas instituições e tipos de atividade (governo, reclamantes.6 No momento, gostaria apenas de sa-
negócios, serviços) havia fracassado. Esses pro- lientar alguns dados que ajudam a caracterizar subs-
fissionais da ouvidoria foram solicitados a pre- tancialmente a percepção do insulto do ponto de
encher questionários sobre reclamantes especial- vista dos atores e a amplitude de causas onde ele se
mente persistentes, cujos casos já haviam sido faz presente, sem deixar de identificar caracterís-
arquivados. Cada vez que um caso fosse identifica- ticas excepcionais que sugerem a existência de
do, os profissionais selecionavam, como controle, problemas psicológicos mais agudos entre os re-
o próximo caso nos arquivos apresentado por clamantes.

Quadro Comparativo entre Reclamantes Persistentes e Controles

Indicadores de Perspectiva ou Comportamento Persistentes Controles

Assinalan danos à auto-estima 40% 12%

Querem desculpas por mal-trato 67% 32%


Justiça baseada em princípios 60% 18%
Querem vingança 43% 11%
Querem “to have their day in court” 29% 04%
Fazem ameaças ao telefone ou em pessoa 52% 00%

Como mostra o quadro, todas as variáveis sociados da identidade do reclamante. Ainda que
selecionadas indicam aspectos que demonstram o haja diferenças significativas entre as duas colunas,
envolvimento pessoal dos reclamantes com suas é interessante notar que, com exceção da última
causas e trazem à tona dimensões da reclamação variável – “fazer ameaças ao telefone ou em pes-
que não se resumem a demandas por reparação de soa” –, todas as demais também aparecem com
interesses ou de direitos impessoais, totalmente dis- alguma intensidade na coluna dos Controles. Neste
EXISTE VIOLÊNCIA SEM AGRESSÃO MORAL? 143

aspecto, enquanto as três primeiras variáveis fazem do de homens e mulheres em vários lugares no
uma forte associação entre direito e identidade – e Timor. Entretanto, a forte atuação de ONGs e or-
sua relevância também seria facilmente demonstra- ganismos internacionais no combate a essas práti-
da nos casos discutidos anteriormente –, as três úl- cas, sem qualquer esforço para compreender o seu
timas refletem com maior ênfase a necessidade das sentido local, tem mudado este quadro. Os pro-
partes em confrontar as agressões alegadas para gramas de combate à “violência doméstica” insti-
superar o problema e resgatar suas identidades ou tuídos pelo Estado sob forte influência do discur-
o sentido que atribuem à cidadania. A propósito, se so universalista (e por vezes sociocêntrico) em defesa
a quarta e a sexta variáveis expressam uma atitude dos direitos humanos e da igualdade de gênero,
agressiva diante do problema, a demanda de “ter sem as mediações necessárias para ajustar o discur-
seu dia no tribunal” (to have their day in court) consti- so ao contexto local, têm tido algum êxito na prote-
tui uma expressão de duplo sentido no mundo ção das mulheres contra este novo tipo de agressão,
anglo-saxão: de um lado caracteriza o direito de mas têm também criado novos impasses, confu-
todo cidadão, como pessoa moral, ter seus direitos sões e ambigüidades. Com a criminalização das
respeitados e suas reclamações ouvidas pelo Esta- agressões (físicas) à mulher em sentido amplo, fo-
do; de outro, é utilizada para assinalar uma certa ram inviabilizados, em grande medida, os procedi-
condescendência institucional para com aqueles liti- mentos tradicionalmente acionados para o equacio-
gantes cujo comportamento ou argumentos não namento desse tipo de conflito, que em muitas
fazem muito sentido do ponto de vista do tribunal, circunstâncias respondem melhor às demandas das
mas fazem questão de exercer o direito de serem partes.7 Trata-se de um processo complexo e rico
ouvidos pelo juiz. em implicações bem abordadas no trabalho de Si-
Em qualquer hipótese, embora seja inegável mião, o que me leva a fazer três observações no
o caráter excessivo de alguns comportamentos de sentido de enfatizar a importância da precedência
litigantes classificados como persistentes, há uma simbólico-moral da violência para uma melhor
continuidade com os casos-controle nos quais os compreensão do fenômeno.
atores demonstram sensibilidade ao insulto. Mais Em primeiro lugar, se atentarmos para o pon-
do que uma dimensão paranóica, os reclamantes per- to de vista dos atores e para o contexto de referência
sistentes chamam a atenção para as dificuldades das de suas representações, verificaremos que a agres-
instituições judiciárias ou congêneres em lidar com são física do passado, legitimada socialmente por
o insulto, assim como para o significado social des- meio de seu sentido pedagógico, passa a ser carac-
se tipo de agressão. Aliás, como discuto no manus- terizada como um ato de violência, recriminado
crito supracitado (ver nota 7), o fenômeno descri- socialmente, no momento em que seu conteúdo
to como querulous paranoia no British Journal of Psychiatry pedagógico perde vigência e o ato passa a ser in-
é muito mais abrangente do que parece à primeira terpretado como uma agressão à identidade da ví-
vista, e poderia ser mais bem compreendido a par- tima. Enquanto o bater tinha uma justificativa mo-
tir da problemática do insulto. ral e o sofrimento da vítima era essencialmente físico,
Para concluir, gostaria de fazer menção ao a prática era não só aceita, mas também defendida
trabalho de Simião (2005) sobre o Timor Leste, por homens e mulheres, que se limitavam a criticar
que mostra como o descrédito em relação à dimen- os excessos. Não obstante, quando o bater se cons-
são moral da violência teria marcado o processo titui numa nova forma de agressão, dirigida à pes-
de “invenção da violência doméstica” como um soa da vítima e representada como um desrespeito
problema social contemporâneo. Tradicionalmen- ou negação de sua identidade como pessoa moral,
te, os timorenses concebiam várias situações em que a agressão ganha ares de “violência doméstica” e
bater na mulher e nos filhos, ou eventualmente apa- passa a ser intolerável. Essa mudança aparece cla-
nhar da mulher nas mesmas circunstâncias, tinha um ramente na descrição que Simião faz do caso da
aspecto pedagógico. Bater para corrigir problemas timorense que durante onze anos apanhara do ma-
de comportamento seria uma atitude legítima entre rido sem que isto fosse um problema na relação,
marido e mulher ou entre pais e filhos, desde que até o momento em que ela passou a conviver com
fosse feito com moderação. Ainda hoje, discursos estrangeiros no escritório local da Cruz Vermelha,
legitimando o bater pedagógico encontram respal- onde trabalhava; para surpresa do marido, decidiu
144 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

pedir divórcio. Segundo Simião, “à dor física que mento dos mesmos problemas, e que seria mais comum
ela sentiu durante anos agora se somava a uma dor entre as mulheres. Esta perspectiva tem sido retomada
na análise de disputas jurídicas nos Estados Unidos
moral. O sentido do ato de agressão mudara, mu-
(Conley e O’Barr, 1990, 1998).
dando, com isso, as suas conseqüências” (2005, p.
94). Indagando sobre o caso, o autor descobre que 2 Uma pesquisa realizada por Júlia Brussi em três Juiza-
dos Especiais Criminais no DF sugere que esta distân-
“a mulher agora envergonhava-se por apanhar do cia é característica dos Juizados freqüentados por ato-
marido” (Idem, p. 95). Se a dor física havia sido res de baixa renda, não tendo sido registrada no Juizado
plenamente suportável durante anos, a vergonha e situado na área mais rica da cidade (Brussi, 2005).
a humilhação eram intoleráveis.8 3 Dois documentários na televisão (Globo Repórter)
Um segundo aspecto da precedência simbó- sobre o tema da “violência” contra a mulher impressio-
lico-moral na compreensão da violência também naram-me com os relatos de mulheres que após anos de
presente no caso do Timor refere-se a situações sofrimento com surras, facadas e até tiros de seus com-
nas quais, ante a ausência de agressão física, não se panheiros haviam finalmente conseguido uma separa-
ção efetiva e tentavam reconstruir suas vidas. Mesmo
percebe o sofrimento provocado pelo insulto, por nos casos em que as agressões físicas atingiam níveis
mais que o problema seja verbalizado. Assim, se absolutamente inacreditáveis, provocando longos pe-
bater é um ato sujeito a conotações múltiplas na ríodos de convalescença, às vezes superiores a um ano,
cultura local, ser obrigada pelo marido a obedecê- os relatos sobre as dificuldades de superação dos “trau-
lo contra a sua vontade é considerado um insulto mas” psicológicos e de recuperação ou reabilitação da
identidade agredida davam a nítida impressão de que
grave: “uma ofensa ao direito que a mulher tem de
os problemas eram mais graves. O drama da reabilita-
ter a sua opinião e sua vontade respeitadas dentro ção de uma identidade distorcida após anos de sofri-
de casa – desde que, evidentemente, sua vontade mento dava sinais claros sobre a importância da dimen-
não implique o abandono de seus deveres” (Idem, são moral do problema.
p. 236). Tomar uma segunda esposa sem consultar 4 Os dados em relação a outras unidades da federação
ou obter o apoio da primeira seria um bom exem- são compatíveis com os especificados para Salvador e
plo do tipo de violência percebida como grave pela Distrito Federal, e podem ser consultados em Violência
população e ocultada no discurso da igualdade de por armas de fogo no Brasil, Relatório Nacional – NEV/
USP, 2004, coordenado por Maria Fernanda T. Peres.
gênero (Idem, p. 237). De certo modo, como suge-
rido na introdução deste trabalho, esse segundo tipo 5 Segundo Gomes de Oliveira (2005, p. 90), Anselmo e
de violência, simbólico-moral, teria sua objetivida- Natalício já teriam se confrontado em várias causas
inter-relacionadas no Juizado: perdas e danos, lesão
de mais bem fundamentada do que a primeira, es- corporal, ameaça, execução de sentença, penhora etc.
tritamente associada à agressão física.
6 O manuscrito, intitulado “A invisibilidade do insulto:
Finalmente, para evitar qualquer tipo de socio- ou como perder o juízo em Juízo”, foi a base de pales-
centrismo em relação ao Timor Leste, vale lembrar tras proferidas na Escola Superior do Ministério Públi-
que em 2004 a Suprema Corte do Canadá avaliou co da União em 12 de maio de 2004, e no Núcleo
uma ação de inconstitucionalidade que contestava Fluminense de Estudos e Pesquisas — Nufep, da UFF,
o direito de pais e mestres baterem pedagogica- em 4 de agosto do mesmo ano.
mente nas crianças, e pronunciou-se positivamente, 7 Roberto Kant de Lima chamou minha atenção para a
reafirmando este direito desde que houvesse mode- importância deste processo de criminalização, ao limi-
ração nesse sentido. Seria adequado falar em vio- tar ou mesmo eliminar as possibilidades de uma solu-
ção satisfatória para as partes, o qual também caracte-
lência neste caso? Ou, em qualquer outro que tives- rizaria a atuação dos Jecrims no Brasil.
se como referência agressões consideradas legítimas?
8 Não se trata de justificar a agressão física sob qualquer
ângulo, mas de distinguir analiticamente as dimensões
física e moral da agressão, sem deixar de atribuir a esta
Notas última uma precedência conceitual na definição dos
atos de violência. Não só devido à dramaticidade das
1 Uma quarta vertente desse debate tem como referên- conseqüências objetivas a ela associadas, mas também
cia o trabalho de Carol Guilligan — In a different voice por encontrar respaldo na experiência dos atores que,
(1982/1993) —, que contrapõe o foco na obediência a convincentemente, identificam na agressão moral uma
regras e na idéia de separação, característica das teorias contundência singular, totalmente ausente dos atos de
de desenvolvimento moral, e predominante entre ho- agressão física em sentido estrito.
mens, a precedência atribuída à relação no equaciona-
EXISTE VIOLÊNCIA SEM AGRESSÃO MORAL? 145

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 193

EXISTE VIOLÊNCIA SEM IS THERE VIOLENCE WITHOUT PEUT-ON PARLER DE VIOLEN-


AGRESSÃO MORAL? MORAL AGGRESSION? CE SANS AGRESSION MORALE?

Luís Roberto Cardoso de Oliveira Luís Roberto Cardoso de Oliveira Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Palavras-chave: Violência; Agressão Keywords: Violence; Moral aggression; Mots-clés: Violence; Agression morale;
moral; Insulto; Direitos; Identidade. Insult; Rights; Identity. Insulte; Droits; Identité.

Este artigo propõe a idéia de que não The article submits that it is not adequate L’article défend l’idée qu’il ne serait pas
seria adequado classificar como violência to classify as violence acts of aggression adéquat de classifier les actes d’agression
atos de agressão que não contivessem um that do not carry a moral component. Des- qui n’ont pas une composante morale
componente moral. Embora este último pite having an eminently symbolic and comme étant de la violence. En dépit
tenha um caráter eminentemente simbó- immaterial character, such moral compo- d’un caractère éminemment symbolique
lico, e não material, sua objetividade como nent would carry a much greater objec- et non matériel, leur objectivité comme
expressão de violência seria muito mais tivity as an expression of violence than a une expression de la violence serait
palpável do que uma agressão física em physical aggression in the strict sense of beaucoup plus palpable que celle d’une
sentido estrito. A agressão moral é então the term. Moral aggressions are then defi- agression physique au sens strict. L’agres-
definida como um insulto, que teria duas ned as an insult, which convey two basic sion morale est alors définie comme une
características básicas: (1) trata-se de uma characteristics: (1) it is an objective injury insulte, qui aurait deux caractéristiques
agressão objetiva a direitos que não pode to rights, which cannot be adequately fondamentales : (1) il s’agit d’une agres-
ser adequadamente traduzida em evidên- translated into material evidence; and, sion objective, qui ne peut être adéqua-
cias materiais; e, (2) sempre implica uma (2) it always implies some devaluation or tement traduite en évidences matérielles;
desvalorização ou negação da identidade negation of the identity of the interlo- et, (2) elle implique toujours en une dé-
do interlocutor. Também é abordada a di- cutor. The paper also addresses the dif- valorisation ou une négation de l’identité
ficuldade do Judiciário em lidar com este ficulties of the judiciary in dealing with de l’interlocuteur. L’article aborde égale-
tipo de agressão em que vigora o direito such aggressions where positive law pre- ment les difficultés du pouvoir judiciaire
positivo, gerando insatisfação entre as par- vails, producing discontentment among à traiter ce genre d’agression dans laquelle
tes e, às vezes, chegando mesmo a contri- the parties and often aggravating the le droit positif prévaut, ce qui produit
buir para o agravamento do conflito. conflict. une grande insatisfaction et qui, parfois,
contribue à aggraver le conflit.

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