Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mundo pós-Cancún
Mark Ritchie
Nebulosidades em
relações inter-raciais
Laura Moutinho
O impacto do
acordo com o FMI
Alex Jobim Farias, Pedro
Quaresma e Júlio Miragaya
Imagens do inconsciente
Luiz Carlos Mello
E D I T O R I A L
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Por um comércio
global sustentável
O Fórum Social Brasileiro esteve voltado
para três dimensões específicas do mun-
mentos que emergiram do seio da sociedade civil sobre as formas de reformular o sistema
1 Texto produzido a partir de
global, de maneira que tanto os Estados-nação como as agências internacionais possam nos dar paper para o ciclo de semi-
nários Agenda Pós-neoliberal
(no Fórum Social Brasileiro
um melhor auxílio na tarefa coletiva de construir um desenvolvimento humano social, econômi- 2003), organizado pelo Ibase
em parceria com ActionAid,
Fundação Rosa Luxemburgo e
co, ecológico e politicamente sustentável. Attac Brasil.
Em primeiro lugar, uma opinião geral sobre atuais desequilíbrios em âmbito mundial em
comércio, a OMC e a legislação e política de termos de poderio econômico e militar, esses
comércio como um sistema mais amplo. O acordos têm de ser forjados e buscados em
desenvolvimento e a preservação, ao máximo todas as esferas e em combinações diversas, a
possível, das culturas, das comunidades e das fim de proteger o âmbito local e promover a
economias locais são fundamentais. Criar e sustentabilidade econômica, ecológica e soci-
defender um alto grau de diversidade econô- al. Regras de comércio bem elaboradas tam-
mica, social, cultural, artística, política e bioló- bém são importantes para o enfrentamento
gica é tanto uma questão básica de direitos de alguns conflitos internos de ordem econô-
humanos como de sobrevivência humana. A mica, como a guerra entre Iraque e Kuweit,
tendência a pensar dessa forma é cada vez mais que culminou na Guerra do Golfo.
intensa, à medida que o te- De fato, sabemos como estruturar o
mor vai aumentando diante comércio para que seja sustentável, mas isso
O comércio do desconhecimento sobre os não acontecerá por acidente ou pela magia
riscos relacionados à predo- das “mãos invisíveis” ou dos punhos cobertos
tem de ser minância atual de um modo
de vida baseado na indústria
com luvas de veludo. O comércio, como todos
os outros negócios, tem de ser administrado
4 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL
as duas dúzias de países industrializados que globais – aqueles que são bons tanto para o
compõem a Organização para a Cooperação e Norte como para o Sul. A Índia esteve pratica-
o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como mente isolada na sua posição quanto aos te-
órgão do sistema global das Nações Unidas, mas de Cingapura, durante a reunião ministe-
as instituições que elaboram políticas de co- rial da OMC, realizada anteriormente em Doha,
mércio (como a primeira dessas instituições, a no Catar. Em Cancún, a Índia integrou uma
Organização Internacional do Comércio, a enorme coalizão. O ativismo cidadão sobre es-
Conferência das Nações Unidas para o Comér- sas questões foi crucial para que os governos
cio e Desenvolvimento (Unctad) e mesmo o pudessem perceber o que estava em jogo e com-
preâmbulo da OMC) têm produzido parte do preender que havia espaço para resistir. Porém,
mais avançado pensamento e da retórica nes- essa resistência teria sido inútil, caso a Índia
sa área. Infelizmente, na prática, nunca cum- não tivesse se posicionado
priram sua missão progressista de pleno em- com firmeza em Doha. Se, por
prego, justiça e processo democrático globais. um lado, a pressão e o des- As instituições
Em segundo lugar, a OMC tornou-se a respeito sofridos pelos países
instituição de economia internacional sobre a
qual a sociedade civil e cidadãos e cidadãs indi-
que exercem seu direito de
dizer não aos Estados Unidos
que elaboram
vidualmente detêm mais informação e na qual
suas ações de exigibilidade (advocacy) têm sido
e à União Européia ainda se-
jam extremamente fortes – in-
políticas de
as mais eficazes. A natureza altamente reserva-
da e antidemocrática do Acordo Geral de Tari-
suportáveis para alguns –, por
outro lado, a reunião de comércio têm
fas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), o Cancún mostrou que alguns
antecessor da OMC, combinada com as conse- governos, em especial quan- produzido parte
qüências bastante negativas sofridas por pro- do se articulam numa ampla
dutores, classe trabalhadora e pelo meio ambi- coalizão, conseguem exercer do mais avançado
ente, resultantes das negociações anteriores, seus direitos dentro desse
fez da OMC o alvo provavelmente do maior mo- modelo de consenso. pensamento e da
vimento mundial desde a guerra do Vietnã. A quarta razão para
Tanto por meio da ação direta e orga-
nizada de exigibilidade como da participação
sermos otimistas é que, en-
tre as agressões generaliza-
retórica nessa
ampliada pelo trabalho de parlamentares, ci-
dadãos e cidadãs do mundo todo vêm contri-
das da parte de alguns in-
tegrantes do governo esta-
área. Infelizmente,
buindo na definição de uma agenda e influ- dunidense ao sistema inter-
enciando no próprio processo. Somente agora nacional, há a reivindicação na prática, nunca
estamos começando a compreender o proces- de alguns pela extinção da
so de lobby e exigibilidade mundiais e, com OMC ou, simplesmente, que cumpriram sua
certeza, somos fracos em muitos aspectos. ela seja ignorada. Essa ame-
Porém, entre todas as ações de exigibilidade aça contra todo o sistema missão progressista
cidadã mundial do momento, a ação perante das Nações Unidas – até
a OMC é a mais avançada. As lições tiradas de contra os direitos econômi-
outras importantes iniciativas da cidadania cos, sociais e humanos, os tratados ambien-
mundial, como o boicote à Nestlé, o Tratado tais, instituições e agências – é a mais séria e
de Minas Terrestres e a Convenção sobre Di- mais perigosa que já vi em toda a minha vida.
versidade Biológica, começam a se fundir e a A ameaça à própria sobrevivência da OMC
se amalgamar, depois de quase 20 anos de criou uma atmosfera, pela primeira vez, pro-
ação de exigibilidade cidadã perante o Gatt e pícia à realização de um diálogo aprofunda-
a OMC, para então tomar a forma de uma es- do sobre sua reformulação.
trutura de efetiva ação de exigibilidade cidadã Quinta e última razão, porque é pro-
global. Essa estrutura que está se formando funda a compreensão, a solidariedade e a co-
não é sinônimo de democracia global, mas ain- operação ativa global no momento – no Nor-
da assim é importante. te, no Sul, no Leste e no Oeste. Isso é percep-
A terceira razão tem a ver com a estrutura tível em relação tanto à sociedade civil como à
da OMC. Nela, é necessário haver consenso em construção de relações entre governos. É a
muitas áreas para que as negociações possam nossa chance de aproximarmos lições, experi-
prosseguir e isso a torna uma instituição ideal ências, estímulo, energia, sabedoria, informa-
para a construção de acordos verdadeiramente ção e recursos dos companheiros de todo o
planeta num momento de participação e, as- pessoas que já estão capacitadas nesses as-
sim, prosseguir cada vez mais para o progres- pectos. Entretanto, é preciso mais do que isso
so do desenvolvimento humano sustentável e para que possam efetivamente produzir algo
pelos direitos humanos. inovador e realizar ações de exigibilidade em
Cancún pode ser considerado um su- arenas globais. Isso tem de ser buscado em
cesso. Esse ponto de vista tem sido criticado todas as esferas – na base (por exemplo, em
por algumas pessoas que acreditam que cada grupo formado nas igrejas) e na mídia
Cancún foi um fracasso, uma vez que os go- de massa (utilizando todos os meios disponí-
vernos perderam a chance de avançar em ques- veis). Trazer mais os nossos representantes,
tões importantes e de preocupação para o democraticamente eleitos, especialmente os
mundo em desenvolvimento. Se Cancún se parlamentares, para dentro do processo de ela-
constituiu verdadeiramente num novo come- boração de políticas de comércio também faz
ço ou meramente em outra oportunidade que parte desse esforço. A presença em Cancún, pela
se deixou escapar, somente daqui a cinco ou primeira fez, de um grande número de parla-
dez anos será possível avaliar melhor. O im- mentares federais e estaduais, bem preparados,
portante, entretanto, é que nós, que acredi- talvez tenha tido mais impacto no resultado das
tamos no sistema multilateral, devemos to- reuniões do que a presença das ONGs.
mar esse caminho que se vê através da janela Quanto à terceira tarefa, precisamos
aberta em Cancún, apropriando-nos do usar este momento na história da OMC – no
momentum que foi gerado, para avançar no qual parece haver uma abertura para um novo
desenvolvimento humano sustentável. A His- pensamento e para a reformulação – e pressi-
tória nos julgará, não pelo que fizemos em onar por reformas estruturais no modo de
Cancún, mas pelo que fizermos de Cancún. operação dessa instituição. Por exemplo, uma
boa maneira de começar seria por meio de um
processo de revisão, aberto e público, dos
Trabalho a cumprir
potenciais candidatos ao cargo de diretor ge-
Mas o que isso significa em termos concretos ral e do estabelecimento de normas de proce-
para cidadãos e cidadãs e movimentos soci- dimento de negociação que fossem monito-
ais? Creio que existem seis tarefas importan- radas e cumpridas. A metodologia usada na
tes à nossa frente. realização das sessões de negociação – infor-
Primeiro, temos de prosseguir na ori- malidade, participação limitada de represen-
entação geral de tornar as negociações real- tantes e inexistência de documentação sobre
mente globais. Isso significa dar apoio a todo as posições tomadas pelos negociadores – tor-
e qualquer esforço para se obter um maior na não-transparente o processo de negocia-
engajamento de todos os países membros da ção. Executando-se a reformulação nos proce-
OMC numa participação ativa nos debates dimentos, como a que foi proposta por vários
importantes. Isso poderá demandar o desen- países membros antes de Cancún, essa situa-
volvimento de uma relação de consultoria téc- ção pode ser revertida.
nica com as ONGs e mesmo a realização de Para a quarta tarefa, precisamos escla-
treinamento e elaboração de programas e recer qual é o papel de uma gama de institui-
materiais didáticos. Por exemplo, se as políti- ções regionais e globais em relação à política
cas agrícolas do governo federal estaduniden- de comércio e dar um sentido a esse grupo de
se tendem a ser um tema de suma importân- instituições. Por exemplo, vários dos assuntos
cia, então o melhor a fazer seria dar capacitação explosivos levantados pelos governos do Ter-
aos negociadores e seus assessores sobre o ceiro Mundo em Cancún, como os problemas
real conteúdo e abrangência dessas políticas desastrosos enfrentados pelos produtores de
do que ter uma retórica sobre política agrícola café e algodão no mundo em desenvolvimen-
vazia e desprovida de instrução que tão fre- to, são questões relacionadas a commodities
qüentemente ouvimos, tanto da parte das que normalmente seriam tratadas no âmbito
ONGs como de governos. da Unctad.2 Um dos principais focos dessa reu-
Segundo, temos de ampliar, de forma nião tratará do aspecto do suprimento no co-
significativa, nossos esforços em relação às pes- mércio. Em todo o globo, há muitas pessoas
soas e às organizações, buscando elevar a cons- sérias, mesmo líderes conservadores como o
cientização, a análise crítica e a capacidade de ex-primeiro-ministro canadense, Brian Mulroney,
2 A 11a Conferência Ministerial desenvolver propostas alternativas. Em alguns pedindo por uma segunda Conferência de San
da Unctad será realizada em
São Paulo, em junho de 2004. setores, como o da agricultura, há muitas Francisco, numa alusão à fundação das Nações
6 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL
Num segundo grupo, estão aqueles que do seus mandatos ou competências, ou que
acreditam que a forma mais eficiente de man- sejam obviamente incapazes de liderar. Impor-
ter os Estados Unidos no poderio mundial é tantes demandas vindas das muitas vozes crí-
manifestando esse poder por meio do multila- ticas à globalização demonstram a necessida-
teralismo e de instituições globais, como o sis- de de reforma radical, até mesmo propostas
tema das Nações Unidas – que inclui a OMC. de governos do tipo “enxugamento ou encer-
Uma vez que os recursos mundiais precisam ser ramento”, referindo-se ao escopo da OMC.
compartilhados de forma mais eqüitativa e que Uma demanda conseqüente dessa posição é a
isso requer uma redefinição do atual equilíbrio do movimento global de produtores exigindo
de forças no mundo, é inaceitável essa suposi- a “retirada da OMC da agricultura” como uma
ção de que o sistema multilateral deva ser usa- forma de resolver as muitas injustiças e pro-
do para manter o status quo. blemas relacionados à soberania e à seguran-
No entanto, pode-se acredi- ça alimentar que são, em parte, resultantes do
Apoiamos o tar numa articulação com pes- atual acordo agrícola da OMC.
soas que vêem nesse pensa- Há um quarto ponto de vista comparti-
sistema mundial, mento a perspectiva de formar
alianças táticas.
lhado por muitos amigos e aliados que acre-
ditam que as instituições estão tão presas a
8 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL
agora numa nova era – num tempo onde a esforços empreendidos pelo Brasil e o G-20
agenda neoconservadora dos assuntos ex- em Cancún – e agora estaremos nos ocu-
ternos e militares está articulada às políticas pando de um debate concreto global sobre
neoliberais para os assuntos de negócios e o papel das Nações Unidas, da força militar
da economia. Enquanto os seu efeitos de- e do unilateralismo.
sastrosos podem ser vistos em cada lugarejo Talvez tão importante quanto ter al-
do planeta, as chances de mudança como çado globalmente essas questões seja, ao
resultado desse casamento arrasador são mesmo tempo, ver a sua projeção nos Esta-
igualmente dramáticas. Sem os resultados dos Unidos. Não há como fazer uma crítica
cruéis da sinergia entre comércio e o milita- de todos os pormenores desse extenso de-
rismo neoconservadores, a articulação entre bate hoje, mas é cabível dizer que nunca vi-
o governo brasileiro e o G-20 em Cancún vemos uma época de maior
não teria sido possível. A combinação entre perigo político nos Estados
a perpetuação de políticas de comércio mer- Unidos – e isso inclui a de Temos a chance
cantilistas e “hegemonia global”, por meio Richard Nixon e outros – e
de uma política externa militarizada, criou
uma situação política quase insustentável
nunca houve um momento
de maior debate público so-
de desbancar os
para os Estados Unidos.
Enfraqueceu a parceria entre os Esta-
bre o papel do governo nos
assuntos internos e exter-
domínios tanto
dos Unidos e a Europa de forma drástica –
impossibilitou que formassem um front sóli-
nos, e o papel dos Estados
Unidos especificamente nas neoliberal como
do em Cancún. Significou que os Estados Uni- questões globais. Como na-
dos ignoraram os apelos desesperados de ção, fomos partidos ao meio neoconservador
países sem recursos, como as nações depen- sobre a guerra mantida pela
dentes do comércio do algodão na África Oci- administração Bush contra o exatamente
dental, que deixaram perfeitamente claro que, Iraque e continuamos pro-
sem uma flexibilização, não teriam razão para fundamente divididos hoje. porque estão
negociar nada. Para completar, além dessas O importante, entretanto,
questões específicas de política, havia tam-
bém a arrogância e a cegueira decorrentes da
não são os números das
pesquisas sobre a política
relacionados
motivação ideológica. Muitos integrantes da
delegação estadunidense, tanto do governo
de guerra, mas a profundi-
dade e o escopo do debate
agora
como do setor empresarial, ficaram bastante em que estamos engajados.
satisfeitos com o resultado de Cancún. Viram Grande parte da sociedade
ali a oportunidade para colher argumentos – muito, muito mais do que jamais se teve
em favor de sua causa pelo futuro abandono notícia – está engajada na discussão de
do processo multilateral e pelo uso das ne- questões importantes sobre economia, co-
gociações bilaterais e regionais, como a Área mércio, direitos humanos, guerra e paz. Esse
de Livre Comércio das Américas (Alca), como debate se intensificará à medida que entrar-
o espaço onde os Estados Unidos podem mos nas próximas eleições.
obter tudo o que querem sem ter de fazer Nossa agenda política externa e inter-
concessões, além das promessas de que se na depois do neoliberalismo e do neoconser-
empenharão ao máximo. vadorismo tem de ser um retorno à democra-
Talvez sendo excessivamente otimis- cia e à prevalência da lei. E temos de dar uma
ta, possamos afirmar: temos a chance de ênfase especial à garantia de que estamos
desbancar os domínios tanto neoliberal todos, por meio de procedimentos democrá-
como neoconservador exatamente porque ticos e dos direitos humanos, aptos a partici-
estão relacionados agora. Até há pouco par da criação de leis que nos governarão.
tempo, a separação dessas agendas – por Nos Estados Unidos, as questões de raça
exemplo, na administração anterior – tor- são o elemento definidor da vida pública. Até
nava quase impossível reunir forças tanto hoje, apesar de anos de trabalho com afinco,
dentro como fora dos Estados Unidos para sacrifício e grandes avanços, uma raça – grande
se criar um autêntico desafio a elas. Hoje, parte da classe governante pertence a essa raça
porém, podemos comemorar o início da – elabora a maioria das leis a que outros devem
verdadeira negociação do comércio no âm- obedecer. Sabemos que o governo da elite pela
bito da OMC – graças, em grande parte, aos elite na realidade não trabalha para os que
* Mark Ritchie estão no âmbito local e nacional. Não é difícil mais importante lição do encontro foi quan-
Economista, Institute for adivinhar que globalmente fariam o mesmo. Uns do insistiram firmemente em dizer que a fun-
Agriculture and Trade poucos elaborando leis, como insignificantes ins- dação desse sistema deu-se, principalmente
Policy (IATP) trumentos de governança, em benefício de si e acima de tudo, numa tentativa desesperada
mesmos. A agenda pós-neoliberal é a democra- de encontrar um caminho para a paz mundial
cia em todos os níveis – o detalhamento fica por e assegurar a justiça econômica, social e polí-
conta daqueles que virão depois de nós. Porém, tica. Precisamos retomar esse foco primordial
se, e somente se, tivermos êxito em suplantar o – este é o momento de maior abertura, mas
domínio desses poucos, que é imposto com ar- não vai durar muito. Esse futuro democráti-
mas de destruição em massa e podem ser usa- co, porém, não nos será entregue nas mãos.
das contra os muitos. Até que, de fato, suplan- Teremos de trabalhar dia e noite para superar
temos essa elite e sua forma de governança aqueles que escolheram a guerra civil mundi-
aterradora, continuaremos todos a ser aterrori- al como forma de defender seus privilégios
zados pela guerra civil em escala global. ou como forma de resistência à exploração.
Devemos rejeitar qualquer opção que Talvez, a agenda pós-neoliberal para
nos leve em direção à guerra civil. É um futuro muitos de nós seja rigorosamente a mesma de
demasiado terrível para se imaginar. Devemos antes. Devemos continuar a usar a não-violên-
reagir a isso, tomando o caminho da demo- cia assertiva e mesmo agressiva na luta pela
cracia, reiteradamente defendendo-a por meio segurança, sustentabilidade e por um sentido
da não-violência. Essa tem de ser a nossa agen- de comunidade dentro de um contexto glo-
da pós-neoliberal e neoconservadora. bal. Devemos ser contrários à guerra civil lo-
A reunião organizada pela IATP reuniu cal, nacional e global por meio da luta pela
os fundadores da maioria das instituições cri- contínua expansão da democracia e dos direi-
adas depois da Segunda Guerra Mundial, in- tos humanos dentro da arena internacional.
cluindo ONU, Organização das Nações Uni- A democracia – no local de trabalho,
das para Alimentação e Agricultura (FAO, na em nossas cidades e nações, na arena global –
sigla em inglês), Declaração Universal dos Di- deverá ser ganha, depois ganha de novo e,
reitos do Homem e todas as agências de novamente, ganha outra vez. Devemos fazer
Bretton Woods, como o Banco Mundial e o isso por nós mesmos e por outros que nunca
FMI. O motivo do encontro era o 50 o aniver- conheceremos. Devemos fazer isso por este
sário da Conferência de Bretton Woods. A momento e por eras que jamais veremos.
O que fazer?
O projeto Agenda Pós-neoliberal tem o
objetivo de, a partir do reconhecimento da
diversidade de sujeitos e situações, criar
condições teóricas, políticas, metodológi-
cas e operacionais para a produção coleti-
va, sistemática e cumulativa de pensamen-
to estratégico sobre modelos de desenvol-
vimento humano democrático e sustentá-
vel. A iniciativa é do Ibase, em parceria com
Attac Brasil, ActionAid e Fundação Rosa Durante o primeiro Fórum Social Brasi-
Luxemburgo. leiro, realizado em Belo Horizonte, de 6 a 9
Pretende também fortalecer a capaci- de novembro deste ano, foi promovida sua
dade propositiva e de incidência dos dife- primeira atividade: o Ciclo de Seminários
rentes sujeitos sociais que se engajam, mun- Agenda Pós-neoliberal. O próximo encon-
dialmente, na busca de alternativas à glo- tro será em Mumbai, na Índia, durante o
balização neoliberal. Além disso, contribuir 4o Fórum Social Mundial, de 16 a 21 de ja-
para consolidar o processo do Fórum Soci- neiro de 2004. Em março de 2004, será no
al Mundial como um espaço em que a di- Fórum Social das Américas, em Quito, Equa-
versidade de sujeitos sociais se confronta, dor, e, em junho, na reunião da Unctad, em
elaborando convergências e divergências e São Paulo. Fechando o calendário, em no-
forjando uma cidadania de dimensões pla- vembro de 2004, acontecerá mais uma ro-
netárias, portadora de utopias e de trans- dada na Reunião dos Países do Cone Sul.
formação social. Mais informações: www.ibase.br
10 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas de
todo o país. Mas também trabalha-
doras e trabalhadores urbanos e ru-
rais, líderes comunitários, morado-
ras e moradores de comunidades
pobres. São 60 mil exemplares dis-
tribuídos gratuitamente.
Alcance e limites
das políticas
de identidade
ALEXANDRE RAJÃO
12 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
As reflexões que se seguem estão divididas O teorema subjacente ao conheci-
em cinco pontos: alcance e limites do conceito mento alquimista era de que have-
de direitos humanos; alerta sobre a perspecti- ria uma matéria-prima comum a
va de política de identidades e a riqueza das metais bastante diferentes entre si.
identidades (principalmente quando se rela- Para a produção de um metal supe-
cionam na transversalidade das identidades na rior, o ouro, haveria que combinar,
política); questões sobre o conceito de igual- por exemplo, cobre, ferro e prata.
dade; importância de investir também no con- Chegar a tal matéria, transforman-
ceito de geração; e, o desafio maior, a dialética do-a, exigia do alquimista experiên-
entre direitos e o investimento em des/recons- cia nas técnicas de laboratório e
trução de identidades (investimento na uma postura filosófica própria. O
criatividade, reinventar-se, ir além da socieda- alquimista seria um ativista, por um
de de classes e de discriminações de várias or- conhecimento militante. Ora, as ca-
dens, resgatando a força das linguagens iden- tegorias raça, gênero e geração têm
titárias; a riqueza do diverso e não-desigual em comum serem atributos com sig-
em relações de descoberta tanto no plano do nificados, histórias, políticas, cultu-
individual, sexualizado/racializado e engendra- rais e econômicas, organizados por
do por gerações e múltiplas referências como hierarquias, privilégios e desigual-
no plano de coletividades libertárias).1 dades, aparados por símbolos par-
Defendo a tese de que a alquimia raça- ticulares e “naturalizados”. A com-
gênero-geração tem potencialidades de cola- binação de categorias como gênero,
borar na subversão cultural do sistema de clas- raça e geração na classe não é uma
ses, indo, portanto, além da necessária – mas simples operação de somas de dis-
limitada – perspectiva de direitos humanos.2 criminações ou de linguagens pró-
Tal reprodução por diferentes desigualdades prias e pode dar origem a sujeitos
vem sendo registrada por ativistas e intelectu- políticos mais ricos e criativos, além
ais progressistas. Assim, por exemplo, no dos esquemas duais das identida-
dossiê Assimetrias raciais no Brasil: alerta para des-alteridades e este é um desafio.
elaboração de políticas, recém-divulgado pela (Castro, 1992, p. 59) 1 Adaptação de texto apresen-
tado pela autora no Fórum So-
Rede Feminista de Saúde, registram-se várias cial Brasileiro, Belo Horizonte,
desigualdades entre pessoas afrodescenden- Se, por um lado, o debate sobre identi- em 8 de novembro de 2003. O
tema proposto da mesa de
tes e brancas, enfatizando-se que, em muitas dades veio enriquecer o conhecimento/ conferências foi Justiça social,
dimensões, o gênero amplia distâncias. ativismo sobre a multiplicidade do real ou os direitos humanos, igualdade en-
tre homens e mulheres, gera-
Em 2001, as famílias afrodescenden- diversos sistemas de desigualdade/iniqüidade ções e superação do precon-
ceito racial no Brasil.
tes chefiadas por mulheres tinham um ren- sociais, por outro lado, há o risco de uma apre-
2 É um ganho da modernida-
dimento domiciliar médio de R$ 202. Já as ensão pós-moderna de tais sistemas – por raça/ de, em fases mais recentes,
que tinham como chefe um homem tam- etnicidade, gênero e geração, por enfoques reconhecer a dialética entre
direitos humanos, tendo como
bém afrodescendente estavam no patamar parcializados, reformistas e fragmentados –, referência a humanidade, e
direitos humanos de muitos,
de R$ 208,60. Se uma mulher branca fosse ou seja, de uma aposta em políticas de identi- considerando suas singularida-
recenseada como chefe, tal indicador subiria dade deixando de lado a riqueza das identida- des, tanto em termos de vul-
nerabilidades negativas como
para R$ 481,20. No caso dos homens bran- des na política. O desafio maior é como, ao de possibilidades, vivências e
linguagens próprias. Isso ocor-
cos, um pouco mais, R$ 482,10. Entre as me- mesmo tempo, combater uma e todas as ini- re quando se sai dos concei-
ninas afrodescendentes, dos 10 aos 14 anos, qüidades sociais, combinando, portanto, po- tos clássicos da virada do
século de uma cidadania so-
4,5% seriam analfabetas. As analfabetas en- líticas focalizadas e universais, fazendo o nexo cial, civil e política, para lidar
com as desigualdades de um
tre as meninas brancas perfaziam 1,3%. entre distintos movimentos sociais e não per- sistema de classe, mas ampli-
Esses dados são apenas uma amostra dendo a perspectiva político-crítica sobre a ando o debate sobre cidada-
nia cultural e entrelaçando
de ampla gama de indicadores contrapostos sociedade estruturada em classes sociais. uma na outra, reconhecendo
as singularidades de muitos.
no dossiê para indicar hierarquias perversas, É preciso que a política de cotas nas E também quando se passa a
mesmo entre as pessoas pobres. Note-se que universidades venha acompanhada de ações fazer referências aos direitos
humanos das mulheres, dos ho-
o dossiê sobre assimetrias raciais é elabora- afirmativas, bolsas para estudantes pobres e mossexuais, dos negros, dos in-
dígenas, dos migrantes, das
do e divulgado por uma agência feminista, a melhoria do ensino das escolas públicas. Mas crianças, dos jovens, dos mais
Rede Feminista de Saúde, o que é um grande não dá para usar a necessidade de tais políticas velhos e de tantas outras po-
pulações que, por construções
avanço, apontando para a possibilidade do de afirmação universal de direitos para adiar sociais pautadas em desigual-
dades e iniqüidades sociais,
desafio maior desses tempos: a alquimia dos ainda mais o pagamento da dívida para com as são, em suas próprias classes,
enfoques sobre identidades para um conhe- populações afrodescendentes. Então, defenda- o outro ou a outra do outro e,
assim, mais negativamente
cimento e uma ação transformadores. mos as cotas. Temos de estar conscientes que vulnerabilizados que outros.
14 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE
16 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE
é comum ouvi-los (entre 14 e 15 anos) de- não foi planejada e que, em quase 70% dos
clarar: “Queremos ter um trabalho”. O direi- casos, as jovens não usaram nenhum méto-
to de ter tempo para brincar e para estudar do anticoncepcional na primeira relação
não é reconhecido pelos próprios adolescen- sexual (Camarano, 1998).
tes, ante suas necessidades e da família. Já outras pesquisas, de cunho mais an-
Abdica-se da reivindicação do seu direito a tropológico, consideram que a gravidez entre
estudar e não declaram que querem bolsas adolescentes não se associaria necessariamen-
de estudo, condição para que só estudem. A te à falta de conhecimento sobre métodos de
busca por trabalho é prioritária para jovens controle de natalidade pela mulher e que, para
pobres: em algumas das entrevistas com jo- muitas jovens, o corpo é uma fronteira de po-
vens que estudam e não trabalham, perce- der, e a gravidez, um poder simbólico de múl-
be-se que, se aparecer uma oportunidade de tiplos sentidos. Principal-
trabalho, o estudo é abandonado, mesmo mente entre as jovens
que seja um trabalho de ganhos imediatos, mães de 15 a 19 anos, com
mas sem perspectivas a longo prazo. Limi- maior probabilidade se
tam-se expectativas de futuro e é favorecida
a perspectiva de garantir o presente, o que
destacam as pobres e as
que são classificadas
O feminismo
facilita, ainda, o envolvimento em violênci-
as. As condições de necessidades compro-
como pretas ou pardas. O
que, no imaginário juve- avançou muito
metem o direito ao sonho, a ter expectativas nil feminino, representa
quanto ao futuro. seu corpo e a gravidez é nos planos jurídico,
pouco explorado em ter-
Mulheres atuantes
mos de políticas educaci- político e formal,
onais preventivas ou de
O feminismo avançou muito nos planos jurí- socialização quanto às po- em termos,
dico, político e formal, em termos, principal- líticas de gênero, raça, ge-
mente, de visibilidade para violências
naturalizadas, tidas como coisas de marido e
ração e sexualidade.
A maior probabi-
principalmente,
mulher, por exemplo, ou de âmbito privado.
Mas se reconhece que ainda nesse campo são
lidade entre a metade
dos nascidos vivos de
de visibilidade
muitas as lacunas, e, entre elas, destacam-se
as relações de gênero entre jovens e a falta de
mães entre 15 e 19 anos
é a de quem vive em famí- para violências
políticas educacionais que trabalham com lia sem a presença do pai
conteúdos curriculares e práticas tradicionais biológico. A gravidez en- naturalizadas
nas escolas (Ver Abramovay e Rua, 2002, e tre adolescentes tem um
Castro e Abramovay, 2002). perfil social próprio: em
Graças a estudos de corte feminista, 1996, mais da metade das
sabe-se, por exemplo, que: a cada hora, sete adolescentes de 15 a 19 anos sem nenhum
mulheres são vitimadas em situações de vio- ano de escolaridade já tinham se tornado
lência doméstica no Brasil; 5 vem ocorrendo mães; já entre aquelas que tinham de 9 a 11
um rejuvenescimento das mortes por compli- anos de escolaridade, a proporção baixa para
cações obstétricas diretas, sendo que, em 4%. A taxa de fecundidade das jovens com
1994, só na região Sudeste, do total de mu- mais baixo rendimento (menos de um salário
lheres em idade reprodutiva que morreram mínimo) era de 128 por mil mulheres; entre as
por essas complicações, 12% tinham entre 15 jovens com rendimentos mais altos (dez salá-
e 19 anos; no Brasil, cerca de 15% dos óbitos rios mínimos ou mais), a taxa de fecundidade
de mulheres entre 15 e 19 anos ocorreram baixa para 13 por mil.
em virtude de abortos, quando em 1980 a Mesmo no feminismo, é ainda tema de
cifra foi de 8% (Berquó, 1999). pouco investimento as culturas juvenis e, ne-
A fecundidade entre mulheres jo- las, as identidades femininas jovens. Isso se
vens, na faixa entre 15 e 19 anos, vem cres- relaciona também ao fato de as mulheres jo-
cendo com mais intensidade a partir da dé- vens ainda não se constituírem em um coleti-
cada de 1980. Pesquisa quantitativa vo feminista, sujeito social de pressão social.
realizada entre 1989 e 1990 indicou que, Em resumo, frisa-se a invisibilidade de um su-
no Rio de Janeiro, em 58% dos casos, a pri- jeito coletivo que represente interesses e ne- 5 Dados coletados no UBM-bo-
letim pela Internet. Acesso
meira gravidez de jovens entre 15 e 19 anos cessidades das mulheres jovens. em: 8 mar. 2002.
Existe um vazio mesmo no plano de polí- O universo feminino juvenil – suas re-
ticas públicas por uma educação que colabore ferências culturais, os sentidos de seus corpos
em questionar a sexualidade tradicional, que – é silenciado por uma educação tradicional
invista na auto-estima das mulheres jovens e na ou por valores de uma adultocracia bem in-
formação de uma massa crítica juvenil. Na mídia, tencionada, mas distante de tal universo. Os
a violência é gratificada e o reconhecimento so- tempos são propícios para o desenvolvimento
cial da mulher passa pela coisificação do seu de um capital cultural político juvenil, com ori-
corpo, em especial, se jovem. Então, como pedir entação feminista própria, para que as jovens
às jovens, em particular às que vivem em bairros sejam sujeitos políticos por seus direitos.
pobres, afrodescendentes, dominadas por múl- De fato, nestes tempos muito se fala
tiplas violências, desempoderadas, sem perspec- da reinvenção da esperança, com a eleição
tivas, que se recusem a serem tratadas como coi- de um candidato das esquerdas. Mesmo que
sas, cachorras no pornofunk, quando seus o que tenhamos, na prática, sejam políticas
corpos são fronteiras, a última, a única de poder, sociais com alguma abertura e uma política
o poder da sedução, ainda que seja um poder econômica alinhada ao grande capital e in-
que a reduz a mais uma dominada, violentada? teresses das grandes potências e agências
Tênue fronteira
Na terceira linha do romance Cem anos de tar ancorados na materialidade de tempos e
solidão, de Gabriel García Márquez, lê-se: espaços, considerando-se, portanto, relações
“O mundo era tão recente, que muitas coi- sociais e jogos de poder. Então, cabe mesmo
sas não tinham nomes, e para indicá-las era aos movimentos no aqui e agora por focos,
necessário apontar”. Esse era o Gênesis. Em direitos e igualdades. Mas a materialidade das
outro período, no Apocalipse, o que tomou opressões, explorações e iniqüidades na distri-
seis gerações, a cidade de Macondo foi ata- buição de bens e riquezas várias é também a
cada por duas pragas: a da insônia e a da dinâmica da sua reprodução. Então, é limita-
perda da memória (el olvido). As pragas fo- do ater-se a cotas, direitos e focos.
ram trazidas por uma mulher, Rebeca. Para O texto sugere que significados, nomes
evitar a perda da memória, coisas e senti- e conceitos devem não estar claramente liga-
mentos foram rotulados com seus respecti- dos uns a outros e apontar para projetos e
vos nomes e significados, explicando para objetivos, mas podem ser usados para tais
que elas serviam. Foi quando se deram con- fins, o que alerta para a importância de se
ta da possibilidade de que viesse ocorrer cultivar certa insônia. Especialmente em tem-
outro problema: um dia as coisas seriam lem- pos em que bandeiras de movimentos pro-
bradas pelas inscrições, pelas etiquetas, pelo gressivos e da esquerda são apropriados e
que havia sido escrito sobre elas, mas não ressignificados por diferentes agências, como
pelos seus sentidos, por seus objetivos, ou é o caso dos princípios de cidadania, socieda-
seja, pelo que elas serviam. de civil, direitos humanos e direitos das mu-
Foi um velho cigano de pele escura, lheres, dos negros e dos jovens, democracia,
Melquíades, quem salvou a cidade de participação e associativismo e redes.
Macondo das duas pragas, servindo uma Tal vocabulário estabelece uma língua
poção mágica de suas alquimias que combi- franca que camufla significados, interesses e
nava ingredientes múltiplos. A porção fez funções, que podem ser parte de um discur-
com que as pessoas retomassem suas lem- so orientado para a defesa do mercado, me-
branças e, assim, se livrassem da perda de tamorfoseando políticas em defesa de espe-
memória (recuerdos contra el olvido). Tal cíficos grupos e temas – inclusões desse ou
texto instituinte da identidade latino-ameri- daquele grupo no mercado – em políticas de
cana flutua por entre linhas da minha dis- identidade, em referências fragmentadas,
cussão mais pedestre e abreviada sobre a boas para reivindicar direitos, leis e progra-
tênue fronteira entre possibilidades e riscos mas, mas não necessariamente para trans-
da perspectiva de enquadrar o feminismo, o formações ou para a emergência de não-
conhecimento e o ativismo do movimento identidades (ou de identidades libertárias,
negro e dos movimentos juvenis por pro- coletivas, que possam chegar a endereçar-se
gramas relacionados a políticas de identida- para uma humanidade colorida e diversifica-
de. Ou como movimentos restritos a políti- da, sem assimetrias). E, se é de esquerda que
cas de identidade, direitos humanos e por se fala, como reivindica Hobsbawn (1996),
igualdade com um outro que não é muito em última análise o projeto é para a humani-
questionado, mas tido como parâmetro. dade, remodelada e referenciada no embate
O trecho pinçado do romance de García entre classes, o que não autoriza leituras re-
Márquez chama a atenção para a história e ducionistas ou a perda de referências a múl-
para o modo como os conceitos deveriam es- tiplas dinâmicas de subordinação.
18 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE
20 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE
da sociedade civil, ao contrário, não faz com práticas de consumo, dos negócios e pelas * Mary Garcia
que sejam nítidas as diferenças das ONGs em políticas do Estado” (2003, p. 306). Ao mes- Castro
relação a movimentos sociais e movimentos mo tempo, é preciso fortalecer as agências e Pesquisadora da
populares. São válidos ares novos dos tem- os sujeitos políticos pelos direitos de cada Organização das Nações
pos. Mas insisto na tal plasticidade de eti- identidade, colaborar em redes entre movi- Unidas para Educação,
quetas sujeitas a distintos conteúdos, práti- mentos sociais e difundir a pedagogia mili- Ciência e Cultura no
Brasil (Unesco), membro
cas e instrumentalização por projetos políticos tante contra todas as discriminações.
da diretoria da União
não necessariamente libertários e radicais. Como bem adverte Hobsbawn (1996),
Brasileira de Mulheres,
Por outro lado, sem tanta mídia e, em se de esquerda se trata, o projeto revolucio-
pesquisadora associada
alguns casos, sem fundos de agências inter- nário é para a humanidade. Ora, tal projeto do Centro de Estudos
nacionais, em práticas diversas e em sítios teria maior possibilidade se fossem conside- Migratórios (Cemi) da
distintos, um feminismo estaria se insinu- radas nas estratégias organizacionais das es- Universidade Estadual
ando no Brasil, gestado na relação com o querdas necessidades simbólicas e materiais de Campinas (Unicamp)
movimento negro e as redes de entidades de distintas identidades de classe. Por outro e professora aposentada
juvenis. É híbrido porque se combina com lado, os projetos reivindicatórios de identi- da Universidade Federal
outros movimentos, muitas vezes em parti- dades específicas, como das mulheres e dos da Bahia (UFBA)
dos, sindicatos, em terreno bem demarca- afrodescendentes, assim como dos jovens e
do, à esquerda. Uma inter-relação ao mes- dos mais velhos, de classe, pouco avançam se
mo tempo movimentista e classista, isto é, estão restritos a políticas de identidades. No
com compromisso com a classe trabalhado- debate sobre estratégias de esquerda contra
ra e a flexibilidade para criação de estratégi- o neoliberalismo, ressalta-se a importância de
as, formas de ação dos movimentos sociais, articular redes e frentes. Deve-se insistir nos
o que exclui referências genéricas e recuerdos, nas lutas clássicas contra a socie-
naturalizadas a mulheres e homens, negros dade capitalista pautada em classes, combi-
e brancos, jovens e velhos ou adultos. 8 nando-as com a riqueza das linguagens
Tal orientação timidamente viria se afir- libertárias de diversas identidades, e ocupar
mando na região, em Organizações de Base espaços na política formal, brigar por direi-
Comunitária (OBC), ONGs de pequeno porte tos, justiça social, igualdades, sim, mas cui-
com orientação advocatícia, entidades que dado com o olvido. E que a institucionalida-
combinam orientações alquímicas ou um sa- de não nos faça abdicar da radicalidade.
ber ativista enredado. Mas tal saber ativista
militante é ainda uma promessa, ou seja, é
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
preciso reconhecer e brigar pelos direitos das
ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violência nas escolas.
identidades e colaborar em projetos de soci-
Brasília: Unesco, 2002.
edades além das fronteiras identitárias, quan- BERQUÓ, Elza. (Org.) Morbimortalidade feminina no Brasil.
do essas representam não a diversidade ou Campinas: Unicamp, 1999.
as diferenças criativas, mas desigualdades CAMARANO, Ana Amélia. Fecundidade e anticoncepção da
população jovem. In: CNPD. Jovens acontecendo nas
pautadas em assimetrias.
trilhas de políticas públicas. Brasília: CNPD; Ipea, 1998,
Não basta referir-se a múltiplas iden- p. 109-134.
tidades e desigualdades sociais e advogar CASTRO, Mary Garcia. Produção político-cultural da sexualidade –
sua alquimia para uma ação transformadora Violência contra as mulheres e o caso das jovens. Mátria,
São Paulo, p. 20-23, 2003.
de mentalidades e ambiências. Cada identi-
_____. Identidades, alteridades, latinidades – Introdução. Caderno
dade se realiza por sistemas de discrimina- CRH, 32, p. 11-21, 2000.
ções e ideologias que lhe são apropriadas. _____. Palavras em busca de corpo e terras – Identidade,
Portanto, não basta reacessar o debate so- identificação, políticas de identidade. Leituras de
esquerda. Caderno CRH, p. 55-87, 2000.
bre classes sociais, mas também não o subs-
_____. Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos
tituir e enriquecê-lo, considerando a políticos. Revista Estudos Feministas, v. 0, p. 57-74, 1992.
multiplicidade do real. CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam. Por um novo
Como afirma Telles, as desigualdades paradigma de fazer política: políticas de/com/para
juventudes. Brasília: Unesco, 2003.
raciais no Brasil não são “meramente o resul-
_____. Drogas nas escolas. Brasília: Unesco, 2002.
tado da escravidão ou de grandes desigual- Rede Feminista de Saúde. Assimetrias raciais no Brasil: alerta para
dades de classe, mas de uma contínua práti- a elaboração de políticas. Coord. Wânia Sant’Anna. Belo
ca social preconceituosa, de cunho racial. A Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2003.
HOBSBAWN, Eric. La política de la identidad y la izquierda. Debate
noção popular sobre raça é transmitida atra-
Feminista, México, ano 7, v. 14, outubro, 1996.
vés de estereótipos da mídia, de piadas, das TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva
8 Sobre a idéia de organizações
com orientação movimentista e
redes sociais, do sistema educacional, das sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. classista, ver Therborn (1995).
50 anos
de histórias e desafios
Neste ano, a Petrobras – e, por conseguinte, a indústria brasileira do petróleo – está
brasileiro nesse setor. De fato, o poço do coronel Drake, marco inicial da era indus-
Portanto, há 144 anos. Ainda no século XIX, o petróleo, como importante insumo
rosos grupos industriais tanto nos Estados Unidos como na Europa. No início do
século XX, com o advento dos motores a explosão, tornara-se também o combustí-
vel automotivo que, durante as duas grandes guerras, provou ser o insumo estraté-
seus países de origem, controlando a produção das mais importantes jazidas. Ainda
antes da Segunda Guerra Mundial, essas empresas já controlavam boa parte da pro-
22 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
O petróleo impulsionava o desenvolvimento das Saga de risco
potências industriais. Por isso, e apesar da
cartelização das empresas, denominadas “as sete A indústria do petróleo caracteriza-se como
irmãs”, o preço do petróleo manteve-se baixo atividade que requer conhecimento, tecnolo-
durante boa parte do século XIX, com valores gia, disponibilidade financeira e aceitação de
históricos da ordem de US$ 2 por barril (bbl). riscos. Assim, afora as louváveis iniciativas de
Diante dos interesses dessas empresas em ou- alguns empreendedores brasileiros, o Estado
tros setores industriais, convinha garantir o su- foi sempre obrigado a intervir, em maior ou
primento de energia abundante e barata. menor grau, nesse tipo de atividade. Entre as
No Brasil, as primeiras notícias sobre iniciativas do capital privado nacional, são de
exploração de petróleo remontam ao Segun- se lamentar aquelas conduzidas por empreen-
do Império. Em 1897, o paulista Eugênio dedores menos escrupulosos, que, em nome
Ferreira de Camargo perfurou, na localidade de pretenso nacionalismo, aproveitavam-se da
de Bofete, o primeiro poço brasileiro. Esse boa fé das pessoas, vendendo ações de com-
poço foi seco, assim como os muitos poços panhias petrolíferas de fachada. O elevado
perfurados por entidades públicas e os pou- grau de desconhecimento das características
cos perfurados por iniciativa privada, no Bra- da indústria também favorecia a proliferação
sil, antes da descoberta de petróleo em de toda a sorte de charlatões e aventureiros.
Lobato,1 na Bahia, em 1939 – 80 anos de- Quanto ao Estado, as atividades de explora-
pois da descoberta do coronel Drake. Mesmo ção de petróleo foram conduzidas inicialmen-
quando inexistiam no Brasil restrições para te pelo Serviço Geológico e Mineralógico do
as atividades das multinacionais do petróleo, Brasil (SGMB), depois substituído pelo Depar-
estas se estabeleceram apenas para importar tamento Nacional da Produção Mineral
e revender derivados a partir do petróleo pro- (DNPM) e, após Lobato, pelo Conselho Nacio-
duzido e refinado no exterior. Considerando nal do Petróleo (CNP). Todas essas entidades
inimaginável que um país com as dimensões realizaram trabalhos de excelente qualidade
e as características geológicas do Brasil não técnica, dentro da crônica limitação de recur-
tivesse petróleo em seu subsolo, esse desin- sos do Estado brasileiro.
teresse das multinacionais foi logo interpre- A descoberta de Lobato – após um lon-
tado como proposital. As multinacionais não go e memorável embate entre os empreende-
teriam interesse em explorar o petróleo bra- dores baianos, que acreditavam na presença
sileiro, nem pretendiam dotar o Brasil de um do petróleo nessa localidade, e os tecnocratas
parque de refino. do DNPM, que tinham boas razões técnicas
As grandes empresas petrolíferas teri- para duvidar – acabou comprovando finalmen-
am enviado silenciosamente muitas expedições te a existência do petróleo no subsolo pátrio.
geológicas ao Brasil para avaliar, entre outros, Mesmo assim, considera-se bastante impro-
o potencial petrolífero da Bacia do Paraná. Os vável que, na época, o petróleo de Lobato, as-
relatórios dessas expedições, pelo que sabe- sim como aquele que viria a ser descoberto
mos, não descartavam a possível ocorrência pelo CNP em outros campos do Recôncavo
de petróleo no subsolo brasileiro. Apenas in- Baiano, pudesse vir a ser explorado economi-
formavam quanto às reais características geo- camente. Com exceção do Campo de Água
lógicas das bacias brasileiras, colocadas num Grande, que, por suas significativas dimen-
grau inferior de prioridade quando compara- sões, poderia ter-se revestido de interesse eco-
das com outras existentes no mundo, como nômico, a ocorrência de Lobato e mesmo a do
no México, na Venezuela ou no Oriente Mé- poço de Candeias2 seriam acumulações me-
dio, onde seria possível produzir maiores quan- nores, de interesse quase que acadêmico, des-
1 No poço de Lobato (locali-
tidades de petróleo a menores custos. Obser- providas de atratividade para a indústria. zado nas cercanias de Salva-
ve-se que, ante o reduzido preço então Após a Segunda Guerra Mundial, os dor, Bahia, em terras que, no
século XVI, pertenciam ao fa-
praticado no mercado internacional, muitas militares brasileiros, que regressavam do tea- zendeiro Vasco Rodrigues
Lobato), é descoberto oficial-
das atuais jazidas brasileiras, até mesmo as da tro europeu de operações, haviam se conven- mente petróleo no Brasil, em
Bacia de Campos, seriam antieconômicas. Não cido da importância estratégica do petróleo. 1938. A partir da descoberta,
é criado o Conselho Nacional
se tratava, portanto, de descartar a presença Pouco depois, no início da década de 1950, do Petróleo, e as jazidas mi-
nerais passam a ser conside-
de petróleo no Brasil, nem de desinteresse o país lutava para investir no estabelecimen- radas propriedade estatal.
proposital das multinacionais, e sim de uma to das indústrias de base, favorecendo o sur- 2 Em Candeias, no Recôncavo
mera escala de prioridade para quem dispu- gimento de um parque industrial. Nesse Baiano, foi descoberto, em
1941, o primeiro poço de ex-
nha de todas as bacias do mundo. contexto, nascia um dos maiores movimentos ploração comercial.
de mobilização jamais registrado na nossa anos da avaliação das bacias sedimentares bra-
história. O movimento O Petróleo é Nosso sileiras. Esse conjunto de documentos, mais tar-
alastrou-se por todo o país, congregando até de conhecido como Relatório Link, acabaria tor-
mesmo facções tidas como antagônicas. Es- nando-se motivo de uma acalorada discussão.
querdistas, nacionalistas, estudantes, milita- De um lado, nacionalistas e esquerdistas afir-
res e intelectuais juntaram-se no movimento mando que Link, a serviço dos interesses multi-
que acabou resultando no estabelecimento nacionais, procurava demonstrar mais uma vez
do monopólio estatal do petróleo, na criação que o Brasil não tinha petróleo. De outro, aque-
da Petrobras e na mobilização nacional para les que acreditavam na lisura e competência do
suportar tais objetivos. Assim, em outubro geólogo estadunidense, encarando com prag-
de 1953, a Petrobras surgia da vontade de mático realismo suas conclusões.
um povo, convencido da re- Novamente, a questão da economicida-
levância da questão do pe- de do petróleo brasileiro, no contexto do mer-
O movimento tróleo como determinante
de seu futuro.
cado da época, merece ser lembrada para me-
lhor situar e entender algumas conclusões do
24 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
50 ANOS DE HISTÓRIAS E DESAFIOS
26 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
50 ANOS DE HISTÓRIAS E DESAFIOS
as ferramentas necessárias para competir num sociais. Da mesma forma, os objetivos imediatos * Giuseppe
ambiente de livre mercado, sem o monopólio. e os estratégicos tinham de ser combinados numa Bacoccoli
A plantinha que acabava de germinar em 1953 harmonia nem sempre possível. Pesquisador visitante da
transformara-se numa sólida árvore frondosa, O Brasil é hoje um dos poucos países Coordenação dos
capaz de resistir sozinha às intempéries. em desenvolvimento e o único do hemisfé- Programas de Pós-
Dizem que a Petrobras perdeu o mono- rio sul a dominar por completo o saber fazer graduação em
Engenharia (Coppe) da
pólio de direito, mas não o perdeu de fato. Isso pertinente a toda a cadeia produtiva da in-
Universidade Federal do
não deixa de ser verdade, considerando que é dústria do petróleo. Desde os primeiros le-
Rio de Janeiro (UFRJ)
muito difícil competir no Brasil com uma em- vantamentos geológicos e geofísicos numa
presa que há meio século dedica-se de corpo e bacia sedimentar até a perfuração e a pro-
alma à questão do petróleo. Se a Petrobras ain- dução dos poços, o transporte e o refino do
da não é a líder mundial da tecnologia, certa- petróleo e a distribuição final, dominamos
mente é líder absoluta no conhecimento dos hoje todo o conhecimento, sem precisar de
problemas brasileiros do petróleo, desde a ajuda externa. Poucos países, mesmo entre
intrincada geologia das bacias sedimentares até os grandes produtores de petróleo, acumu-
as características do seu petróleo, os anseios laram tantos conhecimentos.
do mercado e às nuances ambientais deste ce- Estatal ou privada, a Petrobras terá con-
nário de dimensões continentais. dições de continuar operando como uma gran-
de empresa de petróleo. Analisando os cená-
rios, algumas companhias de petróleo
Caminho trilhado
concluíram que o esgotamento do produto ou
Ao longo do seu percurso, a Petrobras caracte- a competição por fontes alternativas não re-
rizou-se por três fases distintas de gestão: a da presentam efetivas ameaças a médio prazo.
missão, a dos resultados físicos e a dos resulta- Entre seus desafios futuros, menciona-se,
dos financeiros. Na primeira, que perdurou até como o mais grave, o grau de aceitação por
o início da década de 1970, a Petrobras traba- parte da nação. Analogamente, podemos afir-
lhou simplesmente obedecendo à missão que mar que, independentemente de seus êxitos
lhe fora confiada, independentemente dos cus- operacionais, a maior ameaça à Petrobras resi-
tos e dos resultados. Embora muitos a criti- de num eventual recrudescimento da rejeição
quem, essa primeira fase foi a que consolidou da mesma sociedade que há 50 anos lutava
as raízes da companhia, o vestir a camisa dos nas ruas, mobilizada, para criá-la.
seus empregados e a capacitação na cadeia pro- Agrava essa ameaça a insatisfação de
dutiva da indústria do petróleo. Na segunda seu cliente final, o consumidor. O petróleo que
fase, que perdurou da década de 1970 até o hoje jorra abundantemente do subsolo brasi-
início da década de 1990, os gerentes da com- leiro não tem sido ainda utilizado em benefício
panhia passaram a acompanhar os seus resul- direto do povo brasileiro. Apesar dos preços
tados físicos. O importante era saber quantos baixos praticados pela Petrobras na saída das
metros se perfuravam, quantos poços, quantos refinarias, os preços finais dos derivados, atre-
barris se produziam, quantos barris se refina- lados a valores internacionais em dólar e agra-
vam etc. Pouca atenção era dada aos resulta- vados pelos impostos, são muito elevados para
dos financeiros dessas operações. A empresa quem ganha salários irrisórios, com valores es-
foi também criticada por isso, por não ser ren- táveis em reais. Além disso, e em que pese a
tável e por não visar aos lucros. Finalmente, na boa qualidade dos produtos produzidos pela
terceira fase, foram criadas as Unidades de Ne- Petrobras, a total desregulamentação do setor
gócio, e a Petrobras passou a buscar resultados e uma fiscalização muito deficiente favorecem
financeiros, obtendo lucros semelhantes aos as freqüentes e criminosas adulterações.
das maiores companhias de petróleo. Também Enquanto deveríamos festejar a aproxi-
está sendo criticada por isso, por se afastar da mação da tão sonhada auto-suficiência, alguns
missão e buscar lucros. produtos básicos, como o gás de cozinha, o óleo
A Petrobras também teve sempre de con- diesel e a própria gasolina, chegam ao mercado
viver com o fato de ser “petro” e ser “bras” ao freqüentemente adulterados e sempre a preços
mesmo tempo. Não raro, atuou simultaneamen- inacessíveis para a maioria da população. Este é
te como operadora e reguladora. Como “petro”, o principal desafio: fazer com que o “petro” e o
teria de ser uma empresa de petróleo competiti- “bras” se reencontrem naquelas premissas que
va; como “bras”, teria de ser braço da nação bra- mobilizaram a nação no início da década de
sileira na busca do bem comum e dos objetivos 1950, exatamente há meio século.
A lógica perversa
do acordo com o FMI
ALEXANDRE RAJÃO
28 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
NAL
Em dezembro de 2003, encerrou-se o acordo período de 2002. Tal valor corresponde a
entre o governo brasileiro e o Fundo Monetá- 10,2% do PIB ou cerca de 30% da receita fiscal
rio Internacional (FMI), firmado, em novem- das três esferas de governo.
bro de 1998, pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC) e por ele renovado
Conseqüências
em 2001 e 2002. O atual governo avalia a
oportunidade de assinar um acordo mais uma A assinatura de acordos com o FMI e, conse-
vez. Os defensores da assinatura de um novo qüentemente, a adoção do receituário das
acordo argumentam que não há outro cami- políticas econômicas recomendadas pelo fun-
nho, pois, sem o aval do FMI, os investidores do têm invariavelmente resultado no aprofun-
não teriam segurança em investir ou manter damento da recessão e na inviabilização dos
seus investimentos no Brasil. Ademais, dizem, projetos nacionais soberanos de desenvolvi-
o Brasil precisaria do dinheiro do FMI para fa- mento. A crise social sem precedentes vivida
zer face aos seus compromissos externos em recentemente pela Argentina é o caso mais
2004. Dessa forma, fica claro que a renovação emblemático do fracasso das políticas econô-
do acordo não tem como objetivo melhorar o micas liberais nos países em desenvolvimen-
desempenho da economia nacional e, conse- to. Desde 1998, o Brasil tem recorrentemente
qüentemente, as condições de vida da popu- assinado acordos com o FMI e, como resulta-
lação brasileira, mas sim atrair a confiança do do das políticas econômicas aplicadas ao país,
“mercado”. Mas o país não tem feito outra se encontra desde então com a economia pra-
coisa, nos últimos anos, além de agradar o ticamente estagnada.
mercado financeiro em detrimento da econo- As políticas econômicas dos acordos
mia produtiva e dos trabalhadores. com o FMI têm se caracterizado pela combina-
O acordo com o FMI não é somente dis- ção das seguintes medidas: (a) o ajuste nas
ponibilização de dinheiro, mas o compromisso contas públicas, com a fixação de metas eleva-
do governo de implementar políticas que aten- das de superávit primário (diferença entre re-
dam aos interesses dos investidores, mesmo ceitas e despesas, excetuando as despesas fi-
que em detrimento dos interesses do país. Há nanceiras); (b) controle da inflação a partir do
anos, a economia brasileira vem apresentando programa de metas inflacionárias (utilização
desempenho sofrível em conseqüência da op- das taxas de juros como mecanismo de garan-
ção de nos subjugarmos às chantagens do tir o alcance de metas de inflação fixadas e
“mercado”, em busca de uma suposta estabili- anunciadas pelo Banco Central).
dade. Mas que estabilidade é essa, com a mai- Ambas as medidas têm contribuído para
or taxa de desemprego de nossa história, com o grave quadro recessivo da economia brasilei-
a queda contínua da renda dos trabalhadores ra. O superávit primário privilegia as despesas
e com o atual índice de violência urbana? financeiras em detrimento dos investimentos
É preciso fugir dessa lógica perversa. públicos e demais despesas do orçamento pú-
No período de janeiro a agosto de 2003, não blico, inviabilizando o investimento público
obstante o superávit primário do setor públi- necessário para o projeto nacional de desen-
co ter sido de quase 5% do Produto Interno volvimento. As metas inflacionárias obrigam o
Bruto (PIB), o déficit nominal chegou a 5,3%, governo a elevar as taxas de juros da dívida
pois os gastos com juros da dívida pública atin- pública, aumentando as despesas financeiras
giram nada menos que R$ 102,4 bilhões, 68% do governo e comprometendo o crédito, o con-
a mais que os gastos com juros no mesmo sumo e o investimento privado.
30 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI
um lucro de R$ 1,49 bilhão (crescimento de taxas de câmbio, socorrer países com dese-
42,24% em relação a 2002), enquanto o quilíbrios no balanço de pagamentos e ga-
Bradesco teve um lucro de R$ 1,03 bilhão rantir a provisão de liquidez, quando neces-
(crescimento de 13,6%). Somados os lucros sário. Mas, passado meio século, o quadro
desses dois bancos apenas, temos a quantia mundial sofreu profundas alterações. O ce-
de R$ 2,52 bilhões, um valor superior ao do nário atual é o de persistência da crise glo-
orçamento público destinado à infra-estru- bal do sistema capitalista, que se arrasta
tura no mesmo período (R$ 2,32 bilhões). desde a década de 1970. Ela se caracteriza
Finalmente, a renovação do acordo com pela financeirização crescente das relações
o FMI só faria algum sentido diante das neces- econômicas e pelo estrangulamento da eco-
sidades no balanço de pagamentos. No en- nomia real; tem como eixo a ofensiva do ca-
tanto, a estagnação da economia tem contri- pital financeiro e das corporações contra os
buído claramente para a melhora nas contas direitos sociais e trabalhistas dos povos de
externas e a obtenção de saldos recordes na todo o mundo, com o objetivo de reduzir
balança comercial, a ponto de o próprio presi- ainda mais o custo do fator trabalho. Neste
dente Lula ter admitido, em pronunciamento cenário, os Estados Unidos assumem o pa-
a investidores financeiros em Nova York (an- pel de responsáveis por impor essa nova or-
tes de ser anunciada a celebração de um novo dem, pisoteando o direito internacional e a
acordo), que o país estava em condições de soberania das nações e ameaçando o siste-
dispensar os recursos do FMI. Cabe lembrar ma multilateral de governança global, já re-
que os recursos do fundo não têm se traduzi- cheado de imperfeições.
do em benefícios para o país, mas na garantia E qual tem sido o papel do FMI neste
de que os ganhos financeiros da especulação contexto? Na prática, ele deixou de ser um
global com a dívida pública (em reais) possam organismo multilateral voltado para a defe-
ser convertidos em dólares e remetidos ao ex- sa da paridade cambial, para o socorro aos
terior (em dólares). países com graves desequilíbrios externos e
para a questão da liquidez internacional e
tornou-se uma agência do capital financei-
Espaço para avanços
ro, dos credores internacionais e do Tesouro
O governo argumenta que exigirá melhores estadunidense. Dedica-se a impor programas
condições no acordo, ou seja, que negociará de ajuste estrutural aos países periféricos
alguns avanços, como a não-classificação dos que com ele fazem acordo e a recomendar
investimentos das empresas estatais como políticas macroeconômicas de inspiração in-
gastos do governo (uma caracterização real- variavelmente recessiva, direcionadas para o
mente absurda) e também a inclusão de al- atendimento dos interesses estritamente
gumas cláusulas sociais. Trata-se de uma típi- corporativos dos bancos e trustes e absolu-
ca tentativa de “dourar a pílula”. Mas, se o tamente incompatíveis com as necessidades
FMI aceitasse essas condições, estaria tudo de crescimento econômico, geração de em-
resolvido? Obviamente não, pois o essencial prego e distribuição de renda.
para o FMI está sendo mantido: as famosas
condicionalidades. As autoridades governa-
Alternativas
mentais, quando eram oposição, faziam uma
caracterização crítica do papel do FMI no Um país como o Brasil, dada a gravidade das
mundo atual. Teria o Fundo mudado? Veja- questões sociais que precisa resolver, neces-
mos a descrição desse processo. sita de um projeto nacional de desenvolvi-
A decisão de se criar o FMI – junta- mento com políticas alternativas às que vêm
mente com o Banco Mundial e a Organiza- sendo propostas pelo FMI. O projeto sobe-
ção Internacional do Comércio, posterior- rano de desenvolvimento, em sintonia com
mente Acordo Geral de Tarifas e Comércio a política externa de afirmação desempenha-
(Gatt) e, recentemente, Organização Mun- da pelo governo Lula, exige que as políticas
dial do Comércio (OMC) – foi tomada em econômicas (fiscal, monetária e comercial)
1944 na famosa Conferência de Bretton sejam formuladas autonomamente, sem a in-
Woods, nos Estados Unidos, tendo sido im- gerência do FMI.
plantadas em 1947 as duas primeiras des- Nesse sentido, só devem ser conside-
sas três instituições. A função básica do FMI radas aceitáveis as metas que sejam defini-
era zelar pela manutenção da estabilidade das das com a sociedade brasileira, almejando o
32 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI
mais ortodoxa do que a de FHC, como mos- ros internacionais. Em suma, ao ganhar as 2 Grifo nosso. A transcrição do
discurso de posse do presi-
tra a adoção da meta de superávit primário eleições, a cúpula petista substituiu a coali- dente Lula pode ser encontra-
da no portal do Ministério das
de 4,25% do PIB. A renovação do acordo com zão de alguns setores do empresariado com Relações Exteriores:
o FMI seria decorrência da manutenção do trabalhadores, que levou Lula à vitória, por <www.mre.gov.br>.
modelo econômico herdado do governo FHC, um pacto com a banca internacional, 3 polí- 3 O vice-presidente José
Alencar é um símbolo dessa
já que essa instituição tem sido o seu princi- ticas ortodoxas e reformas em troca do fim coalizão ou, pelo menos, de
pal avalista. Levando-se em conta que o FMI da especulação que elevou a cotação do dó- sua tentativa; os ministros Luiz
Fernando Furlan e Roberto
é um dos principais agentes da hegemonia lar na virada do ano. Rodrigues também o são.
*Alex Jobim Já foi dito que a história não se repete 2004 e nada mais de concreto para os anos
Farias a não ser como farsa. Infelizmente, esse não posteriores (os credores e o FMI queriam uma
Federação de Órgãos parece ser o caso brasileiro, que, ao que tudo meta mais ambiciosa para garantir o pagamen-
para Assistência Social indica, segue os passos da Argentina pré-crise to da dívida a ser reestruturada). Além disso,
e Educacional (Fase) ao não perceber que a política ortodoxa aca- também resistiu a pressões do FMI para esta-
ba por minar a política de conquista de con- belecer um cronograma de aumento das tarifas
fiança da qual é fruto: adota-se a austeridade de serviços privatizados. Kirchner está certo, não
**Pedro
fiscal para que se poupem recursos para o quer sacrificar, em prol do pagamento da dívi-
Quaresma
pagamento da dívida pública, que leva à da argentina, o incipiente crescimento obtido
Instituto Políticas
recessão econômica ao inibir os gastos e in- e, visivelmente, descarta o modelo de conquis-
Alternativas para
vestimentos públicos, a qual, por sua vez, leva ta de confiança com a recusa de aumento das
o Cone Sul (Pacs)
à diminuição da arrecadação fiscal, a qual leva tarifas de serviços privatizados.
o governo em questão a praticar mais auste- A crise do neoliberalismo na América
***Júlio Miragaya ridade, que provoca mais recessão... É o cír- Latina enseja a guinada do governo Lula na
Conselho Regional de
culo vicioso recessivo ortodoxo experimenta- direção das verdadeiras mudanças. Há apoio
Economia do Rio de do pela Argentina recentemente. Não há doméstico para tanto; as conseqüências do
Janeiro (Corecon) como satisfazer o mercado quando se adota neoliberalismo já estão bem demonstradas
essa política, porque ela não leva à estabili- pelas crises brasileira e argentina; a autorida-
zação da relação dívida pública/PIB. de do FMI, principal instrumento da consoli-
Hoje, a despeito do esforço de integra- dação de políticas neoliberais, viu-se abalada
ção sul-americana empreendido pelo governo pela sua inépcia em solucionar a sucessão de
Lula, parece haver uma grande distância entre crises internacionais iniciadas na Ásia em
os governos Lula e Kirchner. Isso prejudica a 1997, e essas mesmas crises também abala-
Argentina, porque o FMI passou a exigir dessa ram a crença dogmática na globalização como
que seguisse o exemplo de austeridade brasi- panacéia para o desenvolvimento econômi-
leiro. Ainda assim, Kirchner conseguiu negoci- co. Só falta a esse governo entender melhor
ar um acordo com o FMI em que foi estabeleci- o momento histórico em que vivemos e virar
do um superávit primário de 3% do PIB em o leme na direção certa.
34 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
NOV 2003 / DEZ 2003 35
V A R I E V
Flávia Mattar
A R I E
36 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
D A D E S
D A D E S
Mais informações:
(21) 2262-1704
Manoel Conceição
a luta e a militância de um
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
38 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
Santos, Uma das maiores expressões
trabalhador
ria do Brasil veio ao mundo
Nascido em um dos estados mais pobres da nação, tinha tudo para ter morrido de
uma dessas enfermidades que vitimam milhares de crianças pelos sertões do Brasil.
Mas a rude realidade o talhou para desafinar o coro dos contentes e a cons-
popular, construção do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Tra-
balhadores (CUT), militância na Ação Popular Marxista Leninista (AP), da qual che-
Aos 68 anos, o líder camponês mora na cida- No terreno da Cetral se desenvolve uma
de de Imperatriz, a segunda do estado do tecnologia que não agride o meio ambiente. São
Maranhão, terra banhada pelo rio Tocantins, cultivadas 39 espécies frutíferas, entre elas,
situada lá pelas bandas do Bico do Papagaio acerola, caju, banana, abacaxi, coco, jaca, goia-
(divisa entre Tocantins, Maranhão e Pará), re- ba, cupuaçu e murici. Entre as madeiras, podem
gião onde mais se mata gente empenhada pela ser encontradas cedro, ipê, inharé, copaíba,
reforma agrária no Brasil. Mané coordena a mogno, paricá e nim. No caso das leguminosas
organização não-governamental Centro de usadas para adubação verde, existe farta produ-
Educação e Cultura do Trabalhador Rural ção de feijão-guando, mucuna preta, sabiá, sem
(Centru), que tem sede em Recife, Pernambuco. falar da mata nativa de palmeira de babaçu.
A ONG Centru, fundada em 1985, tem a O lugar onde antes imperava o uso de
diretoria formada somente por trabalhadores agrotóxico e era raro encontrar alguma ave e
rurais. O empenho na organização de traba- pequenos animais desponta, hoje, como uma
lhadores e trabalhadoras rurais no projeto da referência de produção equilibrada. A espinha
Central de Cooperativas Agroextrativistas do dorsal da filosofia do Cetral é que o espaço
Maranhão (CCAMA), baseado na socioecono- sirva como modelo demonstrativo de sistemas
mia solidária e no desenvolvimento sustentá- agroflorestais, formador de agentes agroflo-
vel, tem funcionado como motivador do traba- restais, agricultores familiares, sistemas agros-
lho de Mané dos anos recentes. Os projetos silvopastoris, com integração de pequenos e
tratam de organização popular, meio ambien- médios animais.
te, desenvolvimento de sistemas agroflorestais Os animadores do projeto explicam que
e discussão e proposição de políticas públicas o objetivo do projeto é barrar a devastação na
voltadas para o pequeno produtor rural. Amazônia Legal e no cerrado maranhense. En-
Tudo isso ocorre numa região desenha- tre alguns de seus apoiadores, estão o Fundo
da pela implantação de grandes projetos como Mundial para o Meio Ambiente, o Instituto
a Ferrovia de Carajás, pela destruição do cerra- Sociedade, População e Natureza (ISPN) e o
do para a implantação do cultivo de soja e para Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
alimentar os fornos das siderúrgicas, além de vimento (Pnud).
uma floresta de eucalipto da Companhia Vale
do Rio Doce, que deveria favorecer a implemen-
Resistência popular
tação de uma fábrica de papel, atualmente es-
tagnada. A perspectiva é o socialismo, acredita Helciane Araújo, jornalista e professora da Uni-
Mané. “Não basta ganhar governo. Temos que versidade Federal do Maranhão (UFMA), defen-
trabalhar organicamente,” avalia. deu, em 2000, no mestrado em Políticas Públi-
Há cerca de dez anos, o Centru adqui- ca/UFMA, a dissertação Memória, mediação e
riu, no município de João Lisboa, uma área de campesinato: estudo das representações de
10 hectares de terras ocupados pelo gado e uma liderança (Manoel Conceição) sobre as for-
por uma horta com base em agrotóxicos. A mas de solidariedade assumidas por campone-
idéia era consolidar um espaço de formação ses na chamada Pré-Amazônia Maranhense. A
política do trabalhador rural com alojamento, pesquisadora disse que procurou “analisar
auditório, área de produção de várias árvores como o líder camponês, a partir da posição do
frutíferas, madeira e hortas, o que os douto- presente, interpreta o seu passado, quais as
res chamam de sistema agroflorestal. representações que ele tem da história que vi-
Foram dias de trabalho duro. Primeiro, veu. Com a leitura de suas representações so-
superar o uso do veneno da terra, retirar o pasto. bre seu passado, percebemos o quanto o agen-
Lá nem bicho se via mais, passarinho não piava te social camponês mudou, exigindo também
pelas bandas do que é, atualmente, uma experi- uma mudança de postura daqueles que ten-
ência reconhecida em toda a região e também tam compreendê-lo, mudança esta que deve
fora dela. Hoje, o espaço é chamado de Centro levar a uma ruptura com os conceitos cristaliza-
de Estudos do Trabalhador Rural (Cetral) e rece- dos”. E ela complementa: “Infelizmente, os
be visitas de trabalhadores rurais de outros esta- maranhenses não conhecem essa história e
dos, professores e pesquisadores. É o ninho de Manoel Conceição não assiste em vida ao seu
debate e de desenvolvimento de experiências do reconhecimento, sequer entre seus parceiros”.
Centru/CCAMA e de outras cooperativas agroex- “Manoel é a própria resistência do mo-
trativistas. Possui espaço de alojamento, salão vimento popular no Maranhão, mas não é uma
para reuniões e seminários e refeitório. resistência cristalizada, congelada, colada em
40 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR
MANOEL EM SUA CASA NO EXÍLIO EM GENEBRA/SUIÇA, COM COM MARIO CARVALHO DE JESUS, ADVOGADO DA FRENTE
DOM FRAGOSO, BISPO DE CRATÉUS NACIONAL DO TRABALHO (FNT), SÃO PAULO, EM FRENTE À CASA
DE PADRE DOMINIQUE BARBÉ, OSASCO, ONDE FOI PRESO EM 1975
princípios dos anos 1960 ou dos anos 1970. Quando começaram os tiros, correu varando
Pela sua experiência de vida, Manoel conse- cerca. Caiu dentro do mato umas dez horas da
gue ter uma visão cosmopolita da realidade manhã. Só apareceu umas três da tarde. Mor-
brasileira e da realidade maranhense e perce- to de fome”, lembra, sorrindo.
be que as estratégias de luta do presente não Em um relato dado a Ana Galano,1 Mané
podem ser as mesmas de anos atrás”, observa descobre que a amputação poderia ter sido evi-
Helciane Araújo. “Vejo que Manoel hoje fala tada não fosse a falta de perícia médica em São
não apenas de uma posição, mas de múltiplas Luís. Ainda no mesmo depoimento, narra que
posições: do partido, da ONG, da cooperativa. três secretários do governo Sarney o haviam
Sendo que, como coordenador de uma ONG e procurado oferecendo assistência médica, casa,
da cooperativa, se define como um ambienta- emprego, uma perna mecânica e carro. A per-
lista”, diz a pesquisadora. Helena Heluy, de- muta consistiria em ajuda política. Do episó-
putada estadual (PT/MA), comunga da afirma- dio, nasce a célebre frase “Minha perna é mi-
ção de Araújo sobre o não-reconhecimento nha classe”, quando o camponês recusa
da trajetória de Mané por seus pares de movi- emprego e a perna mecânica, que vem a adqui-
mento popular e partido em âmbito estadual rir após a cotização do movimento popular. O
e nacional. “A história de Mané é fantástica”, sindicato de Pindaré, nessa época, aglutinava
encerra a procuradora aposentada do Minis- cerca de 4 mil trabalhadores e trabalhadoras.
tério Público e histórica militante dos direitos Muitas almas sucumbiram durante a di-
humanos no Maranhão. tadura. As lembranças de amigos ainda povoam
A primeira bandeira defendida por a memória. No entanto, um nome não conse-
Mané era um melhor preço para a produção gue recordar. Justo o de uma jovem que o levou
do campo no Vale do Pindaré, de onde sua numa madrugada de São Paulo para o Rio de
família foi expulsa várias vezes. O Sindicato de Janeiro, após a perda da perna. “Estendo o meu
Trabalhadores Rurais de Pindaré foi fundado afeto a todos a partir da lembrança dessa moça.
em 18 de agosto de 1963, sob orientação do É Beatriz o nome da jovem”, resgatou da memó-
Movimento de Educação de Base (MEB). Em ria dias depois da nossa conversa. Lembra de Rui
julho de 1968, cinco anos após iniciar sua luta, Frazão, dado como desaparecido pelo regime,
um atentado ao sindicato vitima Mané. Em se- fala com carinho de Herbert de Souza, o Betinho.
guida, foi levado para a cadeia, onde, apesar Sobre Jair Ferreira de Souza, ex-secretário geral
de baleado no pé, não teve atendimento mé- da AP, diz: “Cabra porreta. Muito solidário. Nu-
dico. Oito dias se passaram, tempo necessário tro grande respeito por ele. Já é falecido. Tem
para a perna gangrenar. Levado para um hos- um companheiro que gostaria muito de poder
pital em São Luís, teve a perna amputada. ajudá-lo. Acho que o nome é Duarte Pacheco
Apesar disso, Mané lembra um capítu- Brasil, mora em São Paulo. É jornalista”, recupe-
lo engraçado durante o atentado. O médico ra da memória o líder camponês. 1 O relato dado a Ana Maria
Galano foi transformado no
João Bosco havia chegado da capital para tra- O militante popular aprendeu as primei- livro Essa terra é nossa (Vozes,
tar de um surto de malária. “O coitado não ras letras com a velha cartilha do abc e a Bíblia 1980) e é resultado de 20 ho-
ras de depoimento colhido em
conhecia nada. Estava em nossa assembléia. na Assembléia de Deus, resquícios de quando Paris em 1979.
42 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR
horas. Quando fui retirado, estava “Eles fizeram questão de dizer que a minha
roxo de espancamentos, palmatórias prisão não tinha nada com a Justiça. O pro-
e golpes de caratê. Tive de ser hos- blema é nosso. A Justiça foi incapaz de fazer
pitalizado, me davam banho de gelo o seu julgamento”.
para espalhar o sangue coagulado Mané só foi libertado depois da visita
no corpo. Depois que melhorei, fui do advogado Mário Carvalho de Jesus. No Bra-
retirado do hospital e levado para o sil e no exterior, aconteciam manifestações
quartel onde as torturas continuaram pela libertação do líder camponês. Até o papa
com a mesma brutalidade e sempre Paulo VI enviou telegrama para o presidente
com um capuz na cabeça. Amarram- Geisel, exigindo a sua libertação. Mané saiu
me numa grade e prenderam meu do Dops no dia 11 de dezembro de 1975. Sob
pênis com uma corda para impedir proteção das igrejas Católica e Presbiteriana e
de urinar e nessa situação fui deixa- da Anistia Internacional, seguiu para o exílio
do por dias, sem comer e sem beber. em Genebra, na Suíça. Enquanto o líder cam-
Quando fui retirado da grade, cheio ponês estava preso, um grupo suíço organi-
de dor, encontrava-me sem quais- zou o Comitê Internacional Manoel Concei-
quer condições de me movimentar. ção, mais tarde conhecido como Comitê em
Depois que melhorava era novamen- Solidariedade ao Povo Brasileiro. Além da Su-
te dependurado no mesmo lugar, nas íça, países como Inglaterra, França, Alemanha
mesmas condições e espancado com e Itália organizaram manifestações e elaboram
os mesmos aparelhos e com a mes- documentos exigindo a libertação de Mané.
ma violência durante horas e horas.
E assim continuaram as torturas du-
rante os sete meses em que fiquei De volta ao Brasil
desaparecido no Rio de Janeiro. Sindicatos, igrejas, Anistia Internacional e o
Após três anos e meio de prisão, Mané governo suíço colaboraram para a sobrevivên-
foi julgado em Fortaleza, em maio de 1975, cia de Mané durante o exílio. Os dias fora do
pela Auditoria Militar. Foi condenado a três Brasil eram dedicados à agitação política em
anos de cadeia e à cassação de direitos políti- países da Europa, África e até do Oriente Mé-
cos por dez anos, mesmo sem nunca ter vota- dio. Quando os dias no exílio se anunciavam
do ou mesmo possuir título de eleitor. “Como no fim, com seus companheiros organizou um
eu já estava há mais de três anos preso, fui encontro internacional de refugiados. A idéia
libertado. Depois, a minha advogada apelou de criação do PT e da CUT surgiu do encontro.
da sentença na instância superior em Brasília, A orientação deveria ser socialista. No fim de
e fui absolvido por unanimidade pelo Supre- 1979, já no Brasil, o nosso guerreiro integrou
mo Tribunal Militar, em 1976.” a comissão de criação do PT.
No requerimento encaminhado ao go- Produzido por Lula, Jacó Bittar e Olívio
verno do estado de São Paulo, Mané narra ain- Dutra, que compunham o grupo dos autênti-
da que: “Em maio de 1975, após a minha li- cos, o primeiro manifesto do PT foi considera-
bertação, fui para a casa do bispo dom Aloísio do “meio fraco”. Sem disfarçar o orgulho,
Lorscheider, então presidente da CNBB [Con- Mané recorda que aglutinou, junto com Paulo
ferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Eu era Matos Skromov, um outro grupo, que gerou
um cabra marcado para morrer. Doente, ame- uma segunda proposta de manifesto – a que
açado de morte e precisando de tratamento serve de guia até hoje. “Motivamos um deba-
médico, o bispo possibilitou a minha vinda te mais amplo. O manifesto foi gerado nessa
para São Paulo, onde fui recebido pelo dom discussão de grupos de trabalho”, afirma. A
Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano divergência é companheira de berço do PT.
Jaime Wrigth, que providenciaram a minha Obreirismo, linguagem pseudo-radical, lega-
internação no hospital Santa Catarina.” lismo e parlamentarismo foram acusações
Após recuperação no hospital, Mané trocadas pelas diferentes teses defendidas na
foi levado por amigos para descansar em Vi- fundação do partido, conta Perseu Abramo,
nhedo e, depois, para Osasco, na casa do pa- no jornal Movimento de fevereiro de 1980, ao
dre Domingos Barbe, onde ficou até ser se- narrar a fundação do partido.
qüestrado por policiais do Dops no dia 28 de Depois de Mário Pedrosa e Apolônio
outubro de 1975. No Dops paulista, as tortu- de Carvalho, segue o nome de Manoel Con-
ras recomeçaram. Foram 48 dias, conta Mané: ceição Santos no livro de fundação do Partido
dos Trabalhadores, no Colégio Sion, em São Mané reconhece a importância do MST, em-
Paulo, 1980. Na ocasião do lançamento do bora tenha se desligado do movimento por
manifesto de fundação do PT, Mané dividiu a divergir da metodologia: “Os segmentos de
mesa com Sérgio Buarque de Holanda, Lélia oposição devem equacionar as diferenças. Nin-
Abramo, Mário Pedrosa e Moacir Gadotti, que guém deve queimar ninguém, ato comum em
representava o educador Paulo Freire na oca- algumas relações internas do movimento po-
sião. Mané colaborou diretamente na organi- pular. Devemos entender que o adversário se
zação do PT em Pernambuco, Paraíba e Rio encontra do outro lado”.
Grande do Norte, além de animar núcleos no Sobre o cenário atual do movimento
Ceará, na Bahia e em Sergipe. Com a certeza sindical, faz a seguinte leitura: “A conjuntura
de que não sairia vitorioso, encarou uma can- tem empurrado o movimento sindical para a
didatura ao governo de Pernambuco em 1982. prática que considero como novo peleguismo.
“Na propaganda da TV, só a foto. Aí alguém O peleguismo da negociação, de fechar a boca.
dava o currículo: trabalhador rural, preso não Devemos trabalhar a edificação da socioeco-
sei quantas vezes, expulso do país. Fiz o maior nomia solidária. Pois é certo que, se o capita-
sucesso na periferia de Recife”, conta o líder lismo puder arrancar o nosso olho, ele arran-
camponês. Tentaria também uma candidatura ca. Já está acontecendo isso”. Sobre a CUT,
ao Senado e à Câmara Federal pelo Maranhão, vaticina que “a Central não deve pensar ape-
também sem sucesso. nas em garantir emprego dentro de estrutura
capitalista, onde, cada vez mais, menos gente
é necessária na linha de produção. O horizon-
Uso coletivo da terra
te deve ser o de um projeto que se contrapo-
Mané sonha com uma sociedade diferente e nha ao capitalismo”.
sempre trabalhou por isso. Em São João das
Mangabeiras, sul maranhense, labuta com
A família
outras famílias na construção de uma área de
uso coletivo da terra. Na área, há terra reserva- O orgulho se estampa no rosto de Mané quan-
da para uso das famílias e uso da cooperativa. do ele se refere aos filhos: “Amo e admiro to-
“Não podemos labutar tanto, e o atravessador dos”. Mariana, fruto do segundo casamento
ganhar tudo. Na minha cabeça, não cabe essa com a advogada Denise Leal, foi concebida em
história de propriedade da terra. A terra para São Paulo. Nasceu na Suíça, após a saída do
nós é dos animais que nela vivem. Quando cárcere. Acaba de concluir o curso de Agrono-
chegamos, estava tudo aí. Que história é essa mia em São Luís. Entre os filhos, Mariana foi a
de propriedade privada? Essa terra é nossa!” que o líder camponês mais esteve próximo.
Apesar da idade e de toda a vida “Acredito que ela siga as pegadas deixadas por
dedicada ao movimento popular, prossegue mim.” O único homem entre os rebentos leva
incansável. Mantém as mesmas convicções de o nome do pai, fruto do primeiro relaciona-
antes quando iniciou a caminhada, nos idos mento, com Maria Rita Pinto Santos.
de 1962, quando os militares ensaiavam o Manoelzinho, como é conhecido, traça
golpe. “Para a história, esse tempo não signi- um belo perfil do pai: “A predisposição para
fica nada”, sentencia Mané – um colaborador sempre recomeçar presente em Manoel Con-
na organização do Movimento dos Trabalha- ceição é de uma grandeza incomensurável.
dores Rurais Sem Terra (MST) no Maranhão. Tamanha solidez ideológica, no entanto, não
EM FRENTE DA SEDE DO CENTRU-MA E DENTRO DA ÁREA ONDE A ENTIDADE DESENVOLVE O SISTEMA AGROFLORESTAL-SAF
44 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR
tem conseguido ocultar totalmente, sobretu- trabalho. Fez parte do rebanho de nordesti- * Rogério Almeida
do, nos últimos dez anos, as suas profundas nos que seguiram para a cidade grande em Jornalista, cursa o
marcas de decepção, frente à vulnerabilidade busca de dias menos doridos. Antes de seguir Programa Internacional
de expressiva ou talvez majoritária parcela de o caminho de volta para o interior do Piauí, em Formação de
históricos companheiros e companheiras que, morou em São José dos Campos, São Paulo. Especialistas em
com relativa facilidade, encantam-se com os Rosa Rocha Albuquerque é nome da caçula, Desenvolvimento de
Áreas Amazônicas
apelos do consumismo e com a ilusão do fruto de um relacionamento com a alagoana
(Fipam), no Núcleo
pseudopoder de um estado neoliberal e bur- Neide, na época, secretária da Diocese em Re-
de Altos Estudos
guês; esquecendo-se dos nominais e anôni- cife, Pernambuco. Rosinha, como a chama,
Amazônicos (Naea) da
mos companheiros que, para ver brotar a es- deseja cursar História e Antropologia. Universidade Federal
perança, regaram-na com o próprio sangue. A Ter abandonado os filhos sem poder do Pará. E-mail:
importância que Manoel Conceição atribuiu e ajudá-los, colaborar na educação ou aninhá-los 38marabala@globo.com
continua atribuindo ao movimento popular, provocou, no peito do militante, profunda dor,
ou melhor, à classe trabalhadora só é igual à que só se dissipa quando a história é conversar
que ele atribui à sua própria vida”. com os companheiros trabalhadores no campo
Raquel, a outra filha com Maria Rita, é ou na cidade. Sobre as mães de seus filhos, con-
dirigente sindical em Boqueirão, Piauí. Os cin- sidera-as guerreiras. Tiveram um papel funda-
co netos que Mané possui são de Raquel. A mental na educação das crianças, enquanto se-
mais velha da prole correu o país atrás de guia a vida de militante, fugido ou preso.
Cerrado é vida
Construir um modelo de desenvolvimento Souza, coordenador geral do Centru, pela
que respeite o ser humano e o meio ambi- parceira de luta de velha data e presidente
ente, contemple a agricultura familiar e da Coopevida, Sonia Maria Miranda, e por
promova a solidariedade. Esse é o objetivo Marciano Miranda, presidente do sindicato
de um projeto com nome pomposo: Proje- dos Trabalhadores Rurais de Mangabeiras.
to de Desenvolvimento Sustentável e Soli- Na platéia, estudantes, trabalhadores e tra-
dário (PDSS) – O Cerrado é Vida. Os coor- balhadoras rurais de municípios vizinhos,
denadores são trabalhadores e trabalhado- pesquisadores da Universidade Federal do
ras rurais do Maranhão, organizados em Maranhão (UFMA), religiosos, representan-
sindicatos, associações de pequenos pro- tes do movimento popular de estados vizi-
dutores e cooperativas. nhos como Pará e Tocantins, representante
A região é o cerrado maranhense, oeste do Fórum Carajás, articulação de entidades
e sul do estado, área de transição da Ama- populares dos estados de Tocantins,
zônia, região marcada pela monocultura da Maranhão e Pará, representantes do Banco
soja, onde japoneses, russos e holandeses, do Brasil e do Banco do Nordeste, do Servi-
gaúchos e paranaenses foram os coloniza- ço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
dores. Além da soja, colaboram para a der- Empresas (Sebrae), Pólo Sindical (Fetaema) e
rubada do cerrado uma floresta de eucalipto da Confederação dos Trabalhadores na Agri-
da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), cultura (Contag).
carvoarias (que também usam o babaçu para O projeto Cerrado é Vida propõe uma
produção de carvão) e siderúrgicas. A re- nova racionalidade no trabalho com a terra.
gião está agendada para ser cenário de no- A idéia é desenvolver uma produção diversi-
vas hidrelétricas e expansão da sojicultura. ficada, consorciando arroz, milho e feijão
O marco histórico do projeto foi o Dia com frutas e madeiras permanentes e ou-
do Trabalhador Rural, comemorado em 25 tras atividades, como caça, pesca e sistemas
de julho, em 2002, em São Raimundo das agropastoris de pequenos animais. O proje-
Mangabeiras, sul maranhense, município de to busca um modelo de desenvolvimento
15 mil habitantes. A comemoração dessa que não privilegie somente o aspecto eco-
data prometia uma maratona: seminário, nômico, mas que promova a integração
teatro, almoço, carreata, bingo de bezer- entre a natureza e o ser humano.
ro, ato público, lançamento da pedra fun- Diante da necessidade de criação de
damental do projeto e forró. A coordena- alternativas concretas, o projeto Cerrado é
ção ficou por conta da CCAMA, do Centru Vida atua para que os trabalhadores sejam
e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de os autogestores de suas experiências. Atu-
São Raimundo das Mangabeiras. almente, incorporam essa idéia oito coo-
À mesa estavam Manoel Conceição San- perativas e oito sindicatos dos trabalhado-
tos, animador do projeto e homenageado res rurais, sob a coordenação da CCAMA e
do dia, ladeado pelo sindicalista Joaquim sob a assessoria do Centru.
A organização Fundo Mundial para A luta contra a hepatite C ga- Com o objetivo de produzir infor-
a Natureza (WWF, na sigla em in- nhou mais uma aliada: uma nova mações para que as práticas asso-
glês) publicou recentemente um droga (Biln 2061) desenvolvida ciadas ao orçamento público sejam
relatório enfatizando a necessida- por cientistas na empresa alemã mais transparentes, acaba de ser
de de aumentar a produção mundi- Boehringer Ingelheim. Ela evita a lançado o Índice de Transparência
al de alimentos para acompanhar duplicação do HCV, vírus da hepa- Orçamentária (ITO) na América
o crescimento demográfico do pla- tite, que pode causar danos per- Latina. A primeira versão surgiu
neta. A expectativa é de que, nos manentes no fígado e até levar à ao longo dos anos de 2000 e 2001,
próximos 50 anos, tenhamos mais morte. Não há vacinas contra a e apenas cinco países compunham
2 bilhões de pessoas. doença. A transmissão se dá pelo o quadro estudado. Hoje, o projeto
O documento mostra ainda que contato com sangue infectado ou contempla dez países. No Brasil, o
países como China, Paquistão, por sexo sem camisinha. Ibase foi o responsável pela pes-
Austrália e Espanha alcançaram Cerca de 170 milhões de pes- quisa, que teve o apoio da Funda-
ou estão próximos de alcançar o soas no mundo têm HCV. As dro- ção Ford e recursos da Fundação
limite das fontes de água renová- gas atuais podem causar efeitos Open Society Institute.
veis. O diretor do Programa das colaterais desconfortáveis. “A Biln “Participação no orçamento
Águas da instituição, Jamie 2061 parece ser segura e bem to- não é uma qualidade da sociedade
Pittock, revelou que, se não utili- lerada”, declarou para a revista na América Latina”, constata Jú-
zarmos de maneira mais adequada Nature o vice-presidente sênior da lio Silva, pesquisador do Ibase. No
a água destinada para as planta- empresa, Paul Anderson. Brasil, a percepção das pessoas
ções, teremos sérias conseqüênci- Porém, ainda são necessários está mais apurada pelas práticas
as para alcançar a meta de dimi- mais testes para verificar possí- de orçamento participativo e
nuir pela metade o número de veis problemas a serem desenvol- pelo processo recente do Plano
pessoas famintas até 2015. vidos ao longo do tempo, como o Plurianual (PPA). “Isso mostra que
Os(as) governantes precisam aumento da reprodução viral ou a é possível que a sociedade partici-
distribuir melhor – e de forma resistência do HCV à droga. Mes- pe do orçamento, apesar de não
mais justa – a água entre os(as) mo assim, estudiosos(as) chegaram estar efetivamente qualificada”,
agricultores(as). “Governos de- a dizer que os resultados a curto diz Júlio. O Brasil é o país mais
vem fazer mais do que promessas. prazo são extraordinários. bem colocado na região em ter-
Junto com a indústria alimentícia mos de percepção de participação,
e consumidores, devem começar com 20%. México tem 16%; Co-
uma nova revolução na agricultu- lômbia, 15%; Chile, 14%; Nicará-
ra. Algo que garanta suprimento gua, 12%; Argentina, 11%; Peru,
de comida e água para todas as 7%; Costa Rica, 8%; El Salvador,
pessoas”, finaliza Jamie. 5%; e Equador, 3%.
46 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
LO MUNDO PELO MUNDO PELO MUNDO
A bruxa está solta na África. No O Fundo das Nações Unidas para O estado do Texas, Estados Uni-
começo de outubro, os governos a Infância (Unicef) começou em dos, está com novas regras para o
de Zimbábue, Nigéria e Camarões novembro de 2003 uma campa- aborto. Proposto pelo Conselho
fecharam rádios privadas e jornais nha para que as crianças liberianas de Saúde da Mulher, aquelas que
e prenderam editores(as) e repór- voltem às aulas. Há expectativa quiserem fazer um aborto terão
teres. Isso foi considerado por di- de que 75 mil meninos e meninas de fornecer documento de identi-
versas organizações, entre as quais peguem seus livros para estudar. dade ou assinar protocolo com-
Repórteres Sem Fronteiras, como Algumas crianças estudarão pela provando a idade. A proposta foi
um esforço para eliminar o direito primeira vez. feita, entre outras razões, para
de informação. Serão treinados(as) 20 mil que não aconteçam mais abortos
A velha discussão de até onde o professores(as) e melhoradas em menores de idade sem o con-
jornalismo pode ir nas investiga- 3.700 escolas. Serão distribuídos sentimento de pais e mães.
ções sobre os governos voltou à milhares de kits escolares com Porém, a proposta vem cau-
tona. Na maior parte das vezes, l i vros, giz, lápis e guias para sando indignação em quem defen-
qualquer suspeita publicada é moti- professores(as). “Crianças que de o direito ao aborto. Um dos
vo para repressão e censura. Re- cresceram conhecendo nada além artigos delega aos(às) médicos(as)
centemente, o Instituto de Mídia da guerra precisam de educação e a função de garantir que tomarão
do Sudeste da África (Misa, na si- um futuro em seu país. Educação medidas para manter a vida e a
gla em inglês) lançou campanha estabelece um caminho além da saúde da criança nascida viva. Ou-
para chamar a atenção para viola- pobreza”, afirma Carol Bellamy, tro artigo estabelece que as mu-
ções contra jornalistas da região diretor executivo do Unicef. lheres recebam informações sobre
da Comunidade em Desenvolvi- É um momento delicado na o aborto um dia antes de entrar na
mento do Sul da África (Sadc, na Libéria. O acordo de paz foi re- clínica. Defensores(as) do direito
sigla em inglês). Sadc jornalistas cém-assinado em outubro, e o país ao aborto propõem, nesse caso,
sob o fogo: grite por uma mídia passa por uma fase de transforma- que as mulheres rubriquem todas
livre e aberta é o tema. ções. Para Bellamy, essa é uma as seções de um formulário dizen-
A delegação do Misa tem visi- brava campanha em um momento do que receberam todas as infor-
tado os países para mapear a si- de fragilidade do processo de paz. mações obrigatórias.
tuação da mídia. A maior preo- “É certo que os primeiros dividen- As regras estarão abertas a co-
cupação é com o Zimbábue, onde dos da paz sejam pagos às crian- mentários até o início de dezembro
jornalistas precisam ter registro no ças, que suportaram tanto por de 2003. No mês seguinte, o con-
governo antes de trabalhar. muito tempo e têm o futuro em selho definirá a medida definitiva.
suas mãos”, justifica.
Fonte: www.ips.org
Imigrante,
cidadania suspeita
EMYGDIO DE BARROS
48 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ACIONAL
Desde a formação da República, a França lida
com a situação dos imigrantes. Até o fim da
Segunda Grande Guerra, eles são originários,
sobretudo, da própria Europa. O contexto muda
por necessidade de reconstrução e de desen-
De vez em quando, algumas vozes se
erguem em sua defesa. A sucessão de perse-
guições e condenações de indivíduos e asso-
ciações que apóiam os sem-papéis motivou
alguns cientistas, personalidades políticas,
volvimento econômico do país. Inicia-se, assim, do teatro e do cinema, representantes de
uma fase de importação massiva da mão-de- ONGs etc. a lançarem o “Manifesto dos De-
obra das antigas colônias, que durará até a cri- linqüentes da Solidariedade”, em maio de
se da década de 1970. Essa primeira fase é 2003. Trata-se de uma resposta ao projeto
permeada de convenções sobre a mão-de-obra de lei sobre imigração proposto pelo gover-
e de acordos bilaterais com as ex-colônias e com no Chirac. É um apelo à desobediência civil
os demais países de emigração. Progressiva- diante das acusações e da criminalização cres-
mente, os imigrantes vão se beneficiando da cente dos que lutam pela solidariedade aos
legislação de proteção social, como as pessoas imigrantes. Segundo o texto do documento,
de cidadania francesa. Mas a mudança da con- “a cada ano na França, apesar do artigo 21
juntura intervém nos debates nacionais e inter- da lei 3 sobre a entrada e a estadia dos es-
nacionais. Estabelece-se, então, que a duração trangeiros, centenas de associações e milha-
e o tipo de estadia de pessoas estrangeiras em res de cidadãos acolhem, ajudam, informam
solo francês seriam critérios para definir os di- sobre seus direitos aos estrangeiros”. Mais
reitos de uns em relação aos outros. A seleção de 15 mil pessoas e mais de 300 organiza-
e a hierarquização dos direitos dos indivíduos, ções assinaram o manifesto. Em outubro de
em função das nacionalidades, são acentuadas 2003, várias centenas de pessoas reunidas
e, em seguida, sistematizadas pelo Estado fran- em Paris denunciaram o projeto de lei em
cês.1 Os direitos dos indivíduos são, dessa for- discussão no Senado, 4 reafirmando as de-
ma, condicionados à nacionalidade. terminações contidas no manifesto.
Segundo Viet, “entre 1948 a 1981, de Adotado pelo Parlamento em julho
um total de 2,35 milhões de imigrantes assa- de 2003, esse projeto de lei transforma imi-
lariados, mais de 1,4 milhão foram regulariza- grantes em defraudadores potenciais: cúm-
dos”.2 Ter situação irregular significa não ob- plices dos patrões, se estes os empregam
ter documentação necessária para trabalhar, clandestinamente; caso reclamem o estatu-
ficando impossibilitado de gozar dos mesmos to de asilado, tendo bebês, tornam-se sus-
direitos que a população francesa. Resta-lhes, peitos; tornam-se suspeitos também de ca-
então, o trabalho clandestino. Esse fenômeno samento “branco” (falso), quando se casam
permanece até hoje, criando um exército de com uma pessoa francesa etc. São corriquei-
reserva dócil e à mercê das chantagens dos ras e coerentes com a política européia de
patrões e da política de austeridade dos su- fechamento das fronteira as prisões e as de-
cessivos governos. Ou seja, a França acomoda portações de estrangeiros extracomunitári-
a população imigrante às necessidades da eco- os nesses últimos anos.
nomia capitalista, em detrimento dos direitos A França protege cada vez menos as
dos indivíduos. Com o apoio da União Euro- pessoas refugiadas que pedem asilo. Infrin- 1 MERCKLING, Odile. Immigration
péia (UE), a política de imigração da França gindo convenções internacionais ou mesmo et marché du travail. Ciemi:
L’Harmattan, 1998.
serve, de certa maneira, como referência para tratados bilaterais, as medidas repressivas
2 VIET, Vincent. La France
os países tradicionalmente mais progressistas são acompanhadas de campanhas antiimi- immigrée. Paris: Fayard, 1998.
da região para enrijecer as medidas concer- grantes sutis, para influenciar uma parte da 3 “Toda pessoa que […], por
nentes às pessoas estrangeiras. sociedade e, conseqüentemente, as institui- uma ajuda direta ou indireta,
facilitar ou tentar facilitar a
É nesse contexto que nasce, em março ções. Um dos clichês mais hipócritas utiliza- entrada, a circulação ou a es-
tadia irregular de um estran-
de 1996, em Paris, o Movimento dos Sem-Pa- dos por certos políticos da esquerda ou da geiro na França ou no espaço
péis. Isso foi um marco histórico, consistindo direita é o do “perigo de invasão dos estran- internacional citado será pu-
nida com prisão de cinco anos
no único movimento que se mantém até hoje, geiros na Europa, pois não se pode socorrer e com multa de 30 mil euros”,
Artigo 21 da Ordenança de 2
com altos e baixos. Defendendo-se como po- toda a miséria do planeta”. No entanto, sabe- de novembro de 1945.
dem, os sem-papéis recorrem às greves de se que o maior fluxo migratório se dá no 4 O artigo 17 do projeto de
fome coletivas, ocupações de locais públicos, interior mesmo dos continentes dos países lei prevê o confisco, para pes-
soas físicas ou jurídicas, de
manifestações de rua etc. Por vezes, longe da do Sul. O mesmo fenômeno se dá com as todos os seus bens, móveis ou
imóveis.
solidariedade militante dos partidos políticos pessoas refugiadas, “pois eles acolhem no
de esquerda ou mesmo das ONGs progressis- seu solo 12 dos 14 milhões de refugiados 5 NOIRIEL, Gerard. Réfugiés et
sans-papiers. Pluriel: Hachette
tas, seguem a luta com dificuldades. de que conta o planeta”. 5 Litteratures, 1998.
50 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMIGRANTE, CIDADANIA SUSPEITA
sobre os profissionais das empresas de viagem para os vistos. Trata-se de um fichário com os * Beatrice Verri
para que assumam atribuições de polícia. As vistos concedidos pela UE, contendo os dados Whitaker
medidas de controle e vigilância de informa- biométricos dos indivíduos (impressões digi- Representante da
ções não cessam de multiplicar-se. O Europol, tais, íris dos olhos etc.). Nos próximos anos, Federação das
organismo policial europeu criado em 1994, 140 milhões de euros poderão ser emprega- Associações de
Depois do atentado de 11 setembro de Os 450 milhões de europeus dos 25 10 Site do Parlamento Europeu.
2001, o Europol vem cumprindo missões para países da UE encontram-se presos numa arma- 11 La Inmigración. El País, 16
jun. 2002.
desenvolver o controle da Europa, sob a dire- dilha. Ou lutam pela igualdade dos direitos
12 FASTI. Droits de l’homme, la
ção dos ministros europeus. A sucessão de lí- entre os povos presentes no solo europeu para Fasti accuse: Corlet, 1999. Essa
deres da UE não cessa de atacar imigrantes e construir uma relação de forças ou transfor- é a posição da Federação das
Associações de Solidariedade
refugiados de maneira cada vez mais centrali- mam-se em inimigos da população estrangei- com os Trabalhadores Imigran-
tes (Fasti), uma ONG que
zada. No primeiro semestre deste ano, vários ra, correndo o risco de perderem seus direitos. agrupa, desde 1966, cerca de
países da UE fretaram aviões, intensificando Não há outra alternativa senão lutar contra esta 70 associações locais espalha-
das pela França. Participa das
assim os “vôos agrupados” para a expulsão nova ordem mundial, exigindo a abertura das campanhas pelo direito ao asi-
lo com outras organizações
de imigrantes extracomunitários. Em nome da fronteiras aos povos, pela livre circulação e ins- (Anistia Internacional, Liga dos
luta anticlandestina ou antiterrorista, aprova- talação dos indivíduos e pela igualdade dos Direitos Humanos, Gisti etc.),
editando o jornal de campa-
ram a criação de um banco de dados comum direitos entre nacionais e estrangeiros.12 nha Confluencias.
VISTA
Por Marcelo Carvalho
52 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
Já podemos análisar o Ministério de espectadores passivos, ou seja, metade da
da Cultura no governo Lula? população. O Brasil é muito grande e com uma
Alcione Araújo – Ainda não dá porque população de baixa escolaridade.
não expuseram nenhum projeto até agora. Como seria o caráter geral dessa
Estamos vindo de oito anos de governo FHC política cultural?
sem projetos definidos e ainda não há – ou Alcione Araújo – Precisa ser pensada es-
não foi mostrada – uma política cultural es- trategicamente, para os próximos 20, 30 anos,
tabelecida. É preciso contemplar toda a po- para que, assim, sobreviva aos solavancos
pulação de 173 milhões de habitantes do conjunturais da política. Não dá para pensar
Brasil, não dá mais para fazer política públi- em projetos de quatro anos para um país com
ca para uma minoria. O que existe são as o tamanho e a complexidade do Brasil. Do con-
ações que se apóiam nas leis de renúncia trário, estaremos presos aos eventos, que aca-
fiscal, que outorgam aos empresários a es- bam sendo fatos políticos e eleitorais. Esse es-
colha dos projetos artísticos que serão pro- pírito precisa até extrapolar: é preciso pensar o
duzidos no país. Quer dizer, esses projetos país a médio e longo prazos. Basta de atender
têm de ser convenientes às estratégias de apenas a demandas circunstanciais e emergen-
marketing das empresas. Por um lado, as ciais. Ao pensar dessa forma, a primeira ques-
leis de renúncia fiscal viabilizam projetos. tão que se coloca é a da educação e da cultura.
Mas, por outro, são uma espécie de filtro Qualquer revolução que se pense hoje no
ideológico que domestica a produção cultural. mundo passa por aí. É preciso pensar a univer-
Em um país como o nosso, o mercado não sidade, mas não só. Temos também de aprimo-
pode ser a instância definidora da produção rar a educação como um todo, oferecer a mais
cultural. A baixa escolaridade da população sublime das fruições estéticas e, ao mesmo tem-
brasileira faz com que suas preferências es- po, contemplar as manifestações culturais que
téticas reproduzam o que tem sido ofereci- emanam espontaneamente nos mais diversos
do, que é, basicamente, os valores veicula- rincões do país. É preciso respeitar a diversida-
dos pela televisão e pela indústria de entre- de, vencer a fala estética do eixo Rio–São Paulo.
tenimento. O papel do Estado é fundamental Veja o caso do cinema. Há muitos filmes
tanto na cultura como na educação. que as empresas não financiam. Quem não
Aliás, os três ministérios que acompanho está no padrão global está fora. Não tenho
mais de perto – Cultura, Educação e Meio Am- nada contra a Rede Globo entrar no mercado
biente – parecem ainda estar se articulando. de cinema, mas é preciso também que tenha-
Eu os vejo sempre na defensiva, tentando im- mos filmes pernambucanos, brasilienses, o
pedir que determinada lei seja aprovada. Quais país é muito diversificado. É empobrecedora a
as políticas que vão emanar desses ministérios? uniformização. Conseguiram uniformizar a
Como as pessoas que querem produzir cine- maneira de se vestir, de se falar, os valores,
ma, teatro ou música farão quando seus pro- tudo no Brasil ficou muito parecido.
jetos não forem do agrado dos empresários? Você citou os ministérios da Cultura,
O Estado precisa ter compromisso com a área da Educação e do Meio Ambiente.
cultural, ter uma política cultural que seja in- E quanto ao resto do governo?
dependente do capitalismo hegemônico, uma Alcione Araújo – Desconfio de alguns va-
política pública que beneficie a produção crí- lores instalados no Ministério do Desenvolvi-
tica e alternativa ao establishment. mento, da Indústria e do Comércio Exterior,
Na verdade, meu olhar está voltado muito por exemplo. O ministro da Agricultura, Pecu-
mais para o cidadão. A questão não é a de que ária e Abastecimento disse que o mercado é
o Estado tenha obrigação de dar dinheiro para que vai definir se teremos ou não soja transgê-
o artista. Em geral, são os artistas e produto- nica. Ora, elegemos nossos dirigentes para que
res que falam sobre políticas públicas para a eles apontem os caminhos, e não para que de-
cultura, o que acaba por eclipsar um direito volvam a questão a uma população de baixa
constitucional de acesso aos bens culturais. escolaridade e mal informada que não acom-
O que o Estado faz – ou deveria fazer – é panha as inovações técnico-científicas e não
financiar os artistas para assegurar ao cida- sabe as conseqüências que isso pode ter.
dão esse direito constitucional, pois as pes- Saímos do governo passado, dos oito anos
soas não estão participando da vida cultural de FHC, pior do que estávamos. Certo, houve
do país, apenas da indústria do entreteni- a estabilização da moeda, mas hoje já acho
mento. Mesmo assim, são apenas 80 milhões limitada essa interpretação do mundo pela
NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 53
E N T R E V I S TA
economia, sabia? Esse discurso de colocar o sentido em que ela lhe ocorreu. Como sem-
capital como sujeito da história já se esgotou. pre, não existe nada isolado na natureza nem
Eu quero o ser humano como sujeito da história. na sociedade dos homens – por isso, a Teoria
Apesar disso, não estou desesperançado da Complexidade afirma que cada fato influ-
com relação ao governo Lula. Mas gostaria de encia e é influenciado por todos os demais
que a mesma altivez que ele tem demonstrado fatos, até mesmo os mais remotos.
nas questões de política externa também se A arte e a comunicação são os
demonstrasse na política interna. Internamen- fundamentos da cultura?
te, as políticas estão tímidas, e a demanda do Alcione Araújo – É evidente que arte e
país é enorme. Educação, cultura e meio am- comunicação são destacados elementos de
biente são partes integrantes da cidadania. cultura. Mas são várias as culturas. A palavra
E são exatamente os três ministérios que cui- cultura vem de agricultura. É o cultivo, a plan-
dam dessas áreas os menos contemplados. tação ou a criação de determinados bens ou
Os ministérios mais poderosos são os de In- produtos, concretos ou imaginários, abstra-
dústria e Comércio e Agricultura, com as expor- tos ou utilitários. Na biologia, por exemplo,
tações e o agrobusiness. Em nome dessas duas cultura significa o cultivo de células e tecidos
atividades, estamos sacrificando questões am- vivos. Para a antropologia, cultura é o conjun-
bientais muito sérias, como os transgênicos. to de costumes, crenças, valores e processos
Qual a relação entre arte e produtivos que caracterizam um grupamento
comunicação? social. Há também a distinção meramente ver-
Alcione Araújo – Antes de falar sobre nacular, como a de cultura oficial, que é o con-
isso, é preciso tentar esboçar uma distinção junto de atitudes, linguagens, conhecimentos,
entre arte e comunicação. Não é uma tarefa costumes etc. difundidos, direta ou obliqua-
fácil. Poucos se arriscam a racionalizar algo mente, pelos meios de comunicação manti-
que se esquiva ao abraço da razão. O concei- dos ou utilizados pelo Estado. Por mais que
to de arte é radicalmente subjetivo, variável haja distinções, todas essas culturas são
ao longo da história e só se permite enunciar interdependentes. E o que nos interessa aqui
se imerso na cultura de origem da própria é a Cultura – entendida como produção do
obra. Já a comunicação, do grito primal à so- imaginário, produção simbólica ou produção
ciedade da informação, é primordialmente, do espírito –, que, com a passagem do tempo
embora não estritamente, produção da ra- e as mudanças da sociedade, foi se dividindo
zão, sobretudo na instituição de sistemas de nas chamadas cultura popular, cultura erudita
codificação/decodificação. e cultura de massa.
Grosso modo, pode-se dizer que arte, como Afinal, qual é a origem da
criação ou como fruição, é, primordialmente, cultura brasileira?
produção e percepção de subjetividades; a Alcione Araújo – Sem rigor cronológico
comunicação, do ponto de vista do emissor e considerando que, na época, o tempo era
ou do receptor, é, primordialmente, produção lasso, distendido, e a repercussão dos fatos
e percepção de, digamos, objetividades. Em era lentíssima, pode-se dizer que, quando
ambas as idéias, mencionei “primordialmen- Cabral avistou essas terras, no início do sécu-
te”. Isso significa que tanto a arte pode se lo XVI, as universidades de Bolonha e Coimbra,
utilizar de alguns elementos de comunicação, por exemplo, já funcionavam há séculos.
como a comunicação pode, eventualmente, ser Gutenberg já inventara a imprensa, Marco
criativa, original, sensível e buscar atingir a Polo já chegara à China e o Império Romano
subjetividade – nesse caso, o exemplo extre- tinha virado pó. São Tomás de Aquino já con-
mo é o da propaganda subliminar. Em termos c lu íra a S u m a Teo ló g ic a , rees c reven do
semiológicos, poderíamos dizer que a arte Aristóteles de modo a torná-lo útil ao catoli-
opera com signos originais, criados para uma cismo. Dante unificara a língua italiana com
expressão singular, única, que se oferece a A divina comédia. A catedral de Chartres,
múltiplas percepções. A comunicação opera construção complexa e sofisticada, já estava
com signos decodificáveis, saturados, buscan- pronta, louvando a Deus com as altas torres
do um entendimento estrito, unívoco e apontadas para o céu. Tudo isso – e muito
coletivizado. O comunicador procura o pata- mais – já existia na velha Europa, enquanto
mar que o nivele com a sua audiência. A arte nossos ancestrais indígenas corriam pelados
não necessariamente procura isso. O criador por essas praias, com as “vergonhas” balan-
oferece a sua criação no nível, na forma e no çando aos ventos tropicais. Cabral, porém,
54 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
ALCIONE ARAÚJO
NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 55
E N T R E V I S TA
sobrevivência. E inexistia lei que lhe assegurasse religiosas e festivas, eram proibidas pela Igre-
o mínimo para sua manutenção. Ser negro tor- ja e reprimidas pelas autoridades policiais.
na-se sinônimo de ser miserável, vadio e delin- O samba, hoje motivo de orgulho do brasilei-
qüente. E nenhuma escola lhe abriu as portas. ro, nasceu quase na clandestinidade e vítima
E, no entanto, o(a) negro(a) de repressão. Já os portugueses e seus des-
deu grande contribuição à cendentes nativos, herdeiros da cultura bran-
cultura brasileira. ca européia, se apossaram do país, do ponto
Alcione Araújo – Certamente. Das três etnias de vista econômico, político, religioso e cultu-
que, então, povoavam o Brasil, a indígena é a ral. O apartheid cultural vem de longe. Para a
primeira a ser afastada do processo de cons- elite, o país era um simulacro da Europa. Bas-
trução do povo que habitaria essa banda da tava fechar os olhos para ver igrejas, mostei-
América. Para ser exato, há quem diga que a ros, universidades, teatros, orquestras, ópe-
população nordestina é pura miscigenação; ras, museus e modas do velho mundo.
os indígenas teriam desaparecido na fusão com Como a cultura branca européia se
os brancos, tornando-se todos “brancos”. mistura à cultura brasileira?
Mas, em geral, as tribos, fugindo da escraviza- Alcione Araújo – Bem, o caldo de cultu-
ção, dos seqüestros, das doenças contagio- ra europeu era muito denso para ser absorvi-
sas, dos estupros e da matança gratuita, do por um povo em formação, que não vivera
embrenhavam-se nas matas, levando suas cren- a Idade Média, a Inquisição, o Renascimento,
ças, o conhecimento da natureza e suas práti- o Iluminismo e nem a Revolução Francesa.
cas culturais. Contribuíram modestamente para Os portugueses que estavam aqui ou vinham
a formação cultural do povo emergente. para cá, embora brancos e europeus, eram, na
Registre-se que o desinteresse pela acumu- sua maioria, aventureiros em busca de fortuna
lação, decorrência do costume de colher ape- rápida e não deveriam participar ativamente
nas o necessário e indispensável para a sobrevi- do que chamamos de cultura européia, embo-
vência, pois, a qualquer tempo, tudo na natu- ra preservassem esse legado no imaginário.
reza – frutos, caças, peixes etc. – continuaria Porém, no início do século XIX, uma surpre-
disponível, em vez de lição de vida, serviu para sa muda o rumo da história. Napoleão invade
aguçar a cobiça do branco. Mais: essa virtuosa Portugal, obrigando a família real, para não se
inocência foi entendida como indolência pelo render, a fugir para o Brasil. Incerto sobre
branco, cuja permanência por aqui era abrevia- quando teria chances de retornar, d. João VI,
da o quanto possível – o Brasil era lugar de com uma astúcia até hoje mal avaliada, cria
enriquecimento rápido, através da rapinagem uma nova figura na história da diplomacia: a
ou de quaisquer outros meios. Para um euro- do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves,
peu, viver de verdade era só na Europa – embo- com corte provisória no Brasil. Napoleão não
ra, para o pobre, a vida na Europa fosse um tinha como alcançar o rei no outro lado do
horror, e, aqui, com calor, praias, mulheres índi- Atlântico – não dispunha de esquadra capaz
as e negras, podia-se de fazer frente à britânica, que, em defesa de
ter um paraíso.. seus interesses, presentes e futuros, prote-
Já os negros, de- gera a travessia da realeza fujona. A mesma
pois da Abolição, em incerteza quanto à data do seu retorno à Eu-
lastimável precarieda- ropa levou d. João a, digamos, tentar trazer a
de, sem trabalho e Europa para os trópicos. Pelo menos aquilo
sem escolarização, que podia consolar um monarca desterrado
aglutinavam-se em no lado de cá do Atlântico e criar as condi-
núcleos periféricos ções mínimas de segurança, higiene, civilida-
aos centros semi- de, educação, cultura etc. para que o Rio de
urbanizados, onde Janeiro pudesse ser considerado, pelo me-
desenvolviam os ritu- nos, um arremedo de Lisboa.
ais de suas crenças Como foi refazer aqui a cultura
religiosas, a culinária, portuguesa, uma cultura elaborada
a música, a dança etc. durante séculos e séculos?
Tudo na semiclan- Alcione Araújo – Pode não ter sido uma
destinidade, pois vá- intenção consciente, mas foi o que aconteceu.
rias dessas práticas, E começou já no desembarque. Na bagagem,
especialmente as d. João trouxe uma tipografia que, além da
56 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
ALCIONE ARAÚJO
função prática de publicar textos e livros, ti- têxtil, concedeu licença para a instalação de
nha o valor simbólico de reparar a truculência uma fábrica de vidro, criou uma fábrica de
da Coroa, que mandara destruir e queimar pólvora e uma fundição de artilharia, fundou
as tentativas anteriores de se instalar aqui o Banco do Brasil, a Biblioteca Pública, atual
uma gráfica, para não propagar idéias que Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico e, mais
poderiam ser contrárias aos interesses do tarde, mandou vir a missão artística francesa
Estado. Essa parte da bagagem do príncipe para ensinar aos nativos o que era a arte.
regente propiciou a criação da Impressão Como foi isso?
Régia, que passou a imprimir a Gazeta do Alcione Araújo – D. João parecia querer
Rio de Janeiro, uma espécie de Diário Ofici- recriar um pedacinho da Europa no Brasil. E
al, mas nem por isso poupada de implacável devia achar que, em termos artísticos, era preci-
censura. Apesar de ser editada aqui, a Gaze- so que alguém nos ensinasse o que era arte.
ta do Rio de Janeiro estava longe do espírito Porém, é bom lembrar, a influência cultural fran-
crítico e combativo do Correio Braziliense, o cesa estava presente por toda a Europa. As cor-
primeiro periódico brasileiro que começara tes alemã e russa falavam francês. O romantis-
a circular meses antes, editado em Londres mo alemão é, até certo ponto, uma reação
por Hipólito José da Costa. contra a dominância cultural francesa – do
Outras façanhas que contribuíram para a mesmo modo que o populismo russo. Imagi-
idéia de trazer um pouquinho da Europa para ne, então, como era em Portugal! Mas o Bra-
cá foram os diversos estabelecimentos de en- sil não era, então, um deserto artístico e cul-
sino que d. João fundou, com olhos postos tural. Antes da chegada dos franceses, já
na criação de uma elite militar e civil locais: a havia trabalhos expressivos em pintura, es-
Academia de Marinha, a Academia de Arti- cultura, talha e ourivesaria em Minas Gerais,
lharia e Fortificações, a Academia Médico-Ci- Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Alei-
rúrgica da Bahia e a Escola Real de Ciências, jadinho e Mestre Valentim, por exemplo, já
Artes e Ofícios, mais tarde Academia de Belas haviam deixado suas marcas no patrimônio
Artes. Essas instituições significavam algum artístico e cultural do país, em que pese a
progresso, mas eram quase nada se as com- defasagem de estilos em virtude do relativo
pararmos com o que acontecia à volta do Bra- isolamento em relação à Europa.
sil. Na América espanhola, já existiam, desde A missão, dirigida por Lebreton, não era
o século do descobrimento, as universidades formada por desconhecidos ou iniciantes.
de Santo Domingo, do México e do Peru, e Alguns já tinham notoriedade para além da
jornais circulavam desde o século anterior – França. Incluía os pintores Nicolas Taunay e
decorrências da presença dos vice-reinados, Jean Baptiste Debret; o escultor Auguste
que, então, não tínhamos aqui. Na América Taunay; o gravador Pradier; o arquiteto
inglesa, já funcionavam há quase dois sécu- Grandjean de Montigny, entre outros. Na ver-
los as universidades de Harvard, Princeton, dade, a missão cumpriu um papel, não por
Dartmouth, Brown, Columbia e Pensilvânia. ensinar a visão francesa de arte, mas por trans-
Em termos de educação e cultura, éramos dos mitir técnicas que poderiam ser – e acabaram
mais atrasados do Novo Mundo. sendo – transgredidas. E, sobretudo, preparar
A presença da família real ajuda a a inserção do Brasil, como criador e fruidor, na
vencer esse atraso? produção artística ocidental. Afinal, nosso an-
Alcione Araújo – Éramos, para os portu- cestral branco europeu fazia parte daquele
gueses, uma distante colônia d’além-mar. Além mundo nascido na Grécia e que fundara a cul-
de arrancar as riquezas nativas, não tinham tura ocidental. Com os artistas da missão fran-
interesse nesta terra. Não fosse a bendita in- cesa, que viriam a ser os professores da Escola
vasão de Napoleão, teria sido outro o nosso Real de Ciências, Artes e Ofícios, o neoclassi-
destino. O atraso da colônia era muito gran- cismo instalava-se, de armas e bagagem, no
de, e Portugal esperava que a ausência da fa- Brasil, enquanto a Europa se atirava nos bra-
mília real não fosse duradoura. Apesar disso, ços do romantismo. O simulacro da Europa
a presença do príncipe regente, da burocracia brasileira surgia, como sempre, atrasado.
do Estado e da aristocracia trouxe uma brisa A visão francesa de arte e cultura
de progresso jamais vista, nem repetida em foi assimilada?
tempo algum, por estas bandas. Foi d. João Alcione Araújo – Naquele momento, não.
que revogou a proibição, exarada por sua mãe, Da efervescência criada pela missão francesa
d. Maria I, de se implantar aqui uma indústria não participavam os negros, ainda escravos.
NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 57
E N T R E V I S TA
58 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
ALCIONE ARAÚJO
NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 59
E N T R E V I S TA
60 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
9
ALCIONE ARAÚJO
encharcado de cinema, grávido de filosofia e do. Pois é aí, na dobra descuidada do progra-
gratificado por exercer o que, para mim, é a ma, na falta de objetivo didático, que flutu-
melhor profissão do mundo: a que permite am as lições indizíveis, os exemplos que se
ganhar a vida com prazer e oferecer ao leitor/ colhem na imobilidade perplexa, a solidarie-
espectador vivências do que ele não viveu. Cada dade que se denuncia na lágrima furtiva, é aí
qual só fala do seu lugar, disse Lacan. Por ‘lu- que começa uma aula que não se anuncia,
gar’, entenda-se um patamar existencial, emo- não tem programa preestabelecido, nem tem-
cional, intelectual; passagem transitória por po de duração: a vida.
onde o trajeto singular da vida conduz cada Em que aspectos a leitura pode
um. O quanto se move a vida – do ponto de contribuir para a plena formação
vista existencial, emocional e intelectual – esse humana, política e social?
lugar move-se. Por analogia, o escritor perce- Alcione Araújo – A literatura é uma for-
be o mundo do seu lugar e escreve – escrever ma de se adquirir vivências do que não se
é a sua fala – do seu lugar. Tem voz própria, viveu. A leitura é um permanente movimen-
olhar inconfundível e sensibilidade única. to de se aproximar e se afastar das persona-
A arte de escrever é pessoal ou não é nada. gens, de se emocionar e criticar as suas ati-
Daí a contrafação na busca desenfreada do tudes. O desenvolvimento dessa capacidade
sucesso, na troca da qualidade pela quantida- de compreender o ser humano conduz à
de, na submissão ao mercado, tão em voga maturidade à medida que se afasta dos jul-
hoje. Parafraseando Lacan, quem fala fora do gamentos afoitos, das condenações precipi-
seu lugar desafina. Nelson Rodrigues dizia que tadas e absolvições inconsistentes. A leitura
escrever é fácil ou impossível. Não acho fácil ajuda ser humano a compreender a si mes-
nem impossível. Acho que é preciso trabalhar, mo, a identificar-se com ele e avaliar-se. Essa
trabalhar e trabalhar. Quando achar que está humanização é a reconquista de um valor
pronto, recomece a trabalhar. Como disse que vem se perdendo numa sociedade que
Drummond, se, ao final, não tiver o frescor privilegia o dinheiro em detrimento dos va-
inaugural de que acabou de ser escrito, todo lores humanos. A visão do ser humano que
o empenho terá sido em vão. Acho que escre- a grande literatura oferece é aristotélica: o
vo porque não encontrei nada mais interes- ser humano é, e suas circunstâncias, ou seja,
sante para dedicar a vida. as condições objetivas que o circundam e
Como fazer da leitura uma criam as suas circunstâncias dizem respeito
atividade ao mesmo tempo ao quadro social e às forças políticas que o
prazerosa e reflexiva? envolvem. A compreensão das relações de
Alcione Araújo – O indispensável é que interesse e das relações políticas pode ser
o leitor, iniciante ou não, tenha o máximo de uma grande contribuição à percepção do lei-
prazer com o que lê. Se não houver prazer, a tor sobre o jogo do poder.
NOVOUTUBRO/2000
2003 / DEZ 2003 61
R E S E N H A
62 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
que contribuíram para o acirramento das como uma agência de prestígio e mesmo de
críticas a Cidade das mulheres: a discus- auxílio a outros subalternizados naquela
são sobre “o status das mulheres na socie- sociedade, prostitutas e meninos e meni-
dade brasileira”; “o lugar da África na in- nas em situação de abandono.
terpretação da cultura negra no Novo Iniciadas em décadas anteriores, as
Mundo”; e “a relação entre homossexuali- políticas de branqueamento foram sistemati-
dade masculina e religiosidade afro-brasi- zadas por meio do incentivo à imigração euro-
leira”. Para Landes, a matrifocalidade não é péia durante a ditadura varguista. Ilustrativa
uma característica específica do “mundo do nesse sentido é a conversa da autora com uma
candomblé”, mas algo que constitui o perfil importante autoridade do governo, que expres-
das mulheres pobres. Assim, era muito mais sa sua repulsa à grande presença de sangue
a condição social em que se encontravam africano no Brasil, tão provocador do atraso
as mulheres do candomblé, e não necessa- do país a ponto de justificar uma ditadura para
riamente um aspecto religioso ou mesmo ra- mudar os rumos. Percebe-se, nesse breve co-
cial, que as fazia responsáveis por gerir a lóquio, a manutenção das teorias raciais eu-
sociedade em que estavam inseridas, em- ropéias do século XIX ainda campeando na
bora, segundo Landes, o poder das mulhe- área governamental. Os negros são vistos
res naquelas comunidades religiosas fosse como assustadores e perigosos a partir do
efetivo há mais de um século e meio. olhar do Rio para a Bahia. Na Bahia, por sua
Desse modo, a matrifocalidade seria vez, são interpretados pela elite intelectuali-
de cunho social, e não racial. Antes de zada como cordatos, mansos e possuidores
Landes já havia uma arena de contenda na de uma cultura exótica.
interpretação sobre os negros na Bahia, en- Desse modo, o livro, muito mais do que
carnada nos estudos de Frazier e Herskovits. apresentar o candomblé da Bahia, pode ser
Sua abordagem de gênero avança para além utilizado para enriquecer o debate sobre a exis-
da participação das mulheres no culto e in- tência de um racismo demarcado no Brasil,
daga a respeito do seu poder decisório. O embora as conclusões da autora procurem
feminino para Landes não está apenas nas demonstrar a ausência de tensões raciais. É
mulheres, mas também em homens homos- fácil entender essa premissa se levarmos em
sexuais. Isso dá ao seu trabalho maior ampli- conta que, tendo vindo de uma experiência
tude, visto que as relações de gênero são do segregado Sul dos Estados Unidos, assis-
postas para além das mulheres, ultrapassan- tir às festas religiosas com participação de
do o sexo. A homossexualidade feminina tam- brancos e negros levam-na a corroborar as
bém é tangenciada por Landes. teses de que o Brasil teria encontrado o cami-
Além da manutenção da tradição do nho da paz entre as raças.
candomblé, Landes estuda um momento em Cidade das mulheres é parte obriga-
que ocorre uma ressignificação das religi- tória da bibliografia de quem se propõe a es-
ões afro-brasileiras na Bahia. Há a entrada tudar as relações raciais no Brasil e a consti-
de um expressivo número de pais-de-santo tuição da Bahia como campo de estudo das
assumidamente homossexuais, que buscam religiões de matrizes africanas.
nesse espaço o empoderamento muitas ve-
zes negado na sociedade em geral. O can- Joselina da Silva
domblé, assim, ascende ao seu lugar de re- Pesquisadora do Centro de Estudos Afro-
presentação social, funcionando, ainda, Brasileiros da Universidade Cândido Mendes
64 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
R E S E N H A
Zonas de sombra
e silêncio
Miscigenação, sensualidade e sexo “inter-racial”1 são tidos como algumas das características
sexuais “inter-raciais”,2 o ponto de partida foi o cotejamento dessa representação sobre Bra-
sil3 com as estatísticas realizadas por demógrafos e sociólogos de orientação quantitativa, que
1 Nesta análise, utilizo aspas
nas classificações de “cor” e
“raça”. Por meio desse pro- apontam para um padrão marital homogâmico presente na sociedade brasileira. As mesmas
cedimento procuro, seguindo
a sugestão de Fry (1996), res-
saltar que “raça”, antes de ser análises, que somente operam com relações maritais formais, identificaram a predominância do
um conceito científico, é his-
tórico, culturalmente construído
no interior de uma certa con- par homem “negro”/mulher “branca” no país onde se veicula que a “mulata é a tal”. Um certo
cepção “nativa”, e não deve
ser concebido e utilizado de
forma unívoca. paradoxo parece emergir do cruzamento dessas afirmações: no mesmo país que valoriza, em
2 Ver Moutinho (2001).
3 Parte do levantamento da diferentes âmbitos, a mestiçagem e a “mistura”, parece existir tabu com relação aos casamentos
pesquisa foi possibilitada pela
bolsa do 10o Concurso de Do-
tações para Pesquisa sobre o “inter-raciais”. Em um nível, o desejo e o sexo “heterocrômico” são “desejáveis”; em outro, ao
Negro no Brasil, do Centro de
Estudos Afro-Asiáticos/Funda-
ção Ford, 1998. menos o casamento (e por que não dizer também o desejo e o sexo?) aparece como “indesejável”.
66 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ABERTO
Segundo Néstor Perlongher, “os agenciamen- [...] eu não sei, pode ser uma coi-
tos do desejo seriam sociais, transindividuais, sa minha, tem uma retração tam-
intersubjetivos. O desejo não ficaria restrito bém da minha parte porque antes
ao individual subjetivado, mas percorreria ten- [de entrar para a faculdade] é
sões de força que atravessam diretamente o aquele negócio, eu não tinha olhos
campo social” (1987, p. 251). No tema em aná- abertos [...], não esquentava a
lise, “raça” ou “cor” se circunscrevem como cabeça, ia para qualquer lugar.
um tensor que agrega fluxos libidinais em di- [...] Acho que vou ter que fazer
mensões necessariamente paradoxais: a) em análise depois daqui, tem tanta
um eixo, o desejável (o da representação na- coisa que eu não consigo enten-
cional, grosso modo operado pelo casal ho- der, mas eu não sei qual é a rea-
mem “branco”/mulher “mestiça”), em outro, ção que pode ter de repente...
o desejo tabu (em geral, referido ao homem
“esse cara vem me encher o saco”
[...]. As patricinhas... eu não vejo
“negro” com a mulher “branca”); b) sua cons-
qualquer possibilidade de elas
tituição atravessa como um continuum o cor-
saírem com um cara preto se po-
po social: mobiliza desde uma argumentação
dem sair com um branco.
“racista” e “exótica” até a que arregimenta
valores “modernos” e “igualitários”; c) agre- A inserção em redes de sociabilida-
gado às assimetrias de gênero, o vetor “cro- de tidas como “branca” e de “elite” envol-
mático” opera sentidos e significados eróti- ve diferenciadas questões. Atributos “ra-
cos do caleidoscópio social de forma singular. ciais” e de prestígio, identificados comu-
As interações experimentadas no tra- mente como de “classe”, mesclam-se
balho de campo, bem como o exercício de fortemente nesses casos. Ao estudar os
docência, possibilitaram-me vivenciar um arranjos afetivos “heterocrômicos”, ficou
conjunto de situações que suscitam algumas claro que a percepção e o uso da categoria
percepções, cuja reflexão gostaria de alinha- de “cor/raça” não podem ser dissociados
var a seguir. No interior dessas redes foi pos- dos atributos de prestígio social e, como
sível, inicialmente, identificar certas narrati- outros autores já apontaram, variam de acor-
vas sobre retraimento, constrangimento e do com o contexto em que são utilizados.
auto-exclusão, que, vale destacar, apareceram Como Fry (1996) demonstrou, existem “mo-
de forma freqüente e variada nas narrativas dos” de classificação de “cor” que são va-
das pessoas entrevistadas sobre o tema, mar- riáveis e mais freqüentes em determinadas
cados por nuanças específicas de acordo com classes e segmentos sociais urbanos.
a rede de sociabilidade em jogo. Além disso, Foi em uma universidade tida como
identificou-se no campo dos afetos e praze- “branca” e de “elite” da Zona Sul carioca
res, uma margem de manobra, à qual os entre- que foram feitas observações de modo in-
vistados puderam recorrer para lidar com o tenso. Inúmeras variáveis marcam a constru-
desprestígio da “cor negra”. Vejamos algu- ção desse olhar. O primeiro entrevistado foi
mas situações. Toni, um rapaz de 20 anos que se classifica
como “negro”, também matriculado em um
curso de prestígio e que namorava uma “bran-
Branca de elite
ca” na universidade. É egresso de camadas
Beto é filho de um homem “negro” com uma médias/altas da Zona Norte e se tornou, dois
mulher “branca”, classifica-se como “more- semestres depois, meu aluno: o “único ne-
no”, possui 22 anos e é morador da Zona Oes- gro da turma!”. Certo dia, estava ministran-
te. Estuda em um dos cursos de alto prestígio do uma aula sobre questão “racial”, tendo
de uma universidade igualmente prestigiosa como base um artigo de Peter Fry intitulado
do Rio de Janeiro. Ao ser perguntado se já “O que a Cinderela Negra tem a dizer sobre a
havia namorado alguém dessa rede de socia- ‘política racial’ no Brasil”. O rapaz aparente-
bilidade, respondeu “sim”, mas apressou-se mente não “agüentou” a discussão, respon-
em justificar que já conhecia a menina antes deu à chamada e saiu da sala. Discuti com os
de entrar na universidade, explicitando da se- alunos as principais questões do texto e pro-
guinte forma seu conflito: pus, como exercício reflexivo, pensarmos
é um importante
que indicam um processo (Beto) declarou se sentir “discriminado” e
de pertencimento e igualda- “constrangido” no contato com amigos e
de e uma percepção diferen- “paqueras”. Embora se classifique como “mo-
norteador da ciada da alteridade “racial”, reno” e seja oriundo de camadas altas da Zona
ou, em outros termos, a Oeste carioca, acredita que sua sensação de
percepção e “cor” parece ser, dada a falta de lugar ocorre em razão da sua “cor”.
proximidade, eventualmen- De fato, a “cor” foi uma questão vivi-
vivência das te eclipsada, ainda que
não-diluída.4
da de forma especialmente latente em seu
meio familiar – o que parece explicar, em par-
relações ‘raciais’ Juliana, uma bela jo-
vem “negra” de 19 anos, em
te, a força com que a “raça” orienta sua vi-
são de mundo –, mas creio que, no universo
na vida social, uma conversa informal, tam-
bém é vista como a “única
em questão, há ainda um outro fator extre-
mamente relevante que apareceu em sua fala:
articulada a
negra” da sua turma – fre- ser associado aos alunos do Pré-Vestibular
qüenta um outro curso de para Negros e Carentes (PVNC), em vários
alto status da universidade. momentos distintos, acabou por enfatizar sua
outras variáveis Vi-a várias vezes sentada no percepção da “diferença racial”. Leiamos a
chão em animadas conver- fala de Beto sobre isso:
sas com seus colegas. De [...] o cara olhou para minha
fato, a questão “racial” não se colocava para cara e achou que eu era do pré-
ela de modo relevante. Vejamos como ela re- vestibular, pô, a minha roupa é
sumiu sua experiência na universidade. Oriun- essa aqui, igual a que todo mun-
da de uma família de camadas altas do interior do está usando, qual o proble-
do estado do Rio de Janeiro, afirmou que ma? Então, só pode ser isso: pô,
“sempre conviveu com brancos, sem proble- esse cara é preto, o cara é mais
ma”. Disse, expressando-se com um ar que moreninho... Deve ter vindo de
4 Processo similar parece
misturava justificativa e constrangimento, algum pré-vestibular carente des-
acontecer nas situações de não saber se o problema é dela ou não, mas ses daí, entendeu?
amizade e intimidade entre
pessoas de sexo diferente. “nunca senti o preconceito” – isso incluía não
Claudia Rezende (2001) iden- somente as interações sociais em geral como Vale assinalar que, apesar de o rapaz
tifica essa tendência em sua
análise sobre amizade entre também o mercado dos afetos. Supõe que isso utilizar a categoria “carente”, ele acaba por
jovens e adultos pertencentes
às camadas médias urbanas talvez se deva ao fato de “sempre ter convivi- enfatizar a referência à “raça”. Toni, o outro
cariocas. Rezende recorre à do com brancos” e por causa do seu “meio rapaz, classifica-se como “negro”, mas pos-
amizade para analisar a
inter-relação entre as dife- social”. Esses dois fatores seriam, na per- sui uma inserção diferenciada – manipula
renças de gênero e sua cone-
xão com a noção de pessoa, cepção da entrevistada, a causa de sua “tran- com eficiência uma série de atributos de pres-
buscando compreender a qüila” inserção na universidade. Em outras tígio. Além disso, entre outras coisas, está
“dinâmica de negociação das
identidades e alteridades”. palavras, a “cor”, em sua narrativa, aparece ciente (e lança mão), como discuti em outro
68 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
momento, do erotismo atribuído à “cor ne- Sempre morou no bairro do Catete, Zona Sul
gra”. Para os dois, entretanto, não é fácil cir- do Rio de Janeiro. Estudou em colégio público
cular por esse espaço. e, embora vivesse na Zona Sul, uma área de
Uma outra lógica explicativa da rela- elite, disse que “conviveu com pessoas que
ção entre “negros” e “brancos”, assim como não tinham muita grana”. Acha que esse fator
a possibilidade de discriminação “racial”, o influenciou positivamente. Sua vida social é
apareceu de forma recorrente nas entrevis- ativa desde os 15 anos. Tinha vários grupos: o
tas realizadas na universidade, seja com “ne- grupo do colégio, o da rua e o da praia. No
gros”, seja com “brancos” de camadas mé- colégio, normalmente “ficava bebendo em bar
dias: a questão da (ausência de) convivência e depois ia para o baile funk” em favelas – como
de “brancos de elite” e da “Zona Sul” do Rio os bailes dos morros do Fogueteiro (Rio Com-
de Janeiro com “negros” em posições (e pro- prido), Chapéu Mangueira (Leme), Serro Corá
fissões) de prestígio social. Vejamos outra (Cosme Velho), Morro Azul (Flamengo), Santa
fala de Beto: Marta (Botafogo), que eram “da moda” quan-
[...] aqui [referindo-se tanto à do ele era adolescente. Disse-me que, com o
Zona Sul como à universidade], grupo da rua, ia para os forrós.
as pessoas estão acostumadas a Tuzzi afirmou que “nunca” teve “ne-
ver um cara preto como ascenso- nhuma barreira de namorar mulher negra”.
rista, é um não-sei-o-quê. Você Enfatizou inúmeras vezes ao longo da entre-
não vê o cara como um vizinho vista que, na sua rede de sociabilidade, “isso
teu, como um cara que estuda no era normal”. Sua namorada, inclusive, é “mo-
mesmo colégio, que vai aos mes- rena, bem morena”. Em parte, atribui esse fa-
mos lugares, que tenha as mesmas tor à vivência com pessoas de distintas “co-
pretensões. [...] Elas [as pesso- res” proporcionada pela formação em escola
as] parecem ter uma certa difi- pública e nos bailes funks. Disse-me que
culdade em [fazer] amizade, en- esse papo da mídia, da beleza ser
tendeu? Porque, às vezes, está branca, na época eu não questio-
todo mundo conversando e tal, nava essas coisas porque eu fre-
mas ‘aquele’ você não chama qüentava esses lugares. Esse era
para ir para lugar nenhum, con- meu mundo, eu não tinha consci-
versa só algumas coisas. Eu acho ência dessas coisas que aparecem
que a pessoa não tem referência na mídia, da beleza ser branca,
que seja igual a ele, que faça as porque meu mundo era outro. [...]
mesmas coisas que ele [...]. Ah, o baile funk... Aí, depois eu
entrei na faculdade... “Pô, cadê
as meninas negras?” Não tem!
Profissão da cor Embora eu já soubesse que não
tinha... Mas, pô, o pessoal aqui
Chamou a atenção como a narrativa de Beto é diferente. [...] Então, é que eu
não é isolada. A justaposição da “cor/raça” e vi que meu grupo era um grupo
de uma profissão de baixo status e qualifica- diferente. [...] Convivendo [na
ção evidencia que tanto no que tange às pos- faculdade] é que você vê como é
sibilidades de interação entre os diferentes complicado ter um relacionamen-
grupos de “cor” como de se manter relacio- to com uma negra. Nas boites da
namentos afetivo-sexuais “heterocrômicos”, Zona Sul, por exemplo, você não
o convívio (ou não) com “negros” (em uma vê negro. E quando você traz isso
situação de igualdade e prestígio social) apa- para a realidade... “Seu amigo
rece como uma categoria central para justifi- está namorando uma negra”. Aí,
car as possibilidades de interação em termos rola aquela diferença. Porque
de amizade, sexo e amor, assim como de com- você não está acostumado a con-
partilhar as redes de solidariedade existen- viver com aquilo. [...].
tes. Vejamos mais um exemplo.
Tuzzi tinha 23 anos por ocasião da en- Essa lógica, que foi recorrente nas en-
ESPAÇO
ABERTO
trevista, classificava-se como “branco” e já era trevistas, parece similar à apresentada por al-
formado em desenho industrial pela mesma guns entrevistados acerca dos constrangi-
universidade no ano em que foi entrevistado. mentos vividos contra seus relacionamentos
70 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
recorrem nessa rede de sociabilidade. Nesses empregos ou alguma outra situação que, de
termos, é destacado aqui mais um aspecto acordo com seu cálculo, possa acarretar
presente nessa intrincada lógica de relação. prejuízo profissional. Eles são muito “com-
Ortner e Whitehead (1981) destacam que as panheiros” e reconhecem as possibilida-
estruturas de gênero devem ser pensadas des de discriminação que uma mulher “ne-
como estruturas de prestígio. A associação gra” e um homem “branco” podem sofrer.
entre o masculino com o domínio público não Assim, preferem se precaver. Além disso,
esgota, para as autoras, a complexidade des- sendo seu marido um médico, na sua per-
sa relação. As estruturas de prestígio são cepção a situação piora, pois existe uma
mostradas como aquelas que vêm a hierar- “mística” em torno dessa profissão, de
quizar as relações nesse domínio. Mais que modo que, se ela o acompanhasse em al-
estar desempenhando um papel no domínio gumas “situações profis-
público, interessa saber de que modo esse s ionais”, poderia vir a
papel aloca o indivíduo na estrutura de pres- “prejudicá-lo”. No churras-
co de formatura do marido,
O prestígio
tígio. Pela análise realizada, creio que se pode
afirmar que o prestígio social (dado por opo-
sição ao estigma que a “cor” evoca) é, igual-
por exemplo, sentiu os
“olhares” de estranhamento
social (dado
mente, estruturador das relações entre “bran-
cos” e “negros”: no âmbito das relações
dos seus amigos quando ela
chegou. Ela acha que, quan- por oposição ao
do a vêem com o marido, as
afetivo-sexuais “heterocrômicas”, a “cor” é
um elemento central na construção dos gêne- pessoas pensam: “É o es- estigma que
ros masculino e feminino. trangeiro com uma negra” ou
Essas observações me parecem inte- “O que um branco desses a ‘cor’ evoca)
ressantes quando as articulamos às intera- vai querer com uma negra?”.
ções entre masculinidade, “cor” e atributos Foram essas percepções que
os levaram a “manter certas
é, igualmente,
de prestígio social no mercado dos afetos e
prazeres do espaço supracitado. Toni possui, coisas separadas”.
Na fala de Lídia, não
estruturador
segundo ele mesmo e outra entrevistada,
“status na faculdade”. Não está circunscrito
a um espaço único: circula com desenvoltura,
há menção de tensão “raci-
al” na relação dela com o das relações
entre ‘brancos’
possui boas relações com os professores e marido, nem com seus ami-
profissionais vistos como decisivos nesse gos íntimos: o problema se
aloca nas relações profissi-
contexto e sabe que isso atrai as mulheres,
sendo, portanto, uma importante moeda de onais dele. Tanto que a en- e ‘negros’
troca no mercado dos afetos e prazeres local. trevistada explicitou seu cui-
Atrelado ao prestígio adquirido, o rapaz per- dado e carinho no momento
cebe, como vários outros entrevistados per- de prepará-lo para uma en-
ceberam, que “a diferença atrai”; trata-se do trevista, por exemplo, cuidando das roupas e
potencial erótico/afetivo da diferença de ajudando em tudo que seria necessário na
“cor”, “classe” e prestígio, da atração que os produção de uma “boa aparência”. Mas deixa
estereótipos eróticos e estéticos associados explícito seu receio de que sua “cor” venha a
à “cor negra” ressaltam e do espaço de mani- “contaminar” seu prestígio profissional e,
pulação que os atores possuem. Vejamos para tanto, encontrou um espaço de manipu-
como outros entrevistados lidam com o lação desse estigma visando contornar a dis-
desprestígio da “cor negra”, seus constran- criminação e os problemas que poderiam en-
gimentos e o espaço de manobra que conse- frentar em seus relacionamentos.
guem criar no interior desse quadro de desi- Toni, que, como demonstrei, possui
gualdade social. A narrativa a seguir é, nesse “boa” inserção em uma rede de sociabilidade
sentido, dramática. “branca” e de “elite”, afirmou, ao relatar a rea-
Lídia estava com 33 anos por oca- ção dos amigos do casal ao seu namoro, que
sião da entrevista, é “negra”, fazia pós-gra- vários deles, de ambos os lados, afastaram-se:
duação na área de humanas, é casada com [...] as pessoas que eram próxi-
um médico “branco” (“dedicado e muito mas saíram, nós tínhamos amigos
profissional”) e “se esconde” em certas si- dos dois lados que saíram. [...] Se
tuações “para não prejudicá-lo”, por exem- afastaram de nós. [...] Da mes-
plo, não o acompanhar em entrevistas para ma turma, colegas dela, muitas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São MAGGIE, Yvonne. Os novos bacharéis. Revista Novos Estudos –
Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, Cebrap, n. 59, 2001.
manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na _____. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio
sociedade paulistana. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cia. de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
Ed. Nacional, 1959. (Coleção Brasiliana, vol. 305). MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa
BERQUÓ, Elza. Demografia da desigualdade. Novos Estudos – sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no
Cebrap, São Paulo, n. 21, p. 74-85, 1988. Brasil e na África do Sul. 2001. Tese de Doutorado.
COSTA PINTO, L. A. O negro no Rio de Janeiro: relações de raça PPGSA/IFCS. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
numa sociedade em mudança. São Paulo: Cia. Ed. NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio: mistério negro. Rio de Janeiro:
Nacional, 1953. (Coleção Brasiliana, Série 5, v. 276). Teatro Experimental do Negro, 1959.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de NORVELL, John M. A brancura desconfortável das camadas médias
classes. São Paulo: Ática, 1978. (Volume 1). brasileiras. In: REZENDE, C. B.; MAGGIE, Y. (Orgs.). Raça
FIGUEIREDO, Ângela. Velhas e novas “elites negras”. In: MAIO, M. como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro:
C.; VILLAS-BÔAS, G. (Orgs.). Ideais de modernidade e Civilização Brasileira, 2001.
sociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa ORTNER, Sherry; WHITEHEAD, Harriet. Sexual meanings: the cultural
Pinto. Porto Alegre: UFRGS, 1999. construction of gender and sexuality. Londres:
FRY, Peter. Estética e política: relações entre “raça”, publicidade e Cambridge University Press, 1981.
produção da beleza no Brasil. In: GOLDENBERG, M. PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê. São Paulo: Brasiliense, 1987.
(Org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato
do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. racial. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1945. (Coleção
_____. Brazil: the burden of the past, the promise of the future. Brasiliana, série 5, vol. 241).
Daedalus, v. 129, n. 2, 2000. RAMOS, Guerreiro. Patologia social do “branco” brasileiro. In: ___.
_____. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a “política Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro:
racial no Brasil”. Revista da USP, n. 28, p. 122-135, 1996. Andes, 1956.
(Dossiê Povo Negro – 300 anos). REZENDE, Cláudia. Um gênero de amizade ou amizade sem gênero?.
_____. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Revista Interseções, ano 3, n. 1, p. 133-150, jan./jun. 2001.
Rio de Janeiro: Zahar, 1982. RODRIGUES, Nelson. “Anjo Negro”. In: MAGALDI, S. (Org.). Nelson
LIMA, Márcia. “Serviço de branco, serviço de preto”: um Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo:
estudo sobre cor e trabalho no Brasil urbano. 2001. Perspectiva; USP, 1987.
Tese de Doutorado. PPGSA/IFCS. Universidade Federal SILVA, Nelson do Valle. Distância social e casamento inter-racial no
do Rio de Janeiro. Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, n. 14, p. 54-84, 1987.
ESPAÇO
72 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
ABERTO
CULT CULTURA
Luiz Carlos Mello*
IMAGENS que
74 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
URA
revelam o inconsciente
Quem visitar o Museu de Imagens do Incons- Na luta pela mudança do ambiente hospitalar,
ciente 1 irá se confrontar com imagens inquie- foram surgindo, quase ao mesmo tempo, se-
tantes (e muitas vezes belas) que compõem o res excepcionais como Emygdio, Raphael,
seu acervo estimado em 300 mil obras, acu- Adelina, Isaac, Carlos, Fernando, Abelardo,
muladas em seus 55 anos de existência. O Octávio e Lúcio, possuidores de uma capaci-
museu nasceu em 1952, com a produção dos dade de expressão extraordinária.
ateliês de atividades expressivas como pintu- Três meses após a inauguração do ate-
ra, modelagem e xilogravura. Essas obras fo- liê, já havia material suficiente para organi-
ram estudadas em diferentes áreas, como an- zar uma pequena exposição. Assim, em 22
tropologia, psicologia, psiquiatria, história da de dezembro de 1946, foi inaugurada no
arte e religião, com o intuito de decifrar os antigo Centro Psiquiátrico Nacional, atual
misteriosos processos que se desdobram no Instituto Municipal Nise da Silveira, a pri-
interior de indivíduos que vivenciaram um pro- meira mostra de imagens pintadas pelos do-
fundo mergulho no inconsciente. entes. A exposição despertou grande inte-
Inconformada com os métodos violen- resse, sendo logo transferida, em fevereiro
tos de tratamento psiquiátrico em uso como de 1947, para o edifício-sede do Ministério
eletrochoque, coma insulínico e a lobotomia, da Educação, localizado no Centro da cida-
a drª Nise da Silveira encontrou na terapêutica de, possibilitando acesso ao grande públi-
ocupacional uma outra forma de tratamento co. Para surpresa da drª Nise, os psiquiatras
para as pessoas esquizofrênicas. Fundou, en- brasileiros se interessaram menos por essa
tão, em maio de 1946, o Serviço de Terapêuti- produção do que os críticos de arte e o pú-
ca Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II blico em geral. Escreveram sobre as obras,
do Rio de Janeiro, que progressivamente atin- nos jornais da época, Antônio Bento, Rubem
giu 17 atividades, entre elas, sapataria, cestaria, Navarra, Mark Berkosvitz e outros.
teatro, jardinagem, música, carpintaria, enca- Entre eles, destacamos Mário Pedrosa,
dernação e recreação. crítico de arte do jornal Correio da Manhã, cuja
O ateliê de pintura foi aberto em 9 de compreensão sobre o assunto aparece de for-
setembro de 1946. Tinha como monitor o ar- ma clara e profunda.
tista Almir Mavignier, hoje pintor de renome O artista não é aquele que sai
internacional e professor de arte. Sua partici- diplomado da Escola Nacional de
pação foi fundamental ao oferecer – e tam- Belas Artes, do contrário não have-
bém ao descobrir – as melhores condições para ria artista entre os povos primitivos,
que os internos pudessem criar livremente sem inclusive entre os nossos índios. Uma
que houvesse qualquer interferência. das funções mais poderosas da arte
O Centro Psiquiátrico naquela época – descoberta da psicologia moderna
tinha 1.500 internos, em sua maioria – é a revelação do inconsciente, e
esquizofrênicos crônicos que normalmente fi- este é tão misterioso no normal como
cavam abandonados nos pátios do hospital. no chamado anormal. As imagens do
Nesses pátios e nas
enfermarias, foi sendo
descoberto (e reunido
no ateliê) um grupo de
esquizofrênicos cuja
produção logo come-
çou a se destacar.
As oficinas da
terapêutica ocupacio-
nal foram atraindo,
para seus diversos se-
tores, pessoas aban-
1 Visitação pública de se-
donadas nos pátios do
gunda a sexta-feira, das 9 às hospital psiquiátrico
16 horas.
ao azar da não-ação,
Rua Ramiro Magalhães, 521 –
Engenho de Dentro – Rio de numa vida completa-
Janeiro-RJ – CEP 20730-460.
mente incógnita por Emygdio de Barros
Tel./fax: (21) 2596-8460
mii@museuimagensdoinconsciente.org.br trás de seus uniformes.
76 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE
78 DEMOCRACIA VIVA Nº 19
IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE
balhos no ateliê eram feitos em jornais, nos diári- po de estudos. No museu, pode-se constatar
os oficiais que pegava na administração, para que a importância de Nise da Silveira, que, pelo
os freqüentadores não deixassem de desenvolver seu trabalho revolucionário, acumulou ao
suas atividades. A incompreensão do seu traba- longo da vida títulos e prêmios em diferen-
lho pioneiro no uso de cães e gatos como co- tes áreas do conhecimento: saúde, educa-
terapeutas levou-a a enormes sofrimentos com o ção, arte e literatura. Seu trabalho e seus
desaparecimento e o envenenamento de animais. princípios inspiraram a criação de museus,
Naquela época, manteve correspondência com centros culturais e instituições psiquiátricas
pesquisadores americanos estadunidenses sobre no Brasil e no exterior.
a relação ser humano/animal. Um deles, o psica- No dia 14 de agosto de 2003, o Con-
nalista estadunidense Boris Levinson, comentou selho do Instituto do Patrimônio Histórico
sobre a morte dos animais: “Sem dúvida, para e Artístico Nacional aprovou, por unanimi-
muitos desses doentes, os animais eram sua úni- dade, o tombamento das principais cole-
ca linha de vida para a saúde mental”. ções do museu.
80 DEMOCRACIA VIVA Nº 19