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Artgos - O papel do conflito, da coerção e do consenso na estruturação da sociedade

- Ano VI - nº 60 - agosto de 2002

O papel do conflito, da coerção e do consenso na estruturação da sociedade


Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro *
Resumo
O artigo que neste momento se apresenta tem a pretensão de discorrer acerca de
fenômenos que sempre estiveram presentes na sociedade: o crime e as reações que
ele suscita. Para tanto, parte-se da análise de três teorias acerca da
constituição do ato criminoso, a fim de conceder o embasamento necessário ao
estudo dos seguintes fatos sociais: Implementação de regras e significados
morais numa dada ordem social, papel desempenhado pelos rituais punitivos, modos
pelos quais os indivíduos conformam seus valores, inclusive, os que os levam à
opção da carreira criminosa e, por fim, função assumida pela coerção e pelo
conflito no que tange a estabilidade da moral societária.
Palavras Chaves: crime, criminoso, punição, valores sociais, identidade, papel
da coerção, solidariedade social.
Introdução
O crime sempre constituiu-se enquanto fenômeno extremamente relevante em toda a
sociedade e assim, inúmeras foram as ciências e teóricos que ocuparam-se de seu
estudo. A sociologia constitui-se como um dos campos do saber onde o desvio
permitiu a elaboração de teorias para a sua conceituação, evolução e conformação
atual.
Nesse sentido, para a sociologia, o que define um ato como criminoso é a reação
societária a ele e assim, a característica central do crime é externa tanto ao
ator como a sua conduta, na medida em que o rompimento com as regras
comunitárias não é algo fatídico imposto ao indivíduo. No momento em que se
estabelece que atos desviantes e regras morais fazem parte do mundo social real
que existe externamente aos membros da coletividade, o interacionismo simbólico
compartilha a visão fenomenológica da realidade constituída de forma externa ao
indivíduo.
As modernas teorias funcionalistas, que influenciaram tanto do direito penal
como a sociologia, colocam o crime como o resultante das contingências e
decisões cotidianas informadas por tipificações do senso comum a que os cidadãos
são submetidos diariamente. Assim, as taxas de criminalidade organizacionalmente
produzidas não refletem nenhuma realidade objetiva, na medida em que apenas
clarifica os processos de negociação pelos quais os membros sociais atribuem
caráter moral a atos e atores.
Para a teoria do intercâmbio, conformidade e desvio são respostas
comportamentais a avaliações individuais dos benefícios e custos envolvidos em
atividades normativamente definidas. Nesse sentido, a ação é norteada pela
recompensa que ela pode conceder a seu ator e não pela internalização de valores
coletivos.
A partir da definição das três teorias do que se constitui o ato criminoso, será
possível a análise do fenômeno propriamente dito, a qual deverá obedecer os
seguintes fatores:
· Implementação de regras e significados morais
· Rituais punitivos como reforçadores da solidariedade
· Imposição autoritária de valores
· Elaboração de identidade e carreira criminosa
· Coerção e conflito.
Implementação de regras e significados morais
Não há como falar na conformação da sociedade atual, a qual estabelece regras de
conduta entre os indivíduos, sem antes elaborar algumas considerações acerca do
contrato social, cujo grande expositor foi Hobbes.
Hobbes partia sua explicação para a necessidade de elaboração do contrato social
do "estado de natureza", onde os homens não possuem nenhum tipo de limitação
para o uso dos meios e da força para o alcance dos interesses particulares.
Nesse estágio, trava-se uma luta sem limites pelo poder, já que todos os atores
são igualmente racionais em suas ações.
A solução de Hobbes para essa guerra de todos contra todos é a emergência de um
contrato social entre os indivíduos, os quais, pela ameaça da coerção,
realizarão os comportamentos indispensáveis a manutenção da ordem coletiva. Para
que isso fosse possível, o monopólio do uso da força legítima deveria se
concentrar nas mãos de uma só pessoa, que ele denominou como Leviatã ou,
modernamente, Estado, o que ocorreria através da delegação de parte da soberania
individual para esse que se consubstanciaria enquanto soberano.
No momento em que Hobbes coloca a ameaça da coerção legítima aos indivíduos que
agirem em desacordo com o postulado pelo Leviatã para a manutenção da ordem
social, ele conforma-se enquanto um dos primeiros teóricos do sistema penal.
Para ele, o criminoso é aquele que rompe o contrato social sendo por isso uma
ameaça a continuidade da coletividade. Dessa forma, é necessário punir o
infrator como exemplo aos demais de maneira que todos venham a seguir as regras
e a lei.
Para efetivar esse ideal de coerção, Hobbes prevê a instituição do sistema de
justiça criminal, o qual se materializaria no crime, no processo criminal, juiz
e na punição final.
O crime encontra-se intimamente ligado a relação que o indivíduo estabelece com
a sociedade, ou seja como o membro social se sujeita a disciplina necessária a
manutenção da coletividade. Nesse sentido, para Hobbes, o criminoso deveria ser
julgado pelos seus semelhante, na medida em que apenas eles saberiam o quanto os
interesses egoístas lesaram a manutenção do contrato social e punido da maneira
mais exemplar possível, seja com o banimento para as galés ou a execução em
praça pública.
Com isso, esperava-se que os demais membros sociais fossem acometidos de um
temor tão violento que viesse a agir apenas como postula a lei, formulada a
partir do contrato social realizado pelos indivíduos.
Rituais punitivos como reforçadores da solidariedade
O crime enquanto fenômeno natural da sociedade e os rituais de punição enquanto
meio de reforçar os laços de solidariedade que mantém a coletividade coesa será
abordado por importante sociólogo francês Emille Durkhein.
Essa construção teórica parte da presunção de existência de um contrato social
anterior que definiria as regras constitucionais do jogo social no qual os
indivíduos procederiam ao cálculo racional dos benefícios derivados da
solidariedade entre os membros da coletividade.
Durkhein percebia a sociedade como algo decorrente da interação cotidiana entre
os indivíduos, bem como suas crenças e ações e, por isso, conformava-se com
características distintas da mera soma de seus componentes. A partir do momento
em que os membros sociais se relacionam é possível a formação de uma consciência
coletiva apta a determinar quais seriam as ações contrárias a moral
preponderante.
A sociedade é, na visão de Durkhein, um fato social, visto que constitui-se
enquanto algo externo e maior que os indivíduos que a compõem, o que a dota de
um poder imperativo e coercitivo. Isso porque na hipóteses da ausência total de
constrangimentos o indivíduo irá nortear suas ações de maneira egoísta, o que
levará a desordem social.
Dessa forma, a sociedade é uma autoridade moral dotada de:
· Solidariedade pré-contratual: permite a formação de redes de confiança
que culminam no contrato social materializado pelas leis e pelo próprio Estado.
· Consciência coletiva: é a obrigação moral que liga o indivíduo a
sociedade. Isso ocorre através da conformidade de um sistema de valores onde as
crenças e anseios egoístas são compartilhados em prol do coletivo.
· Regras Morais: são o meio através do qual a coletividade expressa não
apenas suas normas, como também seus mecanismos de controle. Com isso espera-se
que nenhum indivíduo venha a transgredir os valores sociais. Os atores
desviantes são os não socializados, ou seja, aqueles que não internalizaram a
moral preponderante. Nesse sentido, apenas a absorção das regras permite a
reunião do criminoso ao grupo social.
· Representações coletivas;
Esses elementos sãos os meios utilizados pela ordem social para a conformação de
um poder coercitivo. O crime, dentro dessa perspectiva, é algo disfuncional a
integração na medida em que representa o desvio de comportamento de um indivíduo
em relação ao coletivamente postulado. Por isso, os rituais de punição
conformam-se como a dramatização das crenças coletivas que permite reforçar as
crenças e a solidariedade social.
Para Durkhein a lei simbolizava a solidariedade social na medida em que ela
positiva os valores que unem os indivíduos. O processamento do crime pelo
sistema de justiça criminal, por sua vez, representa as operações do sistema de
solidariedade necessários a continuidade da sociedade. Dessa forma, o desvio
poderá assumir duas conotações diversas em virtude das características
societárias na qual ele venha a ocorrer.
A primeira conotação que o crime poderia assumir, segundo Durkhein, era a de
patologia e nesse sentido, ele se constituiria como negação da solidariedade
social, razão pela qual deveria ser erradicado. Dessa forma, a ação criminosa é
como um câncer que se não eliminado pode contaminar toda a sociedade. O próprio
Durkhein irá colocar que essa visão é essencialmente limitada e, por isso,
aplicável apenas as pequenas sociedades, onde os papéis exercidos por cada um
são rigidamente fixados e assim, qualquer transgressão ameaçaria a continuidade
do coletivo.
Entretanto, a modernidade colocou ao homem a possibilidade dele exercer diversos
papéis dentre de um mesmo núcleo social. Essa complexidade estrutural leva a
percepção de que o criminoso não é um corpo doente, mas um indivíduo que não
internalizou completamente as normas dominantes e, por isso, realizou uma
conduta desviante. Dessa forma, sua punição não deve ser a exclusão da sociedade
e sim sua readaptação, já que ele é um membro da coletividade como qualquer
outro. Para Durkhein, o que se pune modernamente não é o indivíduo, mas a
violação que ele realizou aos sentimentos e valores instituídos no seio social.
Nesse sentido, o crime é uma conduta que nega o caráter coletivo dos sentimentos
e por isso, quem deve punir o criminoso é a coletividade, já que apenas ela pode
sentir a dor e os prejuízos da ação egoísta. Os rituais de punição agregam a
consciência coletiva e elevam a solidariedade do grupo que reprime o
transgressor. A pena não tem pretensões preventivas de coibir o desvio no seio
social, mas apenas garante o respeito a lei e assim, a coesão social, já que
caso contrário os atores iriam seguir apenas os seus anseios particulares.
Durkhein avança em sua obra "Regras do Método Sociológico" ao colocar o crime
como indispensável a moral e ao direito. Isso porque o acontecimento criminoso
leva a coletividade a se reunir para punir o transgressor, reforçando os valores
e crenças positivas vigentes.
Entretanto, é importante destacar que a evolução da sociedade coloca uma nova
conformação de valores que refletem exatamente o que será considerado como crime
em cada momento. Em certa medida, a mudança da tipificação criminológica tem
relação direta com o poder criativo dos indivíduos em realizar novas condutas
até então não previstas. Assim, deve existir uma certa flexibilidade na
determinação dos delitos de maneira a estabelecer uma correspondência à
realidade social.
Portanto, para Durkhein, modernamente, o crime é algo natural, não possuindo
nenhuma ligação com a patologia, estando estruturalmente ligado as concepções
sociais. Sua contraposição básica foi a formulação anômica de Merton.
Imposição autoritária de valores
Merton coloca que anomia se refere a ausência de regulamentação entre o imposto
normativamente e o verificado na prática. Assim, há um corpo de leis que não se
materializa na medida em que a coletividade não foi capaz de desenvolver laços
de solidariedade suficientemente fortes que levem o indivíduo a distinguir o que
é ou não transgressão.
Dessa forma, para que o desvio não ocorra naturalmente, faz-se necessário o
estabelecimento de laços de solidariedade suficientemente fortes de tal maneira
que o indivíduo seja conduzido ao caminho que se espera que ele realize e não ao
crime, o qual significa a transgressão aos valores preponderantes.
A teoria de Merton será importante para explicar o senso comum de que a classe
baixa tem maior propensão a delinqüir, o que leva o sistema prisional a se
conformar como um lócus de reprodução da miséria. A anomia busca, conforme
Paixão coloca, "descobrir como algumas estruturas sociais exercem uma pressão
definida sobre certas pessoas da sociedade para que sigam uma conduta
incomformista (desviante) em detrimento de uma conformista". Dessa forma, o
ponto basilar da formulação teórica em análise é o fato das instituições sociais
serem sustentadas por um sistema de valor que define as metas culturais de cada
indivíduo.
Nesse sentido, segundo Paixão, a anomia decorre da "disjunção entre objetivos
culturalmente prescritos e meios institucionalmente legítimos de realização das
aspirações". As classes mais baixas são aquelas que submetidas simultaneamente a
uma forte pressão de internalização dos valores culturais preponderantes e a
limitação institucional aos meios que permitam a realização desses propósitos.
Com a penetração da ideologia da igualdade nesse estrato social, a
impossibilidade de alcança-la por meios legítimos coloca o crime como um
artifício de sucesso na transposição de barreiras e ascensão social. Com isso,
essas pessoas, que até então se situavam a margem do mercado, podem consumir
bens e serviços desejados independente da licitude do dinheiro que elas empregam
nessas transações.
Os estudos confirmam essas proposições ao demonstrar a concentração de renda e a
persistência de delinqüentes nos bolsões de miséria, ou seja, em áreas
territorialmente limitadas a margem dos grandes centros urbanos, onde a
interação entre criminosos experientes e jovens iniciantes torna possível a
transmissão de habilidades e valores criminógenos. Dessa forma, o ator poderá
ser considerado criminoso anômico ou não dependendo da disponibilidade de meios
legítimos ao alcance de seus objetivos materiais.
A grande limitação da teoria da anomia de Merton é que ela explica apenas um dos
objetivos do crime: o sucesso material. Entretanto, é bem verdade que o
criminoso pode possuir inúmeros outros propósitos que não se explica pelo
conflito entre valores e meios legítimos a sua materialização.
Lemert coloca que com a introdução do pluralismo cultural, a relação entre
estrutura e desvio passa a ser insuficiente para explicar a criminalidade, a
qual é verificada, inclusive, em estratos sociais que possuem meios materiais
para o alcance de seus objetivos. Além disso, os atores sociais podem definir
sucesso como algo mais profundo que a simples acumulação de riqueza.
Portanto, a teoria da anomia passa a ser descartada como fator único de
explicação da causalidade do crime, na medida em que não atenta para a
influência que a diversidade cultural e de poder, bem como a implementação da
lei e da ordem podem Ter sob a conformação da conduta criminosa.
Elaboração de identidades e carreiras não convencionais
Segundo Garfinkel, a ordem societária decorre do entendimento comum entre os
membros coletivos acerca dos fatos sociais. Esses são aqueles que ocorrem
rotineiramente na vida dos indivíduos e assim, passíveis de serem previstos por
cada um deles. No momento em que os atores se deparam com uma ação não familiar,
ou seja, que não tenha respaldo em seu background cultural, tem-se a ocorrência
do crime.
Essa formulação teórica é o que se denomina micro-sociologia segundo a qual a
conduta dos atores é determinada pela interpretação que eles fazem de seu papel
e não como resultante de uma interação orientada por um sistema de valores.
Assim, a ação social resulta do processo de interpretar o comportamento dos
outros e suas aspirações, sendo essa leitura a determinante da ação adotada por
cada um.
Dessa forma, ela rejeita a idéia de que a sociedade é resultante da articulação
dos indivíduos que a conformam através do estabelecimento de laços de
solidariedade afetiva. Para a micro-sociologia, a ordem social não é resultante
de uma força coletiva, mas de unidades autônomas que agem em relação a uma
situação e não em conformidade com uma cultura comunitária.
A micro-sociologia ao colocar que a ordem social é produto de um interacionismo
negociador constante parte da premissa que os atores sociais estão sempre
barganhando para alcançar suas aspirações. No momento em que o curso natural de
negociações é rompido, os indivíduos passam a ter de formular novas interações
para aquela questão que até então era imprevisível.
Nesse sentido, a atividade criminosa conforma-se exatamente como aquela que
provoca a quebra do curso normal das negociações, na medida em que representa um
ato até então imprevisível pela leitura dos demais comportamentos, forçando a
reação coletiva para o restabelecimento da ordem e das barganhas anteriormente
vigentes. O ator social transgressor terá sua conduta interpretada pelos demais
membros societários, o que poderá imputá-lo determinados rótulos e uma nova
identidade, diversa da que ele anteriormente exercia.
Segundo a Teoria dos Rótulos, o delinqüente é alguém a quem aquele rótulo foi
aplicado com sucesso. Assim, o criminoso é decorrente da imposição do senso
comum coletivo, materializado na reação comunitária ao desvio por ele realizado.
Lemert passa, a partir dessa premissa básica da teoria dos rótulos, a distinguir
duas formas de desvio:
· Primário: são os comportamentos que, apesar de transgressores a ordem
dada, não foram detectados publicamente e assim, o ator não foi rotulado como
criminoso.
· Secundário: é a conduta alvo de defesa, ataque ou adaptação pela ordem
social. Nesse momento, o indivíduo é rotulado como criminoso na medida em que
sua transgressão é publicamente conhecida e combatida.
Becker procura avançar na categorização de Lemert ao colocar uma terceira classe
de criminosos:
· Secreto: é aquele que apresenta comportamento vulneráveis em relação
aos procedimentos comumente utilizados para a descoberta do desvio, entretanto,
como as investigações ainda não apontam para a culpabilidade do ator, ele ainda
não foi rotulado.
Após a categorização das classes de desvios, a teoria dos rótulos avança para a
descrição dos processos através dos quais os indivíduos se tornam criminosos.
Nesse sentido, a teoria coloca que a conformação do status de transgressor
observa os seguintes estágios:
1- Motivação do ator social para a execução de um ato contrário a moral
predominante na sociedade.
2- Desenvolvimento de interesses desviantes em detrimento dos
conformistas com a ordem e procedimentos vigentes.
3- Transformação da identidade do ator social, na medida em que ele
modifica sua natureza essencial de valores e os anseios que pretende
materializar. Nesse momento, através da ação do aparato de justiça criminal, o
transgressor passa a ser excluído do grupo social a que ele anteriormente
pertencia.
4- O último estágio é decorrência do anterior, já que no momento em que o
indivíduo é excluído do grupo a que anteriormente pertencia, ele é forçado a
participar de uma subcultura desviante e organizada. A partir da interação com
os membros mais experientes desse novo grupo, o criminoso é socializado em seus
novos valores, principalmente, no que Paixão denominou de "mecanismos de mercado
marginal e estratégias de evitar apreensão".
Collins coloca que a partir do desenvolvimento de atividades organizadas em
carreiras, o criminoso passa a Ter a possibilidade de mobilidade social dentro
da estratificação que o crime coloca, o que nem sempre corresponde a divisão de
classes preponderante na sociedade.
Isso ocorre porque as carreiras criminosas são estratificadas conforme a
capacidade de mobilizar recursos, alianças com lideranças políticas e
organizações de controle. Isso porque são exatamente esses instrumentos que
garantem a impunidade do ator desviante e o sucesso do fenômeno transgressor.
Outro importante fator que determina a estratificação das classes de criminosos
é o fato da estrutura do mercado de crime impor barreiras a entrada de novos
criminosos no sistema. Algumas áreas criminosas operam sob o regime de monopólio
dadas as exigências de profissionalização dos atores e, em alguns casos, as
próprias limitações territoriais.
Portanto, o indivíduo transgressor adere cada vez mais a sua classe inicial de
maneira que sua ocupação desviante seja rotulada de maneira extrema de forma que
torne difícil a exclusão do ator social transgressor a esse novo grupo que ele
acaba de integrar.
Coerção e conflito
A partir do momento em que o crime é colocado como um desvio social, faz-se
necessário a instituição de determinados mecanismos de controle, aptos a induzir
o restante da sociedade a agir conforme a lei, regulamentos e moral
preponderante. Como o criminoso continua pertencendo a vida coletiva, faz-se
necessário a identificação de sua conduta como desviante além das relações que
levaram a sua realização, de tal forma que as causas do desvio possam ser
tratadas e assim, seja possível a restauração da identidade moral do indivíduo
de maneira que ele possa retornar a sociedade pacificamente.
Essas proposições encontram-se materializadas no que se denomina chamar sistema
de justiça criminal, a qual se movimenta conforme o fluxo e a capacidade de
negociação do criminoso em suas diversas instâncias. É composto pelas seguintes
instituições:
· Organizações Policiais;
· Ministério Público;
· Poder Judiciário;
· Sistema Penitenciário.
A primeira instituição a materializar os conceitos de controle social a partir
da coerção do delito é a organização policial, a qual se constitui enquanto
instrumento de garantia da implementação das normas obrigatórias da sociedade.
Assim, a polícia deve se encarregar de estimular a obediência as leis e aos
costumes, o que ela realiza através do uso da força de maneira legítima cujos
procedimento encontram-se estabelecidos em uma estrutura extremamente
descontínua que permite a instalação do paradoxo de desrespeito a regulamentos.
O paradoxo de fazer cumprir a lei através do desrespeito aos regulamentos
institucionais reside no fato do principal poder da organização policial estar
em identificar quem apresentou a ação desviante. Nesse sentido, a polícia
configura-se como a primeira instituição social apta a rotular o indivíduo como
criminoso, fazendo-o obedecer as regras morais através da imposição de uma
relação de dominação que é factível pelo uso da força.
Nesse sentido, segundo Paixão, a polícia pode ser definida como uma organização
burocrática que maximiza a aplicação da lei através da utilização de recursos
profissionais. Entretanto, com o intuito de efetivar sua missão institucional,
os policiais nem sempre materializam o disposto em seu regulamento.
Assim, estabelece-se uma negociação constante entre os atores policiais e os
criminosos no sentido de controle do crime. O fluxograma da ação de ambos atores
pode ser vislumbrado através das seguintes etapas percorridas:
1- O oficial recebe como missão desarticular a configuração social de um
determinado crime, entretanto, para efetivar sua função é necessário que o
delito ocorra.
2- Através das informações obtidas por recursos marginais aos
institucionalmente estabelecidos, os policiais "fazem o crime acontecer",
tornando possível a autuação dos envolvidos na transgressão da determinação
legal.
3- O criminoso será autuado e sua conduta levada ao conhecimento dos
superiores hierárquicos do policial dentro da corporação. Nesse momento
instala-se uma dualidade: a autuação é decorrente de informações ilegítimas que
chegam a conhecimento do comandante através do relato do praça, entretanto, para
que novos crimes seja coibidos, faz-se necessário a utilização contínua desse
saber "marginal".
Portanto, como o fim maior da polícia é a ostensividade a criminalidade, o
comandante passa a "confiar" na veracidade de tudo o que seu comandado relata,
conferindo maior poder ao praça para o abandono do regulamento positivo e adoção
de condutas informalmente institucionalizadas, aptas a conferir maior
efetividade aos propósitos da corporação.
Assim, conforme colocado por Paixão, "embora o significado da lei e da ordem
seja determinado nos encontros cotidianos entre policiais e cidadãos, o modelo
quase-militar evoca uma organização que se orienta pela aplicação da lei
impessoal, através de procedimentos governados por regras e controlados por
autoridades que respondem pela organização diante do controle externo".
Portanto, para Paixão, as "organizações policiais tendem a escapar a controles
internos e externos na medida em que o poder policial tende a basear-se no
segredo, na fabricação de informações legítimas para o público externo, ao mesmo
tempo em que sua face pública é a de uma organização em guerra contra o crime,
garantia da segurança e da liberdade dos cidadãos."
A formatação burocrática de combate ao crime através da coerção decorre,
historicamente, da necessidade de implementação da lei na sociedade,
principalmente, nas classes marginalizadas, de maneira a se alcançar a ordem
social. O problema instaura-se na medida em que a lei decorre dos anseios das
classes detentoras do poder econômico e político em um dado momento. Com isso, o
policiamento passa a ser voltado a proteção dos interesses desses indivíduos o
que marginaliza ainda mais os estratos sociais mais baixos, que nem sempre
concentra a totalidade de criminosos.
Essa marginalização é determinada por indicadores historicamente construídos de
criminalidade. Assim, a polícia volta a sua ação a jovens, homens,
desempregados, favelados e reincidentes, já que ao longo do tempo eles forma os
maiores responsáveis pela delinqüência. Com isso, o policial espera dotar sua
ação de economicidade e maior efetividade, o que, teoricamente, deveria
representar um grande avanço em termos da eficiência da ação policial.
Entretanto, esses indicadores sociais tornam-se um problema na medida em que os
atores modificam a realidade e suas coalizões no propósito de não se
configurarem enquanto alvo da ação policial. Nesse momento, os estereótipos
criados para orientar a efetividade do policiamento, tornam-se mecanismos de
impunidade e meio de permitir um aumento da delinqüência.
Portanto, a implementação da lei e da segurança é mediada pelos interpretações
que os policias realizam do cenário de sua intervenção. Entretanto, como essa
leitura é socializada dentro e fora das organizações policiais, muitos atores
sociais passam a orientar seu comportamento de maneira a não encaixar-se nos
rótulos colocados, o que pode levar a ineficiência da ação policial na hipótese
dos canais marginais de informação não se encontrarem solidamente estruturados.
Conclusão
O fenômeno do crime sempre foi um dos grandes problemas das sociedades ao longo
do tempo. Em um primeiro momento, a delinqüência era considerada como uma ameaça
a continuidade da comunidade sendo que essa visão evolui até o ponto do desvio
ser colocado como um fator de integração social na medida em que é o coletivo
que pune a ação desviante e não o indivíduo.
A punição é possível a partir da possibilidade de utilização legítima da força o
que ocorre com a delegação de parte da autonomia individual em favor da
soberania estatal consubstanciada no contrato social. Nesse momento, para que a
coerção seja efetivada é necessário a estruturação de um sistema de justiça
criminal apto a processar os criminosos e a puni-los de maneira exemplar a fim
de que os instintos de reincidência e aumento dos atores desviantes sejam
coibidos.
No momento em que o sistema de justiça criminal começa a se movimentar
principalmente frente aos rotulados fortemente como criminosos tem-se a
estratificação da delinqüência a qual nem sempre corresponde a divisão econômica
das classes sociais.
O senso comum de que a miséria gera criminalidade não mais se efetiva em nos
tempos modernos na medida em que os criminosos não mais anseiam a exclusiva
satisfação do consumo. Os transgressores passam a ter propósitos múltiplos com
sua ação desviante e assim, o crime se dissemina em toda a estrutura social,
principalmente, entre os detentores do poder político, os quais irão procurar
elaborar determinadas leis que garantam a sua não incorporação pelo sistema de
justiça criminal.
Assim, a estratificação social dos criminosos em classe é decorrente do fato dos
transgressores serem tanto mais bem sucedidos quanto maior a sua capacidade de
desenvolvimento de técnicas que os permitam a não atuação pela polícia. Dessa
forma, configura-se também o monopólio de algumas atividades criminosas onde a
limitação profissional e territorial impede a entrada de novos infratores.
Dessa forma tem-se a verdadeira configuração de carreiras criminosas onde a
contínua especialização e a capacidade de não apreensão pelo sistema de justiça
criminal o tornam um profissional extremamente bem sucedido.
Nesse contexto, o policial detém sua ação apenas nas classes mais baixas da
estrutura criminosa na medida em que apenas nesses estratos ele consegue
institucionalizar um canal de informação em virtude da própria inexperiência dos
transgressores. Além disso, apenas nessas camadas será possível fazer o crime
ocorrer dentre os indivíduos continuamente rotulados como delinqüentes: os
jovens, homens, desempregados, favelados e reincidentes. Com isso, garante-se o
não alcance dos P. H.D. em crime pelo sistema de justiça criminal.
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* Mestranda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro, bacharelanda
em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Núcleo de
Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Fundação João Pinheiro -
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