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DEMOCRACIA VIVA 19

NOV 2003 / DEZ 2003

Mundo pós-Cancún
Mark Ritchie

Nebulosidades em
relações inter-raciais
Laura Moutinho

O impacto do
acordo com o FMI
Alex Jobim Farias, Pedro
Quaresma e Júlio Miragaya

Imagens do inconsciente
Luiz Carlos Mello
E D I T O R I A L
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

A publicação de mais um número da Democracia Viva coincide


com as avaliações sobre o primeiro ano do governo Lula – inaugurado com aquela mágica festa da posse. Há
uma crescente crítica ao continuísmo da política macroeconômica, seguida até aqui, emanada de setores
mais organizados e militantes da sociedade civil brasileira. Sobretudo, causa um mal-estar enorme a conti-
nuidade de políticas de estabilidade. A sensação é ainda mais amarga porque o tal continuísmo vem
recebendo aplausos dos que mais temiam a conquista do poder estatal pelo Partido dos Trabalhadores.
O que mais incomoda numa perspectiva de cidadania ativa é que o desconforto com o que
vem acontecendo não está levando a um arregaçar as mangas e ir à luta. A mágica do encontro entre povo e
nação – simbolizada na chegada de Lula à Presidência da República – parece que nos paralisou. Estamos
dando tempo? Até quando? Já dizia a canção: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Certo, aconte-
ceram mobilizações neste ano, mas não foram elas que influíram na agenda política. Foi o próprio governo que
protagonizou algumas iniciativas de participação, como a consulta do PPA (Plano Plurianual de Investimen-
tos) e o processo das grandes conferências. No geral, porém, estivemos mais ausentes do que ativos.
O problema é que governo nenhum age no vazio. Expressão de correlação de forças políticas,
o poder estatal funciona empurrado, aqui e em qualquer parte, governo de direita ou de esquerda, sobretudo nos
regimes democráticos. Com o governo Lula não é diferente. Fruto de uma aliança que trouxe para o centro do
poder político estatal a expressão mais avançada da relação trabalho e capital da história brasileira, o governo
opera numa contradição visível. É um ganho, sem dúvida, pois ao menos não temos a elite proprietária se
articulando para desestabilizar o governo ou fazendo o que melhor sabe: armando golpes para não ceder seus
seculares privilégios. Mas é uma aliança que por si só não gera a mudança necessária para o Brasil da inclusão, da
liberdade e dignidade humanas para todas e todos os brasileiros. A cidadania militante, aquela que com autonomia
age e pressiona, é mais indispensável do que nunca. Os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil,
profundamente identificados com as bandeiras dos direitos humanos, da justiça social, da liberdade e igualdade,
com respeito às diversidades que temos como povo, são desafiados a dar um novo passo. Trata-se de criar o
ambiente indispensável para que o governo não fique preso nas contradições da própria aliança política que o
levou ao poder. Precisamos acreditar que a nossa participação pode fazer uma enorme diferença.
A tarefa é complexa, mas possível. Não podemos é adiá-la. O Ibase quer dar a sua contribuição
autônoma, crítica e engajada. Queremos pensar a nossa realidade com suas múltiplas facetas, como faz o grande
parceiro do Ibase e da revista Democracia Viva desde a primeira hora, Alcione Araújo, nosso entrevistado. De
suas reflexões sobre a cultura no Brasil emergem pistas para o radicalismo que precisamos praticar. Radicalismo
que é uma expressão prática na história de Manoel Conceição. Precisamos de um radicalismo que combine a
clássica agenda de esquerda com as novas lutas por identidade feminina, étnica e de juventude, como bem formula
Mary Castro. Não podemos parar, pois o FMI continua na nossa porta (artigo dos companheiros da Rede
Brasil) e a vitória em Cancún aponta o possível (Mark Ritchie). Aliás, não fosse um grande movimento cidadão,
a nossa Petrobras não teria sido possível (Giuseppe Bacoccoli). Enfim, as razões para não esperar são muitas.
S U M Á R I O
Ibase – Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º
3 ARTIGO 20148-900 Rio de Janeiro/RJ
Por um comércio global sustentável Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 3517
Mark Ritchie ibase@ibase.br - www.ibase.br
Conselho Curador
12 ARTIGO Regina Novaes
Alcance e limites das políticas de João Guerra
identidade Carlos Alberto Afonso
Moacir Palmeira
Mary Garcia Castro
Jane Souto de Oliveira

22 ARTIGO Direção Executiva


Cândido Grzybowski
50 anos de histórias e desafios
Francisco Menezes
ENTREVISTA Giuseppe Bacoccoli
Jaime Patalano
Alcione Araújo
28 NACIONAL Coordenadores(as)
Erica Rodrigues
A lógica perversa do acordo com o FMI Iracema Dantas
Alex Jobim Farias, Pedro Quaresma Itamar Silva
e Julio Miragaya João Roberto Lopes Pinto
João Sucupira
36 VARIEDADES Leonardo Méllo
Moema Miranda
38 ESPECIAL Núbia Gonçalves
Manoel Conceição Santos – a luta e a Assessora da Direção Executiva
militância de um trabalhador Maria Nakano
Rogério Almeida
DEMOCRACIA VIVA
46 PELO MUNDO ISSN: 1415149-9
Diretor Responsável
48 INTERNACIONAL Cândido Grzybowski
NACIONAL
Lógica perversa do FMI
Imigrante, cidadania suspeita Conselho Editorial
Beatrice Verri Whitaker Alcione Araújo
Ari Roitman
52 ENTREVISTA Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
Alcione Araújo Jane Souto de Oliveira
Regina Novaes
62 RESENHAS Rosana Heringer
Coordenação Editorial
66 ESPAÇO ABERTO Iracema Dantas
Zonas de sombra e silêncio Subeditor
Laura Moutinho Marcelo Carvalho
Revisão
74 CULTURA
AnaCris Bittencourt
Imagens que revelam o inconsciente Marcelo Bessa
Luiz Carlos Mello
Assistentes Editoriais
Flávia Mattar
ARTIGO 80 ÚLTIMA PÁGINA Jamile Chequer
Comércio global sustentável Nani Produção
Geni Macedo
Distribuição
Maria Edileuza Matias
Projeto Gráfico
Mais Programação Visual
Diagramação
Imaginatto Design e Marketing
Ilustração da Capa
Escultura de Lúcio Noeman; pintura (alto, à direita)
de Ênio Sérgio; pinturas (mandalas) de Fernando
Diniz (acervo Museu Imagens do Inconsciente).
Ilustração da edição
Pinturas do Museu Imagens do Inconsciente
fotografadas por Marcus Vini
Fotolitos
Rainer Rio
Impressão
J. Sholna Produções Gráficas
Tiragem
4.300 exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
ARTIGO
Mark Ritchie*

Por um comércio
global sustentável
O Fórum Social Brasileiro esteve voltado
para três dimensões específicas do mun-

do que estamos tentando criar.1 Primei-

ro, a das cidadanias individual e coletiva


– nosso papel e responsabilidade dentro

do desenvolvimento humano sustentá-

vel. Segundo, a questão sobre como pro-


duzimos e tornamos disponíveis os pro-

JOSÉ ALBERTO DE ALMEIDA


dutos de que necessitamos para

sobreviver – sem esquecer aqueles com


quem compartilhamos o planeta agora

e no futuro. Neste artigo, será focaliza-

do o terceiro aspecto: os elementos-chave das relações – recíprocas ou no conjunto – entre


Estados-nação, instituições internacionais e povos, a nova situação e os desafios que se configu-

raram depois da 5a Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún,

especialmente à luz das crescentes ameaças de unilateralismo, mercantilismo, nacionalismo


neoconservador e militarização.

O objetivo deste artigo é simplesmente o de iniciar um debate, enfocando apenas um dos

elementos-chave da ordem internacional – o comércio e a principal instituição de elaboração de


políticas do setor, a OMC. Usando a OMC como exemplo, serão investigados alguns dos pensa-

mentos que emergiram do seio da sociedade civil sobre as formas de reformular o sistema
1 Texto produzido a partir de
global, de maneira que tanto os Estados-nação como as agências internacionais possam nos dar paper para o ciclo de semi-
nários Agenda Pós-neoliberal
(no Fórum Social Brasileiro
um melhor auxílio na tarefa coletiva de construir um desenvolvimento humano social, econômi- 2003), organizado pelo Ibase
em parceria com ActionAid,
Fundação Rosa Luxemburgo e
co, ecológico e politicamente sustentável. Attac Brasil.

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A R T I G O

Em primeiro lugar, uma opinião geral sobre atuais desequilíbrios em âmbito mundial em
comércio, a OMC e a legislação e política de termos de poderio econômico e militar, esses
comércio como um sistema mais amplo. O acordos têm de ser forjados e buscados em
desenvolvimento e a preservação, ao máximo todas as esferas e em combinações diversas, a
possível, das culturas, das comunidades e das fim de proteger o âmbito local e promover a
economias locais são fundamentais. Criar e sustentabilidade econômica, ecológica e soci-
defender um alto grau de diversidade econô- al. Regras de comércio bem elaboradas tam-
mica, social, cultural, artística, política e bioló- bém são importantes para o enfrentamento
gica é tanto uma questão básica de direitos de alguns conflitos internos de ordem econô-
humanos como de sobrevivência humana. A mica, como a guerra entre Iraque e Kuweit,
tendência a pensar dessa forma é cada vez mais que culminou na Guerra do Golfo.
intensa, à medida que o te- De fato, sabemos como estruturar o
mor vai aumentando diante comércio para que seja sustentável, mas isso
O comércio do desconhecimento sobre os não acontecerá por acidente ou pela magia
riscos relacionados à predo- das “mãos invisíveis” ou dos punhos cobertos
tem de ser minância atual de um modo
de vida baseado na indústria
com luvas de veludo. O comércio, como todos
os outros negócios, tem de ser administrado

administrado centrada no hidrocarboneto.


Um bom exemplo de
em prol da sustentabilidade – preços justos,
lucros e salários para que cada pessoa possa

em prol da equilíbrio entre apoio ao co-


mércio local e benefícios da
estar contribuindo com o produto final. O co-
mércio sustentável inclui o crescimento contí-
troca de produtos e serviços nuo em termos da produção de produtos com
sustentabilidade a longa distância é o selo de maior qualidade e a baixo custo para o meio
certificação de comércio jus- ambiente – portanto, para o público consumi-
preços justos, to utilizado em inúmeros pro- dor e a sociedade como um todo. Sabemos
dutos e commodities, que também como estruturar regimes internacio-
lucros e salários vão desde bolas de futebol nais, instituições e processos de resolução de
até o café. Outro exemplo é a controvérsias que podem contribuir para a re-
para que cada Convenção sobre Diversidade
Biológica, que determina as
dução do número de vezes que uma dada na-
ção opta pelo caminho do conflito armado

pessoa possa estar condições de comércio visan-


do proteger nossa herança
diante de disputas no campo da economia.

contribuindo com genética. Um terceiro exem-


plo é a Bolsa Amazônia, que
Comércio organizado
promove o comércio que Podemos ser otimistas quanto à próxima fase
o produto final protege especificamente a da política de comércio mundial por cinco ra-
ecologia na bacia do rio Ama- zões principais. Primeiro, graças à feliz conver-
zonas. O que há em comum gência de muitos fatores, e mesmo pela im-
entre cada uma dessas disposições sobre co- portante liderança do governo brasileiro, a
mércio justo é um conjunto de regras de co- OMC inicia um processo de transição, passan-
mércio estabelecido de comum acordo. Há for- do de meramente uma extensão dos acordos
te convicção de que o comércio pode e deve neocoloniais pós-Segunda Guerra Mundial –
ser organizado de forma a promover o desen- nos quais uns poucos países ditavam ordens à
volvimento humano sustentável. A solução para maioria – para uma nova maneira de operar
isso seria por meio do comércio de importa- que pode ajudá-la a se tornar uma verdadeira
ção e exportação baseado em normas estabe- instituição da economia internacional. A reu-
lecidas que sejam monitoradas e cumpridas. nião ministerial da OMC em Cancún foi a pri-
Uma vez que o comércio, na maior par- meira vez na história dessas conversações so-
te das vezes, é realizado por empresas (e não bre comércio – desde a Conferência de Havana,
por governos), a chave para a elaboração de em 1947 – que as negociações chegaram per-
normas consistentes – e que num momento to de ser realmente globais.
posterior podemos ver seu cumprimento – es- Cerca de cem países do mundo em de-
taria na combinação de forças, mesmo de ne- senvolvimento engajaram-se num debate verda-
gócios bem instruídos, consumidores consci- deiro sobre os dois assuntos mais importantes
entes, governos nacionais e agências/institui- que estavam em discussão – agricultura e os te-
ções internacionais progressistas. Dados os mas de Cingapura – em duras negociações com

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POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

as duas dúzias de países industrializados que globais – aqueles que são bons tanto para o
compõem a Organização para a Cooperação e Norte como para o Sul. A Índia esteve pratica-
o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como mente isolada na sua posição quanto aos te-
órgão do sistema global das Nações Unidas, mas de Cingapura, durante a reunião ministe-
as instituições que elaboram políticas de co- rial da OMC, realizada anteriormente em Doha,
mércio (como a primeira dessas instituições, a no Catar. Em Cancún, a Índia integrou uma
Organização Internacional do Comércio, a enorme coalizão. O ativismo cidadão sobre es-
Conferência das Nações Unidas para o Comér- sas questões foi crucial para que os governos
cio e Desenvolvimento (Unctad) e mesmo o pudessem perceber o que estava em jogo e com-
preâmbulo da OMC) têm produzido parte do preender que havia espaço para resistir. Porém,
mais avançado pensamento e da retórica nes- essa resistência teria sido inútil, caso a Índia
sa área. Infelizmente, na prática, nunca cum- não tivesse se posicionado
priram sua missão progressista de pleno em- com firmeza em Doha. Se, por
prego, justiça e processo democrático globais. um lado, a pressão e o des- As instituições
Em segundo lugar, a OMC tornou-se a respeito sofridos pelos países
instituição de economia internacional sobre a
qual a sociedade civil e cidadãos e cidadãs indi-
que exercem seu direito de
dizer não aos Estados Unidos
que elaboram
vidualmente detêm mais informação e na qual
suas ações de exigibilidade (advocacy) têm sido
e à União Européia ainda se-
jam extremamente fortes – in-
políticas de
as mais eficazes. A natureza altamente reserva-
da e antidemocrática do Acordo Geral de Tari-
suportáveis para alguns –, por
outro lado, a reunião de comércio têm
fas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), o Cancún mostrou que alguns
antecessor da OMC, combinada com as conse- governos, em especial quan- produzido parte
qüências bastante negativas sofridas por pro- do se articulam numa ampla
dutores, classe trabalhadora e pelo meio ambi- coalizão, conseguem exercer do mais avançado
ente, resultantes das negociações anteriores, seus direitos dentro desse
fez da OMC o alvo provavelmente do maior mo- modelo de consenso. pensamento e da
vimento mundial desde a guerra do Vietnã. A quarta razão para
Tanto por meio da ação direta e orga-
nizada de exigibilidade como da participação
sermos otimistas é que, en-
tre as agressões generaliza-
retórica nessa
ampliada pelo trabalho de parlamentares, ci-
dadãos e cidadãs do mundo todo vêm contri-
das da parte de alguns in-
tegrantes do governo esta-
área. Infelizmente,
buindo na definição de uma agenda e influ- dunidense ao sistema inter-
enciando no próprio processo. Somente agora nacional, há a reivindicação na prática, nunca
estamos começando a compreender o proces- de alguns pela extinção da
so de lobby e exigibilidade mundiais e, com OMC ou, simplesmente, que cumpriram sua
certeza, somos fracos em muitos aspectos. ela seja ignorada. Essa ame-
Porém, entre todas as ações de exigibilidade aça contra todo o sistema missão progressista
cidadã mundial do momento, a ação perante das Nações Unidas – até
a OMC é a mais avançada. As lições tiradas de contra os direitos econômi-
outras importantes iniciativas da cidadania cos, sociais e humanos, os tratados ambien-
mundial, como o boicote à Nestlé, o Tratado tais, instituições e agências – é a mais séria e
de Minas Terrestres e a Convenção sobre Di- mais perigosa que já vi em toda a minha vida.
versidade Biológica, começam a se fundir e a A ameaça à própria sobrevivência da OMC
se amalgamar, depois de quase 20 anos de criou uma atmosfera, pela primeira vez, pro-
ação de exigibilidade cidadã perante o Gatt e pícia à realização de um diálogo aprofunda-
a OMC, para então tomar a forma de uma es- do sobre sua reformulação.
trutura de efetiva ação de exigibilidade cidadã Quinta e última razão, porque é pro-
global. Essa estrutura que está se formando funda a compreensão, a solidariedade e a co-
não é sinônimo de democracia global, mas ain- operação ativa global no momento – no Nor-
da assim é importante. te, no Sul, no Leste e no Oeste. Isso é percep-
A terceira razão tem a ver com a estrutura tível em relação tanto à sociedade civil como à
da OMC. Nela, é necessário haver consenso em construção de relações entre governos. É a
muitas áreas para que as negociações possam nossa chance de aproximarmos lições, experi-
prosseguir e isso a torna uma instituição ideal ências, estímulo, energia, sabedoria, informa-
para a construção de acordos verdadeiramente ção e recursos dos companheiros de todo o

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A R T I G O

planeta num momento de participação e, as- pessoas que já estão capacitadas nesses as-
sim, prosseguir cada vez mais para o progres- pectos. Entretanto, é preciso mais do que isso
so do desenvolvimento humano sustentável e para que possam efetivamente produzir algo
pelos direitos humanos. inovador e realizar ações de exigibilidade em
Cancún pode ser considerado um su- arenas globais. Isso tem de ser buscado em
cesso. Esse ponto de vista tem sido criticado todas as esferas – na base (por exemplo, em
por algumas pessoas que acreditam que cada grupo formado nas igrejas) e na mídia
Cancún foi um fracasso, uma vez que os go- de massa (utilizando todos os meios disponí-
vernos perderam a chance de avançar em ques- veis). Trazer mais os nossos representantes,
tões importantes e de preocupação para o democraticamente eleitos, especialmente os
mundo em desenvolvimento. Se Cancún se parlamentares, para dentro do processo de ela-
constituiu verdadeiramente num novo come- boração de políticas de comércio também faz
ço ou meramente em outra oportunidade que parte desse esforço. A presença em Cancún, pela
se deixou escapar, somente daqui a cinco ou primeira fez, de um grande número de parla-
dez anos será possível avaliar melhor. O im- mentares federais e estaduais, bem preparados,
portante, entretanto, é que nós, que acredi- talvez tenha tido mais impacto no resultado das
tamos no sistema multilateral, devemos to- reuniões do que a presença das ONGs.
mar esse caminho que se vê através da janela Quanto à terceira tarefa, precisamos
aberta em Cancún, apropriando-nos do usar este momento na história da OMC – no
momentum que foi gerado, para avançar no qual parece haver uma abertura para um novo
desenvolvimento humano sustentável. A His- pensamento e para a reformulação – e pressi-
tória nos julgará, não pelo que fizemos em onar por reformas estruturais no modo de
Cancún, mas pelo que fizermos de Cancún. operação dessa instituição. Por exemplo, uma
boa maneira de começar seria por meio de um
processo de revisão, aberto e público, dos
Trabalho a cumprir
potenciais candidatos ao cargo de diretor ge-
Mas o que isso significa em termos concretos ral e do estabelecimento de normas de proce-
para cidadãos e cidadãs e movimentos soci- dimento de negociação que fossem monito-
ais? Creio que existem seis tarefas importan- radas e cumpridas. A metodologia usada na
tes à nossa frente. realização das sessões de negociação – infor-
Primeiro, temos de prosseguir na ori- malidade, participação limitada de represen-
entação geral de tornar as negociações real- tantes e inexistência de documentação sobre
mente globais. Isso significa dar apoio a todo as posições tomadas pelos negociadores – tor-
e qualquer esforço para se obter um maior na não-transparente o processo de negocia-
engajamento de todos os países membros da ção. Executando-se a reformulação nos proce-
OMC numa participação ativa nos debates dimentos, como a que foi proposta por vários
importantes. Isso poderá demandar o desen- países membros antes de Cancún, essa situa-
volvimento de uma relação de consultoria téc- ção pode ser revertida.
nica com as ONGs e mesmo a realização de Para a quarta tarefa, precisamos escla-
treinamento e elaboração de programas e recer qual é o papel de uma gama de institui-
materiais didáticos. Por exemplo, se as políti- ções regionais e globais em relação à política
cas agrícolas do governo federal estaduniden- de comércio e dar um sentido a esse grupo de
se tendem a ser um tema de suma importân- instituições. Por exemplo, vários dos assuntos
cia, então o melhor a fazer seria dar capacitação explosivos levantados pelos governos do Ter-
aos negociadores e seus assessores sobre o ceiro Mundo em Cancún, como os problemas
real conteúdo e abrangência dessas políticas desastrosos enfrentados pelos produtores de
do que ter uma retórica sobre política agrícola café e algodão no mundo em desenvolvimen-
vazia e desprovida de instrução que tão fre- to, são questões relacionadas a commodities
qüentemente ouvimos, tanto da parte das que normalmente seriam tratadas no âmbito
ONGs como de governos. da Unctad.2 Um dos principais focos dessa reu-
Segundo, temos de ampliar, de forma nião tratará do aspecto do suprimento no co-
significativa, nossos esforços em relação às pes- mércio. Em todo o globo, há muitas pessoas
soas e às organizações, buscando elevar a cons- sérias, mesmo líderes conservadores como o
cientização, a análise crítica e a capacidade de ex-primeiro-ministro canadense, Brian Mulroney,
2 A 11a Conferência Ministerial desenvolver propostas alternativas. Em alguns pedindo por uma segunda Conferência de San
da Unctad será realizada em
São Paulo, em junho de 2004. setores, como o da agricultura, há muitas Francisco, numa alusão à fundação das Nações

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POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

Unidas em San Francisco há quase 60 anos. O


secretário geral da Organização das Nações
Unidas (ONU), Kofi Annan, já pôs em anda-
mento uma ampla revisão do sistema das Na-
ções Unidas, que poderia formar a base de
uma séria reforma de todo o sistema de
Bretton Woods.
Em quinto lugar, precisamos atacar al-
guns problemas globais mais prementes, dos
quais os governos parecem incapazes de tra-
tar no momento. Por exemplo, a persistência
dos baixos preços globais para o algodão, café

PAULO CESAR DE OLIVEIRA


e outras commodities continuam sendo um
entrave ao comércio e ao desenvolvimento
sustentáveis. A natureza dramática das inter-
venções dos governos da África Ocidental, que
se encontram perigosamente dependentes dos
preços mundiais para o algodão, sobre os quais
não têm controle algum, foi um dos pontos Há dezenas de questões que emergi-
culminantes da reunião de Cancún. Pequenos ram antes e durante Cancún que exigem pro-
agricultores dos estados mexicanos de Chiapas postas concretas e campanhas mundiais para
e Oaxaca falaram com eloqüência sobre a situ- que sejam implementadas. O que está faltan-
ação desesperadora dos cafeicultores do mun- do é um processo global que colete as me-
do inteiro. Temos experiência suficiente e so- lhores idéias em efervescência e as transfor-
mos capazes de apresentar soluções concretas me em propostas concretas, talvez competiti-
que podem ser implantadas com ou sem vas. Estas, depois, passarão pelos vários canais
apoio governamental. e processos na sociedade, no comércio e nos
Como última tarefa, temos de encon- governos para constituir um consenso glo-
trar uma maneira de contribuir com o anda- bal. Com o surgimento do Fórum Social Mun-
mento da reformulação geral do sistema in- dial, estamos começando a caminhar em di-
ternacional, de forma que contenha os ataques reção a um processo de produção de consen-
dos neoconservadores e de outros opositores so no âmbito da sociedade, o que cria a
contra o sistema das Nações Unidas como um perspectiva real de algum dia irmos em dire-
todo. Ainda que possamos ter muitas críticas ção a um verdadeiro processo global.
pontuais sobre decisões tomadas pela OMC, Entretanto, a interpretação otimista
temos de encontrar os caminhos que levem ao dos resultados da reunião ministerial de
engajamento construtivo. Nossas críticas não Cancún e a oportunidade de termos um avan-
podem servir de argumentação para aqueles ço global, que pode ser denominado de Mo-
que trabalham pela substituição do sistema mento Cancún, não é a única interpretação da
da ONU por alguma forma de superpotência reunião ministerial. Aqueles que preferem o
governadora do mundo. Essa é uma das áreas unilateralismo, o mercantilismo e o uso da for-
de atuação mais importantes para a coopera- ça sobre o cumprimento da lei estão tirando
ção global e deve ser concretizada a partir de outras lições de Cancún.
uma abordagem de total integração entre Dentro dos Estados Unidos, existem
Norte/Sul e Leste/Oeste. quatro grandes classificações das visões sobre
o papel do comércio na política externa. Pri-
meiro, há aqueles que estão no poder e apro-
Mudança em vista
vam o unilateralismo como a forma mais efici-
A OMC entrou num processo de mudança de ente e efetiva de exercer o poder estadunidense
composição e enfoque, distanciando-se do para manter o acesso privilegiado a matérias-
papel de ser apenas uma via pela qual os Esta- primas, mercados e pontos estratégicos para o
dos Unidos e a União Européia impõem seus posicionamento avançado de forças militares.
acordos, para se aproximar de ser um lugar Há inúmeros congressistas e altos funcionários
onde as políticas de comércio são avaliadas e da Casa Branca que retirariam os Estados Uni-
negociadas em termos do seu alcance para dos das Nações Unidas e da OMC imediata-
concretizar metas de desenvolvimento. mente, se pudessem fazê-lo impunemente.

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A R T I G O

Num segundo grupo, estão aqueles que do seus mandatos ou competências, ou que
acreditam que a forma mais eficiente de man- sejam obviamente incapazes de liderar. Impor-
ter os Estados Unidos no poderio mundial é tantes demandas vindas das muitas vozes crí-
manifestando esse poder por meio do multila- ticas à globalização demonstram a necessida-
teralismo e de instituições globais, como o sis- de de reforma radical, até mesmo propostas
tema das Nações Unidas – que inclui a OMC. de governos do tipo “enxugamento ou encer-
Uma vez que os recursos mundiais precisam ser ramento”, referindo-se ao escopo da OMC.
compartilhados de forma mais eqüitativa e que Uma demanda conseqüente dessa posição é a
isso requer uma redefinição do atual equilíbrio do movimento global de produtores exigindo
de forças no mundo, é inaceitável essa suposi- a “retirada da OMC da agricultura” como uma
ção de que o sistema multilateral deva ser usa- forma de resolver as muitas injustiças e pro-
do para manter o status quo. blemas relacionados à soberania e à seguran-
No entanto, pode-se acredi- ça alimentar que são, em parte, resultantes do
Apoiamos o tar numa articulação com pes- atual acordo agrícola da OMC.
soas que vêem nesse pensa- Há um quarto ponto de vista comparti-
sistema mundial, mento a perspectiva de formar
alianças táticas.
lhado por muitos amigos e aliados que acre-
ditam que as instituições estão tão presas a

porém não O terceiro grande gru-


po acredita na cooperação
interesses especiais e tão comprometidas pe-
las manobras da Guerra Fria há 50 anos, e a

apoiamos muitas mundial e no multilateralismo


como meio de alcançar o de-
outros elementos da luta geopolítica global,
que muitas instituições globais devem simples-
senvolvimento sustentável, os mente ser fechadas. Essa visão também é com-
das ações direitos humanos, a justiça e a partilhada por alguns dos fundadores das prin-
igualdade. Isso, às vezes, nos cipais instituições globais.
perpetradas por coloca numa posição difícil, já Há dez anos, o IATP reuniu os fundado-
que nos encontramos pelejan- res das instituições de Bretton Woods que ain-
importantes do tanto contra os unilateralis- da estavam vivos, para discutir sobre o que de-
tas, que substituiriam o siste- sejavam e o que pensavam do 50o aniversário
instituições. Nossa ma global seguindo as ordens
de Washington, como contra
de fundação do Banco Mundial e do Fundo
Monetário Internacional (FMI). Durante as dis-

crítica deve vir aqueles que apóiam o multila-


teralismo, mas que o fazem
cussões, alguns desses fundadores debatiam
entre si sobre qual dessas instituições teria se

acompanhada principalmente para preservar


esse inaceitável status quo.
desviado em muito de sua missão original e
qual deveria ser fechada primeiro. A veemência
Esse é um dilema terrí- de suas críticas e a urgência com que manifes-
de sugestões vel para quem acredita firme- tavam a necessidade de reforma fundamental,
mente no multilateralismo e na ou de extinção dessas duas instituições, eram
de reformas cooperação mundial. Isso nos muito mais fortes do que as defendidas no
obriga a fazer duras críticas às Fórum Social Mundial ou em outros encontros.
muitas das ações praticadas Existe o grande perigo de que a tercei-
por essas instituições, quando percebemos que ra e quarta correntes – somadas às nossas
sua principal motivação está no desejo de man- duras críticas às muitas ações realizadas pelo
ter o status quo. Todavia, nossa crítica deve ser sistema multilateral – sejam utilizadas por al-
encaminhada de tal forma a nos distinguir dos guns integrantes da administração Bush para
ataques feitos à ONU e à OMC com o propósito incrementar a contínua retirada dos Estados
de destruir totalmente a idéia de um sistema Unidos das questões globais e promover a
internacional. Temos de deixar claro que apoia- agenda unilateralista. Encontros como os
mos o sistema mundial, porém não apoiamos fóruns sociais têm um papel vital na garantia
muitas das ações perpetradas por importantes de que nossas críticas não sejam apropriadas
instituições. Nossa crítica deve vir acompanhada e usadas para destruir o sistema no seu todo.
de sugestões de reformas que fortaleçam o sis-
tema como um todo, ao invés de enfraquecê-lo.
Situação insustentável
Um elemento-chave dessa corrente de
pensamento é o desenvolvimento de idéias so- Muitas das regras globais administradas pela
bre as formas de reduzir o poder ou o escopo OMC foram negociadas numa época em que
de instituições globais que tenham extrapola- a agenda neoliberal era proeminente. Estamos

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POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

agora numa nova era – num tempo onde a esforços empreendidos pelo Brasil e o G-20
agenda neoconservadora dos assuntos ex- em Cancún – e agora estaremos nos ocu-
ternos e militares está articulada às políticas pando de um debate concreto global sobre
neoliberais para os assuntos de negócios e o papel das Nações Unidas, da força militar
da economia. Enquanto os seu efeitos de- e do unilateralismo.
sastrosos podem ser vistos em cada lugarejo Talvez tão importante quanto ter al-
do planeta, as chances de mudança como çado globalmente essas questões seja, ao
resultado desse casamento arrasador são mesmo tempo, ver a sua projeção nos Esta-
igualmente dramáticas. Sem os resultados dos Unidos. Não há como fazer uma crítica
cruéis da sinergia entre comércio e o milita- de todos os pormenores desse extenso de-
rismo neoconservadores, a articulação entre bate hoje, mas é cabível dizer que nunca vi-
o governo brasileiro e o G-20 em Cancún vemos uma época de maior
não teria sido possível. A combinação entre perigo político nos Estados
a perpetuação de políticas de comércio mer- Unidos – e isso inclui a de Temos a chance
cantilistas e “hegemonia global”, por meio Richard Nixon e outros – e
de uma política externa militarizada, criou
uma situação política quase insustentável
nunca houve um momento
de maior debate público so-
de desbancar os
para os Estados Unidos.
Enfraqueceu a parceria entre os Esta-
bre o papel do governo nos
assuntos internos e exter-
domínios tanto
dos Unidos e a Europa de forma drástica –
impossibilitou que formassem um front sóli-
nos, e o papel dos Estados
Unidos especificamente nas neoliberal como
do em Cancún. Significou que os Estados Uni- questões globais. Como na-
dos ignoraram os apelos desesperados de ção, fomos partidos ao meio neoconservador
países sem recursos, como as nações depen- sobre a guerra mantida pela
dentes do comércio do algodão na África Oci- administração Bush contra o exatamente
dental, que deixaram perfeitamente claro que, Iraque e continuamos pro-
sem uma flexibilização, não teriam razão para fundamente divididos hoje. porque estão
negociar nada. Para completar, além dessas O importante, entretanto,
questões específicas de política, havia tam-
bém a arrogância e a cegueira decorrentes da
não são os números das
pesquisas sobre a política
relacionados
motivação ideológica. Muitos integrantes da
delegação estadunidense, tanto do governo
de guerra, mas a profundi-
dade e o escopo do debate
agora
como do setor empresarial, ficaram bastante em que estamos engajados.
satisfeitos com o resultado de Cancún. Viram Grande parte da sociedade
ali a oportunidade para colher argumentos – muito, muito mais do que jamais se teve
em favor de sua causa pelo futuro abandono notícia – está engajada na discussão de
do processo multilateral e pelo uso das ne- questões importantes sobre economia, co-
gociações bilaterais e regionais, como a Área mércio, direitos humanos, guerra e paz. Esse
de Livre Comércio das Américas (Alca), como debate se intensificará à medida que entrar-
o espaço onde os Estados Unidos podem mos nas próximas eleições.
obter tudo o que querem sem ter de fazer Nossa agenda política externa e inter-
concessões, além das promessas de que se na depois do neoliberalismo e do neoconser-
empenharão ao máximo. vadorismo tem de ser um retorno à democra-
Talvez sendo excessivamente otimis- cia e à prevalência da lei. E temos de dar uma
ta, possamos afirmar: temos a chance de ênfase especial à garantia de que estamos
desbancar os domínios tanto neoliberal todos, por meio de procedimentos democrá-
como neoconservador exatamente porque ticos e dos direitos humanos, aptos a partici-
estão relacionados agora. Até há pouco par da criação de leis que nos governarão.
tempo, a separação dessas agendas – por Nos Estados Unidos, as questões de raça
exemplo, na administração anterior – tor- são o elemento definidor da vida pública. Até
nava quase impossível reunir forças tanto hoje, apesar de anos de trabalho com afinco,
dentro como fora dos Estados Unidos para sacrifício e grandes avanços, uma raça – grande
se criar um autêntico desafio a elas. Hoje, parte da classe governante pertence a essa raça
porém, podemos comemorar o início da – elabora a maioria das leis a que outros devem
verdadeira negociação do comércio no âm- obedecer. Sabemos que o governo da elite pela
bito da OMC – graças, em grande parte, aos elite na realidade não trabalha para os que

NOV 2003 / DEZ 2003 9


A R T I G O

* Mark Ritchie estão no âmbito local e nacional. Não é difícil mais importante lição do encontro foi quan-
Economista, Institute for adivinhar que globalmente fariam o mesmo. Uns do insistiram firmemente em dizer que a fun-
Agriculture and Trade poucos elaborando leis, como insignificantes ins- dação desse sistema deu-se, principalmente
Policy (IATP) trumentos de governança, em benefício de si e acima de tudo, numa tentativa desesperada
mesmos. A agenda pós-neoliberal é a democra- de encontrar um caminho para a paz mundial
cia em todos os níveis – o detalhamento fica por e assegurar a justiça econômica, social e polí-
conta daqueles que virão depois de nós. Porém, tica. Precisamos retomar esse foco primordial
se, e somente se, tivermos êxito em suplantar o – este é o momento de maior abertura, mas
domínio desses poucos, que é imposto com ar- não vai durar muito. Esse futuro democráti-
mas de destruição em massa e podem ser usa- co, porém, não nos será entregue nas mãos.
das contra os muitos. Até que, de fato, suplan- Teremos de trabalhar dia e noite para superar
temos essa elite e sua forma de governança aqueles que escolheram a guerra civil mundi-
aterradora, continuaremos todos a ser aterrori- al como forma de defender seus privilégios
zados pela guerra civil em escala global. ou como forma de resistência à exploração.
Devemos rejeitar qualquer opção que Talvez, a agenda pós-neoliberal para
nos leve em direção à guerra civil. É um futuro muitos de nós seja rigorosamente a mesma de
demasiado terrível para se imaginar. Devemos antes. Devemos continuar a usar a não-violên-
reagir a isso, tomando o caminho da demo- cia assertiva e mesmo agressiva na luta pela
cracia, reiteradamente defendendo-a por meio segurança, sustentabilidade e por um sentido
da não-violência. Essa tem de ser a nossa agen- de comunidade dentro de um contexto glo-
da pós-neoliberal e neoconservadora. bal. Devemos ser contrários à guerra civil lo-
A reunião organizada pela IATP reuniu cal, nacional e global por meio da luta pela
os fundadores da maioria das instituições cri- contínua expansão da democracia e dos direi-
adas depois da Segunda Guerra Mundial, in- tos humanos dentro da arena internacional.
cluindo ONU, Organização das Nações Uni- A democracia – no local de trabalho,
das para Alimentação e Agricultura (FAO, na em nossas cidades e nações, na arena global –
sigla em inglês), Declaração Universal dos Di- deverá ser ganha, depois ganha de novo e,
reitos do Homem e todas as agências de novamente, ganha outra vez. Devemos fazer
Bretton Woods, como o Banco Mundial e o isso por nós mesmos e por outros que nunca
FMI. O motivo do encontro era o 50 o aniver- conheceremos. Devemos fazer isso por este
sário da Conferência de Bretton Woods. A momento e por eras que jamais veremos.

O que fazer?
O projeto Agenda Pós-neoliberal tem o
objetivo de, a partir do reconhecimento da
diversidade de sujeitos e situações, criar
condições teóricas, políticas, metodológi-
cas e operacionais para a produção coleti-
va, sistemática e cumulativa de pensamen-
to estratégico sobre modelos de desenvol-
vimento humano democrático e sustentá-
vel. A iniciativa é do Ibase, em parceria com
Attac Brasil, ActionAid e Fundação Rosa Durante o primeiro Fórum Social Brasi-
Luxemburgo. leiro, realizado em Belo Horizonte, de 6 a 9
Pretende também fortalecer a capaci- de novembro deste ano, foi promovida sua
dade propositiva e de incidência dos dife- primeira atividade: o Ciclo de Seminários
rentes sujeitos sociais que se engajam, mun- Agenda Pós-neoliberal. O próximo encon-
dialmente, na busca de alternativas à glo- tro será em Mumbai, na Índia, durante o
balização neoliberal. Além disso, contribuir 4o Fórum Social Mundial, de 16 a 21 de ja-
para consolidar o processo do Fórum Soci- neiro de 2004. Em março de 2004, será no
al Mundial como um espaço em que a di- Fórum Social das Américas, em Quito, Equa-
versidade de sujeitos sociais se confronta, dor, e, em junho, na reunião da Unctad, em
elaborando convergências e divergências e São Paulo. Fechando o calendário, em no-
forjando uma cidadania de dimensões pla- vembro de 2004, acontecerá mais uma ro-
netárias, portadora de utopias e de trans- dada na Reunião dos Países do Cone Sul.
formação social. Mais informações: www.ibase.br

10 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas de
todo o país. Mas também trabalha-
doras e trabalhadores urbanos e ru-
rais, líderes comunitários, morado-
ras e moradores de comunidades
pobres. São 60 mil exemplares dis-
tribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa do


Ibase. Você pode ajudar com con-
tribuições financeiras ou organizan-
do um núcleo de distribuição.

NOV 2003 / DEZ 2003 11


ARTIGO
Mary Garcia Castro*

Alcance e limites
das políticas
de identidade
ALEXANDRE RAJÃO

12 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
As reflexões que se seguem estão divididas O teorema subjacente ao conheci-
em cinco pontos: alcance e limites do conceito mento alquimista era de que have-
de direitos humanos; alerta sobre a perspecti- ria uma matéria-prima comum a
va de política de identidades e a riqueza das metais bastante diferentes entre si.
identidades (principalmente quando se rela- Para a produção de um metal supe-
cionam na transversalidade das identidades na rior, o ouro, haveria que combinar,
política); questões sobre o conceito de igual- por exemplo, cobre, ferro e prata.
dade; importância de investir também no con- Chegar a tal matéria, transforman-
ceito de geração; e, o desafio maior, a dialética do-a, exigia do alquimista experiên-
entre direitos e o investimento em des/recons- cia nas técnicas de laboratório e
trução de identidades (investimento na uma postura filosófica própria. O
criatividade, reinventar-se, ir além da socieda- alquimista seria um ativista, por um
de de classes e de discriminações de várias or- conhecimento militante. Ora, as ca-
dens, resgatando a força das linguagens iden- tegorias raça, gênero e geração têm
titárias; a riqueza do diverso e não-desigual em comum serem atributos com sig-
em relações de descoberta tanto no plano do nificados, histórias, políticas, cultu-
individual, sexualizado/racializado e engendra- rais e econômicas, organizados por
do por gerações e múltiplas referências como hierarquias, privilégios e desigual-
no plano de coletividades libertárias).1 dades, aparados por símbolos par-
Defendo a tese de que a alquimia raça- ticulares e “naturalizados”. A com-
gênero-geração tem potencialidades de cola- binação de categorias como gênero,
borar na subversão cultural do sistema de clas- raça e geração na classe não é uma
ses, indo, portanto, além da necessária – mas simples operação de somas de dis-
limitada – perspectiva de direitos humanos.2 criminações ou de linguagens pró-
Tal reprodução por diferentes desigualdades prias e pode dar origem a sujeitos
vem sendo registrada por ativistas e intelectu- políticos mais ricos e criativos, além
ais progressistas. Assim, por exemplo, no dos esquemas duais das identida-
dossiê Assimetrias raciais no Brasil: alerta para des-alteridades e este é um desafio.
elaboração de políticas, recém-divulgado pela (Castro, 1992, p. 59) 1 Adaptação de texto apresen-
tado pela autora no Fórum So-
Rede Feminista de Saúde, registram-se várias cial Brasileiro, Belo Horizonte,
desigualdades entre pessoas afrodescenden- Se, por um lado, o debate sobre identi- em 8 de novembro de 2003. O
tema proposto da mesa de
tes e brancas, enfatizando-se que, em muitas dades veio enriquecer o conhecimento/ conferências foi Justiça social,
dimensões, o gênero amplia distâncias. ativismo sobre a multiplicidade do real ou os direitos humanos, igualdade en-
tre homens e mulheres, gera-
Em 2001, as famílias afrodescenden- diversos sistemas de desigualdade/iniqüidade ções e superação do precon-
ceito racial no Brasil.
tes chefiadas por mulheres tinham um ren- sociais, por outro lado, há o risco de uma apre-
2 É um ganho da modernida-
dimento domiciliar médio de R$ 202. Já as ensão pós-moderna de tais sistemas – por raça/ de, em fases mais recentes,
que tinham como chefe um homem tam- etnicidade, gênero e geração, por enfoques reconhecer a dialética entre
direitos humanos, tendo como
bém afrodescendente estavam no patamar parcializados, reformistas e fragmentados –, referência a humanidade, e
direitos humanos de muitos,
de R$ 208,60. Se uma mulher branca fosse ou seja, de uma aposta em políticas de identi- considerando suas singularida-
recenseada como chefe, tal indicador subiria dade deixando de lado a riqueza das identida- des, tanto em termos de vul-
nerabilidades negativas como
para R$ 481,20. No caso dos homens bran- des na política. O desafio maior é como, ao de possibilidades, vivências e
linguagens próprias. Isso ocor-
cos, um pouco mais, R$ 482,10. Entre as me- mesmo tempo, combater uma e todas as ini- re quando se sai dos concei-
ninas afrodescendentes, dos 10 aos 14 anos, qüidades sociais, combinando, portanto, po- tos clássicos da virada do
século de uma cidadania so-
4,5% seriam analfabetas. As analfabetas en- líticas focalizadas e universais, fazendo o nexo cial, civil e política, para lidar
com as desigualdades de um
tre as meninas brancas perfaziam 1,3%. entre distintos movimentos sociais e não per- sistema de classe, mas ampli-
Esses dados são apenas uma amostra dendo a perspectiva político-crítica sobre a ando o debate sobre cidada-
nia cultural e entrelaçando
de ampla gama de indicadores contrapostos sociedade estruturada em classes sociais. uma na outra, reconhecendo
as singularidades de muitos.
no dossiê para indicar hierarquias perversas, É preciso que a política de cotas nas E também quando se passa a
mesmo entre as pessoas pobres. Note-se que universidades venha acompanhada de ações fazer referências aos direitos
humanos das mulheres, dos ho-
o dossiê sobre assimetrias raciais é elabora- afirmativas, bolsas para estudantes pobres e mossexuais, dos negros, dos in-
dígenas, dos migrantes, das
do e divulgado por uma agência feminista, a melhoria do ensino das escolas públicas. Mas crianças, dos jovens, dos mais
Rede Feminista de Saúde, o que é um grande não dá para usar a necessidade de tais políticas velhos e de tantas outras po-
pulações que, por construções
avanço, apontando para a possibilidade do de afirmação universal de direitos para adiar sociais pautadas em desigual-
dades e iniqüidades sociais,
desafio maior desses tempos: a alquimia dos ainda mais o pagamento da dívida para com as são, em suas próprias classes,
enfoques sobre identidades para um conhe- populações afrodescendentes. Então, defenda- o outro ou a outra do outro e,
assim, mais negativamente
cimento e uma ação transformadores. mos as cotas. Temos de estar conscientes que vulnerabilizados que outros.

NOV 2003 / DEZ 2003 13


A R T I G O

oferecer as cotas sem dispor de condições Diferença entre iguais


para que as pessoas negras pobres tenham
O vocábulo igualdade3 muitas vezes não dá
um bom desempenho nas universidades é pre-
conta da riqueza de linguagens das distintas
parar uma profecia autocumprida: a deser-
identidades. Também não dá conta do reco-
ção dos que não conseguirem atender às exi-
nhecimento de tais singularidades e diferen-
gências das atividades de estudos em uma
ças que colaboram para sociedades em que se
universidade fortalece a posição daqueles que
apele menos para identidades fixas, mas, prin-
acham que a medida não daria mesmo certo
cipalmente, para o direito de inventar, de
e que tinham razão em não querer que en-
reinventar formas de ser, estar e se relacionar,
trassem pelo sistema de cotas.
descobrindo sensações, maneiras de ser e de
A militância identitária deve ser acom-
combinar corpos sem caminhos pré-mapedos.
panhada da militância clássica ou, como cha-
Tenho alergia aos manuais de gênero de tan-
mam os pós-modernos de forma crítica, da
tas bem intencionadas ONGs que lutam pelos
“grande narrativa da transformação social” – o
direitos das mulheres.
socialismo. O maior desafio, diferentemente
Assim, por exemplo, o debate e o
dos que advogam o investimento exclusivo em
ativismo pelos direitos ao homoerotismo ques-
políticas de identidade focalizadas, é renovar a
tiona, referindo-se à questão de gênero, o sis-
“grande narrativa” pelo socialismo ou, de for-
tema de relações assimétricas somente entre
ma mais modesta, considerando as urgências
homens e mulheres. Quando algumas feminis-
do imediato, as políticas “universais e focaliza-
tas também questionam o conceito de igualda-
das”. É preciso combinar o enfrentamento de
de entre homens e mulheres, jogando com o
múltiplos sistemas de reprodução de desigual-
direito de a mulher se reinventar de formas
dades, além de não pararmos na crítica às dife-
múltiplas, estariam desestabilizando conceitos
renças, por exemplo, entre pessoas brancas e
e ênfases em identidades fixas. A radicalidade
negras em relação a um determinado indica-
estaria em ir além da igualdade de direitos.
dor. É preciso avançar mais no questionamento
O movimento negro vem resgatando a
da reprodução de sistemas de exploração e dis-
sabedoria do conhecimento, da cultura africa-
criminação, tanto de pessoas brancas como de
na no Brasil. Sua estratégia inclui uma crítica
pessoas negras pobres, sem perder também a
implícita à sociedade de consumo e às tradici-
perspectiva de que as negras, com a maior pro-
onais divisões sexuais, com a polifonia erótica
babilidade, serão mais discriminadas.
dos orixás e tendo a expressão musical e cor-
Segundo as feministas Barret e Ha-
poral mais do que superestrutura, linguagem
milton, num texto de 1987, “apreender a di-
de comunicação que ressalta o valor do lúdico.
versidade sem perder-se na fragmentação
Portanto, a questão se reduziria a um pensar
vem se tornando um dos maiores desafios
pequeno, brigando apenas por igualdade en-
do trabalho de corte feminista hoje” (apud
tre pessoas negras e brancas, a contribuição
Castro, 1992, p. 57). Segundo o dossiê so-
singular do Atlântico Negro (Gilroy apud Cas-
bre assimetrias raciais no Brasil, em “2001,
tro, 2002), da cultura afro-brasileira?
os afrodescendentes representavam 69,3%
Já o feminismo tem possibilidades que
dos 10% mais pobres da população, en-
o ultrapassam como movimento social em
quanto os brancos representavam, apenas,
defesa das mulheres. Até em suas versões
32,3%. No extremo oposto, ou seja, entre o
institucionalizadas de corte liberal, contri-
centésimo mais rico da população, os afro-
bui para uma política cultural orientada para
descendentes são apenas 8% e os brancos
a construção de forças contra-hegemônicas
88,8%”. Ora, o percentual de 32,3% de pes-
ao introduzir elementos desestabilizadores,
soas pobres brancas não é “apenas”, mas
por exemplo:
uma alta proporção de pobres, e não have-
ria como existir um projeto progressista con- 1. questionamento das diferenças de posição
tentando-se em diminuir a proporção de entre homens e mulheres nas relações ca-
3 O conceito de igualdade é
um ganho do léxico liberal, pessoas pobres negras para que se igualas- pital/trabalho;
mas tem armadilhas que po-
dem colaborar para reprodu- sem a de pobres brancas. E é também limita- 2. chamado à diferença, estabelecimento de
ções de códigos tradicionais, da a insinuação implícita de que se deveria combinações entre o público e o privado,
limitantes de mudanças e do
exercício da criatividade. aumentar a proporção de afrodescendentes que afetam formas de venda da força de
Muitos movimentos de mulhe-
res afirmam que o projeto entre as classes mais ricas, deixando intacta trabalho – sugerindo, sem assumir, a
maior seria igualdade de di- a estrutura de classe, de acumulação e dis- materialidade do princípio marxista de que
reitos e liberdade de ser di-
ferente e singular. tribuição de riquezas. há várias populações no e para o capital;

14 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

3. questionamento dos princípios iluministas, humanista colorido. Um socialismo que englo-


como o de “sujeito universal” – homem e basse o direito à felicidade, ao gozo e à
mulher –, e de princípios genéricos, como criatividade como princípios de direitos hu-
“liberdade, igualdade e fraternidade”, pe- manos universais e que devem ser mais focali-
los quais se omitiriam contradições de in- zados, por mais que tenhamos de botar muita
teresse e violências entre “iguais”; energia contra as barbáries cotidianas, que
4. enfrentamento – não necessariamente as- pedem ações imediatas.
sumido como tal – de uma razão dicotô- Insisto na idéia de que há potenciali-
mica, como as separações entre a macro e dade em não se restringir ao campo dos direi-
a micropolítica da cotidianidade, entre tos humanos de cada identidade – negros,
condições objetivas e subjetivas, entre a mulheres, jovens e velhos, por exemplo – ain-
razão e os sentimentos e entre a esfera da que tal reconhecimento de direitos seja
pública e a privada. importante. Chamo a atenção para o fato de
O movimento de mulheres negras é um que a vertente feminista marxista e os movi-
dos avanços mais importantes da última dé- mentos de mulheres com discurso de classe,
cada do feminismo no Brasil. Nele, as mulhe- assim como os movimentos sociais que relaci-
res jovens têm contribuído para uma outra onam gênero, raça e geração em diversos paí-
forma de se expressar culturalmente, como, ses da América Latina, teriam ampliado consi-
por exemplo, em um hip hop não-machista, deravelmente suas agendas e enriquecido suas
no reconhecimento da beleza negra e no res- práticas a partir da década de 1970. Apren-
gate da auto-estima. deu-se com as feministas radicais e liberais a
Os movimentos juvenis têm a potenci- trabalhar com temas espúrios para correntes
alidade libertária da crítica, a busca por auto- economicistas à esquerda, como a sexualida-
nomia, a integração com o erótico, as artes e a de, a auto-estima e o individualismo não-nar-
indignação pelo injusto. Não por acaso, acio- cisista ou egoísta, mas criativo. Reivindicou-se
nam um dos movimentos mais importantes o querer, o reconhecimento de corpos no es-
desses tempos, contra a globalização capita- paço dos afetos, o direito ao prazer ou aos
lista e a hegemonia do Império. Será que tan- prazeres, para uma agenda política de esquer-
ta energia é fruto apenas do combate às da, combinando frentes de luta além dos
adultocracias, limitando-se a brigar por políti- guetos, especificidades e políticas de identi-
cas públicas para as juventudes e pela criação dade essencializadas (ou referidas a naturali-
de uma secretaria da juventude, sem criticar as zações das relações sociais/sexualizadas).
formas de fazer políticas vigentes com o seu
capital cultural juvenil, sem reconhecer a con-
O caso dos jovens
tribuição histórica que o movimento de juven-
tude vem dando? Pensar assim também não Entre diferentes identidades na classe, mere-
seria pensar pequeno? ce mais atenção a situação dos jovens, em
Em suma, tanto o reconhecimento da particular de jovens das classes populares e
força radical, das raízes de cada movimento, de jovens negros. Quando se desagrega a po-
de cada identidade, como a aposta no pulação por sexo, raça/etnicidade e geração,
hibridismo de movimentos – negro, feminis- outras heterogeneidades são reveladas, con-
ta e juvenil – ampliam os lugares de luta e de firmando o reforço das desigualdades na
afirmação de direitos. É avançar na radicali- contemporaneidade brasileira e o anúncio de
dade, sair do campo estreito da instituciona- que essa é uma tendência que se acentua com
lidade (e por várias frentes) e na unidade de o livre jogo do mercado. São jovens negros e
muitos, além dos direitos – repito, válidos negras que apresentam as mais baixas taxas
sim, como são as políticas para grupos na de atividade e mais altas taxas de desempre-
subalternidade –, mas na sonhada grande go. Jovens negros e negras, entre 15 a 18
narrativa reinventada de um socialismo hu- anos, nas áreas metropolitanas no Brasil, têm
manista, questionando-se culturas calcadas taxas de desemprego superior à média para a
no produtivismo e economicismo. população adulta total (cerca de 8%), com
Seria benéfica à multiplicação e à am- uma variação entre 17% e 23%.
pliação dos espaços da sociedade civil – en- Mesmo no plano mais formal, liberal,
tendida em sentido gramsciano como forças de direitos humanos específicos, de investimen-
contra o mercado – e de pressão por um Estado to em identidades em si e de políticas focaliza-
de bem-estar, hoje, a luta por um socialismo das em alguns segmentos, um dos grupos mais

NOV 2003 / DEZ 2003 15


A R T I G O

a descoberto tem a ver com a identidade/gera- Ora, a faixa etária de 10 a 15 anos é


ção, como o caso dos jovens. De acordo com tempo de estudos, brincadeiras e diversão.
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Entre os 15 e 24 anos, para cada cem homens
Estatística (IBGE), no Brasil, em 2002, 34,1 brancos pobres, existem 110 mulheres bran-
milhões de pessoas se encontravam na faixa cas, 211 mulheres negras e 214 homens ne-
etária entre 15 e 24 anos, o que equivale a gros pobres. Na faixa etária de 7 a 14 anos,
cerca de 20% da população do país. por sua vez, para cada cem meninos brancos
Quer pela representação quantitativa no pobres há 103 meninas brancas, 189 meninas
cômputo geral da população, quer pelos direi- negras e 203 meninos negros pobres. Ou seja,
tos humanos dos jovens, estes fazem jus a se- na alquimia entre raça e gênero, algumas mu-
rem considerados tanto em políticas universais lheres perdem mais do que as outras e não
como sujeitos de políticas específicas. Contu- necessariamente os homens se destacam como
do, tal discussão deve ultrapassar a lógica do em melhor situação, o que nos alerta contra
senso comum pela qual se consideram políti- referências generalistas e políticas públicas
cas públicas como um elenco de programas. para identidades em si, sem consideração à
Falta aprofundar debates sobre perspectivas po- heterogeneidade que comporta cada uma.
líticas em relação aos jovens, considerando ain- Vive-se hoje, por outro lado, a emer-
da sua diversidade e as desigualdades segun- gência dos discursos sobre os direitos huma-
do raça, gênero, classe e outras demarcações nos e as práticas e discursos sobre violências,
sociais. Não se encontram políticas públicas para sendo que é comum sublinhar-se a participa-
juventudes no atacado, predominando progra- ção jovem nos dois discursos, como vítimas
mas e ações no varejo, ou seja, existem no Bra- ou algozes. Então, um primeiro direito huma-
sil programas isolados, políticas setoriais de no é o da diversidade. Há vários tipos de jo-
ação local no âmbito do Estado, mas que não vens e é preciso dar espaço para que os jovens
contemplam a diversidade dos beneficiários em representem seus direitos. Os jovens, princi-
termos de geração e não possuem uma orien- palmente pobres e negros, são “sujeitos peri-
tação universalista. O desafio é refletir sobre gosos”, e esse perigo é ligado à sua classe e
políticas públicas de, para e com juventudes, idade. Tal perspectiva é mais comum nas notí-
levando em conta uma série de complicadores cias e nos estudos sobre violências e drogas.
que envolvem essa temática e a diversidade de Mas também é presente quando se focaliza os
direitos humanos dos jovens – sociais, civis, po- jovens a partir de seus mais altos índices de
líticos e culturais.4 desemprego. Por outro lado, são poucas as
O debate sobre políticas com juven- referências às cidadanias ou aos direitos ne-
tudes, considerando que os próprios jovens gados aos jovens, como o do exercício das brin-
deveriam reivindicar direitos, passa pela for- cadeiras, da diversão, da sua informação e for-
mação política dos jovens no sentido de mação cultural, assim como da reinvenção de
aprender a zelar pela coisa pública e acom- linguagens próprias.
panhar e cobrar a ação do Estado – exercício Cerca de 40% da população jovem no
de cidadania civil e política e monitoramen- Brasil vivem em famílias em situação de po-
to do uso da coisa pública. Ironicamente, breza extrema (famílias sem rendimentos ou
tanto no movimento feminista como no mo- com até meio salário mínimo de renda famili-
vimento negro, os debates e até a apresen- ar per capita). Os que não estudam e não tra-
tação de estatísticas com recorte também de balham correspondem a 20,4% do total de
geração deixam a desejar. No dossiê sobre jovens entre 15 a 24 anos, no conjunto das
assimetrias raciais, lê-se: nove regiões metropolitanas do Brasil – o que
Em 2001, a taxa de ocupação das cri- significa mais de 11 milhões de jovens, sendo
anças e adolescentes entre 10 e 13 que, entre esses, cerca de 55% são classifica-
anos era de 9%, quase duas vezes dos como pretos ou pardos censitariamente
mais elevada que a taxa apresentada segundo estudo, ainda em andamento, da
pelas crianças brancas, que era de Unesco com dados da Pesquisa Nacional por
4,9%. Na faixa etária entre 14 e 15 Amostra de Domicílios (Pnad) de 2001. Não
anos, embora haja uma substantiva existem políticas específicas para jovens que
elevação da taxa de ocupação dos não estudam e não trabalham.
4 Sobre políticas publicas de/
para/com juventudes, ver jovens brancos (16,8%), a taxa de Em pesquisas desenvolvidas pela
Castro e Abramovay (2003) e participação de afrodescendentes Unesco, quando se pergunta a jovens de bair-
pesquisas diversas da Unesco
no Brasil. permanece superior (20,1%). ros pobres quais políticas públicas propõem,

16 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

é comum ouvi-los (entre 14 e 15 anos) de- não foi planejada e que, em quase 70% dos
clarar: “Queremos ter um trabalho”. O direi- casos, as jovens não usaram nenhum méto-
to de ter tempo para brincar e para estudar do anticoncepcional na primeira relação
não é reconhecido pelos próprios adolescen- sexual (Camarano, 1998).
tes, ante suas necessidades e da família. Já outras pesquisas, de cunho mais an-
Abdica-se da reivindicação do seu direito a tropológico, consideram que a gravidez entre
estudar e não declaram que querem bolsas adolescentes não se associaria necessariamen-
de estudo, condição para que só estudem. A te à falta de conhecimento sobre métodos de
busca por trabalho é prioritária para jovens controle de natalidade pela mulher e que, para
pobres: em algumas das entrevistas com jo- muitas jovens, o corpo é uma fronteira de po-
vens que estudam e não trabalham, perce- der, e a gravidez, um poder simbólico de múl-
be-se que, se aparecer uma oportunidade de tiplos sentidos. Principal-
trabalho, o estudo é abandonado, mesmo mente entre as jovens
que seja um trabalho de ganhos imediatos, mães de 15 a 19 anos, com
mas sem perspectivas a longo prazo. Limi- maior probabilidade se
tam-se expectativas de futuro e é favorecida
a perspectiva de garantir o presente, o que
destacam as pobres e as
que são classificadas
O feminismo
facilita, ainda, o envolvimento em violênci-
as. As condições de necessidades compro-
como pretas ou pardas. O
que, no imaginário juve- avançou muito
metem o direito ao sonho, a ter expectativas nil feminino, representa
quanto ao futuro. seu corpo e a gravidez é nos planos jurídico,
pouco explorado em ter-

Mulheres atuantes
mos de políticas educaci- político e formal,
onais preventivas ou de
O feminismo avançou muito nos planos jurí- socialização quanto às po- em termos,
dico, político e formal, em termos, principal- líticas de gênero, raça, ge-
mente, de visibilidade para violências
naturalizadas, tidas como coisas de marido e
ração e sexualidade.
A maior probabi-
principalmente,
mulher, por exemplo, ou de âmbito privado.
Mas se reconhece que ainda nesse campo são
lidade entre a metade
dos nascidos vivos de
de visibilidade
muitas as lacunas, e, entre elas, destacam-se
as relações de gênero entre jovens e a falta de
mães entre 15 e 19 anos
é a de quem vive em famí- para violências
políticas educacionais que trabalham com lia sem a presença do pai
conteúdos curriculares e práticas tradicionais biológico. A gravidez en- naturalizadas
nas escolas (Ver Abramovay e Rua, 2002, e tre adolescentes tem um
Castro e Abramovay, 2002). perfil social próprio: em
Graças a estudos de corte feminista, 1996, mais da metade das
sabe-se, por exemplo, que: a cada hora, sete adolescentes de 15 a 19 anos sem nenhum
mulheres são vitimadas em situações de vio- ano de escolaridade já tinham se tornado
lência doméstica no Brasil; 5 vem ocorrendo mães; já entre aquelas que tinham de 9 a 11
um rejuvenescimento das mortes por compli- anos de escolaridade, a proporção baixa para
cações obstétricas diretas, sendo que, em 4%. A taxa de fecundidade das jovens com
1994, só na região Sudeste, do total de mu- mais baixo rendimento (menos de um salário
lheres em idade reprodutiva que morreram mínimo) era de 128 por mil mulheres; entre as
por essas complicações, 12% tinham entre 15 jovens com rendimentos mais altos (dez salá-
e 19 anos; no Brasil, cerca de 15% dos óbitos rios mínimos ou mais), a taxa de fecundidade
de mulheres entre 15 e 19 anos ocorreram baixa para 13 por mil.
em virtude de abortos, quando em 1980 a Mesmo no feminismo, é ainda tema de
cifra foi de 8% (Berquó, 1999). pouco investimento as culturas juvenis e, ne-
A fecundidade entre mulheres jo- las, as identidades femininas jovens. Isso se
vens, na faixa entre 15 e 19 anos, vem cres- relaciona também ao fato de as mulheres jo-
cendo com mais intensidade a partir da dé- vens ainda não se constituírem em um coleti-
cada de 1980. Pesquisa quantitativa vo feminista, sujeito social de pressão social.
realizada entre 1989 e 1990 indicou que, Em resumo, frisa-se a invisibilidade de um su-
no Rio de Janeiro, em 58% dos casos, a pri- jeito coletivo que represente interesses e ne- 5 Dados coletados no UBM-bo-
letim pela Internet. Acesso
meira gravidez de jovens entre 15 e 19 anos cessidades das mulheres jovens. em: 8 mar. 2002.

NOV 2003 / DEZ 2003 17


A R T I G O

Existe um vazio mesmo no plano de polí- O universo feminino juvenil – suas re-
ticas públicas por uma educação que colabore ferências culturais, os sentidos de seus corpos
em questionar a sexualidade tradicional, que – é silenciado por uma educação tradicional
invista na auto-estima das mulheres jovens e na ou por valores de uma adultocracia bem in-
formação de uma massa crítica juvenil. Na mídia, tencionada, mas distante de tal universo. Os
a violência é gratificada e o reconhecimento so- tempos são propícios para o desenvolvimento
cial da mulher passa pela coisificação do seu de um capital cultural político juvenil, com ori-
corpo, em especial, se jovem. Então, como pedir entação feminista própria, para que as jovens
às jovens, em particular às que vivem em bairros sejam sujeitos políticos por seus direitos.
pobres, afrodescendentes, dominadas por múl- De fato, nestes tempos muito se fala
tiplas violências, desempoderadas, sem perspec- da reinvenção da esperança, com a eleição
tivas, que se recusem a serem tratadas como coi- de um candidato das esquerdas. Mesmo que
sas, cachorras no pornofunk, quando seus o que tenhamos, na prática, sejam políticas
corpos são fronteiras, a última, a única de poder, sociais com alguma abertura e uma política
o poder da sedução, ainda que seja um poder econômica alinhada ao grande capital e in-
que a reduz a mais uma dominada, violentada? teresses das grandes potências e agências

Tênue fronteira
Na terceira linha do romance Cem anos de tar ancorados na materialidade de tempos e
solidão, de Gabriel García Márquez, lê-se: espaços, considerando-se, portanto, relações
“O mundo era tão recente, que muitas coi- sociais e jogos de poder. Então, cabe mesmo
sas não tinham nomes, e para indicá-las era aos movimentos no aqui e agora por focos,
necessário apontar”. Esse era o Gênesis. Em direitos e igualdades. Mas a materialidade das
outro período, no Apocalipse, o que tomou opressões, explorações e iniqüidades na distri-
seis gerações, a cidade de Macondo foi ata- buição de bens e riquezas várias é também a
cada por duas pragas: a da insônia e a da dinâmica da sua reprodução. Então, é limita-
perda da memória (el olvido). As pragas fo- do ater-se a cotas, direitos e focos.
ram trazidas por uma mulher, Rebeca. Para O texto sugere que significados, nomes
evitar a perda da memória, coisas e senti- e conceitos devem não estar claramente liga-
mentos foram rotulados com seus respecti- dos uns a outros e apontar para projetos e
vos nomes e significados, explicando para objetivos, mas podem ser usados para tais
que elas serviam. Foi quando se deram con- fins, o que alerta para a importância de se
ta da possibilidade de que viesse ocorrer cultivar certa insônia. Especialmente em tem-
outro problema: um dia as coisas seriam lem- pos em que bandeiras de movimentos pro-
bradas pelas inscrições, pelas etiquetas, pelo gressivos e da esquerda são apropriados e
que havia sido escrito sobre elas, mas não ressignificados por diferentes agências, como
pelos seus sentidos, por seus objetivos, ou é o caso dos princípios de cidadania, socieda-
seja, pelo que elas serviam. de civil, direitos humanos e direitos das mu-
Foi um velho cigano de pele escura, lheres, dos negros e dos jovens, democracia,
Melquíades, quem salvou a cidade de participação e associativismo e redes.
Macondo das duas pragas, servindo uma Tal vocabulário estabelece uma língua
poção mágica de suas alquimias que combi- franca que camufla significados, interesses e
nava ingredientes múltiplos. A porção fez funções, que podem ser parte de um discur-
com que as pessoas retomassem suas lem- so orientado para a defesa do mercado, me-
branças e, assim, se livrassem da perda de tamorfoseando políticas em defesa de espe-
memória (recuerdos contra el olvido). Tal cíficos grupos e temas – inclusões desse ou
texto instituinte da identidade latino-ameri- daquele grupo no mercado – em políticas de
cana flutua por entre linhas da minha dis- identidade, em referências fragmentadas,
cussão mais pedestre e abreviada sobre a boas para reivindicar direitos, leis e progra-
tênue fronteira entre possibilidades e riscos mas, mas não necessariamente para trans-
da perspectiva de enquadrar o feminismo, o formações ou para a emergência de não-
conhecimento e o ativismo do movimento identidades (ou de identidades libertárias,
negro e dos movimentos juvenis por pro- coletivas, que possam chegar a endereçar-se
gramas relacionados a políticas de identida- para uma humanidade colorida e diversifica-
de. Ou como movimentos restritos a políti- da, sem assimetrias). E, se é de esquerda que
cas de identidade, direitos humanos e por se fala, como reivindica Hobsbawn (1996),
igualdade com um outro que não é muito em última análise o projeto é para a humani-
questionado, mas tido como parâmetro. dade, remodelada e referenciada no embate
O trecho pinçado do romance de García entre classes, o que não autoriza leituras re-
Márquez chama a atenção para a história e ducionistas ou a perda de referências a múl-
para o modo como os conceitos deveriam es- tiplas dinâmicas de subordinação.

18 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

financiadoras internacionais, ou seja, conser- e por inclusão, tendendo-se, portanto, a um


vadoras. É urgente investirmos na configura- certo culturalismo. Por outro lado, fixar iden-
ção de movimentos sociais que conjuguem tidade no que se é, ou de onde se vem, ao
radicalidade crítica com proposição, pressão mesmo tempo em que enriquece o ser por
e acompanhamento de políticas, além de in- estar, pode também ameaçar projetos, mu-
vestimento na crítica cultural e política des- danças, a ousadia na invenção de identidades
tes tempos, o que pede atenção sobre o esta- e no questionamento da fina fronteira entre
do de distintas juventudes. identidade e estereótipo.6
No fim da década de 1970 e durante a
década de 1980, nos Estados Unidos e em
Sobre identidades
outros lugares, proliferaram progressivamen-
O escritor marxista L. A. Kauffman, em artigo te políticas de identidades difusas e também
publicado na Socialist Review, traça a história mais filtradas, ou seja, divorciadas da tradi-
das políticas de identidade nos Estados Uni- ção histórica de fazer política nomeando an-
dos, ressaltando como, no período das lutas tagonismos institucionais, como, no caso da
pelos direitos civis nas décadas de 1950 e América Latina, o Estado, instituições capita-
1960, tais políticas renovaram a esquerda, listas e agências do capitalismo internacio-
enfatizando-se, então, que identidades “quer nal. Assim, perdeu-se gradativamente aquele
individuais quer coletivas deveriam constituir- jogo de cintura de circular entre a micro e a
se em principio central para um ponto de vista macropolítica.
e prática política radical” (Kauffman, 1999, p. Focalizar identidades tem sido de
67). Segundo ele, naquele momento se fato eficaz e “empoderante” quando
politizou uma série de temas desconsiderados as políticas de identidade são
nas formas clássicas de fazer política como a construídas como uma afirmação ati-
sexualidade, as relações interpessoais, o esti- va de experiências, dignidade e di-
lo de vida e a cultura. O self, as experiências reitos de pessoas que historicamen-
subjetivas e o quotidiano tornaram-se sítios te foram marginalizadas e excluídas,
de contestação política. como os povos de cor, os gays e as
Para alguns, tal enfoque apontou para lésbicas e os chamados “deficientes
uma síntese entre o pessoal e o polí- físicos”. Tomando por empréstimo as
tico. A politização de temas antes vis- palavras de Michelle Cliff, este tipo
tos como externos à política teria de políticas envolveria não somente
aberto a possibilidade para desafios “exigir uma identidade que me foi
mais radicais a formas de dominação roubada e sobre a qual eu fui ensi-
e exclusão, tais como o racismo, o nada a desprezar”, através da educa-
sexismo, a homofobia. (p. 67) ção e outros referentes, mas também
necessitaria um confronto direto com
Mas Kauffman sugere que, em tem-
grupos e instituições que por diver-
pos recentes, permutou-se sentidos de polí-
sos meios suportaram ou toleraram
ticas de identidade para o que ele chama de
tais formas de discriminação, ódio e
“antipolíticas de identidade”, afastando-se do
exclusão. (Kauffman, 1999, p. 76)
terreno da contestação sobre estruturas e ins-
tituições de poder, como o Estado, e ganhan- Algo mais complexo e irônico ocorre
do terreno uma introspecção apolítica, ou seja, hoje: muitas agências internacionais, por
fora da contestação da coisa pública, o que exemplo, apóiam programas contra discri-
resultaria, por outro lado, na difusão de ener- minações específicas e estimulam organiza-
gias políticas. Tal tendência, em expansão nos ções não-governamentais por políticas de
6 Pela minha experiência fe-
Estados Unidos há algum tempo, seria apon- identidades, mas são agentes ativos na sus- minista nos grupos de refle-
tada por vários autores como obstáculo ao tentação de um cenário de economia políti- xão, no fim da década de
1960 e no início da de 1970,
desenvolvimento de uma frente política mais co-cultural que colabora para a reprodução menos que uma individualiza-
ção autocontida, limitada ao
progressista, um projeto de esquerda contra a das exclusões sociais. eu, ao nós, às coisas de ami-
globalização neoliberal. Note-se que a preocupação de Kauffman gas, lembro-me da combina-
ção de planos de luta e de
A crítica ao papel das instituições na- não é jogar fora a perspectiva de políticas de questionamentos. Discutíamos
sobre nós, sobre o privado, e
cionais e internacionais na reprodução das identidade, mas, ao contrário, estimular o de- estávamos no público, ou, às
discriminações e desigualdades seria deixa- safio “das sínteses radicais entre as políticas vezes, nem podíamos tão pu-
blicamente – contra a dita-
da de lado no discurso sobre desigualdades de identidades dos novos movimentos sociais dura militar.

NOV 2003 / DEZ 2003 19


A R T I G O

e a tradição de privilegiar a esfera pública economicismos, chamando a atenção para pro-


como arena de pugna política, que vem dos jetos que transitem entre mudanças nas rela-
socialistas e dos anteriores movimentos soci- ções sociais no privado e no público. É quando,
ais, juntando também o transformar-se com o mais do que beneficiar os jovens com um pro-
movimento de transformar o mundo” (p. 79). grama educacional específico, se discute a qua-
Reivindica-se, portanto, certa insônia contra a lidade desses programas para o exercício da au-
despolitização das políticas de identidade ou tonomia, da criatividade e se considera cultura
sua retirada do campo da esquerda e sua força também como uma necessidade material.
como estilo para renová-la. Foi um cigano de pele escura que sal-
Quando cidadania, em vez de qualifi- vou Macondo, e foi uma velha mulher indíge-
car, passa a substituir o discurso de classe, e na – que, aliás, nem tem nome no romance de
a recorrência à democracia tende a ocultar a García Márquez – que cuidou da jovem mu-
declaração de um projeto socialista, ou seja, lher branca, Rebeca, que, desmemoriada em
um projeto de transformação social, camu- sua insônia vazia, difundia a praga, el olvido. E
fla-se um roubo histórico, volta a praga da a velha indígena não falava com Rebeca, sobre
perda de memória. Por exemplo, não neces- seu passado, não falava sobre o que ela foi,
sariamente hoje, na América Latina, todas as mas contava a Rebeca sobre seu futuro, sobre
correntes do feminismo adotam o projeto de o que ela poderia ser, reencantos e lhe dava
confrontar o capitalismo em seu formato ne- projetos pelos quais sonhar, nas poções má-
oliberal. Ao contrário, cada vez mais se am- gicas, identidade a construir.
plia o campo da tendência que advoga, na Algumas correntes do feminismo, do
expressão de Emir Sader, “dar cara humana movimento negro e entidades de grupos jo-
ao capitalismo”, contentando-se com uma vens hoje, por cooptação com poderes an-
linguagem quase neutra, sobre diversidade, tes criticados, como agências do capitalis-
diferenças e desigualdades. mo transnacional, 7 viriam a se distanciar do
O problema, entretanto, não é políti- original libertário que, na década de 1970,
co-ideológico, já que a história estaria indi- defendiam, investindo em utopias, critican-
cando limites para tal tendência, consideran- do tanto a esquerda como a direita por víci-
do a escalada de turbulências no cenário da os da modernidade, mas posicionando-se
economia política e da cultura-aumento de com as esquerdas na luta contra as ditadu-
violências diversas, desemprego e pobreza, ras na América Latina por apostar no socia-
entre outras coisas. Além de um desencanto lismo. Eram movimentos sociais críticos so-
quase estrutural que desafia os bem-intenci- bre identidades fixas, alertando para a
onados cursos sobre gênero para estimular a importância, mas também para os limites,
auto-estima, os programas de requalificação dos direitos no imediato.
(bem, esses dão vale-transporte e merenda) Práticas de institucionalismos estariam
e as políticas de cotas, quando não se questi- afastando saberes que foram enriquecidos por
ona a continuidade do benefício e a qualida- movimentos sociais, em seu perfil mais pro-
de do serviço prestado. missor de conhecimentos e práticas por en-
Mais do que na década de 1960, a re- gendramentos informados na radicalidade ou
ferência hoje à política de identidades requer em buscas de identidades ou de não-identi-
qualificações; saber o lugar da solidariedade; dades, transitando, combinando referências
saber como se lida com a alteridade; combina- múltiplas em materialidade na classe, na raça,
ção entre diversidade e assimetria de recursos no gênero e na geração, contribuindo, por-
e de poder; a questão das alianças entre os tanto, para juntos desenhar caminhos, proje-
subalternos no resgate da nação, da sua ven- tos socialistas renovados, afins com essa ou-
da; a importância da reconstrução das esquer- tra América, a América mestiça pela qual lutou
das; e a necessária análise dos cenários da eco- José Martí. O que se estaria arriscando, em
nomia política, considerando o aumento do nome de um alinhamento instrumental, seria
número de pobres e ancorando-se, portanto, um constituinte de uma identidade latino-
princípios em tempos e processos. americana por uma rede de movimentos soci-
7 E ainda outros grupos que,
por pragmatismo, optaram
É quando o enfoque de raça não é ais vários, de conhecimento prático de protes-
por negociar com poderes ou necessariamente alternativo ao de classe, mas to, de crítica a poderes.
fazer parte da maquinaria
decisória em Estados neolibe- o qualifica e o amplia. É quando a preocu- Não faço críticas às ONGs. A ênfase de
rais para melhor conseguir
programas e leis para as mu-
pação com gênero vai além dos direitos das distintas organizações em temas como cida-
lheres, os negros e os jovens. mulheres ou dos homossexuais e questiona dania e a preocupação com o fortalecimento

20 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

da sociedade civil, ao contrário, não faz com práticas de consumo, dos negócios e pelas * Mary Garcia
que sejam nítidas as diferenças das ONGs em políticas do Estado” (2003, p. 306). Ao mes- Castro
relação a movimentos sociais e movimentos mo tempo, é preciso fortalecer as agências e Pesquisadora da
populares. São válidos ares novos dos tem- os sujeitos políticos pelos direitos de cada Organização das Nações
pos. Mas insisto na tal plasticidade de eti- identidade, colaborar em redes entre movi- Unidas para Educação,

quetas sujeitas a distintos conteúdos, práti- mentos sociais e difundir a pedagogia mili- Ciência e Cultura no
Brasil (Unesco), membro
cas e instrumentalização por projetos políticos tante contra todas as discriminações.
da diretoria da União
não necessariamente libertários e radicais. Como bem adverte Hobsbawn (1996),
Brasileira de Mulheres,
Por outro lado, sem tanta mídia e, em se de esquerda se trata, o projeto revolucio-
pesquisadora associada
alguns casos, sem fundos de agências inter- nário é para a humanidade. Ora, tal projeto do Centro de Estudos
nacionais, em práticas diversas e em sítios teria maior possibilidade se fossem conside- Migratórios (Cemi) da
distintos, um feminismo estaria se insinu- radas nas estratégias organizacionais das es- Universidade Estadual
ando no Brasil, gestado na relação com o querdas necessidades simbólicas e materiais de Campinas (Unicamp)
movimento negro e as redes de entidades de distintas identidades de classe. Por outro e professora aposentada
juvenis. É híbrido porque se combina com lado, os projetos reivindicatórios de identi- da Universidade Federal
outros movimentos, muitas vezes em parti- dades específicas, como das mulheres e dos da Bahia (UFBA)

dos, sindicatos, em terreno bem demarca- afrodescendentes, assim como dos jovens e
do, à esquerda. Uma inter-relação ao mes- dos mais velhos, de classe, pouco avançam se
mo tempo movimentista e classista, isto é, estão restritos a políticas de identidades. No
com compromisso com a classe trabalhado- debate sobre estratégias de esquerda contra
ra e a flexibilidade para criação de estratégi- o neoliberalismo, ressalta-se a importância de
as, formas de ação dos movimentos sociais, articular redes e frentes. Deve-se insistir nos
o que exclui referências genéricas e recuerdos, nas lutas clássicas contra a socie-
naturalizadas a mulheres e homens, negros dade capitalista pautada em classes, combi-
e brancos, jovens e velhos ou adultos. 8 nando-as com a riqueza das linguagens
Tal orientação timidamente viria se afir- libertárias de diversas identidades, e ocupar
mando na região, em Organizações de Base espaços na política formal, brigar por direi-
Comunitária (OBC), ONGs de pequeno porte tos, justiça social, igualdades, sim, mas cui-
com orientação advocatícia, entidades que dado com o olvido. E que a institucionalida-
combinam orientações alquímicas ou um sa- de não nos faça abdicar da radicalidade.
ber ativista enredado. Mas tal saber ativista
militante é ainda uma promessa, ou seja, é
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
preciso reconhecer e brigar pelos direitos das
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Brasília: Unesco, 2002.
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sua alquimia para uma ação transformadora Violência contra as mulheres e o caso das jovens. Mátria,
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dade se realiza por sistemas de discrimina- CRH, 32, p. 11-21, 2000.
ções e ideologias que lhe são apropriadas. _____. Palavras em busca de corpo e terras – Identidade,
Portanto, não basta reacessar o debate so- identificação, políticas de identidade. Leituras de
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bre classes sociais, mas também não o subs-
_____. Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos
tituir e enriquecê-lo, considerando a políticos. Revista Estudos Feministas, v. 0, p. 57-74, 1992.
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_____. Drogas nas escolas. Brasília: Unesco, 2002.
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dades de classe, mas de uma contínua práti- a elaboração de políticas. Coord. Wânia Sant’Anna. Belo
ca social preconceituosa, de cunho racial. A Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2003.
HOBSBAWN, Eric. La política de la identidad y la izquierda. Debate
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Feminista, México, ano 7, v. 14, outubro, 1996.
vés de estereótipos da mídia, de piadas, das TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva
8 Sobre a idéia de organizações
com orientação movimentista e
redes sociais, do sistema educacional, das sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. classista, ver Therborn (1995).

NOV 2003 / DEZ 2003 21


ARTIGO
Giuseppe Bacoccoli*

50 anos
de histórias e desafios
Neste ano, a Petrobras – e, por conseguinte, a indústria brasileira do petróleo – está

comemorando 50 anos de existência, demonstrando mais uma vez todo o atraso

brasileiro nesse setor. De fato, o poço do coronel Drake, marco inicial da era indus-

trial no setor petrolífero, foi perfurado na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1859.

Portanto, há 144 anos. Ainda no século XIX, o petróleo, como importante insumo

para iluminação, lubrificação e combustão, já contribuíra para a formação de pode-

rosos grupos industriais tanto nos Estados Unidos como na Europa. No início do

século XX, com o advento dos motores a explosão, tornara-se também o combustí-

vel automotivo que, durante as duas grandes guerras, provou ser o insumo estraté-

gico essencial. Os poderosos grupos do petróleo passaram a explorá-lo fora dos

seus países de origem, controlando a produção das mais importantes jazidas. Ainda

antes da Segunda Guerra Mundial, essas empresas já controlavam boa parte da pro-

dução do México, da Venezuela e do Oriente Médio.

22 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
O petróleo impulsionava o desenvolvimento das Saga de risco
potências industriais. Por isso, e apesar da
cartelização das empresas, denominadas “as sete A indústria do petróleo caracteriza-se como
irmãs”, o preço do petróleo manteve-se baixo atividade que requer conhecimento, tecnolo-
durante boa parte do século XIX, com valores gia, disponibilidade financeira e aceitação de
históricos da ordem de US$ 2 por barril (bbl). riscos. Assim, afora as louváveis iniciativas de
Diante dos interesses dessas empresas em ou- alguns empreendedores brasileiros, o Estado
tros setores industriais, convinha garantir o su- foi sempre obrigado a intervir, em maior ou
primento de energia abundante e barata. menor grau, nesse tipo de atividade. Entre as
No Brasil, as primeiras notícias sobre iniciativas do capital privado nacional, são de
exploração de petróleo remontam ao Segun- se lamentar aquelas conduzidas por empreen-
do Império. Em 1897, o paulista Eugênio dedores menos escrupulosos, que, em nome
Ferreira de Camargo perfurou, na localidade de pretenso nacionalismo, aproveitavam-se da
de Bofete, o primeiro poço brasileiro. Esse boa fé das pessoas, vendendo ações de com-
poço foi seco, assim como os muitos poços panhias petrolíferas de fachada. O elevado
perfurados por entidades públicas e os pou- grau de desconhecimento das características
cos perfurados por iniciativa privada, no Bra- da indústria também favorecia a proliferação
sil, antes da descoberta de petróleo em de toda a sorte de charlatões e aventureiros.
Lobato,1 na Bahia, em 1939 – 80 anos de- Quanto ao Estado, as atividades de explora-
pois da descoberta do coronel Drake. Mesmo ção de petróleo foram conduzidas inicialmen-
quando inexistiam no Brasil restrições para te pelo Serviço Geológico e Mineralógico do
as atividades das multinacionais do petróleo, Brasil (SGMB), depois substituído pelo Depar-
estas se estabeleceram apenas para importar tamento Nacional da Produção Mineral
e revender derivados a partir do petróleo pro- (DNPM) e, após Lobato, pelo Conselho Nacio-
duzido e refinado no exterior. Considerando nal do Petróleo (CNP). Todas essas entidades
inimaginável que um país com as dimensões realizaram trabalhos de excelente qualidade
e as características geológicas do Brasil não técnica, dentro da crônica limitação de recur-
tivesse petróleo em seu subsolo, esse desin- sos do Estado brasileiro.
teresse das multinacionais foi logo interpre- A descoberta de Lobato – após um lon-
tado como proposital. As multinacionais não go e memorável embate entre os empreende-
teriam interesse em explorar o petróleo bra- dores baianos, que acreditavam na presença
sileiro, nem pretendiam dotar o Brasil de um do petróleo nessa localidade, e os tecnocratas
parque de refino. do DNPM, que tinham boas razões técnicas
As grandes empresas petrolíferas teri- para duvidar – acabou comprovando finalmen-
am enviado silenciosamente muitas expedições te a existência do petróleo no subsolo pátrio.
geológicas ao Brasil para avaliar, entre outros, Mesmo assim, considera-se bastante impro-
o potencial petrolífero da Bacia do Paraná. Os vável que, na época, o petróleo de Lobato, as-
relatórios dessas expedições, pelo que sabe- sim como aquele que viria a ser descoberto
mos, não descartavam a possível ocorrência pelo CNP em outros campos do Recôncavo
de petróleo no subsolo brasileiro. Apenas in- Baiano, pudesse vir a ser explorado economi-
formavam quanto às reais características geo- camente. Com exceção do Campo de Água
lógicas das bacias brasileiras, colocadas num Grande, que, por suas significativas dimen-
grau inferior de prioridade quando compara- sões, poderia ter-se revestido de interesse eco-
das com outras existentes no mundo, como nômico, a ocorrência de Lobato e mesmo a do
no México, na Venezuela ou no Oriente Mé- poço de Candeias2 seriam acumulações me-
dio, onde seria possível produzir maiores quan- nores, de interesse quase que acadêmico, des-
1 No poço de Lobato (locali-
tidades de petróleo a menores custos. Obser- providas de atratividade para a indústria. zado nas cercanias de Salva-
ve-se que, ante o reduzido preço então Após a Segunda Guerra Mundial, os dor, Bahia, em terras que, no
século XVI, pertenciam ao fa-
praticado no mercado internacional, muitas militares brasileiros, que regressavam do tea- zendeiro Vasco Rodrigues
Lobato), é descoberto oficial-
das atuais jazidas brasileiras, até mesmo as da tro europeu de operações, haviam se conven- mente petróleo no Brasil, em
Bacia de Campos, seriam antieconômicas. Não cido da importância estratégica do petróleo. 1938. A partir da descoberta,
é criado o Conselho Nacional
se tratava, portanto, de descartar a presença Pouco depois, no início da década de 1950, do Petróleo, e as jazidas mi-
nerais passam a ser conside-
de petróleo no Brasil, nem de desinteresse o país lutava para investir no estabelecimen- radas propriedade estatal.
proposital das multinacionais, e sim de uma to das indústrias de base, favorecendo o sur- 2 Em Candeias, no Recôncavo
mera escala de prioridade para quem dispu- gimento de um parque industrial. Nesse Baiano, foi descoberto, em
1941, o primeiro poço de ex-
nha de todas as bacias do mundo. contexto, nascia um dos maiores movimentos ploração comercial.

NOV 2003 / DEZ 2003 23


A R T I G O

de mobilização jamais registrado na nossa anos da avaliação das bacias sedimentares bra-
história. O movimento O Petróleo é Nosso sileiras. Esse conjunto de documentos, mais tar-
alastrou-se por todo o país, congregando até de conhecido como Relatório Link, acabaria tor-
mesmo facções tidas como antagônicas. Es- nando-se motivo de uma acalorada discussão.
querdistas, nacionalistas, estudantes, milita- De um lado, nacionalistas e esquerdistas afir-
res e intelectuais juntaram-se no movimento mando que Link, a serviço dos interesses multi-
que acabou resultando no estabelecimento nacionais, procurava demonstrar mais uma vez
do monopólio estatal do petróleo, na criação que o Brasil não tinha petróleo. De outro, aque-
da Petrobras e na mobilização nacional para les que acreditavam na lisura e competência do
suportar tais objetivos. Assim, em outubro geólogo estadunidense, encarando com prag-
de 1953, a Petrobras surgia da vontade de mático realismo suas conclusões.
um povo, convencido da re- Novamente, a questão da economicida-
levância da questão do pe- de do petróleo brasileiro, no contexto do mer-
O movimento tróleo como determinante
de seu futuro.
cado da época, merece ser lembrada para me-
lhor situar e entender algumas conclusões do

O Petróleo é Parece difícil enten-


der, a princípio, como uma
Relatório Link. De fato, Link conhecia as desco-
bertas de petróleo já efetuadas na Bahia, assim

Nosso alastrou-se empresa estatal, derivada


de notável mobilização po-
como o potencial de outras bacias costeiras
como a de Sergipe-Alagoas. Mas, com o preço
pular nacionalista, decidis- a US$ 2/bbl, esse petróleo seria escasso, insufi-
por todo o país, se buscar no exterior o res- ciente para as necessidades nacionais e caro,
ponsável pela condução das com custo de extração superior ao do petróleo
congregando até suas atividades de explora- importado. Quanto às grandes bacias interio-
ção. De fato, a Petrobras res, como a do Amazonas, do Parnaíba e do
mesmo facções contratou o geólogo esta- Paraná, Link menciona problemas geológicos e
dunidense Walter Link, ex- tecnológicos, na época quase intransponíveis.
tidas como gerente de exploração da
Standard Oil, para atuar à
E afirmava nada poder dizer quanto às bacias
marítimas, ainda inexploradas, recomendando

antagônicas, frente do seu Departamen-


to de Exploração, entre
à Petrobras dedicar-se ao refino, importando o
petróleo barato, e, se o desejasse, explorar pe-
1954 e 1961. Essa questão tróleo no exterior, em áreas mais atrativas.
e acabou permanece polêmica, pois, Walter Link e sua equipe deixaram o
mesmo naquela época, não país em 1961 debaixo de campanhas de pro-
resultando faltavam geólogos brasilei- testo dos sindicatos, de alguns partidos polí-
ros treinados dentro do ticos e da imprensa. Ressalte-se, à luz da his-
na criação CNP para assumir a posição. tória, que a questão fundamental não consistia
Por outro lado, a contrata- em afirmar ou negar a presença do petróleo
da Petrobras ção de Walter Link espelha- brasileiro, e sim em avaliar a possibilidade de
va a evidente preocupação vir a descobri-lo e produzi-lo em quantidades
do governo com a sensível suficientes e em condições economicamente
questão da exploração e a responsabilidade atrativas. O petróleo brasileiro, assim como
de colocar a tarefa em mãos de pessoa indubi- aquele de outras províncias hoje produtivas,
tavelmente capacitada. como a do Mar do Norte, só se tornou econo-
Walter Link remeteu todos os técnicos micamente atrativo a partir dos dois choques
brasileiros para cursos de especialização em uni- do petróleo, de 1973 e de 1979 (e até a atual
versidades estrangeiras e passou a conduzir as produção dessas áreas não sobreviveria à prá-
atividades de exploração quase que exclusiva- tica de preços internacionais deprimidos, di-
mente com um time de profissionais estrangei- gamos, inferiores a US$ 10/bbl). Nesse con-
ros, principalmente estadunidense. A língua ofi- texto, as conclusões do Relatório Link
cial no Departamento de Exploração da Petrobras emergem como corretas. Além do mais, Walter
era o inglês e todos os procedimentos técnicos e Link trouxe à Petrobras algumas boas práticas,
administrativos passaram a ser os mesmos utili- hoje perpetuadas e ainda presentes em cada
zados nas grandes empresas multinacionais. Em um dos muitos êxitos registrados pela esta-
1961, Walter Link enviou uma série de docu- tal, entre elas: a importância de se investir no
mentos para o presidente da Petrobras dando treinamento e na capacitação dos profissio-
conta dos resultados pouco animadores de seis nais, o decidido apoio à transferência e ao

24 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
50 ANOS DE HISTÓRIAS E DESAFIOS

desenvolvimento de tecnologia de ponta, a pa- seus investimentos no parque de refino e criou


dronização dos procedimentos técnico-adminis- a Braspetro, subsidiária destinada à exploração
trativos e a manutenção de um rigoroso sistema e produção de petróleo no exterior. Boa parte
de conseqüências com base na competência e das recomendações do Relatório Link acaba-
efetiva contribuição de cada empregado. ram sendo cumpridas. Esse era o cenário rei-
nante quando, em 1973, o primeiro choque do
petróleo elevou subitamente o preço do pro-
100% brasileira
duto no mercado internacional a US$ 10/bbl
Já sob a liderança de brasileiros, a Petrobras (valor histórico). A Petrobras e o Brasil parece-
passou a apresentar sucessivos recordes de ram que pouco se importaram.
produção a partir de seus campos na Bahia e Em 1974, a Petrobras descobriu o Cam-
em Sergipe. A produção subiu, muito embora po de Garoupa, o primeiro
ninguém tenha perguntado a que custos. Em na Bacia de Campos, mas,
uma atmosfera pré-64, os sindicatos ganha- em que pesem as expecta- O segundo choque
ram força e influíram na própria gestão da tivas muito favoráveis, a
empresa. Como uma resposta à era Link, con-
tratou-se a consultoria de técnicos soviéticos,
produção dessa bacia só se
iniciou alguns anos depois.
do petróleo teve
especializados em exploração e produção. Mas,
em que pese seu relevante conteúdo técnico,
Em 1979, o segundo e mais
forte choque do petróleo
conseqüências
o relatório da missão russa pouco acrescen- elevou o preço do barril no
tou ao potencial petrolífero das bacias brasi- mercado internacional para desastrosas para
leiras. Às vésperas dos acontecimentos de mais de US$ 40 (valor his-
março de 1964, no comício da Central do Bra- tórico; valor atual corrigi- a Petrobras e para
sil, os sindicatos petroleiros atuavam decisiva- do superior a US$ 60).
mente para acelerar as mudanças. Esse segundo choque o país, apesar de
A partir dos governos militares, a área teve conseqüências extre-
petrolífera foi considerada estratégica e de mamente desastrosas para ter oferecido
segurança nacional, e a Petrobras passou a ser a Petrobras e para o país,
comandada com braço forte pelas Forças Ar-
madas, que, após a intervenção nos sindica-
apesar de, paradoxalmente,
também ter oferecido as
as melhores
tos e o afastamento dos empregados indese-
jáveis, permaneceriam nos postos-chave da
melhores oportunidades de
desenvolvimento do setor
oportunidades de
companhia cerca de 20 anos. A identidade da brasileiro do petróleo. A Pe-
estatal com os governos dos militares atingiu trobras estava investindo desenvolvimento
seu auge quando o general Geisel fez de suas pouco em exploração e pro-
realizações na Presidência da empresa o tram- dução e importava o petró- do setor brasileiro
polim para alcançar a Presidência da Repúbli- leo, antes barato, para refiná-
ca. Infelizmente, a partir dessa época, muitos lo em seu bem desenvolvido do petróleo
dos segmentos da opinião pública nacional, parque industrial. Ou seja, a
que outrora sustentaram a Petrobras, passa- própria empresa não acredi-
ram a vê-la como parte integrante de um go- tava na potencialidade do petróleo brasileiro,
verno de exceção e autoritário. optando por um modelo de importação de um
Em 1968, com o início das atividades petróleo mais barato que o aqui produzido. De-
exploratórias no mar, a produção dos campos pois do segundo choque, no entanto, o Brasil
terrestres encontrava-se em franco declínio. Os não tinha mais como pagar pelo valor da impor-
pequenos campos logo descobertos no mar tação do petróleo e começou a endividar-se para
pouco contribuíram para o aumento da pro- fazê-lo. O racionamento de combustíveis, mes-
dução e, além do mais, não se revestiam de mo que fosse em fins de semana, realimentava
atratividade econômica. Mais uma vez os ge- as críticas contra a Petrobras.
rentes ordenavam: “Vamos colocar esses cam- Em 1976, o então presidente Geisel au-
pos em produção! Mesmo que antieconômi- torizou a Petrobras a celebrar os contratos de
cos, aprenderemos muito ao fazê-lo”. risco de exploração com as empresas multina-
No início da década de 1970, a depen- cionais. Apesar dos elevados preços do barril
dência do petróleo importado era da ordem no mercado internacional, as empresas multi-
de 80%, e a Petrobras reduziu seus investi- nacionais investiram relativamente pouco no
mentos em exploração e produção, aumentou Brasil e praticamente nada descobriram além

NOV 2003 / DEZ 2003 25


A R T I G O

de um campo de gás na Bacia de Santos. Em melhores resultados com desenvolvimento de


meio à crise, e justamente quando se pretendia capacitações, uso de tecnologia de ponta e,
atrair tecnologia e capital de risco do exterior, o sobretudo, com a coragem em aplicar signifi-
governo do estado de São Paulo, por intermé- cativos investimentos em áreas de alto risco.
dio do consórcio Paulipetro, resolveu investir Mesmo agora, após a abertura do setor de pe-
numa fracassada aventura na Bacia do Paraná. tróleo em 1997, a Petrobras continua sendo a
Apesar das grandes descobertas feitas empresa que registra o maior e mais significati-
pela Braspetro no exterior, entre as quais se vo volume de descobertas nas áreas marítimas
menciona a do Campo de Majinoon no Iraque, das bacias de Campos, Santos e Espírito Santo,
o Brasil não conseguiu desta feita aliviar sua onde trabalha lado a lado com numerosas con-
dependência externa com o petróleo produzi- correntes multinacionais exatamente por sua
do no exterior. Numa negociação pouco trans- audácia e competência.
parente, a Braspetro acabou perdendo seus
direitos até no campo iraquiano.
Novo tempo
No fim da década de 1970, a Bacia de
Campos entrou em produção com resultados Com o fim da intervenção militar e o advento da
muito promissores. Em 1980, a pedido do go- democracia, a empresa passou a ser alvo de
verno, a Petrobras decidiu investir na exploração muitas críticas. Perdido o apoio outrora dado
e na produção do petróleo no Brasil em níveis pelos nacionalistas e pela esquerda, a empresa
jamais vistos. O Plano Qüinqüenal de Explora- ficou à mercê dos crônicos inimigos do
ção (1981-1985) previu triplicar os investimen- estadismo e do monopólio. A par disso, a Pe-
tos para atingir a meta de 500 mil bbl/dia em trobras crescera muito constituindo uma gran-
1985. Mesmo dentro da Petrobras, alguns ge- de empresa de petróleo, admirada e respeitada
rentes opuseram-se a esse plano, considerado em todo o mundo. Para alguns segmentos da
demasiadamente grandioso e irrealizável. À sociedade, no entanto, a empresa passou a ser
época, esses opositores desconheciam o real considerada como mais uma multinacional do
potencial da Bacia de Campos, que, de fato, petróleo, com os mesmos defeitos das demais.
suportaria a execução de todo o plano e seu Tudo passou a ser alvo de críticas: desde o su-
total cumprimento. Em 1984/85, o Brasil não posto corporativismo dos seus empregados e
só atingiu a produção do 500 mil bbl/dia como seus altos salários, até seus procedimentos de
também descobriu os primeiros campos gigan- gestão, seus lucros, escassos ou excessivos, suas
tes de águas profundas, Marlim e Albacora. A demandas e seus procedimentos. As críticas mais
Bacia de Campos foi responsável pela contínua veementes voltaram-se para o monopólio. Vista
elevação da produção até os atuais níveis e, em como fruto de uma “política retrógrada”, pas-
breve, essa bacia deverá ser responsável pela sou a receber apelidos pejorativos como o de
tão sonhada auto-suficiência. As elevações dos petrossauro e a ter sua competência constante-
níveis de preços praticados no mercado inter- mente questionada, apesar dos muitos e óbvi-
nacional vieram a favorecer decididamente essa os bons resultados operacionais. Os inimigos
produção, principalmente nas águas profun- do monopólio acusam: “Se a Petrobras é com-
das da Bacia de Campos. petente, não precisa do monopólio; se é incom-
A Petrobras entrou numa nova era, pas- petente, não o merece”.
sando a privilegiar os investimentos do setor No fim da década de 1990, quando a
upstream, em exploração e produção, sobre os nova Lei do Petróleo veio efetivamente acabar
investimentos de downstream, de refino. Em com o monopólio da Petrobras, permitindo que
decorrência, outras bacias passaram também a outras companhias, mesmo multinacionais,
responder muito favoravelmente. A bacia ter- pudessem competir livremente, quase não hou-
restre do Solimões já apresenta uma expressiva ve resistência nem um amplo debate da ques-
produção de petróleo e de gás, e a bacia terres- tão. O monopólio da Petrobras terminou qua-
tre Potiguar já atingiu produção superior aos se que silenciosamente, como acabou, também
100 mil bbl/dia. Após muitos indícios de petró- silenciosamente, a ditadura militar. Nem os
leo encontrados nos poços da Amazônia, des- empregados, com todo o seu corporativismo,
de Nova Olinda, em 1955, o sonho de se des- mobilizaram-se contra essa mudança, pois o
cobrir petróleo nessa região acabou se que realmente temiam era a privatização.
concretizando em 1986, com as descobertas Competente, madura, bem administra-
no Rio Urucu, na Bacia do Solimões. No da e respeitada, a Petrobras não se abateu. A
upstream, a Petrobras soube colher seus atuais empresa já havia se capacitado e detinha todas

26 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
50 ANOS DE HISTÓRIAS E DESAFIOS

as ferramentas necessárias para competir num sociais. Da mesma forma, os objetivos imediatos * Giuseppe
ambiente de livre mercado, sem o monopólio. e os estratégicos tinham de ser combinados numa Bacoccoli
A plantinha que acabava de germinar em 1953 harmonia nem sempre possível. Pesquisador visitante da
transformara-se numa sólida árvore frondosa, O Brasil é hoje um dos poucos países Coordenação dos
capaz de resistir sozinha às intempéries. em desenvolvimento e o único do hemisfé- Programas de Pós-

Dizem que a Petrobras perdeu o mono- rio sul a dominar por completo o saber fazer graduação em
Engenharia (Coppe) da
pólio de direito, mas não o perdeu de fato. Isso pertinente a toda a cadeia produtiva da in-
Universidade Federal do
não deixa de ser verdade, considerando que é dústria do petróleo. Desde os primeiros le-
Rio de Janeiro (UFRJ)
muito difícil competir no Brasil com uma em- vantamentos geológicos e geofísicos numa
presa que há meio século dedica-se de corpo e bacia sedimentar até a perfuração e a pro-
alma à questão do petróleo. Se a Petrobras ain- dução dos poços, o transporte e o refino do
da não é a líder mundial da tecnologia, certa- petróleo e a distribuição final, dominamos
mente é líder absoluta no conhecimento dos hoje todo o conhecimento, sem precisar de
problemas brasileiros do petróleo, desde a ajuda externa. Poucos países, mesmo entre
intrincada geologia das bacias sedimentares até os grandes produtores de petróleo, acumu-
as características do seu petróleo, os anseios laram tantos conhecimentos.
do mercado e às nuances ambientais deste ce- Estatal ou privada, a Petrobras terá con-
nário de dimensões continentais. dições de continuar operando como uma gran-
de empresa de petróleo. Analisando os cená-
rios, algumas companhias de petróleo
Caminho trilhado
concluíram que o esgotamento do produto ou
Ao longo do seu percurso, a Petrobras caracte- a competição por fontes alternativas não re-
rizou-se por três fases distintas de gestão: a da presentam efetivas ameaças a médio prazo.
missão, a dos resultados físicos e a dos resulta- Entre seus desafios futuros, menciona-se,
dos financeiros. Na primeira, que perdurou até como o mais grave, o grau de aceitação por
o início da década de 1970, a Petrobras traba- parte da nação. Analogamente, podemos afir-
lhou simplesmente obedecendo à missão que mar que, independentemente de seus êxitos
lhe fora confiada, independentemente dos cus- operacionais, a maior ameaça à Petrobras resi-
tos e dos resultados. Embora muitos a criti- de num eventual recrudescimento da rejeição
quem, essa primeira fase foi a que consolidou da mesma sociedade que há 50 anos lutava
as raízes da companhia, o vestir a camisa dos nas ruas, mobilizada, para criá-la.
seus empregados e a capacitação na cadeia pro- Agrava essa ameaça a insatisfação de
dutiva da indústria do petróleo. Na segunda seu cliente final, o consumidor. O petróleo que
fase, que perdurou da década de 1970 até o hoje jorra abundantemente do subsolo brasi-
início da década de 1990, os gerentes da com- leiro não tem sido ainda utilizado em benefício
panhia passaram a acompanhar os seus resul- direto do povo brasileiro. Apesar dos preços
tados físicos. O importante era saber quantos baixos praticados pela Petrobras na saída das
metros se perfuravam, quantos poços, quantos refinarias, os preços finais dos derivados, atre-
barris se produziam, quantos barris se refina- lados a valores internacionais em dólar e agra-
vam etc. Pouca atenção era dada aos resulta- vados pelos impostos, são muito elevados para
dos financeiros dessas operações. A empresa quem ganha salários irrisórios, com valores es-
foi também criticada por isso, por não ser ren- táveis em reais. Além disso, e em que pese a
tável e por não visar aos lucros. Finalmente, na boa qualidade dos produtos produzidos pela
terceira fase, foram criadas as Unidades de Ne- Petrobras, a total desregulamentação do setor
gócio, e a Petrobras passou a buscar resultados e uma fiscalização muito deficiente favorecem
financeiros, obtendo lucros semelhantes aos as freqüentes e criminosas adulterações.
das maiores companhias de petróleo. Também Enquanto deveríamos festejar a aproxi-
está sendo criticada por isso, por se afastar da mação da tão sonhada auto-suficiência, alguns
missão e buscar lucros. produtos básicos, como o gás de cozinha, o óleo
A Petrobras também teve sempre de con- diesel e a própria gasolina, chegam ao mercado
viver com o fato de ser “petro” e ser “bras” ao freqüentemente adulterados e sempre a preços
mesmo tempo. Não raro, atuou simultaneamen- inacessíveis para a maioria da população. Este é
te como operadora e reguladora. Como “petro”, o principal desafio: fazer com que o “petro” e o
teria de ser uma empresa de petróleo competiti- “bras” se reencontrem naquelas premissas que
va; como “bras”, teria de ser braço da nação bra- mobilizaram a nação no início da década de
sileira na busca do bem comum e dos objetivos 1950, exatamente há meio século.

NOV 2003 / DEZ 2003 27


NACIO
NACIONAL
Alex Jobim Farias*, Pedro Quaresma** e Júlio Miragaya***

A lógica perversa
do acordo com o FMI

ALEXANDRE RAJÃO

28 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
NAL
Em dezembro de 2003, encerrou-se o acordo período de 2002. Tal valor corresponde a
entre o governo brasileiro e o Fundo Monetá- 10,2% do PIB ou cerca de 30% da receita fiscal
rio Internacional (FMI), firmado, em novem- das três esferas de governo.
bro de 1998, pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC) e por ele renovado
Conseqüências
em 2001 e 2002. O atual governo avalia a
oportunidade de assinar um acordo mais uma A assinatura de acordos com o FMI e, conse-
vez. Os defensores da assinatura de um novo qüentemente, a adoção do receituário das
acordo argumentam que não há outro cami- políticas econômicas recomendadas pelo fun-
nho, pois, sem o aval do FMI, os investidores do têm invariavelmente resultado no aprofun-
não teriam segurança em investir ou manter damento da recessão e na inviabilização dos
seus investimentos no Brasil. Ademais, dizem, projetos nacionais soberanos de desenvolvi-
o Brasil precisaria do dinheiro do FMI para fa- mento. A crise social sem precedentes vivida
zer face aos seus compromissos externos em recentemente pela Argentina é o caso mais
2004. Dessa forma, fica claro que a renovação emblemático do fracasso das políticas econô-
do acordo não tem como objetivo melhorar o micas liberais nos países em desenvolvimen-
desempenho da economia nacional e, conse- to. Desde 1998, o Brasil tem recorrentemente
qüentemente, as condições de vida da popu- assinado acordos com o FMI e, como resulta-
lação brasileira, mas sim atrair a confiança do do das políticas econômicas aplicadas ao país,
“mercado”. Mas o país não tem feito outra se encontra desde então com a economia pra-
coisa, nos últimos anos, além de agradar o ticamente estagnada.
mercado financeiro em detrimento da econo- As políticas econômicas dos acordos
mia produtiva e dos trabalhadores. com o FMI têm se caracterizado pela combina-
O acordo com o FMI não é somente dis- ção das seguintes medidas: (a) o ajuste nas
ponibilização de dinheiro, mas o compromisso contas públicas, com a fixação de metas eleva-
do governo de implementar políticas que aten- das de superávit primário (diferença entre re-
dam aos interesses dos investidores, mesmo ceitas e despesas, excetuando as despesas fi-
que em detrimento dos interesses do país. Há nanceiras); (b) controle da inflação a partir do
anos, a economia brasileira vem apresentando programa de metas inflacionárias (utilização
desempenho sofrível em conseqüência da op- das taxas de juros como mecanismo de garan-
ção de nos subjugarmos às chantagens do tir o alcance de metas de inflação fixadas e
“mercado”, em busca de uma suposta estabili- anunciadas pelo Banco Central).
dade. Mas que estabilidade é essa, com a mai- Ambas as medidas têm contribuído para
or taxa de desemprego de nossa história, com o grave quadro recessivo da economia brasilei-
a queda contínua da renda dos trabalhadores ra. O superávit primário privilegia as despesas
e com o atual índice de violência urbana? financeiras em detrimento dos investimentos
É preciso fugir dessa lógica perversa. públicos e demais despesas do orçamento pú-
No período de janeiro a agosto de 2003, não blico, inviabilizando o investimento público
obstante o superávit primário do setor públi- necessário para o projeto nacional de desen-
co ter sido de quase 5% do Produto Interno volvimento. As metas inflacionárias obrigam o
Bruto (PIB), o déficit nominal chegou a 5,3%, governo a elevar as taxas de juros da dívida
pois os gastos com juros da dívida pública atin- pública, aumentando as despesas financeiras
giram nada menos que R$ 102,4 bilhões, 68% do governo e comprometendo o crédito, o con-
a mais que os gastos com juros no mesmo sumo e o investimento privado.

NOV 2003 / DEZ 2003 29


N A C I O N A L

Os mais recentes resultados apresen- portanto, muito superior ao do mesmo pe-


tados pela economia brasileira vêm compro- ríodo de 2002, quando o pagamento efe-
var a temeridade de se renovar o acordo com tuado em juros nominais foi de R$ 60,7 bi-
o FMI. Como resultado da retração dos in- lhões (7,17% do PIB). Desse modo, cabe
vestimentos acentuada pela política mone- destacar que, ao contrário do que é alarde-
tária, vários indicadores econômicos relati- ado, o setor público apresenta um déficit
vos à atividade econômica têm apresentado crescente no resultado entre as receitas e
uma piora sensível em 2003 em relação a as despesas. O déficit nominal, que no pe-
2002. Em primeiro lugar, temos os índices ríodo entre janeiro e agosto de 2002 era de
de desemprego. Em agosto, a taxa de desem- 2,75% do PIB, alcançou 5,29% no mesmo
prego do Instituto Brasileiro de Geografia e período em 2003. Considerando os 12 me-
Estatística (IBGE) atingiu 13% contra 11,7% ses em que o acordo está em vigor, o déficit
em agosto de 2002. De forma semelhante, acumulado foi de 5,74%.
comparando o período janeiro–julho, o ren- Dessa forma, o orçamento público é
dimento médio do trabalho caiu 11%, e a o maior prejudicado pelo acordo com o FMI.
produção da indústria de transformação Em primeiro lugar, isso ocorre porque os re-
apresentou uma queda de 0,5% em 2003 cursos públicos estão sendo destinados pre-
em relação a 2002. Esses resultados podem ferencialmente para o pagamento dos juros
ser atribuídos claramente à política mone- ao mercado financeiro. Somando-se a isso,
tária, dado que tanto a produção industrial temos o contingenciamento de recursos efe-
como os índices de desemprego ensaiavam tuado pelo governo federal. Assim como ha-
uma recuperação no primeiro trimestre de via sido feito em fevereiro de 2003, por oca-
2003, tendência claramente revertida a par- sião da elevação da meta de superávit pri-
tir do mês de maio, quando, com o intuito mário acordada com o FMI, o Ministério do
de conferir “credibilidade” ao mercado fi- Planejamento, Orçamento e Gestão anun-
nanceiro e ao programa de metas inflacio- ciou um novo corte de recursos dos diferen-
nárias, o Banco Central passou a diminuir tes ministérios, por causa da queda da arre-
as taxas de juros em um ritmo muito inferi- cadação, nos meses de julho e agosto, so-
or ao da queda das taxas de inflação. Além bretudo do Imposto sobre Produtos Indus-
disso, a maior queda da produção industri- trializados (IPI), imposto de importação e
al se deu no setor de bens de capital (má- Contribuição Provisória sobre Movimentação
quinas e equipamentos), confirmando as- Financeira (CPMF), impostos extremamente
sim a crônica paralisação dos investimentos. correlacionados ao nível da atividade eco-
O superávit primário é justificado pelo nômica. Assim, o total das despesas de cus-
FMI como uma forma de reduzir a relação en- teio e investimento do governo federal, que
tre a dívida pública e o PIB. Ocorre que nem era de R$ 62 bilhões na Lei Orçamentária
isso está sendo alcançado, apesar dos eleva- aprovada para 2003, passou a R$ 48,3 bi-
dos superávits primários obtidos pelo setor lhões, após as revisões ao longo do ano.
público. Em agosto, a dívida líquida do setor Como conseqüência das políticas fis-
público atingiu R$ 891,335 bilhões, ou seja, cais e monetárias, temos observado, portan-
57,7% do PIB, contra 57,2% em julho e 56,5% to, uma clara transferência de renda para o
em dezembro de 2002. No entanto, o superá- setor financeiro da economia, em detrimen-
vit primário, que representa a parcela das re- to do que havia sido a tônica do debate po-
ceitas do setor público não convertida em ser- lítico-eleitoral de 2002, em que a popula-
viços públicos para a população, acumulou, ção colocou claramente o desejo de mudança
entre janeiro e agosto, R$ 49,3 bilhões (4,91% e de reorientação da política econômica do
do PIB), comparativamente a R$ 37,4 bilhões setor financeiro para o setor produtivo, ge-
(4,41% do PIB) em igual período de 2002. rador de empregos e renda. Tomando como
Ao contrário das despesas orçamentá- exemplo os lucros divulgados pelos princi-
rias, as despesas financeiras não são limitadas pais bancos do país no primeiro semestre de
pelos acordos com o FMI. Assim, entre janeiro 2003, podemos compreender a gravidade da
e agosto de 2003, o setor público efetuou o situação. Segundo os balanços dessas insti-
pagamento de R$ 102,4 bilhões (10,2% do tuições, os lucros do setor bancário atingi-
PIB) em juros nominais e de R$ 155,7 bilhões ram R$ 6,1 bilhões, ou seja, apresentaram
(10,53% do PIB) nos 12 meses desde que o um crescimento de 11,8% em relação ao
acordo foi assinado. Esse desembolso é, mesmo período. Somente o Itaú apresentou

30 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI

um lucro de R$ 1,49 bilhão (crescimento de taxas de câmbio, socorrer países com dese-
42,24% em relação a 2002), enquanto o quilíbrios no balanço de pagamentos e ga-
Bradesco teve um lucro de R$ 1,03 bilhão rantir a provisão de liquidez, quando neces-
(crescimento de 13,6%). Somados os lucros sário. Mas, passado meio século, o quadro
desses dois bancos apenas, temos a quantia mundial sofreu profundas alterações. O ce-
de R$ 2,52 bilhões, um valor superior ao do nário atual é o de persistência da crise glo-
orçamento público destinado à infra-estru- bal do sistema capitalista, que se arrasta
tura no mesmo período (R$ 2,32 bilhões). desde a década de 1970. Ela se caracteriza
Finalmente, a renovação do acordo com pela financeirização crescente das relações
o FMI só faria algum sentido diante das neces- econômicas e pelo estrangulamento da eco-
sidades no balanço de pagamentos. No en- nomia real; tem como eixo a ofensiva do ca-
tanto, a estagnação da economia tem contri- pital financeiro e das corporações contra os
buído claramente para a melhora nas contas direitos sociais e trabalhistas dos povos de
externas e a obtenção de saldos recordes na todo o mundo, com o objetivo de reduzir
balança comercial, a ponto de o próprio presi- ainda mais o custo do fator trabalho. Neste
dente Lula ter admitido, em pronunciamento cenário, os Estados Unidos assumem o pa-
a investidores financeiros em Nova York (an- pel de responsáveis por impor essa nova or-
tes de ser anunciada a celebração de um novo dem, pisoteando o direito internacional e a
acordo), que o país estava em condições de soberania das nações e ameaçando o siste-
dispensar os recursos do FMI. Cabe lembrar ma multilateral de governança global, já re-
que os recursos do fundo não têm se traduzi- cheado de imperfeições.
do em benefícios para o país, mas na garantia E qual tem sido o papel do FMI neste
de que os ganhos financeiros da especulação contexto? Na prática, ele deixou de ser um
global com a dívida pública (em reais) possam organismo multilateral voltado para a defe-
ser convertidos em dólares e remetidos ao ex- sa da paridade cambial, para o socorro aos
terior (em dólares). países com graves desequilíbrios externos e
para a questão da liquidez internacional e
tornou-se uma agência do capital financei-
Espaço para avanços
ro, dos credores internacionais e do Tesouro
O governo argumenta que exigirá melhores estadunidense. Dedica-se a impor programas
condições no acordo, ou seja, que negociará de ajuste estrutural aos países periféricos
alguns avanços, como a não-classificação dos que com ele fazem acordo e a recomendar
investimentos das empresas estatais como políticas macroeconômicas de inspiração in-
gastos do governo (uma caracterização real- variavelmente recessiva, direcionadas para o
mente absurda) e também a inclusão de al- atendimento dos interesses estritamente
gumas cláusulas sociais. Trata-se de uma típi- corporativos dos bancos e trustes e absolu-
ca tentativa de “dourar a pílula”. Mas, se o tamente incompatíveis com as necessidades
FMI aceitasse essas condições, estaria tudo de crescimento econômico, geração de em-
resolvido? Obviamente não, pois o essencial prego e distribuição de renda.
para o FMI está sendo mantido: as famosas
condicionalidades. As autoridades governa-
Alternativas
mentais, quando eram oposição, faziam uma
caracterização crítica do papel do FMI no Um país como o Brasil, dada a gravidade das
mundo atual. Teria o Fundo mudado? Veja- questões sociais que precisa resolver, neces-
mos a descrição desse processo. sita de um projeto nacional de desenvolvi-
A decisão de se criar o FMI – junta- mento com políticas alternativas às que vêm
mente com o Banco Mundial e a Organiza- sendo propostas pelo FMI. O projeto sobe-
ção Internacional do Comércio, posterior- rano de desenvolvimento, em sintonia com
mente Acordo Geral de Tarifas e Comércio a política externa de afirmação desempenha-
(Gatt) e, recentemente, Organização Mun- da pelo governo Lula, exige que as políticas
dial do Comércio (OMC) – foi tomada em econômicas (fiscal, monetária e comercial)
1944 na famosa Conferência de Bretton sejam formuladas autonomamente, sem a in-
Woods, nos Estados Unidos, tendo sido im- gerência do FMI.
plantadas em 1947 as duas primeiras des- Nesse sentido, só devem ser conside-
sas três instituições. A função básica do FMI radas aceitáveis as metas que sejam defini-
era zelar pela manutenção da estabilidade das das com a sociedade brasileira, almejando o

NOV 2003 / DEZ 2003 31


N A C I O N A L

projeto nacional de desenvolvimento. Metas a uma tecnologia dominadas e desenvolvi-


que visam ao superávit primário ou às taxas das internamente, reduzindo, desse modo,
de inflação isoladamente não contribuem nossa dependência externa.
para aquele projeto, antes o tornam inviável. Portanto, é necessária a ação do Ban-
Na verdade, como pudemos observar ao lon- co Central para que se amplie o crédito, o
go dos últimos anos, a estabilidade de pre- que passa pela confrontação dos interesses
ços não tem se concretizado no desenvolvi- daqueles que lucram com a dívida pública.
mento, ao contrário do que prometiam Com a ampliação do crédito, a política mone-
aqueles que defendem o FMI. tária poderia, assim, desempenhar sua ver-
Torna-se, assim, cada vez mais eviden- dadeira função: garantir a circulação da pro-
te: a retomada dos investimentos é de fun- dução e da renda, e não sua acumulação e
damental importância para dar estabilidade concentração, como as elevadas taxas de ju-
ao desenvolvimento. E essa retomada só ros têm propiciado. Diante do descalabro das
ocorrerá a partir de uma política pública vol- finanças públicas, é indispensável discutir a
tada para esse fim. Não há crescimento eco- fixação de um teto para o gasto orçamentá-
nômico sem reativação da demanda e sem rio com as dívidas financeiras.
investimento produtivo. E não há investi- Outra forma de política econômica é o
mento produtivo sem ampliação do crédito. controle de capitais. Essa medida, que vem
O crédito é o instrumento econômico que sendo adotada em alguns países, sendo o
permite a antecipação dos recursos monetá- caso mais recente o da Argentina, pode fun-
rios, possibilitando a ocorrência das transa- cionar de diversas maneiras e tem um papel
ções necessárias para que se possa realizar a estratégico em uma economia global em que
produção e o consumo. Em um país com al- ocorre o predomínio hegemônico e político
tas taxas de desemprego e com a produção de uma divisa sobre todas as outras. Funcio-
estagnada, a acessibilidade ao crédito favo- na, ainda, no sentido de conter a volatilidade
rece a trajetória para o funcionamento ple- cambial e os seus efeitos nocivos sobre a eco-
no da economia, a ampliação da riqueza e o nomia. Também nesse caso, é indispensável
desenvolvimento social e econômico. Um discutir a fixação de um percentual máximo
país como o Brasil não pode manter uma das exportações de capital para o serviço da
relação crédito produtivo/PIB tão irrisória dívida externa ou, ainda mais coerentemen-
(27% contra 70% no Chile, 110% nos Esta- te, um percentual máximo do saldo da balan-
dos Unidos e 160% na Alemanha). A reto- ça comercial para aquele serviço, induzindo
mada do desenvolvimento passa, ainda, pe- os países credores a que diminuam signifi-
los investimentos em infra-estrutura, empre- cativamente suas barreiras comerciais.
gadores de força de trabalho e garantidores Finalmente, cabe destacar que a não-re-
de um melhor ambiente econômico para a novação do acordo está profundamente asso-
ampliação dos investimentos. ciada à reorientação da política econômica e à
Além disso, a priorização do financia- necessidade de ampliação do debate franco e
mento interno se constitui num importante democrático de políticas alternativas, que vi-
instrumento de promoção da soberania eco- sem à construção de um projeto soberano de
nômica. A história recente do Brasil nos per- desenvolvimento, capaz de conduzir à resolu-
mite concluir que a vulnerabilidade externa ção dos graves problemas sociais do país e pre-
decorrente da centralidade da necessidade de servar a sintonia com os compromissos presen-
divisas tem figurado ao longo dos anos como tes no debate político que elegeu o presidente
um dos principais obstáculos ao livre desen- Lula. Não se trata de deixar de renovar com o
volvimento do país. Se o país deseja se empe- FMI. O que não faz sentido é continuar execu-
nhar em um processo soberano de desenvol- tando as políticas contidas em seu receituário,
vimento, é necessário estimular as transações como a manutenção das elevadas taxas de su-
em moeda nacional, que não pressionem o perávit primário, ao longo do mandato do pre-
balanço de pagamentos, dispondo das divi- sidente Lula.
sas (dólares) para adquirir aquilo que for es-
tritamente necessário para o país, por exem-
Condições políticas
plo, os produtos cuja tecnologia ainda não
somos capazes de produzir. E um processo de A atual política externa brasileira tem sido
desenvolvimento autônomo ainda deve in- considerada o ponto alto do governo Lula
cluir, obviamente, o estímulo a uma ciência e até aqui. Posicionou-se contrária à guerra

32 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI

do Iraque e à política unilateral estaduni- estadunidense no plano econômico, é fla-


dense de combate ao terror; tem tentado grante a contradição entre a orientação geral
colocar a justiça social e o combate à fome e anti-hegemônica da política externa do go-
à miséria como temas prioritários em diver- verno Lula e a renovação de um acordo com o
sos foros internacionais (por exemplo, o FMI. Exige-se que a política econômica acom-
World Economic Forum e a reunião do G-8, panhe a sua política externa quanto ao cará-
em Evian, na França); tem articulado os paí- ter de inovação que exibe.
ses em desenvolvimento no sentido de con- Votos não faltaram ao presidente Lula
trabalançar o poder dos países mais ricos, para tanto. Consagrado pela segunda maior
como no caso do G-3 (Brasil, África do Sul e votação obtida em regimes presidencialistas,
Índia) e o G-22 (grupo de países em desen- não caberiam qualificações no que tange ao
volvimento interessados no avanço substan- clamor por mudanças que se expressou nas
cial das negociações em agricultura na ro- urnas. Tais qualificações, contudo, não so-
dada de Doha da OMC); tem procurado mente foram feitas, como também foram
revitalizar a integração latino-americana, abraçadas por integrantes do governo que
engajando recursos do Banco Nacional de chegaram a afirmar que seria estelionato elei-
Desenvolvimento Econômico e Social toral se o governo Lula não adotasse o
(BNDES) na integração física com países fron- continuísmo na política econômica. Um dos
teiriços, contrariando os Estados Unidos; principais argumentos nesse sentido é de que
tem tentado negociar uma Área de Livre Co- a coalizão de esquerda que elegeu Lula não
mércio das Américas (Alca) não-abrangen- teria obtido assentos suficientes no Congres-
te, com o intuito de evitar a negociação de so para consolidar a ruptura. Bobagem. O
temas aos quais o Brasil é sensível; faz da atual governo precisou cooptar setores da
aproximação de países africanos uma de direita justamente para implementar as re-
suas prioridades. formas constitucionais pregadas pelo “mer-
A visita a Cuba, justamente no regres- cado”, e é essa agenda que esgarça e so-
so de uma viagem aos Estados Unidos, sem brecarrega a articulação política de susten-
tocar publicamente na questão da violação dos tação do governo, levando à reedição de
direitos humanos pelo regime cubano, serviu vários vícios do atual sistema político brasi-
para a mídia carimbar, com o rótulo de inde- leiro, como o troca-troca de partidos e a com-
pendente, a política externa brasileira e real- pra de votos. Constituições devem ser está-
çar a sua diferença em relação à política exter- veis por definição, e a quantidade de votos
na do governo FHC.1 Até agora, de fato, a necessária para a sua modificação não pode
política externa do atual governo tem feito jus- ser considerada como precondição política
tiça ao discurso anti-hegemônico do presiden- de governabilidade.
te Lula no dia de sua posse: “A democratiza- Não é só da esquerda que se ouvem
ção das relações internacionais sem críticas à ortodoxia da política econômica do
hegemonias de qualquer espécie é tão impor- governo Lula. O empresariado nacional
tante para o futuro da humanidade quanto o soma-se ao coro generalizado da sociedade
desenvolvimento e a consolidação da demo- brasileira por uma redução mais rápida das
cracia no interior de cada estado”.2 taxas de juros. Não é por falta de apoio do-
Quando se passa à comparação das méstico, portanto, que a mudança de mode-
respectivas políticas econômicas domésticas, lo econômico não foi implementada. O mo-
no entanto, fica muito mais difícil, se não im- delo econômico não foi mudado porque o
possível, identificar qualquer sinal de ruptu- atual governo optou pela sua manutenção,
1 Por outro lado, o governo
ra substantiva entre os governos Lula e FHC. respondendo à crise de endividamento que Lula foi acusado de omissão
por não tocar publicamente
Mais do que isso, em certos aspectos, a po- vive o Brasil com a surrada política de con- na questão de violação dos
lítica econômica do governo Lula tem sido quista de confiança dos mercados financei- direitos humanos em Cuba.

mais ortodoxa do que a de FHC, como mos- ros internacionais. Em suma, ao ganhar as 2 Grifo nosso. A transcrição do
discurso de posse do presi-
tra a adoção da meta de superávit primário eleições, a cúpula petista substituiu a coali- dente Lula pode ser encontra-
da no portal do Ministério das
de 4,25% do PIB. A renovação do acordo com zão de alguns setores do empresariado com Relações Exteriores:
o FMI seria decorrência da manutenção do trabalhadores, que levou Lula à vitória, por <www.mre.gov.br>.

modelo econômico herdado do governo FHC, um pacto com a banca internacional, 3 polí- 3 O vice-presidente José
Alencar é um símbolo dessa
já que essa instituição tem sido o seu princi- ticas ortodoxas e reformas em troca do fim coalizão ou, pelo menos, de
pal avalista. Levando-se em conta que o FMI da especulação que elevou a cotação do dó- sua tentativa; os ministros Luiz
Fernando Furlan e Roberto
é um dos principais agentes da hegemonia lar na virada do ano. Rodrigues também o são.

NOV 2003 / DEZ 2003 33


N A C I O N A L

*Alex Jobim Já foi dito que a história não se repete 2004 e nada mais de concreto para os anos
Farias a não ser como farsa. Infelizmente, esse não posteriores (os credores e o FMI queriam uma
Federação de Órgãos parece ser o caso brasileiro, que, ao que tudo meta mais ambiciosa para garantir o pagamen-
para Assistência Social indica, segue os passos da Argentina pré-crise to da dívida a ser reestruturada). Além disso,
e Educacional (Fase) ao não perceber que a política ortodoxa aca- também resistiu a pressões do FMI para esta-
ba por minar a política de conquista de con- belecer um cronograma de aumento das tarifas
fiança da qual é fruto: adota-se a austeridade de serviços privatizados. Kirchner está certo, não
**Pedro
fiscal para que se poupem recursos para o quer sacrificar, em prol do pagamento da dívi-
Quaresma
pagamento da dívida pública, que leva à da argentina, o incipiente crescimento obtido
Instituto Políticas
recessão econômica ao inibir os gastos e in- e, visivelmente, descarta o modelo de conquis-
Alternativas para
vestimentos públicos, a qual, por sua vez, leva ta de confiança com a recusa de aumento das
o Cone Sul (Pacs)
à diminuição da arrecadação fiscal, a qual leva tarifas de serviços privatizados.
o governo em questão a praticar mais auste- A crise do neoliberalismo na América
***Júlio Miragaya ridade, que provoca mais recessão... É o cír- Latina enseja a guinada do governo Lula na
Conselho Regional de
culo vicioso recessivo ortodoxo experimenta- direção das verdadeiras mudanças. Há apoio
Economia do Rio de do pela Argentina recentemente. Não há doméstico para tanto; as conseqüências do
Janeiro (Corecon) como satisfazer o mercado quando se adota neoliberalismo já estão bem demonstradas
essa política, porque ela não leva à estabili- pelas crises brasileira e argentina; a autorida-
zação da relação dívida pública/PIB. de do FMI, principal instrumento da consoli-
Hoje, a despeito do esforço de integra- dação de políticas neoliberais, viu-se abalada
ção sul-americana empreendido pelo governo pela sua inépcia em solucionar a sucessão de
Lula, parece haver uma grande distância entre crises internacionais iniciadas na Ásia em
os governos Lula e Kirchner. Isso prejudica a 1997, e essas mesmas crises também abala-
Argentina, porque o FMI passou a exigir dessa ram a crença dogmática na globalização como
que seguisse o exemplo de austeridade brasi- panacéia para o desenvolvimento econômi-
leiro. Ainda assim, Kirchner conseguiu negoci- co. Só falta a esse governo entender melhor
ar um acordo com o FMI em que foi estabeleci- o momento histórico em que vivemos e virar
do um superávit primário de 3% do PIB em o leme na direção certa.

De olho nas multilaterais


A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Os principais objetivos da Rede Brasil são:
Multilaterais4 é uma rede de organizações • manter um espaço coletivo de socialização
da sociedade civil, sem fins lucrativos, não- de informações e de discussão sistemática
partidária e com finalidade pública. Funda- sobre as políticas e os projetos desenvolvidos
4 A atual coordenação nacio- da em 1995, reúne atualmente 64 organi- pelo governo brasileiro com recursos finan-
nal da Rede Brasil é formada zações5 filiadas com o objetivo comum de ceiros e/ou aporte técnico de IFMs;
por: Alex Jobim Farias, da
Federação de Órgãos para
acompanhar e intervir em questões relati- • promover a articulação de estratégias de
Assistência Social e Educacio- vas às ações de instituições financeiras mul- ação comuns perante o governo brasileiro –
nal (Fase); Guilherme Carvalho, tilaterais (IFMs) no Brasil, como o Grupo Executivo, Legislativo e Judiciário – e as IFMs;
do Fórum da Amazônia Ori-
ental (Faor); Hélio Meca, do Banco Mundial, o Banco Interamericano de • contribuir para a democratização dos pro-
Movimento dos Atingidos Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetá- cessos de formulação das políticas públicas
p o r Barragens (MAB); Iara no Brasil financiadas por IFMs, por meio de
Pietricovsky, do Instituto de
rio Internacional (FMI).
Estudos Socioeconômicos O conjunto de organizações filiadas ampla participação da sociedade civil e do
(Inesc); Júlio Miragaya, do inclui movimentos sociais, entidades sindi- Congresso Nacional;
Conselho Regional de Eco-
n omia do Rio de Janeiro cais, institutos de pesquisa e assessoria, as- • exercer influência tendo por fim a demo-
(Corecon); Magnólia Said, do sociações profissionais e ONGs de todas as cratização, participação e transparência dos
Centro de Pesquisa e Assesso- regiões do país, com atuação em âmbito processos relativos à elaboração e à imple-
ria (Esplar); Mário Mantovani,
do Fórum Brasileiro de ONGs local, regional e nacional. Essas organiza- mentação das políticas das IFMs, bem como
e Movimentos Sociais para o ções trabalham em diversos temas e seto- à transformação da própria estrutura de
Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento; e Sílvia Marques
res das políticas públicas, como educação, poder dessas instituições.
Calichio, do Fórum Mato- saúde, trabalho, seguridade social, infân-
grossense de Meio Ambiente cia, infra-estrutura, meio ambiente, agri- Mais informações:
e Desenvolvimento (Formad).
cultura, reforma agrária, urbanização, pla- rbrasil@rbrasil.org.br
5 A lista das instituições que nejamento econômico, entre outros. www.rbrasil.org.br
fazem parte da Rede Brasil
está disponível no endereço
<www.rbrasil.org.br>

34 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
NOV 2003 / DEZ 2003 35
V A R I E V
Flávia Mattar
A R I E

Dívida histórica Engajamento cultural Frente contra o


preconceito
Dados da Fundação Palmares O Museu de Arte Moderna (MAM)
apontam que, 115 anos depois da de São Paulo está de portas abertas Em 8 de outubro foi lançada, em
abolição da escravidão, cerca de à diversidade. Alunos(as) com de- Brasília, a Frente Parlamentar pela
2 milhões de pessoas vivem em ficiência auditiva da Divisão de Livre Expressão Sexual, que con-
743 comunidades quilombolas es- Educação e Reabilitação dos Dis- tou com a adesão inicial de 54 par-
palhadas pelo Brasil. Estima-se túrbios da Comunicação (Derdic/ lamentares. A iniciativa partiu de
que grande parte seja analfabeta. PUC-SP) foram capacitados(as) quatro deputadas: Iara Bernardi
Com experiência de 11 anos na al- para conduzir, utilizando a língua (PT-SP), Laura Carneiro (PFL-
fabetização de jovens e adultos(as), brasileira de sinais (Libras), 800 RJ), Maria do Rosário (PT-RS) e
a Fundação Banco do Brasil, por estudantes surdos(as) da rede mu- Fátima Bezerra (PT-RN).
meio do programa BB Educar, nicipal de ensino nos caminhos da “Com a Frente, passamos a ter
aceitou o desafio de ajudar a mu- arte. O projeto Aprender para uma bancada que coordenará ações
dar essa realidade. Ensinar, com duração prevista até para a aprovação de projetos rele-
A idéia inicial é capacitar o fim deste ano, poderá ter conti- vantes e para a apresentação de
voluntários(as) de sete comunida- nuidade em 2004. novos projetos”, comemora Cláu-
des do Rio de Janeiro, Minas Ge- Os(As) 21 jovens estudantes da dio Nascimento, presidente do
rais e Pernambuco para atuarem Derdic, cursando a sétima e a oita- Grupo Arco-Íris e secretário de
como multiplicadores(as). Os(as) va séries, aprenderam na sede do Direitos Humanos da Associação
futuros(as) alfabetizadores(as) fo- MAM desde noções básicas de arte Brasileira de Gays, Lésbicas e Tra-
ram escolhidos(as) por membros até a identificação de diferentes vestis (ABGLT).
das próprias comunidades das quais modalidades artísticas. As crian- A idéia é estimular adesões de
fazem parte. ças e os(as) adolescentes da rede parlamentares. “O número de ade-
O objetivo inicial é que, após a municipal, entre 6 e 18 anos, es- sões é relevante, é o lançamento
capacitação dos(as) multiplica- tão tendo a oportunidade de co- de uma frente que carrega muito
dores(as), 500 quilombolas da co- nhecer e obter informações sobre estigma”, diz Marcelo Cerqueira,
munidade Campinho, no Rio de o Jardim das Esculturas, a reserva presidente do Grupo Gay da Bahia
Janeiro, sejam beneficiados(as). O técnica do MAM e as exposições (GGB). A Frente se dedicará à vo-
mesmo ocorrerá com 660 negros em cartaz. tação, até o fim de novembro, do
e negras das comunidades de A Derdic prioriza famílias eco- projeto no 1.151/95, que prevê a
Gurutuba e Brejo dos Criolos, em nomicamente desfavorecidas, ofe- união legal de pessoas do mesmo
Minas Gerais, e 200 de Castainho, recendo atendimento educacional sexo. “O presidente da Câmara,
Imbé, Estivas e Curiquinho dos e clínico especializado. deputado João Paulo Cunha (PT-
Negros, em Pernambuco. SP), já se comprometeu com isso”,
www.derdic.org.br
finaliza Cláudio.

36 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
D A D E S
D A D E S

Nova relação no mundo Debate aberto Tabaco na mira


globalizado
O Laboratório de Políticas Públi- Você sabia que a indústria do taba-
O Encontro Indígena Interamericano cas (LPP) da Universidade do Es- co tem como público-alvo prefe-
Preparatório sobre a Sociedade da tado do Rio de Janeiro (Uerj) lan- rencial jovens e mulheres? Esta-
Informação reuniu em Brasília, de çou, recentemente, Outro Brasil, tísticas recentes, de acordo com a
8 a 10 de outubro, importantes site que tem como proposta con- organização Cemina (Comunica-
pensadores(as) e mensageiros(as) tribuir com os debates sobre polí- ção, Educação e Informação em
de povos do Brasil e das Américas. ticas públicas alternativas. Nomes Gênero), revelaram que o número
O compromisso foi o de contribuir de peso – como o do economista de meninas fumantes é maior do
para uma autêntica sociedade da César Benjamin, do cientista polí- que o de meninos.
informação e da comunicação, ba- tico Emir Sader e da economista Diante dessa constatação,
seada nos princípios de igualdade Laura Tavares – são responsáveis Cemina lançou o projeto Hip Hop
na diversidade e respeito pleno aos pelo acompanhamento da conjun- na Linha de Frente contra o Taba-
direitos humanos. tura brasileira, abordando os prin- co. Foi gravado um CD com cinco
Durante o evento, foi constitu- cipais processos políticos, econô- raps – “Questão de bom senso”,
ída a declaração com seis passos micos e sociais em curso no país. “Propaganda enganosa”, “O capi-
fundamentais para promover a in- Além disso, Outro Brasil reú- talismo acima do ser humano”,
clusão de indígenas no processo da ne estudos, documentos e mani- “Falso prazer” e “Reflexo do ví-
Cúpula Mundial da Sociedade da In- festos sobre temas relevantes, ela- cio” – que será distribuído gratui-
formação (CMSI) – em dezembro, borados pela universidade e por tamente para rádios e DJs.
na Suíça. Entre as reivindicações movimentos sociais e sindicais. A O CD contou com a direção
estão: assegurar e apoiar a partici- cada quatro meses poderão ser do DJ Fábio ACM, produção mu-
pação e a consulta aos povos; a ins- conferidas pesquisas sobre os con- sical de Mister Zoy (Rádio Viva
talação de comissões nacionais in- flitos sociais no país, apresenta- Rio AM) e a consultoria de Def
tegradas não só por indígenas, como das na forma de cronologia. Tra- Yuri (Viva Favela). A iniciativa
pelo governo e pela sociedade ci- ta-se da parte nacional do estudo tem o apoio da Organização Mun-
vil; e participação no desenho, ges- dos conflitos sociais na América dial de Saúde (OMS), Rede de De-
tão e avaliação de educação adequa- Latina, elaborado pelo Observa- senvolvimento Humano (Redeh),
da para fortalecer suas identidades, tório Social da América Latina Viva Rio, Portal Bocada Forte,
saúde, moradia e segurança alimen- (Osal), um programa do Conse- Dyak Produções, Trocando Idéia
tar, considerando sua visão própria lho Latino-americano de Ciênci- e Secretaria de Saúde do Estado
de desenvolvimento. as Sociais (Clacso). do Rio de Janeiro. As músicas es-
tão disponíveis em MP3 no site
www.outrobrasil.net
<www.cemina.org.br/hiphoptabaco>.

Mais informações:
(21) 2262-1704

NOV 2003 / DEZ 2003 37


ESPECIAL
Rogério Almeida*

Manoel Conceição
a luta e a militância de um
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

38 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
Santos, Uma das maiores expressões

empenhada na reforma agrá-

trabalhador
ria do Brasil veio ao mundo

na primeira metade do sécu-

lo passado. Anos em que

Vargas, Lampião e Prestes engrossavam o caldo de nossa história e a Segunda Gran-

de Guerra tomava forma. Nosso personagem, Manoel Conceição Santos, nasceu em

1935, em Pedra Grande, interior do município de Coroatá, Maranhão. Filho e neto

de camponeses, o mais velho de seis irmãos. Negro, trabalhador rural e nordestino.

Nascido em um dos estados mais pobres da nação, tinha tudo para ter morrido de

uma dessas enfermidades que vitimam milhares de crianças pelos sertões do Brasil.

Mas a rude realidade o talhou para desafinar o coro dos contentes e a cons-

truir uma história de 41 anos de coerência e trabalho estabelecidos em princípios

humanistas e socialistas. Manoel Conceição Santos, ou Mané, como prefere ser

tratado, se constitui numa reserva moral da esquerda. No chão palmilhado por

Mané, há marcas de prisão, tortura, sangue, amor, exílio, trabalho em educação

popular, construção do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Tra-

balhadores (CUT), militância na Ação Popular Marxista Leninista (AP), da qual che-

gou a fazer parte da coordenação, além da fundação do primeiro sindicato de

trabalhadores rurais no Maranhão, o de Pindaré Mirim. A caminhada começa a

sinalizar desgastes. No fim de dezembro de 2001, Mané teve um princípio de

derrame. Tem tido de cumprir uma dieta rigorosa.

NOV 2003 / DEZ 2003 39


E S P E C I A L

Aos 68 anos, o líder camponês mora na cida- No terreno da Cetral se desenvolve uma
de de Imperatriz, a segunda do estado do tecnologia que não agride o meio ambiente. São
Maranhão, terra banhada pelo rio Tocantins, cultivadas 39 espécies frutíferas, entre elas,
situada lá pelas bandas do Bico do Papagaio acerola, caju, banana, abacaxi, coco, jaca, goia-
(divisa entre Tocantins, Maranhão e Pará), re- ba, cupuaçu e murici. Entre as madeiras, podem
gião onde mais se mata gente empenhada pela ser encontradas cedro, ipê, inharé, copaíba,
reforma agrária no Brasil. Mané coordena a mogno, paricá e nim. No caso das leguminosas
organização não-governamental Centro de usadas para adubação verde, existe farta produ-
Educação e Cultura do Trabalhador Rural ção de feijão-guando, mucuna preta, sabiá, sem
(Centru), que tem sede em Recife, Pernambuco. falar da mata nativa de palmeira de babaçu.
A ONG Centru, fundada em 1985, tem a O lugar onde antes imperava o uso de
diretoria formada somente por trabalhadores agrotóxico e era raro encontrar alguma ave e
rurais. O empenho na organização de traba- pequenos animais desponta, hoje, como uma
lhadores e trabalhadoras rurais no projeto da referência de produção equilibrada. A espinha
Central de Cooperativas Agroextrativistas do dorsal da filosofia do Cetral é que o espaço
Maranhão (CCAMA), baseado na socioecono- sirva como modelo demonstrativo de sistemas
mia solidária e no desenvolvimento sustentá- agroflorestais, formador de agentes agroflo-
vel, tem funcionado como motivador do traba- restais, agricultores familiares, sistemas agros-
lho de Mané dos anos recentes. Os projetos silvopastoris, com integração de pequenos e
tratam de organização popular, meio ambien- médios animais.
te, desenvolvimento de sistemas agroflorestais Os animadores do projeto explicam que
e discussão e proposição de políticas públicas o objetivo do projeto é barrar a devastação na
voltadas para o pequeno produtor rural. Amazônia Legal e no cerrado maranhense. En-
Tudo isso ocorre numa região desenha- tre alguns de seus apoiadores, estão o Fundo
da pela implantação de grandes projetos como Mundial para o Meio Ambiente, o Instituto
a Ferrovia de Carajás, pela destruição do cerra- Sociedade, População e Natureza (ISPN) e o
do para a implantação do cultivo de soja e para Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
alimentar os fornos das siderúrgicas, além de vimento (Pnud).
uma floresta de eucalipto da Companhia Vale
do Rio Doce, que deveria favorecer a implemen-
Resistência popular
tação de uma fábrica de papel, atualmente es-
tagnada. A perspectiva é o socialismo, acredita Helciane Araújo, jornalista e professora da Uni-
Mané. “Não basta ganhar governo. Temos que versidade Federal do Maranhão (UFMA), defen-
trabalhar organicamente,” avalia. deu, em 2000, no mestrado em Políticas Públi-
Há cerca de dez anos, o Centru adqui- ca/UFMA, a dissertação Memória, mediação e
riu, no município de João Lisboa, uma área de campesinato: estudo das representações de
10 hectares de terras ocupados pelo gado e uma liderança (Manoel Conceição) sobre as for-
por uma horta com base em agrotóxicos. A mas de solidariedade assumidas por campone-
idéia era consolidar um espaço de formação ses na chamada Pré-Amazônia Maranhense. A
política do trabalhador rural com alojamento, pesquisadora disse que procurou “analisar
auditório, área de produção de várias árvores como o líder camponês, a partir da posição do
frutíferas, madeira e hortas, o que os douto- presente, interpreta o seu passado, quais as
res chamam de sistema agroflorestal. representações que ele tem da história que vi-
Foram dias de trabalho duro. Primeiro, veu. Com a leitura de suas representações so-
superar o uso do veneno da terra, retirar o pasto. bre seu passado, percebemos o quanto o agen-
Lá nem bicho se via mais, passarinho não piava te social camponês mudou, exigindo também
pelas bandas do que é, atualmente, uma experi- uma mudança de postura daqueles que ten-
ência reconhecida em toda a região e também tam compreendê-lo, mudança esta que deve
fora dela. Hoje, o espaço é chamado de Centro levar a uma ruptura com os conceitos cristaliza-
de Estudos do Trabalhador Rural (Cetral) e rece- dos”. E ela complementa: “Infelizmente, os
be visitas de trabalhadores rurais de outros esta- maranhenses não conhecem essa história e
dos, professores e pesquisadores. É o ninho de Manoel Conceição não assiste em vida ao seu
debate e de desenvolvimento de experiências do reconhecimento, sequer entre seus parceiros”.
Centru/CCAMA e de outras cooperativas agroex- “Manoel é a própria resistência do mo-
trativistas. Possui espaço de alojamento, salão vimento popular no Maranhão, mas não é uma
para reuniões e seminários e refeitório. resistência cristalizada, congelada, colada em

40 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

MANOEL EM SUA CASA NO EXÍLIO EM GENEBRA/SUIÇA, COM COM MARIO CARVALHO DE JESUS, ADVOGADO DA FRENTE
DOM FRAGOSO, BISPO DE CRATÉUS NACIONAL DO TRABALHO (FNT), SÃO PAULO, EM FRENTE À CASA
DE PADRE DOMINIQUE BARBÉ, OSASCO, ONDE FOI PRESO EM 1975

princípios dos anos 1960 ou dos anos 1970. Quando começaram os tiros, correu varando
Pela sua experiência de vida, Manoel conse- cerca. Caiu dentro do mato umas dez horas da
gue ter uma visão cosmopolita da realidade manhã. Só apareceu umas três da tarde. Mor-
brasileira e da realidade maranhense e perce- to de fome”, lembra, sorrindo.
be que as estratégias de luta do presente não Em um relato dado a Ana Galano,1 Mané
podem ser as mesmas de anos atrás”, observa descobre que a amputação poderia ter sido evi-
Helciane Araújo. “Vejo que Manoel hoje fala tada não fosse a falta de perícia médica em São
não apenas de uma posição, mas de múltiplas Luís. Ainda no mesmo depoimento, narra que
posições: do partido, da ONG, da cooperativa. três secretários do governo Sarney o haviam
Sendo que, como coordenador de uma ONG e procurado oferecendo assistência médica, casa,
da cooperativa, se define como um ambienta- emprego, uma perna mecânica e carro. A per-
lista”, diz a pesquisadora. Helena Heluy, de- muta consistiria em ajuda política. Do episó-
putada estadual (PT/MA), comunga da afirma- dio, nasce a célebre frase “Minha perna é mi-
ção de Araújo sobre o não-reconhecimento nha classe”, quando o camponês recusa
da trajetória de Mané por seus pares de movi- emprego e a perna mecânica, que vem a adqui-
mento popular e partido em âmbito estadual rir após a cotização do movimento popular. O
e nacional. “A história de Mané é fantástica”, sindicato de Pindaré, nessa época, aglutinava
encerra a procuradora aposentada do Minis- cerca de 4 mil trabalhadores e trabalhadoras.
tério Público e histórica militante dos direitos Muitas almas sucumbiram durante a di-
humanos no Maranhão. tadura. As lembranças de amigos ainda povoam
A primeira bandeira defendida por a memória. No entanto, um nome não conse-
Mané era um melhor preço para a produção gue recordar. Justo o de uma jovem que o levou
do campo no Vale do Pindaré, de onde sua numa madrugada de São Paulo para o Rio de
família foi expulsa várias vezes. O Sindicato de Janeiro, após a perda da perna. “Estendo o meu
Trabalhadores Rurais de Pindaré foi fundado afeto a todos a partir da lembrança dessa moça.
em 18 de agosto de 1963, sob orientação do É Beatriz o nome da jovem”, resgatou da memó-
Movimento de Educação de Base (MEB). Em ria dias depois da nossa conversa. Lembra de Rui
julho de 1968, cinco anos após iniciar sua luta, Frazão, dado como desaparecido pelo regime,
um atentado ao sindicato vitima Mané. Em se- fala com carinho de Herbert de Souza, o Betinho.
guida, foi levado para a cadeia, onde, apesar Sobre Jair Ferreira de Souza, ex-secretário geral
de baleado no pé, não teve atendimento mé- da AP, diz: “Cabra porreta. Muito solidário. Nu-
dico. Oito dias se passaram, tempo necessário tro grande respeito por ele. Já é falecido. Tem
para a perna gangrenar. Levado para um hos- um companheiro que gostaria muito de poder
pital em São Luís, teve a perna amputada. ajudá-lo. Acho que o nome é Duarte Pacheco
Apesar disso, Mané lembra um capítu- Brasil, mora em São Paulo. É jornalista”, recupe-
lo engraçado durante o atentado. O médico ra da memória o líder camponês. 1 O relato dado a Ana Maria
Galano foi transformado no
João Bosco havia chegado da capital para tra- O militante popular aprendeu as primei- livro Essa terra é nossa (Vozes,
tar de um surto de malária. “O coitado não ras letras com a velha cartilha do abc e a Bíblia 1980) e é resultado de 20 ho-
ras de depoimento colhido em
conhecia nada. Estava em nossa assembléia. na Assembléia de Deus, resquícios de quando Paris em 1979.

NOV 2003 / DEZ 2003 41


E S P E C I A L

era evangélico. De 1976 a 1979, a contragos- da madrugada, e colocado num


to, viveu o exílio na Suíça – uma cicatriz de mar- avião. Só fui saber do meu destino
ca profunda. Sair obrigado do país para ele foi quando o avião pousou no Rio de
“um desaforo”. Não tinha alternativa. Teve de Janeiro e fui entregue ao Comando
optar entre se manter vivo e morrer. Sua vida do I Exército e levado para o Quartel
até hoje é dedicada ao movimento popular. de Polícia do Exército, na Tijuca. Ar-
Ex-companheiros, que optaram pelo poder rancaram a minha perna mecânica
institucionalizado, ocupando cargos em mi- e fui colocado nu dentro de uma
nistérios ou secretarias do governo, ainda “cela geladeira” (cubículo), onde era
mesmo quando o PT não havia ganho o poder alimentado apenas com pão e água;
federal, respeitam e admiram Mané. O líder defecava e urinava no mesmo local
camponês foi preso nove vezes. “Fui preso no em que me encontrava.
Pindaré. Depois segui para São Luís, Rio de
Janeiro, Salvador, Maceió, Recife e Fortaleza. Fui torturado inicialmente na cadeira
Enquanto nos outros quartéis a tortura comia do dragão, que é uma cadeira de fer-
solta, em Fortaleza a tortura era psicológica. ro, com braços e um buraco no as-
Fiquei misturado com presos comuns.” sento. Depois de amarrado na cadei-
ra, os torturadores enfiavam uma
barra de ferro, viravam para que fi-
Tortura nos quartéis casse com se fosse um pau-de-arara.
Foi durante os governos de Médici e Geisel Nessa posição era espancado com
que Mané conheceu a realidade dos porões cassetete e recebia choques elétricos
da ditadura. Prisão e tortura são assuntos que por todo o corpo. Em seguida era re-
não o animam; gosta mesmo é de política. Ain- tirado da cadeira do dragão e espan-
da assim deixa escapar que Romeu Tuma era cado com palmatória, cassetete de
um dos que comandavam a pancadaria nos borracha, murros e golpes de caratê
subterrâneos do que se convencionou chamar em todas as partes do corpo. Nu e
de anos de chumbo. sem a perna mecânica, eu não resis-
No requerimento2 entregue ao gover- tia em pé e caía, sendo que numa
no paulista, Mané afirma: ocasião fraturei o maxilar do lado di-
reito. Outra vez, fui colocado num
No 2 de janeiro de 1972 fui preso
carro e levado para um local que ti-
em Trufilândia, região do Vale do
nha piscina, onde fui amarrado com
Pindaré Mirim, e levado para o Dops
os braços atados às pernas e, como
[Departamento Estadual de Ordem
um porco, jogaram-me três vezes na
Política e Social] de São Luís, capital
água e quase morri afogado.
do Maranhão. Mais de um mês de-
pois, fui seqüestrado por agentes do No mesmo local, fui colocado num
Doi-Codi [Destacamento de Opera- poste entremeado aos braços, com
ções de Informações – Centro de Ope- as mãos algemadas e sem a perna
rações de Defesa Interna], às 4 horas mecânica, onde fui espancado por

2 Alguns dados foram colhi-


dos do livro Essa terra é nossa
e do requerimento de indeni-
zação baseado na Lei Estadu-
al 10.726/2001, encaminhado
ao governo do estado de São
Paulo em 2002 e deferido no RECEBENDO O TÍTULO DE CIDADÃO IMPERATRIZENSE E MEDALHA LANÇAMENTO DE SEU LIVRO: ESSA TERRA É NOSSA, EDITORA VOZES,
dia 17 de setembro de 2002. FREI EPIFÂNIO D’ABADIA DO PREFEITO JOMAR FERNANDES RECIFE, 1980

42 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

horas. Quando fui retirado, estava “Eles fizeram questão de dizer que a minha
roxo de espancamentos, palmatórias prisão não tinha nada com a Justiça. O pro-
e golpes de caratê. Tive de ser hos- blema é nosso. A Justiça foi incapaz de fazer
pitalizado, me davam banho de gelo o seu julgamento”.
para espalhar o sangue coagulado Mané só foi libertado depois da visita
no corpo. Depois que melhorei, fui do advogado Mário Carvalho de Jesus. No Bra-
retirado do hospital e levado para o sil e no exterior, aconteciam manifestações
quartel onde as torturas continuaram pela libertação do líder camponês. Até o papa
com a mesma brutalidade e sempre Paulo VI enviou telegrama para o presidente
com um capuz na cabeça. Amarram- Geisel, exigindo a sua libertação. Mané saiu
me numa grade e prenderam meu do Dops no dia 11 de dezembro de 1975. Sob
pênis com uma corda para impedir proteção das igrejas Católica e Presbiteriana e
de urinar e nessa situação fui deixa- da Anistia Internacional, seguiu para o exílio
do por dias, sem comer e sem beber. em Genebra, na Suíça. Enquanto o líder cam-
Quando fui retirado da grade, cheio ponês estava preso, um grupo suíço organi-
de dor, encontrava-me sem quais- zou o Comitê Internacional Manoel Concei-
quer condições de me movimentar. ção, mais tarde conhecido como Comitê em
Depois que melhorava era novamen- Solidariedade ao Povo Brasileiro. Além da Su-
te dependurado no mesmo lugar, nas íça, países como Inglaterra, França, Alemanha
mesmas condições e espancado com e Itália organizaram manifestações e elaboram
os mesmos aparelhos e com a mes- documentos exigindo a libertação de Mané.
ma violência durante horas e horas.
E assim continuaram as torturas du-
rante os sete meses em que fiquei De volta ao Brasil
desaparecido no Rio de Janeiro. Sindicatos, igrejas, Anistia Internacional e o
Após três anos e meio de prisão, Mané governo suíço colaboraram para a sobrevivên-
foi julgado em Fortaleza, em maio de 1975, cia de Mané durante o exílio. Os dias fora do
pela Auditoria Militar. Foi condenado a três Brasil eram dedicados à agitação política em
anos de cadeia e à cassação de direitos políti- países da Europa, África e até do Oriente Mé-
cos por dez anos, mesmo sem nunca ter vota- dio. Quando os dias no exílio se anunciavam
do ou mesmo possuir título de eleitor. “Como no fim, com seus companheiros organizou um
eu já estava há mais de três anos preso, fui encontro internacional de refugiados. A idéia
libertado. Depois, a minha advogada apelou de criação do PT e da CUT surgiu do encontro.
da sentença na instância superior em Brasília, A orientação deveria ser socialista. No fim de
e fui absolvido por unanimidade pelo Supre- 1979, já no Brasil, o nosso guerreiro integrou
mo Tribunal Militar, em 1976.” a comissão de criação do PT.
No requerimento encaminhado ao go- Produzido por Lula, Jacó Bittar e Olívio
verno do estado de São Paulo, Mané narra ain- Dutra, que compunham o grupo dos autênti-
da que: “Em maio de 1975, após a minha li- cos, o primeiro manifesto do PT foi considera-
bertação, fui para a casa do bispo dom Aloísio do “meio fraco”. Sem disfarçar o orgulho,
Lorscheider, então presidente da CNBB [Con- Mané recorda que aglutinou, junto com Paulo
ferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Eu era Matos Skromov, um outro grupo, que gerou
um cabra marcado para morrer. Doente, ame- uma segunda proposta de manifesto – a que
açado de morte e precisando de tratamento serve de guia até hoje. “Motivamos um deba-
médico, o bispo possibilitou a minha vinda te mais amplo. O manifesto foi gerado nessa
para São Paulo, onde fui recebido pelo dom discussão de grupos de trabalho”, afirma. A
Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano divergência é companheira de berço do PT.
Jaime Wrigth, que providenciaram a minha Obreirismo, linguagem pseudo-radical, lega-
internação no hospital Santa Catarina.” lismo e parlamentarismo foram acusações
Após recuperação no hospital, Mané trocadas pelas diferentes teses defendidas na
foi levado por amigos para descansar em Vi- fundação do partido, conta Perseu Abramo,
nhedo e, depois, para Osasco, na casa do pa- no jornal Movimento de fevereiro de 1980, ao
dre Domingos Barbe, onde ficou até ser se- narrar a fundação do partido.
qüestrado por policiais do Dops no dia 28 de Depois de Mário Pedrosa e Apolônio
outubro de 1975. No Dops paulista, as tortu- de Carvalho, segue o nome de Manoel Con-
ras recomeçaram. Foram 48 dias, conta Mané: ceição Santos no livro de fundação do Partido

NOV 2003 / DEZ 2003 43


E S P E C I A L

dos Trabalhadores, no Colégio Sion, em São Mané reconhece a importância do MST, em-
Paulo, 1980. Na ocasião do lançamento do bora tenha se desligado do movimento por
manifesto de fundação do PT, Mané dividiu a divergir da metodologia: “Os segmentos de
mesa com Sérgio Buarque de Holanda, Lélia oposição devem equacionar as diferenças. Nin-
Abramo, Mário Pedrosa e Moacir Gadotti, que guém deve queimar ninguém, ato comum em
representava o educador Paulo Freire na oca- algumas relações internas do movimento po-
sião. Mané colaborou diretamente na organi- pular. Devemos entender que o adversário se
zação do PT em Pernambuco, Paraíba e Rio encontra do outro lado”.
Grande do Norte, além de animar núcleos no Sobre o cenário atual do movimento
Ceará, na Bahia e em Sergipe. Com a certeza sindical, faz a seguinte leitura: “A conjuntura
de que não sairia vitorioso, encarou uma can- tem empurrado o movimento sindical para a
didatura ao governo de Pernambuco em 1982. prática que considero como novo peleguismo.
“Na propaganda da TV, só a foto. Aí alguém O peleguismo da negociação, de fechar a boca.
dava o currículo: trabalhador rural, preso não Devemos trabalhar a edificação da socioeco-
sei quantas vezes, expulso do país. Fiz o maior nomia solidária. Pois é certo que, se o capita-
sucesso na periferia de Recife”, conta o líder lismo puder arrancar o nosso olho, ele arran-
camponês. Tentaria também uma candidatura ca. Já está acontecendo isso”. Sobre a CUT,
ao Senado e à Câmara Federal pelo Maranhão, vaticina que “a Central não deve pensar ape-
também sem sucesso. nas em garantir emprego dentro de estrutura
capitalista, onde, cada vez mais, menos gente
é necessária na linha de produção. O horizon-
Uso coletivo da terra
te deve ser o de um projeto que se contrapo-
Mané sonha com uma sociedade diferente e nha ao capitalismo”.
sempre trabalhou por isso. Em São João das
Mangabeiras, sul maranhense, labuta com
A família
outras famílias na construção de uma área de
uso coletivo da terra. Na área, há terra reserva- O orgulho se estampa no rosto de Mané quan-
da para uso das famílias e uso da cooperativa. do ele se refere aos filhos: “Amo e admiro to-
“Não podemos labutar tanto, e o atravessador dos”. Mariana, fruto do segundo casamento
ganhar tudo. Na minha cabeça, não cabe essa com a advogada Denise Leal, foi concebida em
história de propriedade da terra. A terra para São Paulo. Nasceu na Suíça, após a saída do
nós é dos animais que nela vivem. Quando cárcere. Acaba de concluir o curso de Agrono-
chegamos, estava tudo aí. Que história é essa mia em São Luís. Entre os filhos, Mariana foi a
de propriedade privada? Essa terra é nossa!” que o líder camponês mais esteve próximo.
Apesar da idade e de toda a vida “Acredito que ela siga as pegadas deixadas por
dedicada ao movimento popular, prossegue mim.” O único homem entre os rebentos leva
incansável. Mantém as mesmas convicções de o nome do pai, fruto do primeiro relaciona-
antes quando iniciou a caminhada, nos idos mento, com Maria Rita Pinto Santos.
de 1962, quando os militares ensaiavam o Manoelzinho, como é conhecido, traça
golpe. “Para a história, esse tempo não signi- um belo perfil do pai: “A predisposição para
fica nada”, sentencia Mané – um colaborador sempre recomeçar presente em Manoel Con-
na organização do Movimento dos Trabalha- ceição é de uma grandeza incomensurável.
dores Rurais Sem Terra (MST) no Maranhão. Tamanha solidez ideológica, no entanto, não

EM FRENTE DA SEDE DO CENTRU-MA E DENTRO DA ÁREA ONDE A ENTIDADE DESENVOLVE O SISTEMA AGROFLORESTAL-SAF

44 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

tem conseguido ocultar totalmente, sobretu- trabalho. Fez parte do rebanho de nordesti- * Rogério Almeida
do, nos últimos dez anos, as suas profundas nos que seguiram para a cidade grande em Jornalista, cursa o
marcas de decepção, frente à vulnerabilidade busca de dias menos doridos. Antes de seguir Programa Internacional
de expressiva ou talvez majoritária parcela de o caminho de volta para o interior do Piauí, em Formação de
históricos companheiros e companheiras que, morou em São José dos Campos, São Paulo. Especialistas em

com relativa facilidade, encantam-se com os Rosa Rocha Albuquerque é nome da caçula, Desenvolvimento de
Áreas Amazônicas
apelos do consumismo e com a ilusão do fruto de um relacionamento com a alagoana
(Fipam), no Núcleo
pseudopoder de um estado neoliberal e bur- Neide, na época, secretária da Diocese em Re-
de Altos Estudos
guês; esquecendo-se dos nominais e anôni- cife, Pernambuco. Rosinha, como a chama,
Amazônicos (Naea) da
mos companheiros que, para ver brotar a es- deseja cursar História e Antropologia. Universidade Federal
perança, regaram-na com o próprio sangue. A Ter abandonado os filhos sem poder do Pará. E-mail:
importância que Manoel Conceição atribuiu e ajudá-los, colaborar na educação ou aninhá-los 38marabala@globo.com
continua atribuindo ao movimento popular, provocou, no peito do militante, profunda dor,
ou melhor, à classe trabalhadora só é igual à que só se dissipa quando a história é conversar
que ele atribui à sua própria vida”. com os companheiros trabalhadores no campo
Raquel, a outra filha com Maria Rita, é ou na cidade. Sobre as mães de seus filhos, con-
dirigente sindical em Boqueirão, Piauí. Os cin- sidera-as guerreiras. Tiveram um papel funda-
co netos que Mané possui são de Raquel. A mental na educação das crianças, enquanto se-
mais velha da prole correu o país atrás de guia a vida de militante, fugido ou preso.

Cerrado é vida
Construir um modelo de desenvolvimento Souza, coordenador geral do Centru, pela
que respeite o ser humano e o meio ambi- parceira de luta de velha data e presidente
ente, contemple a agricultura familiar e da Coopevida, Sonia Maria Miranda, e por
promova a solidariedade. Esse é o objetivo Marciano Miranda, presidente do sindicato
de um projeto com nome pomposo: Proje- dos Trabalhadores Rurais de Mangabeiras.
to de Desenvolvimento Sustentável e Soli- Na platéia, estudantes, trabalhadores e tra-
dário (PDSS) – O Cerrado é Vida. Os coor- balhadoras rurais de municípios vizinhos,
denadores são trabalhadores e trabalhado- pesquisadores da Universidade Federal do
ras rurais do Maranhão, organizados em Maranhão (UFMA), religiosos, representan-
sindicatos, associações de pequenos pro- tes do movimento popular de estados vizi-
dutores e cooperativas. nhos como Pará e Tocantins, representante
A região é o cerrado maranhense, oeste do Fórum Carajás, articulação de entidades
e sul do estado, área de transição da Ama- populares dos estados de Tocantins,
zônia, região marcada pela monocultura da Maranhão e Pará, representantes do Banco
soja, onde japoneses, russos e holandeses, do Brasil e do Banco do Nordeste, do Servi-
gaúchos e paranaenses foram os coloniza- ço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
dores. Além da soja, colaboram para a der- Empresas (Sebrae), Pólo Sindical (Fetaema) e
rubada do cerrado uma floresta de eucalipto da Confederação dos Trabalhadores na Agri-
da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), cultura (Contag).
carvoarias (que também usam o babaçu para O projeto Cerrado é Vida propõe uma
produção de carvão) e siderúrgicas. A re- nova racionalidade no trabalho com a terra.
gião está agendada para ser cenário de no- A idéia é desenvolver uma produção diversi-
vas hidrelétricas e expansão da sojicultura. ficada, consorciando arroz, milho e feijão
O marco histórico do projeto foi o Dia com frutas e madeiras permanentes e ou-
do Trabalhador Rural, comemorado em 25 tras atividades, como caça, pesca e sistemas
de julho, em 2002, em São Raimundo das agropastoris de pequenos animais. O proje-
Mangabeiras, sul maranhense, município de to busca um modelo de desenvolvimento
15 mil habitantes. A comemoração dessa que não privilegie somente o aspecto eco-
data prometia uma maratona: seminário, nômico, mas que promova a integração
teatro, almoço, carreata, bingo de bezer- entre a natureza e o ser humano.
ro, ato público, lançamento da pedra fun- Diante da necessidade de criação de
damental do projeto e forró. A coordena- alternativas concretas, o projeto Cerrado é
ção ficou por conta da CCAMA, do Centru Vida atua para que os trabalhadores sejam
e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de os autogestores de suas experiências. Atu-
São Raimundo das Mangabeiras. almente, incorporam essa idéia oito coo-
À mesa estavam Manoel Conceição San- perativas e oito sindicatos dos trabalhado-
tos, animador do projeto e homenageado res rurais, sob a coordenação da CCAMA e
do dia, ladeado pelo sindicalista Joaquim sob a assessoria do Centru.

NOV 2003 / DEZ 2003 45


MUNDO PELO MUNDO
Jamile Chequer
PE

Sem água, sem comida Ciência 1 x 0 hepatite Orçamento latino

A organização Fundo Mundial para A luta contra a hepatite C ga- Com o objetivo de produzir infor-
a Natureza (WWF, na sigla em in- nhou mais uma aliada: uma nova mações para que as práticas asso-
glês) publicou recentemente um droga (Biln 2061) desenvolvida ciadas ao orçamento público sejam
relatório enfatizando a necessida- por cientistas na empresa alemã mais transparentes, acaba de ser
de de aumentar a produção mundi- Boehringer Ingelheim. Ela evita a lançado o Índice de Transparência
al de alimentos para acompanhar duplicação do HCV, vírus da hepa- Orçamentária (ITO) na América
o crescimento demográfico do pla- tite, que pode causar danos per- Latina. A primeira versão surgiu
neta. A expectativa é de que, nos manentes no fígado e até levar à ao longo dos anos de 2000 e 2001,
próximos 50 anos, tenhamos mais morte. Não há vacinas contra a e apenas cinco países compunham
2 bilhões de pessoas. doença. A transmissão se dá pelo o quadro estudado. Hoje, o projeto
O documento mostra ainda que contato com sangue infectado ou contempla dez países. No Brasil, o
países como China, Paquistão, por sexo sem camisinha. Ibase foi o responsável pela pes-
Austrália e Espanha alcançaram Cerca de 170 milhões de pes- quisa, que teve o apoio da Funda-
ou estão próximos de alcançar o soas no mundo têm HCV. As dro- ção Ford e recursos da Fundação
limite das fontes de água renová- gas atuais podem causar efeitos Open Society Institute.
veis. O diretor do Programa das colaterais desconfortáveis. “A Biln “Participação no orçamento
Águas da instituição, Jamie 2061 parece ser segura e bem to- não é uma qualidade da sociedade
Pittock, revelou que, se não utili- lerada”, declarou para a revista na América Latina”, constata Jú-
zarmos de maneira mais adequada Nature o vice-presidente sênior da lio Silva, pesquisador do Ibase. No
a água destinada para as planta- empresa, Paul Anderson. Brasil, a percepção das pessoas
ções, teremos sérias conseqüênci- Porém, ainda são necessários está mais apurada pelas práticas
as para alcançar a meta de dimi- mais testes para verificar possí- de orçamento participativo e
nuir pela metade o número de veis problemas a serem desenvol- pelo processo recente do Plano
pessoas famintas até 2015. vidos ao longo do tempo, como o Plurianual (PPA). “Isso mostra que
Os(as) governantes precisam aumento da reprodução viral ou a é possível que a sociedade partici-
distribuir melhor – e de forma resistência do HCV à droga. Mes- pe do orçamento, apesar de não
mais justa – a água entre os(as) mo assim, estudiosos(as) chegaram estar efetivamente qualificada”,
agricultores(as). “Governos de- a dizer que os resultados a curto diz Júlio. O Brasil é o país mais
vem fazer mais do que promessas. prazo são extraordinários. bem colocado na região em ter-
Junto com a indústria alimentícia mos de percepção de participação,
e consumidores, devem começar com 20%. México tem 16%; Co-
uma nova revolução na agricultu- lômbia, 15%; Chile, 14%; Nicará-
ra. Algo que garanta suprimento gua, 12%; Argentina, 11%; Peru,
de comida e água para todas as 7%; Costa Rica, 8%; El Salvador,
pessoas”, finaliza Jamie. 5%; e Equador, 3%.

46 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
LO MUNDO PELO MUNDO PELO MUNDO

Censura na cara Mochila no pós-guerra Aborto declarado

A bruxa está solta na África. No O Fundo das Nações Unidas para O estado do Texas, Estados Uni-
começo de outubro, os governos a Infância (Unicef) começou em dos, está com novas regras para o
de Zimbábue, Nigéria e Camarões novembro de 2003 uma campa- aborto. Proposto pelo Conselho
fecharam rádios privadas e jornais nha para que as crianças liberianas de Saúde da Mulher, aquelas que
e prenderam editores(as) e repór- voltem às aulas. Há expectativa quiserem fazer um aborto terão
teres. Isso foi considerado por di- de que 75 mil meninos e meninas de fornecer documento de identi-
versas organizações, entre as quais peguem seus livros para estudar. dade ou assinar protocolo com-
Repórteres Sem Fronteiras, como Algumas crianças estudarão pela provando a idade. A proposta foi
um esforço para eliminar o direito primeira vez. feita, entre outras razões, para
de informação. Serão treinados(as) 20 mil que não aconteçam mais abortos
A velha discussão de até onde o professores(as) e melhoradas em menores de idade sem o con-
jornalismo pode ir nas investiga- 3.700 escolas. Serão distribuídos sentimento de pais e mães.
ções sobre os governos voltou à milhares de kits escolares com Porém, a proposta vem cau-
tona. Na maior parte das vezes, l i vros, giz, lápis e guias para sando indignação em quem defen-
qualquer suspeita publicada é moti- professores(as). “Crianças que de o direito ao aborto. Um dos
vo para repressão e censura. Re- cresceram conhecendo nada além artigos delega aos(às) médicos(as)
centemente, o Instituto de Mídia da guerra precisam de educação e a função de garantir que tomarão
do Sudeste da África (Misa, na si- um futuro em seu país. Educação medidas para manter a vida e a
gla em inglês) lançou campanha estabelece um caminho além da saúde da criança nascida viva. Ou-
para chamar a atenção para viola- pobreza”, afirma Carol Bellamy, tro artigo estabelece que as mu-
ções contra jornalistas da região diretor executivo do Unicef. lheres recebam informações sobre
da Comunidade em Desenvolvi- É um momento delicado na o aborto um dia antes de entrar na
mento do Sul da África (Sadc, na Libéria. O acordo de paz foi re- clínica. Defensores(as) do direito
sigla em inglês). Sadc jornalistas cém-assinado em outubro, e o país ao aborto propõem, nesse caso,
sob o fogo: grite por uma mídia passa por uma fase de transforma- que as mulheres rubriquem todas
livre e aberta é o tema. ções. Para Bellamy, essa é uma as seções de um formulário dizen-
A delegação do Misa tem visi- brava campanha em um momento do que receberam todas as infor-
tado os países para mapear a si- de fragilidade do processo de paz. mações obrigatórias.
tuação da mídia. A maior preo- “É certo que os primeiros dividen- As regras estarão abertas a co-
cupação é com o Zimbábue, onde dos da paz sejam pagos às crian- mentários até o início de dezembro
jornalistas precisam ter registro no ças, que suportaram tanto por de 2003. No mês seguinte, o con-
governo antes de trabalhar. muito tempo e têm o futuro em selho definirá a medida definitiva.
suas mãos”, justifica.
Fonte: www.ips.org

NOV 2003 / DEZ 2003 47


INTERN
INTERNACIONAL
Beatrice Verri Whitaker*

Imigrante,
cidadania suspeita

EMYGDIO DE BARROS

48 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ACIONAL
Desde a formação da República, a França lida
com a situação dos imigrantes. Até o fim da
Segunda Grande Guerra, eles são originários,
sobretudo, da própria Europa. O contexto muda
por necessidade de reconstrução e de desen-
De vez em quando, algumas vozes se
erguem em sua defesa. A sucessão de perse-
guições e condenações de indivíduos e asso-
ciações que apóiam os sem-papéis motivou
alguns cientistas, personalidades políticas,
volvimento econômico do país. Inicia-se, assim, do teatro e do cinema, representantes de
uma fase de importação massiva da mão-de- ONGs etc. a lançarem o “Manifesto dos De-
obra das antigas colônias, que durará até a cri- linqüentes da Solidariedade”, em maio de
se da década de 1970. Essa primeira fase é 2003. Trata-se de uma resposta ao projeto
permeada de convenções sobre a mão-de-obra de lei sobre imigração proposto pelo gover-
e de acordos bilaterais com as ex-colônias e com no Chirac. É um apelo à desobediência civil
os demais países de emigração. Progressiva- diante das acusações e da criminalização cres-
mente, os imigrantes vão se beneficiando da cente dos que lutam pela solidariedade aos
legislação de proteção social, como as pessoas imigrantes. Segundo o texto do documento,
de cidadania francesa. Mas a mudança da con- “a cada ano na França, apesar do artigo 21
juntura intervém nos debates nacionais e inter- da lei 3 sobre a entrada e a estadia dos es-
nacionais. Estabelece-se, então, que a duração trangeiros, centenas de associações e milha-
e o tipo de estadia de pessoas estrangeiras em res de cidadãos acolhem, ajudam, informam
solo francês seriam critérios para definir os di- sobre seus direitos aos estrangeiros”. Mais
reitos de uns em relação aos outros. A seleção de 15 mil pessoas e mais de 300 organiza-
e a hierarquização dos direitos dos indivíduos, ções assinaram o manifesto. Em outubro de
em função das nacionalidades, são acentuadas 2003, várias centenas de pessoas reunidas
e, em seguida, sistematizadas pelo Estado fran- em Paris denunciaram o projeto de lei em
cês.1 Os direitos dos indivíduos são, dessa for- discussão no Senado, 4 reafirmando as de-
ma, condicionados à nacionalidade. terminações contidas no manifesto.
Segundo Viet, “entre 1948 a 1981, de Adotado pelo Parlamento em julho
um total de 2,35 milhões de imigrantes assa- de 2003, esse projeto de lei transforma imi-
lariados, mais de 1,4 milhão foram regulariza- grantes em defraudadores potenciais: cúm-
dos”.2 Ter situação irregular significa não ob- plices dos patrões, se estes os empregam
ter documentação necessária para trabalhar, clandestinamente; caso reclamem o estatu-
ficando impossibilitado de gozar dos mesmos to de asilado, tendo bebês, tornam-se sus-
direitos que a população francesa. Resta-lhes, peitos; tornam-se suspeitos também de ca-
então, o trabalho clandestino. Esse fenômeno samento “branco” (falso), quando se casam
permanece até hoje, criando um exército de com uma pessoa francesa etc. São corriquei-
reserva dócil e à mercê das chantagens dos ras e coerentes com a política européia de
patrões e da política de austeridade dos su- fechamento das fronteira as prisões e as de-
cessivos governos. Ou seja, a França acomoda portações de estrangeiros extracomunitári-
a população imigrante às necessidades da eco- os nesses últimos anos.
nomia capitalista, em detrimento dos direitos A França protege cada vez menos as
dos indivíduos. Com o apoio da União Euro- pessoas refugiadas que pedem asilo. Infrin- 1 MERCKLING, Odile. Immigration
péia (UE), a política de imigração da França gindo convenções internacionais ou mesmo et marché du travail. Ciemi:
L’Harmattan, 1998.
serve, de certa maneira, como referência para tratados bilaterais, as medidas repressivas
2 VIET, Vincent. La France
os países tradicionalmente mais progressistas são acompanhadas de campanhas antiimi- immigrée. Paris: Fayard, 1998.
da região para enrijecer as medidas concer- grantes sutis, para influenciar uma parte da 3 “Toda pessoa que […], por
nentes às pessoas estrangeiras. sociedade e, conseqüentemente, as institui- uma ajuda direta ou indireta,
facilitar ou tentar facilitar a
É nesse contexto que nasce, em março ções. Um dos clichês mais hipócritas utiliza- entrada, a circulação ou a es-
tadia irregular de um estran-
de 1996, em Paris, o Movimento dos Sem-Pa- dos por certos políticos da esquerda ou da geiro na França ou no espaço
péis. Isso foi um marco histórico, consistindo direita é o do “perigo de invasão dos estran- internacional citado será pu-
nida com prisão de cinco anos
no único movimento que se mantém até hoje, geiros na Europa, pois não se pode socorrer e com multa de 30 mil euros”,
Artigo 21 da Ordenança de 2
com altos e baixos. Defendendo-se como po- toda a miséria do planeta”. No entanto, sabe- de novembro de 1945.
dem, os sem-papéis recorrem às greves de se que o maior fluxo migratório se dá no 4 O artigo 17 do projeto de
fome coletivas, ocupações de locais públicos, interior mesmo dos continentes dos países lei prevê o confisco, para pes-
soas físicas ou jurídicas, de
manifestações de rua etc. Por vezes, longe da do Sul. O mesmo fenômeno se dá com as todos os seus bens, móveis ou
imóveis.
solidariedade militante dos partidos políticos pessoas refugiadas, “pois eles acolhem no
de esquerda ou mesmo das ONGs progressis- seu solo 12 dos 14 milhões de refugiados 5 NOIRIEL, Gerard. Réfugiés et
sans-papiers. Pluriel: Hachette
tas, seguem a luta com dificuldades. de que conta o planeta”. 5 Litteratures, 1998.

NOV 2003 / DEZ 2003 49


I N T E R N A C I O N A L

Tais atitudes facilitam a tarefa de neo- organismos internacionais – Fundo Monetário


nazistas e partidos de extrema-direita. Eles pre- Internacional (FMI), Organização Mundial do
gam a “prioridade de emprego aos nacionais”, Comércio (OMC) e Banco Mundial. Essa situa-
a “expulsão das alunas de turbante das escolas ção, que incitou a multiplicação da dívida exte-
públicas” etc. E influenciam uma parte da po- rior e privatizou os serviços públicos, provocou
pulação em direção aos seus impulsos nacio- a exclusão de populações inteiras do acesso aos
nalistas e de superioridade cultural (até mes- direitos fundamentais – saúde, educação, ha-
mo étnica) européia, levando certos políticos a bitação – levando 1,3 milhão de seres huma-
defender as mesmas idéias e banalizando sen- nos a viver abaixo do limite da pobreza. É a
timentos xenófobos. É indicativo o fato de o desordem mundial que se instala.7 Os países
governo francês conduzir uma ofensiva contra do Terceiro Mundo vivem a maior crise de suas
as mulheres com a idéia de uma lei contra o histórias, culminando com a implosão do “so-
turbante das meninas nas escolas públicas, cialismo real” nos países do Leste Europeu, fa-
penalizando-as e estigmatizando a população zendo aumentar os fluxos migratórios de po-
muçulmana. Enquanto isso, dirigentes das es- pulações inteiras desses países em direção aos
colas privadas deleitam-se com as expulsões das países da Europa Ocidental.
meninas: mais receita para seus orçamentos. Diante de tal conjuntura, é normal que
A ofensiva contra as mulheres imigran- os povos procurem fugir da fome e da miséria.
tes é favorecida por uma legislação que proí- Anormal é o número de imigrantes mortos em
be a regularização das esposas de homens solo europeu na tentativa de entrar num dos
polígamos – estes devem escolher uma delas continentes mais ricos do planeta. Um fato
como esposa, as outras devem sair do país. Os chocante, acontecido em 2000, foi a morte
dispositivos de regularização favorecem, so- por asfixia de 58 imigrantes asiáticos dentro
bretudo, as mulheres casadas, as mães de fa- de um caminhão frigorífico, quando tentavam
mília e as filhas de imigrantes, em detrimento entrar na Grã-Bretanha pelo túnel sob o Canal
das mulheres solteiras, divorciadas, separadas da Mancha. Na costa grega, 800 curdos foram
ou repudiadas. Elas perdem seus papéis fran- abandonados num barco em novembro de
ceses quando decidem separar-se dos mari- 2001. Em 2002, foram contabilizados mais de
dos. Tal situação gera situações dramáticas por 60 mortos na costa de Tarifa, Espanha. A esses
causa da chantagem dos maridos, companhei- se somam mais de 900 imigrantes mortos nas
ros, pais ou irmãos sobre elas.6 águas do estreito de Gibraltar – contabilizados
apenas os cadáveres que apareceram nas cos-
tas e que são detectados pelos guardas civis.
Continente ou fortaleza?
Além dessas mortes, há ainda aquelas dentro
As dificuldades de imigrantes na França não é das prisões, por suicídios suspeitos.8 Em ju-
exceção, mas é a regra na UE. Os deslocamen- lho de 2003, enquanto 15 chefes dos Estados
tos de povos em busca de melhores dias é uma europeus se reuniram na estação chique de
constante na história. Em meados do século Porto Carrasco, centenas de imigrantes vindos
XIX, iniciou-se na Europa um grande movimen- da África em dois navios pereciam pouco a
to de população proveniente da Itália, Irlanda, pouco ao largo do porto de Sfax, Tunísia, e na
Polônia e Bélgica para vender a força de traba- costa de Lampedusa, uma ilha italiana. A mai-
lho na França, Alemanha, Suíça, Grã-Bretanha oria morreu. Em outubro de 2003, 85 somali-
e mesmo em outros continentes. A Segunda anos procuravam chegar à Itália de navio. So-
Grande Guerra e a crise da década de 1970 mente uma dezena foi resgatada bastante
mudaram a situação da mão-de-obra européia. debilitada nas costas da Sicília, Itália.
As autoridades incentivaram a imigração Desde os acordos de Schengen, assina-
extracomunitária para limitá-la e, em seguida, dos por cinco países europeus, em 1985, ins-
controlá-la e expulsá-la segundo as necessi- taura-se na prática a Europa policiada, fechada
dades do sistema. A liberdade de circulação e aos estrangeiros. A aparição do Sistema de In-
6 WHITAKER, Beatrice Verri. Donne
immigrate e mondializzazione.
de instalação das pessoas torna-se, assim, uma formação de Schengen (SIS), dispositivo de
In : Donne in movimento. Pisa: BFS reivindicação primordial nas lutas pela eman- fichamento dos estrangeiros, vai transformá-
edizione, 2002.
cipação dos indivíduos. los em sujeitos suspeitos, potencialmente peri-
7 TOUSSAINT, Eric. La bourse
ou la vie. Paris: Editions As últimas décadas caracterizam-se por gosos. É a Europa-fortaleza. São exigidos vistos
Syllepse, 1998. Segundo dados um contexto de circulação de capitais e merca- de entrada aos países da UE nos controles de
do Pnud.
dorias, submetendo os países do Sul às exigên- fronteira (aeroportos, estações, portos etc. são
8 La Inmigración. El País, 16
jun. 2002. cias do sistema financeiro internacional e dos reforçados). São exercidas enormes pressões

50 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMIGRANTE, CIDADANIA SUSPEITA

sobre os profissionais das empresas de viagem para os vistos. Trata-se de um fichário com os * Beatrice Verri
para que assumam atribuições de polícia. As vistos concedidos pela UE, contendo os dados Whitaker
medidas de controle e vigilância de informa- biométricos dos indivíduos (impressões digi- Representante da
ções não cessam de multiplicar-se. O Europol, tais, íris dos olhos etc.). Nos próximos anos, Federação das
organismo policial europeu criado em 1994, 140 milhões de euros poderão ser emprega- Associações de

estende suas competências em 1999 para o dos no projeto.10 Solidariedade com os


Trabalhadores Imigrantes
controle dos fluxos de imigração com o pretex- Num discurso baseado na integração de
(Fasti) no Fórum Social
to da busca de filões mafiosos.9 Itália e Espanha imigrantes na sociedade européia, na luta con-
Mundial
utilizam o Europol como instrumento de caça tra o trabalho clandestino e contra o tráfico de
aos imigrantes. Esse organismo passa progres- pessoas, os líderes da UE tomam medidas que
sivamente de uma missão de informação e de não fazem outra coisa senão favorecer o traba-
análise para uma missão ativa em todos os do- lho não-declarado a fim de baixar o custo da
mínios da segurança. força de trabalho, de fazer subir os preços dos
Governos e autoridades européias mul- traficantes de imigrantes e de provocar fortes
tiplicam as reuniões de cúpula, culminando divisões sociais entre trabalhadores de origens
com acordos, convenções e tratados. Os go- diferentes. Na realidade, os imigrantes são uma
vernos dos Estados passam a estudar os me- espécie de cobaias da política de flexibilidade
lhores argumentos diante dos eleitores, a fim exigida pelos patrões: arrocho salarial, aumen-
de modificar, adaptar ou elaborar suas legisla- to das horas de trabalho e perda de conquistas
ções internas. Instalam-se os dispositivos de sociais importantes. A própria legislação traba-
regularização de estrangeiros, de condições lhista européia discrimina os direitos entre na-
draconianas, para permanecerem em solo eu- cionais e estrangeiros.
ropeu. Em suma, instala-se a banalização da Os dirigentes da UE encontram-se numa
lógica repressiva e de suspeição, favorecendo situação contraditória: nem dão conta dos
comportamentos conservadores e fascistas de 18 milhões de imigrantes estabelecidos no con-
diferentes setores da população. tinente, nem conseguem viabilizar a Europa-for-
O Tratado de Amsterdã (1998) confir- taleza, amplamente difundida pelos meios
ma as diretivas do Tratado de Maastricht neofascistas por meio do slogan “imigração
(1992), que prevê a harmonização da política zero”. Alem do mais, a Organização das Nações
de controle da imigração entre os Estados. Os Unidas (ONU) e autoridades da Organização para
países mais abertos em relação à entrada dos a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
imigrantes são obrigados a submeter suas (OCDE) têm advertido as populações européias
políticas às disposições de Schengen e das da necessidade de importar 50 milhões de imi-
novas legislações. A Itália é um dos exemplos grantes antes de 2050 a fim de assegurar cresci-
mais significativos: em 1998, pressionado pelo mento econômico estável e as pensões das pró-
primeiro-ministro francês da época, Lionel ximas gerações.11 Ao mesmo tempo, os governos
Jospin, o governo italiano assina a sua adesão devem enfrentar a chegada de novos imigran-
a Schengen. Paralelamente, os aparelhos de tes, cujas cifras estão sempre aumentando. Com
controle policial estão em constante progres- o desenvolvimento da mundialização, as guer-
so. Um dos exemplos é o dispositivo do ras e os conflitos regionais não cessam de proli-
Eurodac, que consiste na utilização do méto- ferar. As populações vítimas de tais conflitos –
do de comparação das impressões digitais das kosovares, curdos, afegãos, iraquianos, palesti-
pessoas, mesmo de jovens a partir de 16 anos, nos, chechenos etc. – também não cessam de
que pedem asilo aos países da UE. fugir dos perigos de guerra. 9 Le Monde, 1 jun. 2002.

Depois do atentado de 11 setembro de Os 450 milhões de europeus dos 25 10 Site do Parlamento Europeu.

2001, o Europol vem cumprindo missões para países da UE encontram-se presos numa arma- 11 La Inmigración. El País, 16
jun. 2002.
desenvolver o controle da Europa, sob a dire- dilha. Ou lutam pela igualdade dos direitos
12 FASTI. Droits de l’homme, la
ção dos ministros europeus. A sucessão de lí- entre os povos presentes no solo europeu para Fasti accuse: Corlet, 1999. Essa
deres da UE não cessa de atacar imigrantes e construir uma relação de forças ou transfor- é a posição da Federação das
Associações de Solidariedade
refugiados de maneira cada vez mais centrali- mam-se em inimigos da população estrangei- com os Trabalhadores Imigran-
tes (Fasti), uma ONG que
zada. No primeiro semestre deste ano, vários ra, correndo o risco de perderem seus direitos. agrupa, desde 1966, cerca de
países da UE fretaram aviões, intensificando Não há outra alternativa senão lutar contra esta 70 associações locais espalha-
das pela França. Participa das
assim os “vôos agrupados” para a expulsão nova ordem mundial, exigindo a abertura das campanhas pelo direito ao asi-
lo com outras organizações
de imigrantes extracomunitários. Em nome da fronteiras aos povos, pela livre circulação e ins- (Anistia Internacional, Liga dos
luta anticlandestina ou antiterrorista, aprova- talação dos indivíduos e pela igualdade dos Direitos Humanos, Gisti etc.),
editando o jornal de campa-
ram a criação de um banco de dados comum direitos entre nacionais e estrangeiros.12 nha Confluencias.

NOV 2003 / DEZ 2003 51


ENTRE ENTREVISTA

VISTA
Por Marcelo Carvalho

Conhecemos partes avulsas de certas


regiões do Brasil: ritmos, costumes, pen-
samentos, religiosidades etc. A idéia do
todo ninguém pode ter, pois o Brasil é
um país que, por suas contradições, es-
capa-nos constantemente. O escritor e
dramaturgo Alcione Araújo, mineiro de
Januária, morador do Rio de Janeiro, é
um desses teimosos que não abando-
nam a idéia impossível (mas sedutora)
Alcione Araújo

de Brasil, de compreender o país pela


palavra, pela ficção, pela dimensão hu-
mana da realidade.
Sua obra teatral está reunida em três
volumes sob o título geral de Teatro de
Alcione Araújo (Civilização Brasileira,
1999). São 12 peças, entre elas Há vagas
para moças de fino trato (1974), a mais
antiga incluída nessa coleção, A prima-
dona (1990) e Sob neblina use luz baixa
(1976). Entre as suas obras televisivas
está o roteiro do seriado Malu mulher,
um marco da TV brasileira.
É cronista de Democracia Viva, escreve
semanalmente para o Estado de Minas
e pôs o ponto final em dois roteiros para
cinema: Hotel Brasil e Orquestra de
meninos. Em seu único romance
publicado, Nem mesmo todo o oceano
(Record, 1998), recompõe a atmosfera
de nosso passado recente sob a ditadura
militar. Está escrevendo agora o que
poderá ser seu segundo romance
(garante já ter quatro capítulos) e a
coletânea de ensaios sobre filosofia Três
damas infiéis, sobre a palavra, a imagem
e a cultura. Que venham à luz.

52 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
Já podemos análisar o Ministério de espectadores passivos, ou seja, metade da
da Cultura no governo Lula? população. O Brasil é muito grande e com uma
Alcione Araújo – Ainda não dá porque população de baixa escolaridade.
não expuseram nenhum projeto até agora. Como seria o caráter geral dessa
Estamos vindo de oito anos de governo FHC política cultural?
sem projetos definidos e ainda não há – ou Alcione Araújo – Precisa ser pensada es-
não foi mostrada – uma política cultural es- trategicamente, para os próximos 20, 30 anos,
tabelecida. É preciso contemplar toda a po- para que, assim, sobreviva aos solavancos
pulação de 173 milhões de habitantes do conjunturais da política. Não dá para pensar
Brasil, não dá mais para fazer política públi- em projetos de quatro anos para um país com
ca para uma minoria. O que existe são as o tamanho e a complexidade do Brasil. Do con-
ações que se apóiam nas leis de renúncia trário, estaremos presos aos eventos, que aca-
fiscal, que outorgam aos empresários a es- bam sendo fatos políticos e eleitorais. Esse es-
colha dos projetos artísticos que serão pro- pírito precisa até extrapolar: é preciso pensar o
duzidos no país. Quer dizer, esses projetos país a médio e longo prazos. Basta de atender
têm de ser convenientes às estratégias de apenas a demandas circunstanciais e emergen-
marketing das empresas. Por um lado, as ciais. Ao pensar dessa forma, a primeira ques-
leis de renúncia fiscal viabilizam projetos. tão que se coloca é a da educação e da cultura.
Mas, por outro, são uma espécie de filtro Qualquer revolução que se pense hoje no
ideológico que domestica a produção cultural. mundo passa por aí. É preciso pensar a univer-
Em um país como o nosso, o mercado não sidade, mas não só. Temos também de aprimo-
pode ser a instância definidora da produção rar a educação como um todo, oferecer a mais
cultural. A baixa escolaridade da população sublime das fruições estéticas e, ao mesmo tem-
brasileira faz com que suas preferências es- po, contemplar as manifestações culturais que
téticas reproduzam o que tem sido ofereci- emanam espontaneamente nos mais diversos
do, que é, basicamente, os valores veicula- rincões do país. É preciso respeitar a diversida-
dos pela televisão e pela indústria de entre- de, vencer a fala estética do eixo Rio–São Paulo.
tenimento. O papel do Estado é fundamental Veja o caso do cinema. Há muitos filmes
tanto na cultura como na educação. que as empresas não financiam. Quem não
Aliás, os três ministérios que acompanho está no padrão global está fora. Não tenho
mais de perto – Cultura, Educação e Meio Am- nada contra a Rede Globo entrar no mercado
biente – parecem ainda estar se articulando. de cinema, mas é preciso também que tenha-
Eu os vejo sempre na defensiva, tentando im- mos filmes pernambucanos, brasilienses, o
pedir que determinada lei seja aprovada. Quais país é muito diversificado. É empobrecedora a
as políticas que vão emanar desses ministérios? uniformização. Conseguiram uniformizar a
Como as pessoas que querem produzir cine- maneira de se vestir, de se falar, os valores,
ma, teatro ou música farão quando seus pro- tudo no Brasil ficou muito parecido.
jetos não forem do agrado dos empresários? Você citou os ministérios da Cultura,
O Estado precisa ter compromisso com a área da Educação e do Meio Ambiente.
cultural, ter uma política cultural que seja in- E quanto ao resto do governo?
dependente do capitalismo hegemônico, uma Alcione Araújo – Desconfio de alguns va-
política pública que beneficie a produção crí- lores instalados no Ministério do Desenvolvi-
tica e alternativa ao establishment. mento, da Indústria e do Comércio Exterior,
Na verdade, meu olhar está voltado muito por exemplo. O ministro da Agricultura, Pecu-
mais para o cidadão. A questão não é a de que ária e Abastecimento disse que o mercado é
o Estado tenha obrigação de dar dinheiro para que vai definir se teremos ou não soja transgê-
o artista. Em geral, são os artistas e produto- nica. Ora, elegemos nossos dirigentes para que
res que falam sobre políticas públicas para a eles apontem os caminhos, e não para que de-
cultura, o que acaba por eclipsar um direito volvam a questão a uma população de baixa
constitucional de acesso aos bens culturais. escolaridade e mal informada que não acom-
O que o Estado faz – ou deveria fazer – é panha as inovações técnico-científicas e não
financiar os artistas para assegurar ao cida- sabe as conseqüências que isso pode ter.
dão esse direito constitucional, pois as pes- Saímos do governo passado, dos oito anos
soas não estão participando da vida cultural de FHC, pior do que estávamos. Certo, houve
do país, apenas da indústria do entreteni- a estabilização da moeda, mas hoje já acho
mento. Mesmo assim, são apenas 80 milhões limitada essa interpretação do mundo pela

NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 53
E N T R E V I S TA

economia, sabia? Esse discurso de colocar o sentido em que ela lhe ocorreu. Como sem-
capital como sujeito da história já se esgotou. pre, não existe nada isolado na natureza nem
Eu quero o ser humano como sujeito da história. na sociedade dos homens – por isso, a Teoria
Apesar disso, não estou desesperançado da Complexidade afirma que cada fato influ-
com relação ao governo Lula. Mas gostaria de encia e é influenciado por todos os demais
que a mesma altivez que ele tem demonstrado fatos, até mesmo os mais remotos.
nas questões de política externa também se A arte e a comunicação são os
demonstrasse na política interna. Internamen- fundamentos da cultura?
te, as políticas estão tímidas, e a demanda do Alcione Araújo – É evidente que arte e
país é enorme. Educação, cultura e meio am- comunicação são destacados elementos de
biente são partes integrantes da cidadania. cultura. Mas são várias as culturas. A palavra
E são exatamente os três ministérios que cui- cultura vem de agricultura. É o cultivo, a plan-
dam dessas áreas os menos contemplados. tação ou a criação de determinados bens ou
Os ministérios mais poderosos são os de In- produtos, concretos ou imaginários, abstra-
dústria e Comércio e Agricultura, com as expor- tos ou utilitários. Na biologia, por exemplo,
tações e o agrobusiness. Em nome dessas duas cultura significa o cultivo de células e tecidos
atividades, estamos sacrificando questões am- vivos. Para a antropologia, cultura é o conjun-
bientais muito sérias, como os transgênicos. to de costumes, crenças, valores e processos
Qual a relação entre arte e produtivos que caracterizam um grupamento
comunicação? social. Há também a distinção meramente ver-
Alcione Araújo – Antes de falar sobre nacular, como a de cultura oficial, que é o con-
isso, é preciso tentar esboçar uma distinção junto de atitudes, linguagens, conhecimentos,
entre arte e comunicação. Não é uma tarefa costumes etc. difundidos, direta ou obliqua-
fácil. Poucos se arriscam a racionalizar algo mente, pelos meios de comunicação manti-
que se esquiva ao abraço da razão. O concei- dos ou utilizados pelo Estado. Por mais que
to de arte é radicalmente subjetivo, variável haja distinções, todas essas culturas são
ao longo da história e só se permite enunciar interdependentes. E o que nos interessa aqui
se imerso na cultura de origem da própria é a Cultura – entendida como produção do
obra. Já a comunicação, do grito primal à so- imaginário, produção simbólica ou produção
ciedade da informação, é primordialmente, do espírito –, que, com a passagem do tempo
embora não estritamente, produção da ra- e as mudanças da sociedade, foi se dividindo
zão, sobretudo na instituição de sistemas de nas chamadas cultura popular, cultura erudita
codificação/decodificação. e cultura de massa.
Grosso modo, pode-se dizer que arte, como Afinal, qual é a origem da
criação ou como fruição, é, primordialmente, cultura brasileira?
produção e percepção de subjetividades; a Alcione Araújo – Sem rigor cronológico
comunicação, do ponto de vista do emissor e considerando que, na época, o tempo era
ou do receptor, é, primordialmente, produção lasso, distendido, e a repercussão dos fatos
e percepção de, digamos, objetividades. Em era lentíssima, pode-se dizer que, quando
ambas as idéias, mencionei “primordialmen- Cabral avistou essas terras, no início do sécu-
te”. Isso significa que tanto a arte pode se lo XVI, as universidades de Bolonha e Coimbra,
utilizar de alguns elementos de comunicação, por exemplo, já funcionavam há séculos.
como a comunicação pode, eventualmente, ser Gutenberg já inventara a imprensa, Marco
criativa, original, sensível e buscar atingir a Polo já chegara à China e o Império Romano
subjetividade – nesse caso, o exemplo extre- tinha virado pó. São Tomás de Aquino já con-
mo é o da propaganda subliminar. Em termos c lu íra a S u m a Teo ló g ic a , rees c reven do
semiológicos, poderíamos dizer que a arte Aristóteles de modo a torná-lo útil ao catoli-
opera com signos originais, criados para uma cismo. Dante unificara a língua italiana com
expressão singular, única, que se oferece a A divina comédia. A catedral de Chartres,
múltiplas percepções. A comunicação opera construção complexa e sofisticada, já estava
com signos decodificáveis, saturados, buscan- pronta, louvando a Deus com as altas torres
do um entendimento estrito, unívoco e apontadas para o céu. Tudo isso – e muito
coletivizado. O comunicador procura o pata- mais – já existia na velha Europa, enquanto
mar que o nivele com a sua audiência. A arte nossos ancestrais indígenas corriam pelados
não necessariamente procura isso. O criador por essas praias, com as “vergonhas” balan-
oferece a sua criação no nível, na forma e no çando aos ventos tropicais. Cabral, porém,

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limitou-se a fincar o marco simbólico de pro- eficientes especialistas na educação da elite


priedade da coroa portuguesa. E nada mais brasileira, que, por acaso ou ironia, é uma das
aconteceu até que os jesuítas aportaram por mais predadoras do mundo.
aqui na segunda metade do século. Segundo a professora Vanilda Paiva, espe-
A discussão sobre cultura passa cialista na área, os portugueses, sendo pou-
necessariamente pela religião? cos, fizeram muitos filhos nas índias e os cria-
Alcione Araújo – É evidente. A cultura ram, sempre que possível, como portugueses.
começa a ser engendrada no espírito, seara Até hoje, a primeira geração é considerada por-
do domínio religioso, que determina valores, tuguesa. Foi essa a fórmula que aplicaram para
princípios e condutas. Recebe influências das multiplicar seu contingente conquistador, ape-
relações econômicas, do poder político, das sar de todas as contradições. Seus filhos não
formas de trabalho, da agricultura e das for- passaram necessariamente por colégios de eli-
mas de alimentação, da geografia e até das tes, mas lutaram lado a lado no desbravamento
condições climáticas. Justamente para a dou- do país e na conquista do território.
trinação religiosa, a catequese ou evangeliza- Os jesuítas fracassam com os(as)
ção dos gentios, como se dizia, cá estava, pois, índios(as) e passam a cuidar da
a linha de frente da poderosa Igreja Católica. educação dos(as) brancos(as). O que
Atravessara o Atlântico para converter índios aconteceu com os(as) negros(as)?
ao catolicismo. Tarefa ingrata quando se pen- Alcione Araújo – Quando os negros, vin-
sa que o indígena era tão integrado à nature- dos da África, começaram a desembarcar no Bra-
za que se sentia parte dela. Sua arraigada sil, os jesuítas nem olharam para o lado deles.
cosmogonia, como não podia deixar de ser, Não tomaram conhecimento. Sequer cogitaram
fora construída, ignora-se em quantos milênios, catequizá-los. Na visão dos jesuítas, seria
no âmbito da própria natureza. Era impossível inimaginável educar negros vindos de outro
para o indígena assimilar a visão católica orto- continente para serem escravos – ou seja, eram
doxa européia. Era difícil para os jesuítas – uma mão-de-obra baratíssima, de etnia pou-
versados em teologia, mas não em antropolo- co conhecida, oriunda de uma cultura ágrafa.
gia – compreenderem uma cultura tão dife- Os negros não eram, portanto, escolarizados.
rente da européia. Para um indígena, que só Com eles, houve uma das mais agressivas su-
conhecia o tupi-guarani, ouvir conversas em balternidades que o mundo já viu. Há pouco
português e missas em latim era um espan- mais de cem anos, havia aqui seres humanos
to, perplexidade pura. Apesar dos esforços que eram propriedade privada dos seus senho-
– remember Anchieta, com o seu trilíngüe res, obrigados à cega obediência e a trabalhos
(português, espanhol e tupi-guarani) Auto forçados, de dia e de noite, sob castigos de
de São Lourenço, com o qual se torna o pri- animalesca brutalidade: mutilações, troncos e
meiro dramaturgo brasileiro – a catequese açoites. As pessoas, nem mesmo as da Igreja,
do indígena é um fracasso. não os reconheciam como seres humanos. Para
Os(As) índios(as) rejeitaram a os jesuítas, o fracasso com os índios ficara como
visão católica do mundo? lição bem aprendida. Com os negros, preferi-
Alcione Araújo – Sequer entenderam. ram manter-se coniventes com o poder branco,
Havia um evidente choque cultural, e os jesu- de cujos rebentos tornaram-se preceptores.
ítas não se deram conta. Índios e padres sim- Assistiam a tudo em resignado silêncio, quan-
plesmente não se entendiam. Os catequiza- do não indiferença. Esse desprezo pelo negro
dores fizeram uma mudança de rota e se terá enorme repercussão, então inavaliável, na
concentraram no que era a sua real vocação: história social e cultural do país.
a preparação da elite, ou seja, a educação do Mas isso não mudou com
branco europeu, portugueses e outros even- a Abolição?
tuais imigrantes. Era o branco europeu Alcione Araújo – Com o fim gradual da es-
catequizando o branco europeu. E não ape- cravatura, por meio de leis sucessivas (Ventre Li-
nas do ponto de vista religioso. Os jesuítas vre, Sexagenários etc.), o negro alforriado não
incumbiram-se de toda a educação, carregada tinha emprego, não tinha terra, não tinha profis-
de profunda densidade humanista e lastreada são urbana, não tinha escolarização para si nem
na cultura universal. Essa é uma tarefa que con- para seus descendentes, não tinha o que comer.
tinuam a realizar até hoje – os colégios religi- Assim, nasce a histórica marginalização, a miséria
osos ainda mantêm a reputação de melhores e o abandono. O negro perde a proteção do seu
do país –, e eles se tornaram, na verdade, em senhor e ninguém mais se interessa pela sua

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sobrevivência. E inexistia lei que lhe assegurasse religiosas e festivas, eram proibidas pela Igre-
o mínimo para sua manutenção. Ser negro tor- ja e reprimidas pelas autoridades policiais.
na-se sinônimo de ser miserável, vadio e delin- O samba, hoje motivo de orgulho do brasilei-
qüente. E nenhuma escola lhe abriu as portas. ro, nasceu quase na clandestinidade e vítima
E, no entanto, o(a) negro(a) de repressão. Já os portugueses e seus des-
deu grande contribuição à cendentes nativos, herdeiros da cultura bran-
cultura brasileira. ca européia, se apossaram do país, do ponto
Alcione Araújo – Certamente. Das três etnias de vista econômico, político, religioso e cultu-
que, então, povoavam o Brasil, a indígena é a ral. O apartheid cultural vem de longe. Para a
primeira a ser afastada do processo de cons- elite, o país era um simulacro da Europa. Bas-
trução do povo que habitaria essa banda da tava fechar os olhos para ver igrejas, mostei-
América. Para ser exato, há quem diga que a ros, universidades, teatros, orquestras, ópe-
população nordestina é pura miscigenação; ras, museus e modas do velho mundo.
os indígenas teriam desaparecido na fusão com Como a cultura branca européia se
os brancos, tornando-se todos “brancos”. mistura à cultura brasileira?
Mas, em geral, as tribos, fugindo da escraviza- Alcione Araújo – Bem, o caldo de cultu-
ção, dos seqüestros, das doenças contagio- ra europeu era muito denso para ser absorvi-
sas, dos estupros e da matança gratuita, do por um povo em formação, que não vivera
embrenhavam-se nas matas, levando suas cren- a Idade Média, a Inquisição, o Renascimento,
ças, o conhecimento da natureza e suas práti- o Iluminismo e nem a Revolução Francesa.
cas culturais. Contribuíram modestamente para Os portugueses que estavam aqui ou vinham
a formação cultural do povo emergente. para cá, embora brancos e europeus, eram, na
Registre-se que o desinteresse pela acumu- sua maioria, aventureiros em busca de fortuna
lação, decorrência do costume de colher ape- rápida e não deveriam participar ativamente
nas o necessário e indispensável para a sobrevi- do que chamamos de cultura européia, embo-
vência, pois, a qualquer tempo, tudo na natu- ra preservassem esse legado no imaginário.
reza – frutos, caças, peixes etc. – continuaria Porém, no início do século XIX, uma surpre-
disponível, em vez de lição de vida, serviu para sa muda o rumo da história. Napoleão invade
aguçar a cobiça do branco. Mais: essa virtuosa Portugal, obrigando a família real, para não se
inocência foi entendida como indolência pelo render, a fugir para o Brasil. Incerto sobre
branco, cuja permanência por aqui era abrevia- quando teria chances de retornar, d. João VI,
da o quanto possível – o Brasil era lugar de com uma astúcia até hoje mal avaliada, cria
enriquecimento rápido, através da rapinagem uma nova figura na história da diplomacia: a
ou de quaisquer outros meios. Para um euro- do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves,
peu, viver de verdade era só na Europa – embo- com corte provisória no Brasil. Napoleão não
ra, para o pobre, a vida na Europa fosse um tinha como alcançar o rei no outro lado do
horror, e, aqui, com calor, praias, mulheres índi- Atlântico – não dispunha de esquadra capaz
as e negras, podia-se de fazer frente à britânica, que, em defesa de
ter um paraíso.. seus interesses, presentes e futuros, prote-
Já os negros, de- gera a travessia da realeza fujona. A mesma
pois da Abolição, em incerteza quanto à data do seu retorno à Eu-
lastimável precarieda- ropa levou d. João a, digamos, tentar trazer a
de, sem trabalho e Europa para os trópicos. Pelo menos aquilo
sem escolarização, que podia consolar um monarca desterrado
aglutinavam-se em no lado de cá do Atlântico e criar as condi-
núcleos periféricos ções mínimas de segurança, higiene, civilida-
aos centros semi- de, educação, cultura etc. para que o Rio de
urbanizados, onde Janeiro pudesse ser considerado, pelo me-
desenvolviam os ritu- nos, um arremedo de Lisboa.
ais de suas crenças Como foi refazer aqui a cultura
religiosas, a culinária, portuguesa, uma cultura elaborada
a música, a dança etc. durante séculos e séculos?
Tudo na semiclan- Alcione Araújo – Pode não ter sido uma
destinidade, pois vá- intenção consciente, mas foi o que aconteceu.
rias dessas práticas, E começou já no desembarque. Na bagagem,
especialmente as d. João trouxe uma tipografia que, além da

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função prática de publicar textos e livros, ti- têxtil, concedeu licença para a instalação de
nha o valor simbólico de reparar a truculência uma fábrica de vidro, criou uma fábrica de
da Coroa, que mandara destruir e queimar pólvora e uma fundição de artilharia, fundou
as tentativas anteriores de se instalar aqui o Banco do Brasil, a Biblioteca Pública, atual
uma gráfica, para não propagar idéias que Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico e, mais
poderiam ser contrárias aos interesses do tarde, mandou vir a missão artística francesa
Estado. Essa parte da bagagem do príncipe para ensinar aos nativos o que era a arte.
regente propiciou a criação da Impressão Como foi isso?
Régia, que passou a imprimir a Gazeta do Alcione Araújo – D. João parecia querer
Rio de Janeiro, uma espécie de Diário Ofici- recriar um pedacinho da Europa no Brasil. E
al, mas nem por isso poupada de implacável devia achar que, em termos artísticos, era preci-
censura. Apesar de ser editada aqui, a Gaze- so que alguém nos ensinasse o que era arte.
ta do Rio de Janeiro estava longe do espírito Porém, é bom lembrar, a influência cultural fran-
crítico e combativo do Correio Braziliense, o cesa estava presente por toda a Europa. As cor-
primeiro periódico brasileiro que começara tes alemã e russa falavam francês. O romantis-
a circular meses antes, editado em Londres mo alemão é, até certo ponto, uma reação
por Hipólito José da Costa. contra a dominância cultural francesa – do
Outras façanhas que contribuíram para a mesmo modo que o populismo russo. Imagi-
idéia de trazer um pouquinho da Europa para ne, então, como era em Portugal! Mas o Bra-
cá foram os diversos estabelecimentos de en- sil não era, então, um deserto artístico e cul-
sino que d. João fundou, com olhos postos tural. Antes da chegada dos franceses, já
na criação de uma elite militar e civil locais: a havia trabalhos expressivos em pintura, es-
Academia de Marinha, a Academia de Arti- cultura, talha e ourivesaria em Minas Gerais,
lharia e Fortificações, a Academia Médico-Ci- Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Alei-
rúrgica da Bahia e a Escola Real de Ciências, jadinho e Mestre Valentim, por exemplo, já
Artes e Ofícios, mais tarde Academia de Belas haviam deixado suas marcas no patrimônio
Artes. Essas instituições significavam algum artístico e cultural do país, em que pese a
progresso, mas eram quase nada se as com- defasagem de estilos em virtude do relativo
pararmos com o que acontecia à volta do Bra- isolamento em relação à Europa.
sil. Na América espanhola, já existiam, desde A missão, dirigida por Lebreton, não era
o século do descobrimento, as universidades formada por desconhecidos ou iniciantes.
de Santo Domingo, do México e do Peru, e Alguns já tinham notoriedade para além da
jornais circulavam desde o século anterior – França. Incluía os pintores Nicolas Taunay e
decorrências da presença dos vice-reinados, Jean Baptiste Debret; o escultor Auguste
que, então, não tínhamos aqui. Na América Taunay; o gravador Pradier; o arquiteto
inglesa, já funcionavam há quase dois sécu- Grandjean de Montigny, entre outros. Na ver-
los as universidades de Harvard, Princeton, dade, a missão cumpriu um papel, não por
Dartmouth, Brown, Columbia e Pensilvânia. ensinar a visão francesa de arte, mas por trans-
Em termos de educação e cultura, éramos dos mitir técnicas que poderiam ser – e acabaram
mais atrasados do Novo Mundo. sendo – transgredidas. E, sobretudo, preparar
A presença da família real ajuda a a inserção do Brasil, como criador e fruidor, na
vencer esse atraso? produção artística ocidental. Afinal, nosso an-
Alcione Araújo – Éramos, para os portu- cestral branco europeu fazia parte daquele
gueses, uma distante colônia d’além-mar. Além mundo nascido na Grécia e que fundara a cul-
de arrancar as riquezas nativas, não tinham tura ocidental. Com os artistas da missão fran-
interesse nesta terra. Não fosse a bendita in- cesa, que viriam a ser os professores da Escola
vasão de Napoleão, teria sido outro o nosso Real de Ciências, Artes e Ofícios, o neoclassi-
destino. O atraso da colônia era muito gran- cismo instalava-se, de armas e bagagem, no
de, e Portugal esperava que a ausência da fa- Brasil, enquanto a Europa se atirava nos bra-
mília real não fosse duradoura. Apesar disso, ços do romantismo. O simulacro da Europa
a presença do príncipe regente, da burocracia brasileira surgia, como sempre, atrasado.
do Estado e da aristocracia trouxe uma brisa A visão francesa de arte e cultura
de progresso jamais vista, nem repetida em foi assimilada?
tempo algum, por estas bandas. Foi d. João Alcione Araújo – Naquele momento, não.
que revogou a proibição, exarada por sua mãe, Da efervescência criada pela missão francesa
d. Maria I, de se implantar aqui uma indústria não participavam os negros, ainda escravos.

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Muito menos os índios, há mais de um século, Então, na educação e na cultura,


desde a corrida do ouro e pedras preciosas, nada muda no Brasil?
vítimas de genocídio que, de resto, prossegue Alcione Araújo – Muda. Não sei se
ainda hoje, com os que querem expulsá-los muda para o que, hoje, desejaríamos. Mas
de suas próprias terras. O Brasil se moderni- houve mudanças. Ocorre, por exemplo, uma
zava, se preparava para fazer parte do mun- mudança substancial na orientação doutri-
do e da cultura ocidentais através da mino- nária da educação brasileira, assim como na
ria branca européia e sua descendência, em da cultura, após a Segunda Guerra Mundial.
cujas mãos a renda, o conhecimento e o po- O eixo de referência da educação e da cultu-
der sempre se concentraram. ra brasileiras era, até então, europeu, parti-
Essas são as origens dos cularmente francês, beneficiando-nos com
privilégios e desigualdades um legado que incluía as conquistas do
do Brasil de hoje? Iluminismo, os ideais da Revolução Francesa
Alcione Araújo – Sim, a partir desse e o seu histórico lastro humanista e intelec-
quadro inicial da formação miscigenada da tual. Quando o eixo de referência cruza o
população brasileira, as elites abrigam-se Atlântico, da França para os Estados Unidos,
em seus privilégios, e a grande massa é esquecemos, no Velho Mundo, o clássico tri-
mantida distante dos valores educacionais, pé dos compromissos fundamentais da uni-
culturais e econômicos universais, isto é, de versidade com a formação do profissional e
origem européia. É uma segregação que a formação do cidadão. Esquecemos também
ainda perdura, hoje, com contornos de o ideal aristotélico de humanidade integral,
apartheid. Por isso, o Brasil não desenvol- peculiar à longa tradição do humanismo eu-
veu um público para a chamada “alta” cul- ropeu, do francês em particular, e passamos
tura. A maior parte da população sempre a comer poeira na estrada desbravada pelo
esteve do lado excluído da sociedade, afas- pragmatismo americano.
tada pelo apartheid econômico, social e cul- Mas há uma diferença: nos Estados Uni-
tural, da mesma forma que os negros assis- dos, a família e também a escola e a Igreja
tiam às missas confinados numa área introduzem os jovens no mundo da cultura,
cercada da igreja. O que poderia mudar esse assim como no exercício da cidadania. Apenas
quadro seriam políticas públicas menos introduzem, mas é melhor do que nada. A vi-
perversas que permitissem escolarizar e for- tória dos aliados impõe ao mundo o poderio
mar cidadãos e profissionais, além de uma dos irmãos do Norte.
distribuição de renda menos perversa. Se A educação brasileira encontra no prag-
esse avanço não se efetivar, o país terá duas matismo americano um novo modelo, com
culturas conflitantes numa mesma geogra- notório predomínio da ciência e da tecnolo-
fia, se já não as tem. E os enfrentamentos, gia – afinal, foram justamente a ciência e a
via violência urbana, vão se ampliar. tecnologia que lhes trouxeram a supremacia,
Nada foi feito, nem aconteceu quer pelo impacto da explosão de duas bom-
nada que mudasse esse quadro? bas atômicas no Japão, quer pela criação an-
Alcione Araújo – Nem a Independência, terior das indústrias automobilística, cinema-
em 1822, nem a República, em 1889, alteraram tográfica e, mais tarde, televisiva, acolhidas de
expressivamente esse quadro. Com a imigra- braços abertos por todo o mundo. Isso sem
ção, iniciada no fim do século XIX e que se falar na Coca-Cola!
estendeu até a Segunda Guerra Mundial, che- Entramos, portanto, numa nova
ga, sobretudo no sul do país, uma massa de era. Deixamos a velha Europa e
japoneses, italianos, alemães, poloneses etc., passamos a acolher as influências
sem que se interrompa o fluxo de portugueses. americanas.
A população dos centros urbanos ganha no- Alcione Araújo – Exatamente. Como dis-
vas feições. Os recém-chegados, que não par- se, desde o fim da Segunda Guerra os ameri-
ticiparam da história do país, muito menos da canos vêm consolidando a sua liderança com
formação de sua elite, fazem a sua inserção tal ímpeto e truculência que se tornaram, com
pelo trabalho, na agricultura ou no processo a globalização e o neoliberalismo contempo-
de industrialização. A contribuição dos imi- râneos, um império hegemônico.
grantes é fundamental, não apenas para o Hoje, curiosamente, o primeiro item da sua
desenvolvimento econômico, mas para a vida pauta de exportações não é mais a indústria ae-
intelectual e a produção cultural. roespacial, mas a indústria de entretenimento,

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com os produtos audiovisuais, fundamentais Até que ponto a tecnologia


para a implantação da cultura de massa. Tal americana influenciou a educação
indústria começou a se instalar no Brasil na e a cultura brasileiras?
segunda metade do século XX, quando o país Alcione Araújo – Nos Estados Unidos, a
alcançou um certo desenvolvimento econô- religião cumpriu um papel que foi além do
mico e a população atingiu um índice de cres- estritamente religioso. Não apenas colaborou
cimento demográfico que o tornara apto a na gênese do capitalismo, como estimulou
viabilizar investimentos em modernos meios a alfabetização, a leitura da Bíblia, a inter-
de comunicação de massa. pretação dos textos, a formação musical etc.
Acumulando a experiência adquirida A escola cumpriria outra etapa, oferecendo o
com o rádio, o grande divulgador da músi- ensino das ciências, da história da humani-
ca popular brasileira, e sustentação da in- dade, da cidadania etc., além de práticas cul-
dústria fonográfica, chegamos às redes na- turais peculiares ao país – bandas, corais, des-
cionais de televisão, de enorme capilarida- files, competições esportivas, trabalhos
de, capazes de atingir todos os recantos comunitários. Desse modo, a juventude po-
de um país continental. dia ter uma razoável formação, sem depen-
Quando as práticas culturais tradicionais – der muito da família. É isso que faz a evolu-
ler, ir ao teatro e ao cinema, ouvir música, visi- ção de uma geração a outra.
tar museus de arte, até mesmo ler jornais – Para as camadas mais pobres da popula-
começavam a se disseminar, a entrada da tele- ção brasileira, ou seja, para a maioria dos bra-
visão foi verdadeiro estupro em uma socieda- sileiros, a Igreja e a escola não oferecem tais
de sem antídotos culturais para resistir. possibilidades, e o jovem depende mais do
Hoje, com os dados acumulados em mais nível cultural de sua família, que, em geral, é
de 30 anos de pesquisas semanais sobre os baixo. Secular periferia do mundo, a maioria
hábitos e costumes da população brasileira, das famílias brasileiras não teve educação for-
a televisão produz uma programação rigo- mal e está alijada do mercado cultural tradi-
rosamente ajustada às classes sociais, faixas cional. Já a televisão, como o meio, por exce-
etárias, níveis de renda e de escolarização lência, de veiculação da indústria de entrete-
da população. nimento, arrebatou uma audiência formada
Com essa estratégia, mantém cativa uma de pessoas que não tinham adquirido os há-
audiência de tal proporção que faz da tele- bitos culturais tradicionais. Os valores mo-
visão – um conjunto de empresas privadas, rais, éticos e estéticos da indústria de entre-
beneficiárias de concessões públicas, que, tenimento tornaram-se, como já disse, a re-
no entanto, visam a altíssimos lucros e usam ferência – para a massa, a única referência –
de todos os meios para defender seus inte- para um povo de baixa escolaridade, afasta-
resses – a mais importante referência cultu- do da cultura tradicional e despreparado para
ral do país. uma fruição estética enriquecedora.
A audiência cativa da televisão brasileira A influência da educação estritamente es-
não tem, proporcionalmente, paralelo no pla- colar americana – objetiva, funcional e prag-
neta. É formada, sobretudo, pelas camadas mática – acabou sendo prejudicial. E o equí-
mais humildes da população, na qual grassam voco reside no fato de os responsáveis pela
a baixa escolaridade e o analfabetismo. Esse educação no Brasil retirarem dos currículos
público humilde, tendo abandonado pro- as disciplinas de humanidades, substituindo-
gressivamente outras formas de entreteni- as por outras ligadas às ciências e à tecnolo-
mento e práticas culturais, se rendeu ao in- gia. Se não bastasse, os currículos de ensino
discutível fascínio – que começa pela sofisti- médio, justamente aqueles que formam os
cada tecnologia de geração e transmissão – adolescentes, foram se tornando meros re-
da televisão, renunciando, aos poucos, à sua ceituários de preparação aos exames vestibu-
inserção cultural. Estava instalada, e com vo- lares. Com isso, perde-se a melhor época para
racidade avassaladora, a indústria de entre- se plantar as sementes do discernimento, es-
tenimento no Brasil. E, com ela, ruiu um dos tabelecer-se o compromisso com os valores
pilares do capitalismo – a concorrência me- fundamentais do pacto de convivência soci-
lhora a qualidade do produto. Com a baixa al, despertar o imaginário e liberar a sensibi-
escolaridade da maior parte da população, lidade, exercitar a criatividade e aprender a
quanto pior a qualidade da programação, lidar com a sexualidade, entender a amizade
maior a audiência. e iniciar-se no amor.

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Cite uma conseqüência importante Os governantes deveriam se orgulhar de fa-


dessa situação. zer escolas, distribuir merenda e pagar com
Alcione Araújo – A inadequada repro- decência aos professores. O bom governante
dução do modelo americano criou uma es- sabe que só a educação possibilitará o salto
quizofrênica separação entre educação e cul- que o país precisa dar para vencer o atraso
tura. Expulsaram a cultura da escola. O jovem em relação aos países ditos do Primeiro Mun-
só entenderá a si próprio e o mundo até onde do. Investir na educação e na cultura permite
a sua intuição alcançar. E, sem esse entendi- entrarmos, de fato, no século XXI. A cultura
mento, não conseguirá estabelecer uma in- precisa começar na escola. Só assim, a educa-
terlocução. Quem não consegue verbalizar o ção ganha um significado mais profundo e
que sente, quem não tem possibilidade de mais amplo porque vai formar profissionais,
parlamentar, de dialogar, substitui, no seu cidadãos e seres humanos.
desespero, a falta de palavras pela truculência. Como você acha que deveria
É a linguagem que compreende. Se é grave a ser a educação?
existência de um apartheid social, muito mais Alcione Araújo – Bem, não sou educador.
grave é o apartheid cultural. Por isso, só se Tudo o que disse é palpite de curioso. É até
vai resolver a violência urbana, com a qual presunção sugerir coisas aos educadores. Faço
temos temerariamente convivido, com a subs- isso como homem da cultura, que assiste, per-
tituição do armamento dos bandidos e da plexo e impotente, ao lento desaparecimento
polícia pela interlocução. do público da cultura. Imagine que o filme de
A educação e a cultura abrem as portas maior sucesso nos últimos 20 anos, Carandiru,
para a interlocução. A educação é irmã teve cerca de 4 milhões de espectadores, num
inseparável da cultura, insisto. Afastá-las é país de 173 milhões de habitantes. O número
matá-las de inanição – é limitar o ser humano de espectadores corresponde a apenas 2,3%
aos números de sua produção, à sua face mais da população e foi considerado um estrondo-
fria, à parte mais dura do seu coração. É in- so sucesso. Voltando, gostaria que a educa-
concebível que alguém possa formar-se, por ção e a cultura fossem entendidas como fru-
exemplo, médico, engenheiro, advogado, con- tos da mesma árvore sagrada do conhecimen-
cluído o chamado curso superior, sem nunca to, e não que elas coexistam em esquizofrêni-
ter lido um romance, ouvido uma sinfonia, vis- ca separação, como agora.
to uma exposição, assistido a uma peça de te- Cultura é tudo o que foi tocado pela mão e
atro etc. No entanto, é o que acontece. Mudo pelo espírito criador da humanidade. A mesa
as perguntas sem mudar as respostas: que ci- que o engenho do ser humano extrai do tron-
dadão é esse? Que profissional é esse? co da árvore é cultura, assim como o romance,
Responda você: que cidadão é produção de um mundo simbólico que enri-
esse? Que profissional é esse? quece o nosso imaginário. Educação e cultura
Alcione Araújo – Esse cidadão é a vítima sempre andaram juntas. A educação é o braço
de um modelo educacional que renunciou aos sistematizado da cultura, é a ordenação do que
fundamentos universais da formação – do pro- se deve tratar em cada faixa etária para dar
fissional, do cidadão e do ser humano – para se eficiência ao aprendizado, com professores ha-
tornar o vencedor de uma maratona de ades- bilitados a transmitir a quantidade e especifi-
tramento para a produção. Não assegurar a cidade de saber para uma pessoa de determi-
todo cidadão e cidadã o direito constitucional nada idade. E esse professor, hoje desvaloriza-
de acesso à produção cultural, não aproximar a do, é também referência de valores morais e
educação da cultura, é deixar queimando o ras- éticos, de atitudes etc.
tilho que vai detonar a bomba. Por que você escreve?
Pela Constituição de 1988, é obrigação Alcione Araújo – Não estou certo de que
do Estado oferecer a todos a educação con- saiba explicar isso. Embora possa intuir as ra-
vencional necessária. Mas apenas ela é insu- zões pelas quais as pessoas lêem o que escre-
ficiente. É preciso mais. Muito mais. É preciso vo, as razões por que escrevo estão em mim.
que a educação seja motivo de orgulho da Profundamente em mim. Lá onde, segundo Lorca,
população brasileira. O conhecimento da ci- esconde-se a obscura raiz do grito. São áreas de
ência, da história e da própria língua que ela penumbra, sem nitidez nem definição, escas-
fala e ama é necessidade tão fundamental que samente iluminadas, onde costumamos nos es-
se tornou direito, leis. Cumprir a lei é obriga- conder de nós próprios. Às vezes, a psicanálise
ção do cidadão, assim como do governante. nos ajuda a percorrer nossos labirintos tateando

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em direção à luz. Mas, às vezes, a entrega ao batalha de con-


escrever faz a mesma coisa. Tenho o costume quista do leitor es-
– talvez seja mania, ou melhor, obsessão – de tará perdida. Mas,
sempre me perguntar se estou bem, se estou por favor, entenda:
à altura do que me propus, se estou satisfei- quando digo prazer,
to com o meu desempenho, se o desafio está não estou sugerin-
estimulante, sobretudo no aspecto profissi- do que são legíti-
onal. Costumo renunciar imediatamente ao mas quaisquer con-
que não estiver me agradando ou subtrain- cessões para agra-
do-me algo da alegria de viver, ainda que haja dar o leitor. Acho
perdas. No entanto, jamais me passou pela também que é um
cabeça deixar de escrever. Nada a ver com a equívoco avaliar um
qualidade do que escrevo, mas com o prazer livro de ficção por
que me proporciona. algum ensinamento
Entendo o que Mallarmé queria dizer específico. O que se
quando afirmou que a vida foi feita para ser pode, eventualmen-
transformada em livro, assim como entendo a te, aprender com
perplexidade de Aldous Huxley ao perguntar uma obra de arte é
como alguém pode viver sem escrever. Vivo algo geral, tão difu-
impregnado de teatro, bêbado de literatura, so que nem se percebe que se está aprenden- Fotos: Marcus Vini

encharcado de cinema, grávido de filosofia e do. Pois é aí, na dobra descuidada do progra-
gratificado por exercer o que, para mim, é a ma, na falta de objetivo didático, que flutu-
melhor profissão do mundo: a que permite am as lições indizíveis, os exemplos que se
ganhar a vida com prazer e oferecer ao leitor/ colhem na imobilidade perplexa, a solidarie-
espectador vivências do que ele não viveu. Cada dade que se denuncia na lágrima furtiva, é aí
qual só fala do seu lugar, disse Lacan. Por ‘lu- que começa uma aula que não se anuncia,
gar’, entenda-se um patamar existencial, emo- não tem programa preestabelecido, nem tem-
cional, intelectual; passagem transitória por po de duração: a vida.
onde o trajeto singular da vida conduz cada Em que aspectos a leitura pode
um. O quanto se move a vida – do ponto de contribuir para a plena formação
vista existencial, emocional e intelectual – esse humana, política e social?
lugar move-se. Por analogia, o escritor perce- Alcione Araújo – A literatura é uma for-
be o mundo do seu lugar e escreve – escrever ma de se adquirir vivências do que não se
é a sua fala – do seu lugar. Tem voz própria, viveu. A leitura é um permanente movimen-
olhar inconfundível e sensibilidade única. to de se aproximar e se afastar das persona-
A arte de escrever é pessoal ou não é nada. gens, de se emocionar e criticar as suas ati-
Daí a contrafação na busca desenfreada do tudes. O desenvolvimento dessa capacidade
sucesso, na troca da qualidade pela quantida- de compreender o ser humano conduz à
de, na submissão ao mercado, tão em voga maturidade à medida que se afasta dos jul-
hoje. Parafraseando Lacan, quem fala fora do gamentos afoitos, das condenações precipi-
seu lugar desafina. Nelson Rodrigues dizia que tadas e absolvições inconsistentes. A leitura
escrever é fácil ou impossível. Não acho fácil ajuda ser humano a compreender a si mes-
nem impossível. Acho que é preciso trabalhar, mo, a identificar-se com ele e avaliar-se. Essa
trabalhar e trabalhar. Quando achar que está humanização é a reconquista de um valor
pronto, recomece a trabalhar. Como disse que vem se perdendo numa sociedade que
Drummond, se, ao final, não tiver o frescor privilegia o dinheiro em detrimento dos va-
inaugural de que acabou de ser escrito, todo lores humanos. A visão do ser humano que
o empenho terá sido em vão. Acho que escre- a grande literatura oferece é aristotélica: o
vo porque não encontrei nada mais interes- ser humano é, e suas circunstâncias, ou seja,
sante para dedicar a vida. as condições objetivas que o circundam e
Como fazer da leitura uma criam as suas circunstâncias dizem respeito
atividade ao mesmo tempo ao quadro social e às forças políticas que o
prazerosa e reflexiva? envolvem. A compreensão das relações de
Alcione Araújo – O indispensável é que interesse e das relações políticas pode ser
o leitor, iniciante ou não, tenha o máximo de uma grande contribuição à percepção do lei-
prazer com o que lê. Se não houver prazer, a tor sobre o jogo do poder.

NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 61
R E S E N H A

os índios, e sim os negros. A escolha de


Landes deve-se, antes de tudo, a um concei-
to prévio, divulgado nos Estados Unidos: a
ausência de conflitos raciais no Brasil.
A autora conheceu o pesquisador
Édison Carneiro em Salvador, responsável
por tornar abertas as portas dos candom-
blés tradicionais da Bahia para que ela –
uma jovem branca estadunidense america-
na – pudesse entrar em contato com a co-
munidade negra, suas culturas e seu fazer
cotidiano. Por intermédio de Landes, che-
gamos à Mãe Menininha do Gantois, ainda
sem fama; vemos um Martiniano Bonfim in-
satisfeito com os rumos do candomblé; co-
nhecemos a trajetória de Joãozinho da
Goméia e a discriminação enfrentada por ser
filho de prostituta e homossexual.
Cidade das mulheres É um texto de fácil leitura, escrito
como um diário de campo e que demonstra
Ruth Landes
os arranjos sociopolíticos e culturais e as
UFRJ
articulações empregadas pelos afrodescen-
352 págs.
dentes. Além disso, é um dos livros primor-
diais para os estudos antropológicos no
A editora da Universidade Federal do Rio Brasil. Entre outros fatos, explicita pela pri-
de Janeiro (UFRJ) lança a edição revisada meira vez que, ao contrário do que ocorria
do livro Cidade das mulheres (1ª edição na sociedade patriarcal brasileira, o candom-
americana, 1947; no Brasil, 1967), de Ruth blé nagô era dominado pelo poder das mu-
Landes, com esclarecedor prefácio de lheres, e o candomblé de caboclo, pelos
Mariza Correia e introdução de Peter Fry, homossexuais. A autora relaciona a lideran-
que nos auxiliam a entender os meandros ça masculina nos cultos à homossexualida-
da realização da pesquisa. Foram preserva- de e à prostituição masculina. Há uma cons-
dos, nesta nova versão, os três artigos con- tante tensão entre os pais-de-santo e as
tidos na primeira edição, respectivamente mães-de-santo. Logo, Landes expõe uma
“Matriarcado cultural e homossexualidade contradição e uma tensão no interior da-
masculina”, “O culto fetichista no Brasil” e quele mundo até então estudado sob uma
“Escravidão negra e status feminino”. ótica fortemente influenciada por Nina
É um livro para ser lido em constante Rodrigues, que, incensada pelas teorias
diálogo com o período em que foi produzida racialistas do século XIX, via no candom-
a pesquisa, procurando contextualizá-la. blé a representação do atraso imposto pelo
Landes veio como parte de um “pacote” de sangue africano.
parcerias entre centros de pesquisas brasi- Peter Fry, na introdução do livro,
leiros e estadunidense entre 1938 e 1939. A chama a atenção para três aspectos que
autora foi a única daquele grupo a não estudar marcam a primazia do trabalho de Landes e

62 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
que contribuíram para o acirramento das como uma agência de prestígio e mesmo de
críticas a Cidade das mulheres: a discus- auxílio a outros subalternizados naquela
são sobre “o status das mulheres na socie- sociedade, prostitutas e meninos e meni-
dade brasileira”; “o lugar da África na in- nas em situação de abandono.
terpretação da cultura negra no Novo Iniciadas em décadas anteriores, as
Mundo”; e “a relação entre homossexuali- políticas de branqueamento foram sistemati-
dade masculina e religiosidade afro-brasi- zadas por meio do incentivo à imigração euro-
leira”. Para Landes, a matrifocalidade não é péia durante a ditadura varguista. Ilustrativa
uma característica específica do “mundo do nesse sentido é a conversa da autora com uma
candomblé”, mas algo que constitui o perfil importante autoridade do governo, que expres-
das mulheres pobres. Assim, era muito mais sa sua repulsa à grande presença de sangue
a condição social em que se encontravam africano no Brasil, tão provocador do atraso
as mulheres do candomblé, e não necessa- do país a ponto de justificar uma ditadura para
riamente um aspecto religioso ou mesmo ra- mudar os rumos. Percebe-se, nesse breve co-
cial, que as fazia responsáveis por gerir a lóquio, a manutenção das teorias raciais eu-
sociedade em que estavam inseridas, em- ropéias do século XIX ainda campeando na
bora, segundo Landes, o poder das mulhe- área governamental. Os negros são vistos
res naquelas comunidades religiosas fosse como assustadores e perigosos a partir do
efetivo há mais de um século e meio. olhar do Rio para a Bahia. Na Bahia, por sua
Desse modo, a matrifocalidade seria vez, são interpretados pela elite intelectuali-
de cunho social, e não racial. Antes de zada como cordatos, mansos e possuidores
Landes já havia uma arena de contenda na de uma cultura exótica.
interpretação sobre os negros na Bahia, en- Desse modo, o livro, muito mais do que
carnada nos estudos de Frazier e Herskovits. apresentar o candomblé da Bahia, pode ser
Sua abordagem de gênero avança para além utilizado para enriquecer o debate sobre a exis-
da participação das mulheres no culto e in- tência de um racismo demarcado no Brasil,
daga a respeito do seu poder decisório. O embora as conclusões da autora procurem
feminino para Landes não está apenas nas demonstrar a ausência de tensões raciais. É
mulheres, mas também em homens homos- fácil entender essa premissa se levarmos em
sexuais. Isso dá ao seu trabalho maior ampli- conta que, tendo vindo de uma experiência
tude, visto que as relações de gênero são do segregado Sul dos Estados Unidos, assis-
postas para além das mulheres, ultrapassan- tir às festas religiosas com participação de
do o sexo. A homossexualidade feminina tam- brancos e negros levam-na a corroborar as
bém é tangenciada por Landes. teses de que o Brasil teria encontrado o cami-
Além da manutenção da tradição do nho da paz entre as raças.
candomblé, Landes estuda um momento em Cidade das mulheres é parte obriga-
que ocorre uma ressignificação das religi- tória da bibliografia de quem se propõe a es-
ões afro-brasileiras na Bahia. Há a entrada tudar as relações raciais no Brasil e a consti-
de um expressivo número de pais-de-santo tuição da Bahia como campo de estudo das
assumidamente homossexuais, que buscam religiões de matrizes africanas.
nesse espaço o empoderamento muitas ve-
zes negado na sociedade em geral. O can- Joselina da Silva
domblé, assim, ascende ao seu lugar de re- Pesquisadora do Centro de Estudos Afro-
presentação social, funcionando, ainda, Brasileiros da Universidade Cândido Mendes

NOV 2003 / DEZ 2003 63


se espalharam por um mundo ocidentali-
zado. Assim, nasceram os conservacionis-
tas e os defensores do patrimônio cultu-
ral, no século XIX.
Com relação à natureza, o movimen-
to de proteção está associado à criação de
parques, unidades destinadas a manter
amostras representativas de ecossistemas
outrora utilizados, sem maiores cuidados,
como fontes de recurso. No Brasil, essa pre-
ocupação concretizou-se com a criação do
Parque Nacional de Itatiaia, em 1937.
Com o tempo, outros mais nasceram
por força de diplomas legais, grande parte
fruto da ação do movimento conservacio-
nista. Demorou-se a notar que a simples
implantação de unidades de conservação
não era suficiente para os fins pretendi-
Educação ambiental dos. As forças de destruição (e os confli-
tos sociais em torno dos recursos) conti-
e gestão participativa nuavam ignorando ou não incorporando
em unidades de ao seu cotidiano esses redutos de nature-
za a serem preservados ou utilizados de
conservação forma sustentada. Era necessário, com ur-
gência, um trabalho de educação e de ge-
Carlos Frederico B. Loureiro,
renciamento democráticos.
Marcus Azaziel e Nahyda Franca
Essa foi a percepção de Carlos
Ibase/Ibama
Frederico B. Loureiro, Marcus Azaziel e
43 págs.
Nahyda Franca ao organizarem Educação
ambiental e gestão participativa em uni-
A Modernidade é marcada por uma profun- dades de conservação. Conscientes de que
da tensão entre construir e destruir, resul- a crise socioambiental tem origem na estru-
tante, em grande parte, de uma dinâmica tura desigual e injusta da sociedade brasi-
social produtora de contradições e confli- leira – e não em forças naturais –, os auto-
tos. A mudança se tornou constante, as res não se limitaram à proteção formal de
desigualdades entre diferentes se acentua- amostras significativas de ecossistemas.
ram e os remanescentes de natureza e cul- Afastando-se das propostas liberal
tura foram disputados por forças econômi- e revolucionária para tratar dos conflitos e
cas, sociais e políticas que desejavam injustiças socioambientais, eles caminham
devorar os testemunhos de ecossistemas e pela trilha de uma democracia radical, o que
da história humana. pressupõe a participação dos diversos ato-
Ao mesmo tempo em que engen- res sociais, não com o objetivo de camuflar
drou os destruidores, a Modernidade ge- as desigualdades ou pleitear a utopia da
rou os protetores, dois componentes que sociedade perfeita. Antes, entendem os

64 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
R E S E N H A

conflitos como inerentes a uma sociedade “A busca por novas formas


com interesses antagônicos e buscam não
eliminá-los pela via de um grande evento
redentor, como a revolução armada, mas de governabilidade demo-
contribuir para que os explorados se forta-
leçam e os gerenciem em seu benefício.
Impõe-se, pois, a necessidade de um crática passa pelo poder
processo de organização, que deverá ser
promovido pela via de uma educação aten-
ta aos conflitos derivados da apropriação local e pela ampliação
desigual dos recursos naturais. Os educa-
dores comprometidos com essa proposta
devem ter em mente o desenvolvimento das da esfera pública, pois é
camadas pobres da sociedade para que pos-
sam alcançar qualidade de vida melhor e
ecologicamente sustentável. na ação na territorialidade
A força desse roteiro, aberto para a
formação de conselhos gestores de unida-
des de conservação, reside no rigor local, articulada às questões
conceitual com que foi concebido. Os au-
tores partem de premissa teórica consis-
tente, da qual fazem derivar conceitos políticas do Estado-nação,
como desenvolvimento sustentável, edu-
cação, educação ambiental, vulnerabilida-
de socioambiental, ambiente, conflito so- que os conflitos e tensões
cial e gestão participativa.
Muitos trabalhos bons param nesse
ponto, mas os autores de Educação ambi-
são mais visíveis e os atores
ental e gestão participativa em unidades
de conservação vão mais longe, oferecen-
do uma metodologia que apresenta concre-
sociais se relacionam
tamente os passos a serem dados em dire-
ção à tomada de consciência, a uma práxis mais intensamente”
dialógica, à participação e à gestão.

Carlos Frederico B. Loureiro, Marcus


Arthur Soffiati Azaziel e Nahyda Franca, no livro
Doutor em História Social pelo IFCS/UFRJ Educação ambiental e gestão partici-
e professor da UFF pativa em unidades de conservação

NOV 2003 / DEZ 2003 65


ESPAÇO E S PA Ç O
Laura Moutinho*
ABERTO

Zonas de sombra
e silêncio
Miscigenação, sensualidade e sexo “inter-racial”1 são tidos como algumas das características

que marcam a especificidade brasileira. Na tese de doutorado sobre relacionamentos afetivo-

sexuais “inter-raciais”,2 o ponto de partida foi o cotejamento dessa representação sobre Bra-

sil3 com as estatísticas realizadas por demógrafos e sociólogos de orientação quantitativa, que
1 Nesta análise, utilizo aspas
nas classificações de “cor” e
“raça”. Por meio desse pro- apontam para um padrão marital homogâmico presente na sociedade brasileira. As mesmas
cedimento procuro, seguindo
a sugestão de Fry (1996), res-
saltar que “raça”, antes de ser análises, que somente operam com relações maritais formais, identificaram a predominância do
um conceito científico, é his-
tórico, culturalmente construído
no interior de uma certa con- par homem “negro”/mulher “branca” no país onde se veicula que a “mulata é a tal”. Um certo
cepção “nativa”, e não deve
ser concebido e utilizado de
forma unívoca. paradoxo parece emergir do cruzamento dessas afirmações: no mesmo país que valoriza, em
2 Ver Moutinho (2001).

3 Parte do levantamento da diferentes âmbitos, a mestiçagem e a “mistura”, parece existir tabu com relação aos casamentos
pesquisa foi possibilitada pela
bolsa do 10o Concurso de Do-
tações para Pesquisa sobre o “inter-raciais”. Em um nível, o desejo e o sexo “heterocrômico” são “desejáveis”; em outro, ao
Negro no Brasil, do Centro de
Estudos Afro-Asiáticos/Funda-
ção Ford, 1998. menos o casamento (e por que não dizer também o desejo e o sexo?) aparece como “indesejável”.

66 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ABERTO
Segundo Néstor Perlongher, “os agenciamen- [...] eu não sei, pode ser uma coi-
tos do desejo seriam sociais, transindividuais, sa minha, tem uma retração tam-
intersubjetivos. O desejo não ficaria restrito bém da minha parte porque antes
ao individual subjetivado, mas percorreria ten- [de entrar para a faculdade] é
sões de força que atravessam diretamente o aquele negócio, eu não tinha olhos
campo social” (1987, p. 251). No tema em aná- abertos [...], não esquentava a
lise, “raça” ou “cor” se circunscrevem como cabeça, ia para qualquer lugar.
um tensor que agrega fluxos libidinais em di- [...] Acho que vou ter que fazer
mensões necessariamente paradoxais: a) em análise depois daqui, tem tanta
um eixo, o desejável (o da representação na- coisa que eu não consigo enten-
cional, grosso modo operado pelo casal ho- der, mas eu não sei qual é a rea-
mem “branco”/mulher “mestiça”), em outro, ção que pode ter de repente...
o desejo tabu (em geral, referido ao homem
“esse cara vem me encher o saco”
[...]. As patricinhas... eu não vejo
“negro” com a mulher “branca”); b) sua cons-
qualquer possibilidade de elas
tituição atravessa como um continuum o cor-
saírem com um cara preto se po-
po social: mobiliza desde uma argumentação
dem sair com um branco.
“racista” e “exótica” até a que arregimenta
valores “modernos” e “igualitários”; c) agre- A inserção em redes de sociabilida-
gado às assimetrias de gênero, o vetor “cro- de tidas como “branca” e de “elite” envol-
mático” opera sentidos e significados eróti- ve diferenciadas questões. Atributos “ra-
cos do caleidoscópio social de forma singular. ciais” e de prestígio, identificados comu-
As interações experimentadas no tra- mente como de “classe”, mesclam-se
balho de campo, bem como o exercício de fortemente nesses casos. Ao estudar os
docência, possibilitaram-me vivenciar um arranjos afetivos “heterocrômicos”, ficou
conjunto de situações que suscitam algumas claro que a percepção e o uso da categoria
percepções, cuja reflexão gostaria de alinha- de “cor/raça” não podem ser dissociados
var a seguir. No interior dessas redes foi pos- dos atributos de prestígio social e, como
sível, inicialmente, identificar certas narrati- outros autores já apontaram, variam de acor-
vas sobre retraimento, constrangimento e do com o contexto em que são utilizados.
auto-exclusão, que, vale destacar, apareceram Como Fry (1996) demonstrou, existem “mo-
de forma freqüente e variada nas narrativas dos” de classificação de “cor” que são va-
das pessoas entrevistadas sobre o tema, mar- riáveis e mais freqüentes em determinadas
cados por nuanças específicas de acordo com classes e segmentos sociais urbanos.
a rede de sociabilidade em jogo. Além disso, Foi em uma universidade tida como
identificou-se no campo dos afetos e praze- “branca” e de “elite” da Zona Sul carioca
res, uma margem de manobra, à qual os entre- que foram feitas observações de modo in-
vistados puderam recorrer para lidar com o tenso. Inúmeras variáveis marcam a constru-
desprestígio da “cor negra”. Vejamos algu- ção desse olhar. O primeiro entrevistado foi
mas situações. Toni, um rapaz de 20 anos que se classifica
como “negro”, também matriculado em um
curso de prestígio e que namorava uma “bran-
Branca de elite
ca” na universidade. É egresso de camadas
Beto é filho de um homem “negro” com uma médias/altas da Zona Norte e se tornou, dois
mulher “branca”, classifica-se como “more- semestres depois, meu aluno: o “único ne-
no”, possui 22 anos e é morador da Zona Oes- gro da turma!”. Certo dia, estava ministran-
te. Estuda em um dos cursos de alto prestígio do uma aula sobre questão “racial”, tendo
de uma universidade igualmente prestigiosa como base um artigo de Peter Fry intitulado
do Rio de Janeiro. Ao ser perguntado se já “O que a Cinderela Negra tem a dizer sobre a
havia namorado alguém dessa rede de socia- ‘política racial’ no Brasil”. O rapaz aparente-
bilidade, respondeu “sim”, mas apressou-se mente não “agüentou” a discussão, respon-
em justificar que já conhecia a menina antes deu à chamada e saiu da sala. Discuti com os
de entrar na universidade, explicitando da se- alunos as principais questões do texto e pro-
guinte forma seu conflito: pus, como exercício reflexivo, pensarmos

NOV 2003 / DEZ 2003 67


como a questão “racial” era vivida e pensada nesse caso submergida a seu pertencimento
na faculdade onde estudavam. a uma família de camadas altas, à convivência
Falamos das oposições que estrutu- com “brancos”, de modo a neutralizar a sen-
ram as redes de sociabilidade naquele espa- sação de preconceito e a discriminação.
ço, até que alguém lembrou, com ar de críti- A despeito das distintas classificações
ca, indignação e denúncia: “Toni é o único de “cor” que as pessoas recebem em diferen-
negro da turma!”. Ato contínuo, uma meni- ciados espaços de sociabilidade e sua articu-
na retorquiu: “O que é isso? Ele não é negro, lação com status, a vivência da “raça” no am-
é moreno”. A afirmação foi uma surpresa, pois biente familiar é um importante norteador da
o próprio rapaz se classificara como “negro” percepção e vivência das relações “raciais”
e eu própria o percebia como tal. Outro gru- na vida social articulada, como visto, a ou-
po redargüiu, e ela respon- tras variáveis.
deu: “Geeeente, ele é como Nessas histórias, destaca-se a diferen-
A vivência da nóóós!”. Percebi, nesse mo-
mento, que o rapaz em foco
ça de “cor” e da posição de classe no interior
dessa rede. Entretanto, como demonstrado a
‘raça’ no havia se inserido e era bem
aceito pelo grupo. Uma in-
seguir, creio que, mais do que diferença de
classe, o que está aqui em questão são certos
ambiente familiar serção que significava par-
tilhar certos valores e ethos
atributos de status valorizados nessa rede de
sociabilidade. O primeiro rapaz mencionado

é um importante
que indicam um processo (Beto) declarou se sentir “discriminado” e
de pertencimento e igualda- “constrangido” no contato com amigos e
de e uma percepção diferen- “paqueras”. Embora se classifique como “mo-
norteador da ciada da alteridade “racial”, reno” e seja oriundo de camadas altas da Zona
ou, em outros termos, a Oeste carioca, acredita que sua sensação de
percepção e “cor” parece ser, dada a falta de lugar ocorre em razão da sua “cor”.
proximidade, eventualmen- De fato, a “cor” foi uma questão vivi-
vivência das te eclipsada, ainda que
não-diluída.4
da de forma especialmente latente em seu
meio familiar – o que parece explicar, em par-
relações ‘raciais’ Juliana, uma bela jo-
vem “negra” de 19 anos, em
te, a força com que a “raça” orienta sua vi-
são de mundo –, mas creio que, no universo
na vida social, uma conversa informal, tam-
bém é vista como a “única
em questão, há ainda um outro fator extre-
mamente relevante que apareceu em sua fala:

articulada a
negra” da sua turma – fre- ser associado aos alunos do Pré-Vestibular
qüenta um outro curso de para Negros e Carentes (PVNC), em vários
alto status da universidade. momentos distintos, acabou por enfatizar sua
outras variáveis Vi-a várias vezes sentada no percepção da “diferença racial”. Leiamos a
chão em animadas conver- fala de Beto sobre isso:
sas com seus colegas. De [...] o cara olhou para minha
fato, a questão “racial” não se colocava para cara e achou que eu era do pré-
ela de modo relevante. Vejamos como ela re- vestibular, pô, a minha roupa é
sumiu sua experiência na universidade. Oriun- essa aqui, igual a que todo mun-
da de uma família de camadas altas do interior do está usando, qual o proble-
do estado do Rio de Janeiro, afirmou que ma? Então, só pode ser isso: pô,
“sempre conviveu com brancos, sem proble- esse cara é preto, o cara é mais
ma”. Disse, expressando-se com um ar que moreninho... Deve ter vindo de
4 Processo similar parece
misturava justificativa e constrangimento, algum pré-vestibular carente des-
acontecer nas situações de não saber se o problema é dela ou não, mas ses daí, entendeu?
amizade e intimidade entre
pessoas de sexo diferente. “nunca senti o preconceito” – isso incluía não
Claudia Rezende (2001) iden- somente as interações sociais em geral como Vale assinalar que, apesar de o rapaz
tifica essa tendência em sua
análise sobre amizade entre também o mercado dos afetos. Supõe que isso utilizar a categoria “carente”, ele acaba por
jovens e adultos pertencentes
às camadas médias urbanas talvez se deva ao fato de “sempre ter convivi- enfatizar a referência à “raça”. Toni, o outro
cariocas. Rezende recorre à do com brancos” e por causa do seu “meio rapaz, classifica-se como “negro”, mas pos-
amizade para analisar a
inter-relação entre as dife- social”. Esses dois fatores seriam, na per- sui uma inserção diferenciada – manipula
renças de gênero e sua cone-
xão com a noção de pessoa, cepção da entrevistada, a causa de sua “tran- com eficiência uma série de atributos de pres-
buscando compreender a qüila” inserção na universidade. Em outras tígio. Além disso, entre outras coisas, está
“dinâmica de negociação das
identidades e alteridades”. palavras, a “cor”, em sua narrativa, aparece ciente (e lança mão), como discuti em outro

68 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
momento, do erotismo atribuído à “cor ne- Sempre morou no bairro do Catete, Zona Sul
gra”. Para os dois, entretanto, não é fácil cir- do Rio de Janeiro. Estudou em colégio público
cular por esse espaço. e, embora vivesse na Zona Sul, uma área de
Uma outra lógica explicativa da rela- elite, disse que “conviveu com pessoas que
ção entre “negros” e “brancos”, assim como não tinham muita grana”. Acha que esse fator
a possibilidade de discriminação “racial”, o influenciou positivamente. Sua vida social é
apareceu de forma recorrente nas entrevis- ativa desde os 15 anos. Tinha vários grupos: o
tas realizadas na universidade, seja com “ne- grupo do colégio, o da rua e o da praia. No
gros”, seja com “brancos” de camadas mé- colégio, normalmente “ficava bebendo em bar
dias: a questão da (ausência de) convivência e depois ia para o baile funk” em favelas – como
de “brancos de elite” e da “Zona Sul” do Rio os bailes dos morros do Fogueteiro (Rio Com-
de Janeiro com “negros” em posições (e pro- prido), Chapéu Mangueira (Leme), Serro Corá
fissões) de prestígio social. Vejamos outra (Cosme Velho), Morro Azul (Flamengo), Santa
fala de Beto: Marta (Botafogo), que eram “da moda” quan-
[...] aqui [referindo-se tanto à do ele era adolescente. Disse-me que, com o
Zona Sul como à universidade], grupo da rua, ia para os forrós.
as pessoas estão acostumadas a Tuzzi afirmou que “nunca” teve “ne-
ver um cara preto como ascenso- nhuma barreira de namorar mulher negra”.
rista, é um não-sei-o-quê. Você Enfatizou inúmeras vezes ao longo da entre-
não vê o cara como um vizinho vista que, na sua rede de sociabilidade, “isso
teu, como um cara que estuda no era normal”. Sua namorada, inclusive, é “mo-
mesmo colégio, que vai aos mes- rena, bem morena”. Em parte, atribui esse fa-
mos lugares, que tenha as mesmas tor à vivência com pessoas de distintas “co-
pretensões. [...] Elas [as pesso- res” proporcionada pela formação em escola
as] parecem ter uma certa difi- pública e nos bailes funks. Disse-me que
culdade em [fazer] amizade, en- esse papo da mídia, da beleza ser
tendeu? Porque, às vezes, está branca, na época eu não questio-
todo mundo conversando e tal, nava essas coisas porque eu fre-
mas ‘aquele’ você não chama qüentava esses lugares. Esse era
para ir para lugar nenhum, con- meu mundo, eu não tinha consci-
versa só algumas coisas. Eu acho ência dessas coisas que aparecem
que a pessoa não tem referência na mídia, da beleza ser branca,
que seja igual a ele, que faça as porque meu mundo era outro. [...]
mesmas coisas que ele [...]. Ah, o baile funk... Aí, depois eu
entrei na faculdade... “Pô, cadê
as meninas negras?” Não tem!
Profissão da cor Embora eu já soubesse que não
tinha... Mas, pô, o pessoal aqui
Chamou a atenção como a narrativa de Beto é diferente. [...] Então, é que eu
não é isolada. A justaposição da “cor/raça” e vi que meu grupo era um grupo
de uma profissão de baixo status e qualifica- diferente. [...] Convivendo [na
ção evidencia que tanto no que tange às pos- faculdade] é que você vê como é
sibilidades de interação entre os diferentes complicado ter um relacionamen-
grupos de “cor” como de se manter relacio- to com uma negra. Nas boites da
namentos afetivo-sexuais “heterocrômicos”, Zona Sul, por exemplo, você não
o convívio (ou não) com “negros” (em uma vê negro. E quando você traz isso
situação de igualdade e prestígio social) apa- para a realidade... “Seu amigo
rece como uma categoria central para justifi- está namorando uma negra”. Aí,
car as possibilidades de interação em termos rola aquela diferença. Porque
de amizade, sexo e amor, assim como de com- você não está acostumado a con-
partilhar as redes de solidariedade existen- viver com aquilo. [...].
tes. Vejamos mais um exemplo.
Tuzzi tinha 23 anos por ocasião da en- Essa lógica, que foi recorrente nas en-

ESPAÇO
ABERTO
trevista, classificava-se como “branco” e já era trevistas, parece similar à apresentada por al-
formado em desenho industrial pela mesma guns entrevistados acerca dos constrangi-
universidade no ano em que foi entrevistado. mentos vividos contra seus relacionamentos

NOV 2003 / DEZ 2003 69


ESPAÇO nas redes familiares e de parentesco.
Também nesse depoimento, não se perce-
bem acusações pessoalizadas de “racismo”.
Mais uma vez, alguma referência exterior às
pessoas (como a convivência, por exemplo)
ABERTO As trajetórias dos dois rapazes menci-
onados (Toni e Beto) são marcadas por con-
flitos que podemos classificar como de “cor”
e “classe”. No entanto, a inserção e o
pertencimento de Toni em especial (mas tam-
foi utilizada para justificar as situações de bém de Juliana) não excluem a auto-identifi-
discriminação com base na “cor” (às vezes, cação como “negro”, tampouco a expressão
agregadas à “classe”, uma interpretação de “orgulho étnico”. Como apontou Angela
local que se refere a uma série de elementos Figueiredo (1999), um projeto ascensional não
de prestígio social). é atualmente percebido e vivido em oposição
Os casos anteriormente mencionados ao “orgulho étnico-racial”. Mas no campo dos
tangenciam várias das questões presentes na afetos e desejos, que se configura no foco da
literatura clássica – notadamente aqueles que presente análise, veremos como os atributos
podem ser identificados sob a rubrica “a inte- eróticos e de prestígio relacionados à “cor” e
gração dos negros na sociedade de classe” – à “classe” podem ser manipulados (ou não) e
construídas à luz da polarização, assimilação vividos. Além disso, talvez seja novamente o
ou resistência dos valores da sociedade caso de perguntar o que significa “orgulho
abrangente. Mas merecem, acredito, um étnico-racial”: apenas se classificar como “ne-
enquadramento distinto. A questão, aqui, não gro” ou se classificar com um discurso que
parece se encaixar no estereótipo dos “ne- indica que a pessoa está “assumindo a sua
gros socialmente brancos” ou do “negro de cor”? Ou, ainda, como desejava Abdias do
alma branca”, uma idéia presente em vários Nascimento na peça Sortilégio, “assumir” a
autores clássicos como Donald Pierson, “cultura negra” como um ato de defesa con-
Florestan Fernandes, entre outros 5 e cele- tra a aculturação? Há um verdadeiro abismo
brada como o sintoma de um desejo de “em- entre essas percepções de identidade “raci-
branquecimento” por parte de “negros” e al”. Com propriedade, Figueiredo defende a
“mestiços”. Faz-se necessário analisar essa emergência de uma “‘nova identidade negra’
questão com cuidado. Seria o caso de per- nas duas últimas décadas” (1999, p. 119). A
guntar o que significa esse “desejo de publicidade e a produção de bens de consu-
embranquecer”: trata-se de “branquear” a mo parecem ser, nesse sentido, os principais
prole? Trata-se de desejar uma mulher ou ho- símbolos dessa mudança social.6 Algo que,
mem “brancos”? Ou de incorporar o que se como afirmou Márcia Lima (2001), ainda não
nomeou de “hábitos brancos”? aparece refletido nos dados sobre desigual-
Por oposição, podemos perguntar o dade e mobilidade social.
que seriam hábitos “negros”? Candomblé ou
samba, por exemplo? Nesse sentido, a análi-
Acusação e denúncia
se de Maggie (1992) identificou um maior nú-
mero de “brancos” e imigrantes entre os acu- Na verdade, a principal forma que a idéia de
sados de feitiçaria no período de repressão “embranquecimento” tomou entre as pes-
aos chamados cultos afro-brasileiros, assim soas entrevistadas – como em Nelson
como da análise de Fry (1982) acerca da in- Rodrigues, Abdias do Nascimento, Florestan
corporação de símbolos étnicos como sím- Fernandes, Roger Bastide e Costa Pinto, guar-
bolos de nacionalidade e do recurso, identi- dadas as diferenças anteriormente apontadas
ficado em artigo recente, em que o autor entre os autores – foi a de categoria de acu-
afirma que sação e denúncia. Essas acusações se imis-
cuem, ainda, no mundo dos afetos com recla-
talvez seja assim porque os sím- mações de homens e mulheres “negros” e
bolos de identidade negra foram “mestiços” de que aqueles que ascendem pre-
freqüentemente retirados de fora ferem os(as) brancos(as). O cerne dessa ques-
do Brasil, tais como o reggae no tão, assim como sua possibilidade de solu-
Maranhão, hip hop no Rio de ção, evoca novamente a questão do convívio
Janeiro e em São Paulo e, fi- com “negros” em posição de igualdade (e
5 Para uma análise crítica da
nalmente, a própria África, es- prestígio social), anteriormente mencionada.
questão nos referidos autores, pecialmente na Bahia, [...] com
ver Figueiredo, 1999.
Além dos aspectos relativos aos
os grupos “afro” de carnaval. “constrangimentos e exclusões”, pude iden-
6 Sobre publicidade, ver Fry
(2002). (Fry, 2000, p. 105) tificar espaços de manobra que os “negros”

70 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
recorrem nessa rede de sociabilidade. Nesses empregos ou alguma outra situação que, de
termos, é destacado aqui mais um aspecto acordo com seu cálculo, possa acarretar
presente nessa intrincada lógica de relação. prejuízo profissional. Eles são muito “com-
Ortner e Whitehead (1981) destacam que as panheiros” e reconhecem as possibilida-
estruturas de gênero devem ser pensadas des de discriminação que uma mulher “ne-
como estruturas de prestígio. A associação gra” e um homem “branco” podem sofrer.
entre o masculino com o domínio público não Assim, preferem se precaver. Além disso,
esgota, para as autoras, a complexidade des- sendo seu marido um médico, na sua per-
sa relação. As estruturas de prestígio são cepção a situação piora, pois existe uma
mostradas como aquelas que vêm a hierar- “mística” em torno dessa profissão, de
quizar as relações nesse domínio. Mais que modo que, se ela o acompanhasse em al-
estar desempenhando um papel no domínio gumas “situações profis-
público, interessa saber de que modo esse s ionais”, poderia vir a
papel aloca o indivíduo na estrutura de pres- “prejudicá-lo”. No churras-
co de formatura do marido,
O prestígio
tígio. Pela análise realizada, creio que se pode
afirmar que o prestígio social (dado por opo-
sição ao estigma que a “cor” evoca) é, igual-
por exemplo, sentiu os
“olhares” de estranhamento
social (dado
mente, estruturador das relações entre “bran-
cos” e “negros”: no âmbito das relações
dos seus amigos quando ela
chegou. Ela acha que, quan- por oposição ao
do a vêem com o marido, as
afetivo-sexuais “heterocrômicas”, a “cor” é
um elemento central na construção dos gêne- pessoas pensam: “É o es- estigma que
ros masculino e feminino. trangeiro com uma negra” ou
Essas observações me parecem inte- “O que um branco desses a ‘cor’ evoca)
ressantes quando as articulamos às intera- vai querer com uma negra?”.
ções entre masculinidade, “cor” e atributos Foram essas percepções que
os levaram a “manter certas
é, igualmente,
de prestígio social no mercado dos afetos e
prazeres do espaço supracitado. Toni possui, coisas separadas”.
Na fala de Lídia, não
estruturador
segundo ele mesmo e outra entrevistada,
“status na faculdade”. Não está circunscrito
a um espaço único: circula com desenvoltura,
há menção de tensão “raci-
al” na relação dela com o das relações
entre ‘brancos’
possui boas relações com os professores e marido, nem com seus ami-
profissionais vistos como decisivos nesse gos íntimos: o problema se
aloca nas relações profissi-
contexto e sabe que isso atrai as mulheres,
sendo, portanto, uma importante moeda de onais dele. Tanto que a en- e ‘negros’
troca no mercado dos afetos e prazeres local. trevistada explicitou seu cui-
Atrelado ao prestígio adquirido, o rapaz per- dado e carinho no momento
cebe, como vários outros entrevistados per- de prepará-lo para uma en-
ceberam, que “a diferença atrai”; trata-se do trevista, por exemplo, cuidando das roupas e
potencial erótico/afetivo da diferença de ajudando em tudo que seria necessário na
“cor”, “classe” e prestígio, da atração que os produção de uma “boa aparência”. Mas deixa
estereótipos eróticos e estéticos associados explícito seu receio de que sua “cor” venha a
à “cor negra” ressaltam e do espaço de mani- “contaminar” seu prestígio profissional e,
pulação que os atores possuem. Vejamos para tanto, encontrou um espaço de manipu-
como outros entrevistados lidam com o lação desse estigma visando contornar a dis-
desprestígio da “cor negra”, seus constran- criminação e os problemas que poderiam en-
gimentos e o espaço de manobra que conse- frentar em seus relacionamentos.
guem criar no interior desse quadro de desi- Toni, que, como demonstrei, possui
gualdade social. A narrativa a seguir é, nesse “boa” inserção em uma rede de sociabilidade
sentido, dramática. “branca” e de “elite”, afirmou, ao relatar a rea-
Lídia estava com 33 anos por oca- ção dos amigos do casal ao seu namoro, que
sião da entrevista, é “negra”, fazia pós-gra- vários deles, de ambos os lados, afastaram-se:
duação na área de humanas, é casada com [...] as pessoas que eram próxi-
um médico “branco” (“dedicado e muito mas saíram, nós tínhamos amigos
profissional”) e “se esconde” em certas si- dos dois lados que saíram. [...] Se
tuações “para não prejudicá-lo”, por exem- afastaram de nós. [...] Da mes-
plo, não o acompanhar em entrevistas para ma turma, colegas dela, muitas

NOV 2003 / DEZ 2003 71


* Laura Moutinho colegas dela... quando a gente familiar, de parentesco e as redes de amizade
Doutora em começou a namorar, a [fulana] e solidariedade. Nesse ponto, destaco a re-
antropologia pela tinha uma obsessão pela discri- corrente ênfase dos entrevistados em não uti-
Universidade Federal do ção que eu não entendia. Depois, lizar a “raça” ou o “racismo” como definidor
Rio de Janeiro (UFRJ), eu vim ver o quão cruéis as pes- da pessoa. Por fim, visa enfatizar que – ao
professora visitante do soas são... [...]. contrário da chave explicativa de Donald
Instituto de Medicina
Social (IMS) da
As falas acima se equilibram entre o Pierson e Florestan Fernandes, guardadas as
Universidade do Estado constrangimento social, a auto-exclusão e a diferenças entre os autores – as referências
do Rio de Janeiro (Uerj) manipulação dos atributos de estigma, visan- utilizadas pelos informantes, mais que se ater
e pesquisadora do à proteção de si e do relacionamento. As às diferenças de “classe”, referem-se às es-
vinculada ao Centro discussões e análises propostas nestas pági- truturas de prestígio que articulam “raça” a
Latino-Americano em nas visam, em primeiro lugar, abrir uma escu- gênero e, em algumas situações, ao erotismo.
Sexualidade e Direitos ta aos entrevistados sobre seus dramas, con- Além do desprestígio (e constrangimentos)
Humanos (Clam) do flitos e as soluções encaminhadas – algo imposto pela “cor negra”, os entrevistados
IMS/Uerj.
bastante controlado na literatura que tratou revelaram espaços de manobra e manipula-
do tema. Em segundo lugar, demonstrar as di- ção das estruturas de estigma e prestígio que
versas estruturas de prestígio que incidem nos permitem compreender alguns dos equi-
sobre a classificação de “cor” quando o mun- líbrios evocados nas situações de desigual-
do dos afetos e prazeres alcança a esfera dade social com base na “raça”.

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ESPAÇO
72 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ABERTO
CULT CULTURA
Luiz Carlos Mello*

IMAGENS que

Fernando Diniz Fernando Diniz

74 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
URA
revelam o inconsciente

Fernando Diniz Ênio Sérgio

NOV 2003 / DEZ 2003 75


C U LT U R A

Quem visitar o Museu de Imagens do Incons- Na luta pela mudança do ambiente hospitalar,
ciente 1 irá se confrontar com imagens inquie- foram surgindo, quase ao mesmo tempo, se-
tantes (e muitas vezes belas) que compõem o res excepcionais como Emygdio, Raphael,
seu acervo estimado em 300 mil obras, acu- Adelina, Isaac, Carlos, Fernando, Abelardo,
muladas em seus 55 anos de existência. O Octávio e Lúcio, possuidores de uma capaci-
museu nasceu em 1952, com a produção dos dade de expressão extraordinária.
ateliês de atividades expressivas como pintu- Três meses após a inauguração do ate-
ra, modelagem e xilogravura. Essas obras fo- liê, já havia material suficiente para organi-
ram estudadas em diferentes áreas, como an- zar uma pequena exposição. Assim, em 22
tropologia, psicologia, psiquiatria, história da de dezembro de 1946, foi inaugurada no
arte e religião, com o intuito de decifrar os antigo Centro Psiquiátrico Nacional, atual
misteriosos processos que se desdobram no Instituto Municipal Nise da Silveira, a pri-
interior de indivíduos que vivenciaram um pro- meira mostra de imagens pintadas pelos do-
fundo mergulho no inconsciente. entes. A exposição despertou grande inte-
Inconformada com os métodos violen- resse, sendo logo transferida, em fevereiro
tos de tratamento psiquiátrico em uso como de 1947, para o edifício-sede do Ministério
eletrochoque, coma insulínico e a lobotomia, da Educação, localizado no Centro da cida-
a drª Nise da Silveira encontrou na terapêutica de, possibilitando acesso ao grande públi-
ocupacional uma outra forma de tratamento co. Para surpresa da drª Nise, os psiquiatras
para as pessoas esquizofrênicas. Fundou, en- brasileiros se interessaram menos por essa
tão, em maio de 1946, o Serviço de Terapêuti- produção do que os críticos de arte e o pú-
ca Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II blico em geral. Escreveram sobre as obras,
do Rio de Janeiro, que progressivamente atin- nos jornais da época, Antônio Bento, Rubem
giu 17 atividades, entre elas, sapataria, cestaria, Navarra, Mark Berkosvitz e outros.
teatro, jardinagem, música, carpintaria, enca- Entre eles, destacamos Mário Pedrosa,
dernação e recreação. crítico de arte do jornal Correio da Manhã, cuja
O ateliê de pintura foi aberto em 9 de compreensão sobre o assunto aparece de for-
setembro de 1946. Tinha como monitor o ar- ma clara e profunda.
tista Almir Mavignier, hoje pintor de renome O artista não é aquele que sai
internacional e professor de arte. Sua partici- diplomado da Escola Nacional de
pação foi fundamental ao oferecer – e tam- Belas Artes, do contrário não have-
bém ao descobrir – as melhores condições para ria artista entre os povos primitivos,
que os internos pudessem criar livremente sem inclusive entre os nossos índios. Uma
que houvesse qualquer interferência. das funções mais poderosas da arte
O Centro Psiquiátrico naquela época – descoberta da psicologia moderna
tinha 1.500 internos, em sua maioria – é a revelação do inconsciente, e
esquizofrênicos crônicos que normalmente fi- este é tão misterioso no normal como
cavam abandonados nos pátios do hospital. no chamado anormal. As imagens do
Nesses pátios e nas
enfermarias, foi sendo
descoberto (e reunido
no ateliê) um grupo de
esquizofrênicos cuja
produção logo come-
çou a se destacar.
As oficinas da
terapêutica ocupacio-
nal foram atraindo,
para seus diversos se-
tores, pessoas aban-
1 Visitação pública de se-
donadas nos pátios do
gunda a sexta-feira, das 9 às hospital psiquiátrico
16 horas.
ao azar da não-ação,
Rua Ramiro Magalhães, 521 –
Engenho de Dentro – Rio de numa vida completa-
Janeiro-RJ – CEP 20730-460.
mente incógnita por Emygdio de Barros
Tel./fax: (21) 2596-8460
mii@museuimagensdoinconsciente.org.br trás de seus uniformes.

76 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE

inconsciente são apenas uma lingua- criações de legítimos artistas – que


gem simbólica que o psiquiatra tem se afirmem justo no domínio da arte,
por dever decifrá-las. Mas ninguém a mais alta atividade humana.
impede que essas imagens e sinais
A exposição 9 artistas de Engenho de
sejam, além do mais, harmoniosas,
Dentro teve enorme repercussão de público e
sedutoras, dramáticas, vivas ou be-
na imprensa. Destacamos crônicas de Sérgio
las, enfim, constituindo em si verda-
Milliet, Quirino da Silva, Osório Borba, Jorge
deiras obras de arte.
de Lima e Flávio de Aquino.
Além do reconhecimento do valor ar-
Engenho de Dentro tístico do acervo por artistas e especialistas
em arte, o museu realizou, ao longo de seus
Em 1949, o crítico de arte francês Leon Degand, 54 anos de existência, mais de cem exposi-
então diretor do Museu de Arte Moderna de ções no Brasil e no exterior, dando maior ên-
São Paulo, visita, a convite de Mário Pedrosa, fase ao aspecto científico da coleção por meio
a seção de Terapêutica Ocupacional. Degand das pesquisas desenvolvidas pela drª Nise e
fica impressionado com a qualidade artística seus colaboradores. O museu enviou repre-
das obras, propondo, então, uma exposição sentação para três congressos mundiais de
para o público de São Paulo. A seleção realiza- psiquiatria: Paris, 1950; Zurique, 1957; e Rio
da por ele e Mário Pedrosa teve como título 9 de Janeiro, 1993.
artistas de Engenho de Dentro e foi inaugura- As exposições sempre atraíram grande
da em 12 de outubro de 1949. No prefácio do público, pelo fascínio das formas ou pela reve-
catálogo, a drª Nise afirma: lação do inconsciente, destacando-se Imagens
O diretor do Museu de Arte Moder- do inconsciente (no Museu de Arte Moderna
na de São Paulo visitou o estúdio de do Rio de Janeiro, por ocasião do centenário
pintura e escultura do Centro Psiqui- de C. G. Jung, em 1975), Os inumeráveis esta-
átrico do Rio e não teve dúvida em dos do ser (no Paço Imperial do Rio de Janeiro,
atribuir valor artístico verdadeiro a em 1987, e em Roma, em 1996, como repre-
muitas das obras realizadas por ho- sentante dos países de língua portuguesa, por
mens e mulheres aí internados. Tal- ocasião das comemorações dos 50 anos da Or-
vez esta opinião de um conhecedor ganização das Nações Unidas/ONU) e Arqueo-
de arte deixe muita gente surpreen- logia da psique (na Casa França-Brasil, Rio de
dida e perturbada. É que os loucos Janeiro, em 1993, e em outras capitais brasi-
são considerados comumente seres leiras). Em 2000, na Mostra do Redescobrimen-
embrutecidos e absurdos. Custará to no Parque Ibirapuera (SP), participamos do
admitir que indivíduos assim rotula- Módulo imagens do inconsciente, que inseriu,
dos em hospícios sejam capazes de de forma definitiva, esses artistas dentro da
realizar alguma coisa comparável às história das artes brasileiras.

Emygdio de Barros Emygdio de Barros

NOV 2003 / DEZ 2003 77


C U LT U R A

As imagens produzidas Em 1954, depois de reunir centenas


no ateliê levantavam questões dessas imagens, drª Nise escreve carta ao pro-
e interrogações que não en- fessor Jung, enviando fotografias e levantan-
contravam resposta na forma- do questões sobre sua significação e origem.
ção psiquiátrica acadêmica. A resposta afirmativa foi imediata: eram
Essas questões impulsiona- mandalas, que representavam o potencial
ram a drª Nise para a busca de autocurativo existente na psique como forma
conhecimento e aprofunda- de compensar a dissociação. Drª Nise viu-se
mento dos processos que se diante de uma abertura nova para a compre-
desdobravam no interior da- ensão da esquizofrenia. Esse encontro trou-
queles indivíduos, revelados xe de forma definitiva a psicologia junguiana
por meio das imagens e sím- para o Brasil.
bolos. Após visita ao museu, Como fazer essas forças curativas ma-
em 1974, Ronald Laing, expo- nifestarem-se no ambiente hostil que nor-
ente da psiquiatria inglesa, malmente é o hospital psiquiátrico? Confir-
deixou escrito que o trabalho mava-se, mais uma vez, a importância do
lá realizado representa uma ambiente favorável e do afeto para que o
contribuição de grande im- processo de cura pudesse acontecer. Em seu
portância para o estudo cien- espaço de trabalho, nunca houve grades, e
tífico do processo psicótico. as pessoas que o freqüentavam eram cha-
Essas pesquisas, con- madas pelo nome. Era o afeto catalisador –
Lúcio Noeman
trariamente à visão psiquiátri- assim chamado pelo monitor nas oficinas,
ca predominante, nunca pro- como também a utilização do animal na te-
curaram descobrir patologia nas produções, rapia –, numa analogia à química, que assim
mas sim penetrar nas dimensões e nos mistéri- classifica as substâncias que aceleram a ve-
os dos processos do inconsciente. As imagens locidade das reações.
constituem material sadio, universal, e, muitas Em 1981, a doutora publicou o livro
vezes, sua compreensão se faz por meio da pes- Imagens do inconsciente, traduzido para o
quisa comparada com as histórias da religião, inglês. Durante a sua produção, à medida que
da arte, mitologia etc., numa verdadeira arque- o trabalho evoluía, o texto era enviado junta-
ologia da psique. mente com as fotografias das imagens para
No acervo do Museu de Imagens do In- submetê-lo à apreciação de Marie-Louise von
consciente, temos centenas de exemplos des- Franz, uma das mais importantes colabora-
ses paralelos, constituindo numa verdadeira doras de Jung. Em quase todas as suas res-
viagem pelo tempo, desde o período neolítico, postas, breves e sintéticas, vinham elogios:
passando pela civilização egípcia, indo-persa e “É muito reconfortante saber que alguém
grega, até a alquimia na Idade Média. A emer- compreendeu tão bem Jung do outro lado
gência em nossos dias de conteúdos e símbo- do mundo. E eu admiro a clareza e a coragem
los, que fazem parte da história humana em pela qual você diz o que deve ser dito”.
diferentes épocas e locais, comprova a Em 1956, a drª Nise fundou a Casa das
historicidade e a atemporalidade da psique. Palmeiras, uma experiência piloto em psiqui-
atria que tem como princípio evitar o ciclo de
reinternações e que é destinada ao tratamen-
Mandalas
to e à reabilitação, funcionando em regime
A ferramenta principal para a prática terapêu- de externato. A experiência lá desenvolvida
tica e a compreensão das imagens que surgi- abriu portas para o surgimento de diversos
am espontaneamente nos ateliês veio por tipos semelhantes de instituições, sempre em
meio da psicologia junguiana. A drª Nise ob- regime de externato, implantando uma nova
servou que as formas circulares ou próximas política de saúde mental que procura evitar
do círculo apareciam em grande quantidade as onerosas e cruéis internações, colaboran-
na pintura das pessoas esquizofrênicas. Como do para a extinção gradual das instituições
interpretar esta aparente contradição: pesso- asilares. Iniciativas como o Espaço Aberto ao
as definidas como seres partidos (esquizo = Tempo, no Rio de Janeiro, e os Centros de
cisão, phrenis = pensamento) produzindo, Atenção Psicossocial (Caps), inicialmente or-
de forma espontânea, o símbolo universal da ganizados em Campinas, São Paulo e Santos,
unidade, o círculo? espalham-se pelo país.

78 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE

Seu trabalho renovador na psiquiatria O Museu de Imagens do Inconscien- * Luiz Carlos


encontrou muitas dificuldades. Por seu espírito te encontra-se à disposição do público para Mello
combatente, denunciando as formas agressivas visitas, estudos e pesquisas. Promove expo- Diretor e curador do
de tratamento e internação, foi perseguida e boi- sições em sua sede e fora dela, cursos, visi- Museu de Imagens do
cotada. Por falta de recursos, muitas vezes os tra- tas orientadas, apresentação de vídeos e gru- Inconsciente

balhos no ateliê eram feitos em jornais, nos diári- po de estudos. No museu, pode-se constatar
os oficiais que pegava na administração, para que a importância de Nise da Silveira, que, pelo
os freqüentadores não deixassem de desenvolver seu trabalho revolucionário, acumulou ao
suas atividades. A incompreensão do seu traba- longo da vida títulos e prêmios em diferen-
lho pioneiro no uso de cães e gatos como co- tes áreas do conhecimento: saúde, educa-
terapeutas levou-a a enormes sofrimentos com o ção, arte e literatura. Seu trabalho e seus
desaparecimento e o envenenamento de animais. princípios inspiraram a criação de museus,
Naquela época, manteve correspondência com centros culturais e instituições psiquiátricas
pesquisadores americanos estadunidenses sobre no Brasil e no exterior.
a relação ser humano/animal. Um deles, o psica- No dia 14 de agosto de 2003, o Con-
nalista estadunidense Boris Levinson, comentou selho do Instituto do Patrimônio Histórico
sobre a morte dos animais: “Sem dúvida, para e Artístico Nacional aprovou, por unanimi-
muitos desses doentes, os animais eram sua úni- dade, o tombamento das principais cole-
ca linha de vida para a saúde mental”. ções do museu.

O bem versus o mal


Lúcio, um escultor extraordinário, participou Esse exemplo de destruição de um
da exposição 9 artistas de Engenho de Den- indivíduo foi denunciado por Nise da
tro. Suas obras representavam guerreiros para Silveira de diversas maneiras: em livros,
protegê-lo na sua luta cósmica contra as for- palestras e no 1 o Congresso Mundial
ças do mal. Foi lobotomizado na mesma época de Psiquiatria. Ela não só se negava a
do evento, apesar de todas as investidas de realizar tais práticas como também as
Nise da Silveira contra tal cirurgia. O médico combatia com todas as suas forças.
responsável pela operação publicou artigo na “A beleza das imagens do inconscien-
Revista de Saúde Mental, onde apresentava te é denúncia. Denúncia do asilo, do
o hemisfério cerebral antes e depois da ope- exercício burocrático das profissões
ração. Drª Nise, posteriormente, publica na psiquiátricas e da sociedade que culti-
mesma revista a produção plástica de Lúcio va tais deformidades”.
antes e depois da operação. Seus trabalhos Essa operação, feita há tantos anos,
tornaram-se irreconhecíveis, regredindo à não é coisa do passado. A Comissão de
mais primária condição. O alienista responsá- Direitos Humanos da Câmara dos De-
vel por esse procedimento escreveu no pron- putados, no ano de 2000, formou ca-
tuário, numa entrevista com Lúcio, após a ravanas que visitaram instituições psi-
operação: “Ele diz: enfiaram ferros na minha quiátricas por todo o Brasil. Elas cons-
cabeça e transformaram a luta entre o bem e tataram a realização de neurocirurgias
o mal numa luta de gato e rato”. no estado de Goiás.

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80 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

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