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Livro: A Filosofia no Século XX _ Remo BodeiOs desníveis da história
58. W. Dilthey, “La costruzione del mondo storico nellescienze dello spirito”, in:
Critica della ragione storica
, Einaudi,Turin, 1954, p. 236.
toricidade, desde a infância, ainda antes de aprender a falar:absorvemos os costumes da família e da comunidade, aordem das coisas, os signos e as expressões faciais. Além domais, com o passar dos anos, uma vez que nos assenhoreamosda linguagem, entendendo o significado de muitoscomportamentos, pensamentos, instituições, conseguimosorientar-nos nesse mundo que se tornou nosso e para o qualcontribuímos, mas que é fruto de todas as gerações que sesucederam até agora. Por esse motivo – pela “vida em comum”que existe e que une quem exprimiu alguma coisacom quem pode entendê-la – a história e as outras “ciênciasdo espírito” têm um estatuto especial que as distinguedas ciências da natureza. A natureza é-nos estranha, não fomosnós que a fizemos, é alguma coisa de exterior à qualaplicamos a explicação causal; a história é obra nossa, nelao sujeito do saber é idêntico ao seu objeto, e nós podemos“compreender” com “conexões dinâmicas”, com relação avalores e fins, o sentido dos seus acontecimentos, através daexperiência interior que os revive, a
Erlebnis
, e a interpretaçãoque os decifra e os reconstrói. Não tem importânciaque nós não tenhamos vivido diretamente a experiência e aemoção que se trata de compreender. Pelo contrário, a históriae as outras ciências do espírito enriquecem-nos e universalizam-nos porque tornamo-nos partícipes das infinitasexperiências e combinações que os inevitáveis limites davida individual fazem pessoalmente inacessíveis: “Abre-seo palco: aparece Ricardo, e uma alma penetrante pode, seguindoas suas palavras, os seus gestos e os seus movimentos,reviver algo que está fora de toda possibilidade de suavida real. O bosque fantástico de
Se assim vos parece
nostransfere para uma disposição interior, a qual nos consentereproduzir toda excentricidade. E nesse reviver, está uma
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parte importante da aquisição de coisas espirituais, dasquais somos devedores ao historiador e ao poeta. O cursoda vida produz em cada homem uma determinação constante,na qual ficam limitadas as possibilidades aí contidas[...]. A compreensão abre-lhe um amplo campo de possibilidades,que não existiam na determinação de sua vida real.A possibilidade de viver de forma imediata na minha existênciamais do que um estado religioso, é para mim, como
 
para a maior parte dos homens, muito restrita. Mas quandoeu leio as cartas e os escritos de Lutero, as narrativas dosseus contemporâneos, os atos das conferências religiosas edos concílios bem como da sua narração oficial, eu vivo umprocesso religioso de tal força eruptiva, de tal energia, quena vida e na morte ele está além de toda possibilidade de
Erlebnis
para os homens da atualidade”.
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Dilthey está preocupado com o enrijecimento e com apetrificação do mundo histórico, teme que os sentidos doscontextos não possam mais ser decifrados pelo indivíduo eque a experiência histórica tenda a se tornar coisa, passadoincompreensível. Permanece um objeto que não tem sentidopara nós, que é indiferente. O caráter de fixidez lhe fazperder sua dimensão cambiante com base em razões demonstráveis.A história deve servir para potencializar avida, para reconstruir artificialmente a tradição. Ela parecedever assumir também uma tarefa terapêutica, a de revitalizaruma experiência sem viço, de dar oxigênio a uma individualidadeque se sente sufocada pelos mecanismos objetivosda produção de sentido e pela complexidade, masque ao mesmo tempo não acredita mais nas filosofias da87
59. Id.,
Nuovi studi sulla costruzione del mondo storico nellescienze dello spirito
, ibid., p. 324-5.
história que prometem um curso das coisas que sustente oprogresso do sujeito na sua crista da onda. O impetuosodesenvolvimento por meio das contradições apresentadopela dialética desnaturou-se em evolução. A continuidadee a viscosidade do movimento histórico, a sua falta de cortesnítidos foram aceitas. Agora, trata-se de fazer concorrero indivíduo – com o prêmio de sedução oferecido pela potencializaçãoda
Erlebnis
– na manutenção da vida e na reproduçãodos universos simbólicos e de sentido e, ao mesmotempo, na conservação da vitalidade social. O espíritoobjetivo deve ser posto a render no duplo interesse do indivíduoe da comunidade. Pela mediação da história, o presenteadquire uma tonalidade vital mais intensa. O queaparece em universos simbólicos inertes reativa-se mediantea compreensão típica do “círculo hermenêutico”, a
Verstehen
(tratada no ensaio de 1900 intitulado, justamente,
Hermenêutica
). Ela consiste no jogo aberto de antecipaçãodo sentido global de um determinado problema, que retorna,porém, continuamente sobre si mesmo e retifica, dequando em quando, a compreensão mediante uma recolocaçãoe um reexame das partes.Mediante a
Verstehen,
cada um pode viver outras vidasparalelas à sua, imaginar-se provido de mais biografias possíveis,que lhe multipliquem as possibilidades. O eu não é,com efeito, monolítico, mas é como um tecido compostopor mil fios: é tanto mais robusto quanto mais fios (o sentido
 
traçado por outros) conseguir englobar. A história nãotem mais, doravante, apenas a tarefa de estabelecer o queverdadeiramente aconteceu, mas a de entreabrir os universosde sentido que correm o risco de permanecer mudos noâmbito do “espírito objetivo”. Ela constitui o remédio tantopara as limitações casuais quanto para aquelas necessá-
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rias à vida. Faz reviver e ativa germes que já viviam em nósdispersos e abre a vida aos possíveis, alargando-a além dosseus limites estreitos. A compreensão é o antídoto face aofechamento e ao isolamento dos indivíduos. A história(mas também a arte) são os principais instrumentos deuniversalizaçãode cada um sem o cancelamento da individualidade.Dilthey quer evitar, de um lado, o vitalismo, o isolamentoda
Erlebnis
da mediação histórica, de outro, a históriacomo objetividade, inexorável movimento objetivo nãomediado pela consciência e pela doação e decifração do sentidoindividual. Por isso, ele não renuncia ao vínculo entrepsicologia e história, entre subjetividade e objetividade,entre individualidade e universalidade. A psicologia individualé o ponto de partida e o ponto de chegada do processode “compreensão”: o conhecimento histórico é conhecimentoda individualidade, ainda que (como aparece na
Contribuição ao estudo da individualidade
) para a ele se chegar,seja necessário passar pelas generalizações, tipificações.Por sua vez, o indivíduo é a encruzilhada do mundo histórico,o único portador e criador vivo dessas relações fluidasque constituem a história. O ideal de Dilthey expressa-sena sua referência constante à cultura alemã do período queprecede 1848 (a Schleiermacher, a Hölderlin, a Goethe, aHegel), àquela fase em que se procurava um equilíbrio entreindivíduo e Estado, subjetividade e objetividade, quandoainda não se exaltavam e não se impunham tão duramenteos “Leviatãs”, como irá ocorrer na idade bismarckianae guilhermina e com Treitschke, Weber ou Meinecke.O “espírito objetivo”, produzido pela longa ação modeladoradas subjetividades humanas, não se apresenta comouma entidade estranha e hostil a elas: existe a possibilida-89de de sua reapropriação, de impedir pela “compreensão”sua autonomização e institucionalização em formas ameaçadoras.Dilthey traça as linhas de um projeto de desalienaçãoe de fluidificação das concreções e das reificações sociais– análogo, nos seus fins, ao idealizado por Bergson que não passa pela modificação coletiva, política, das instituições,mas pela miríade de iniciativas individuais tendentesa revitalizar e a dar sentido a uma civilização que sevai enrijecendo em formas de organização estatal e econômicasempre mais integradas e cogentes. A sua filosofia é

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