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A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA*

Um folheto de Bertha Dunkel

T
odo operário sabe que é explorado. O que talvez Pode-se dizer, portanto, que toda mercadoria tem duas
não saiba é que esta exploração é da natureza do funções, uma de uso e uma de troca, às quais chamamos
sistema capitalista, e que só a eliminação do siste- valor de uso e valor de troca.
ma capitalista eliminará a exploração. O estudo da explo-
Assim, por exemplo, o feijão tem valor de uso, pois serve
ração capitalista, chamada mais-valia, prova cientifica-
na alimentação. O valor de uso do sapato está na proteção
mente que o capitalismo é um regime injusto para o ope-
que dá aos pés. A enxada tem valor de uso, pois revolve a
rário, seja quem for o patrão. Por isto o operário conscien-
terra; e assim por diante. De um modo geral, é valor de
te não luta apenas contra o seu patrão, mas luta contra o
uso tudo o que satisfaz alguma necessidade humana. O
sistema. E a luta contra o sistema é forte só quando é
valor de uso sempre existiu, pois o homem sempre pro-
coletiva e organizada. O estudo da mais-valia prova cien-
duziu para satisfazer as suas necessidades.
tificamente que a finalidade da organização operária deve
ser a expropriação dos capitalistas e a criação de um O valor de troca, pelo contrário, nem sempre existiu. A
regime operário e justo. princípio os homens consumiam o que produziam, de
modo que pouco sobrava para trocar. Portanto, para que
O operário vê e sabe que o seu trabalho enriquece o pa-
houvesse troca em quantidade, seria preciso que a pro-
trão, enquanto ele mesmo recebe um salário apenas sufi-
dução, ao menos em certos ramos, fosse bem maior do
ciente para sobreviver. Isto quer dizer que o fruto do
que o consumo. De fato, a produção cresceu, tornando
trabalho não beneficia quem trabalhou, mas beneficia o
possível a troca em larga escala, e com ela a divisão social
patrão, o capitalista, que se apropria dele. Pois bem, a
do trabalho: alguns grupos se dedicavam mais a um pro-
apropriação do fruto do trabalho alheio é o que chama-
duto, deixando de produzir outro, que outro grupo pro-
mos de exploração.
duzia em quantidade maior. Assim, quem cuida do campo
* deixa de produzir as suas enxadas, agora produzidas pelo
artesão, que por sua vez deixa de plantar e colher. Um e
Entretanto, não é fácil de compreender esta exploração. O
outro satisfazem as suas respectivas necessidades por
operário não poderia evitá-la? Por que permite que o
meio da troca. Aos poucos, desta forma, boa parte dos
capitalista lhe tome a parte maior do fruto do seu traba-
produtos humanos transformou-se em mercadoria.
lho? Para responder, é preciso estudar alguns elementos
do capitalismo, principalmente a mercadoria e a força de Se entanto o artesão troca a sua enxada pelo alimento do
trabalho. Só depois se entenderá a mais-valia, que é a lavrador, surge um problema: quantos sacos, digamos de
chave da exploração capitalista do trabalho. feijão, deverá pedir? E o lavrador, quantos sacos de feijão
deverá oferecer? Noutras palavras, como saber o valor de
Mercadoria — Quando alguém produz um objeto para
troca de uma mercadoria?
seu uso próprio ou para dar a um amigo, esse objeto é
sem dúvida um produto, mas não é uma mercadoria. Po- Para responder a esta pergunta, é preciso descobrir o que
rém, se for obrigado a trocar o objeto por dinheiro ou por existe de comum em todas as mercadorias, que permita
outro produto qualquer, esse mesmo objeto passa a ser comparar-lhes o valor. O que existe tanto no feijão como
mercadoria. Mercadoria, portanto, é tudo o que se produz na enxada como em qualquer outra mercadoria? A com-
para a troca e não para o consumo de quem produziu. paração material não explica nada: o feijão é vegetal e a
Assim, a mercadoria destina-se ao uso de uma outra pes- enxada é de ferro, mas qual dos dois vale mais? Também o
soa, que por sua vez oferece outra mercadoria, ou dinhei- valor de uso não basta para explicar o valor de troca: o
ro, em troca daquela de que necessita para o seu uso feijão serve para comer e a enxada para revolver a terra,
próprio. ambas as coisas são necessárias, cada uma a seu tempo,
mas quanto valem?
O que há de comum no feijão e na enxada, o que há de
* In Roberto SCHWARZ, “Didatismo e Literatura” in O Pai de Família. São Paulo, comum em todas as mercadorias, é que são fruto do tra-
Companhia das Letras, 1989. Material para uso didático disponível no blog CRÔNI-
CAS DE ESCOLA: http://edu74.wordpress.com
balho humano, isto é, todas elas — mesmo as laranjas
colhidas no mato — dependem de um tanto de trabalho cérebro. Surgia deste modo a força de trabalho de nosso
do homem. O alimento comido pelo artesão depende do tempo, a qual produz, mas não consome, a gigantesca
trabalho do lavrador, e a enxada do lavrador depende do riqueza do capitalismo industrial.
trabalho do artesão. Assim, tanto na enxada como no
Valor da força de trabalho — No sistema capitalista,
feijão entrou uma certa quantidade de trabalho, de traba-
portanto, a força de trabalho é uma mercadoria. Como se
lho humano, que pode ser medida em tempo. E é este tra-
determina o seu valor? Vimos que o valor de uma merca-
balho — denominador comum de todas as mercadorias
doria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente
— que permite compará-las e trocá-las em determinadas
necessário à sua produção. Quanto tempo de trabalho
proporções. O valor da mercadoria é determinado pelo
será necessário para a produção da força de trabalho? A
tempo de trabalho necessário à sua produção. Entretanto,
resposta não pode ser direta, pois a força de trabalho não
isto não quer dizer que o produto de um trabalhador
é produzida diretamente, na fábrica. Ela não existe fora
lento valha mais do que o produto de um trabalhador
do corpo vivo do trabalhador. Quanto tempo de trabalho
mais rápido. Trata-se aqui de um trabalho médio, chama-
é necessário, então, para produzir o músculo e o cérebro
do socialmente necessário. Resulta que o valor da merca-
do trabalhador? A resposta é fácil, se considerarmos o
doria é determinado pelo tempo socialmente necessário
conjunto da classe operária. Para que se produza a sua
para a sua produção. Como veremos, é assim também que
força de trabalho é necessário que ela esteja e continue
se determina o valor da força de trabalho, a mercadoria
viva, isto é, que se alimente, durma, se agasalhe e se re-
mais importante do sistema capitalista.
produza. Sem isto, não poderia voltar diariamente aos
Força de trabalho — A força de trabalho nem sempre foi latifúndios e às fábricas do capital, para lá vender a sua
uma mercadoria. Para exemplo, vejamos o artesão: trata- força de trabalho. Ora, enquanto cresce, estuda e traba-
se de um produtor independente, que vende o seu produ- lha, o homem consome uma certa quantidade de merca-
to, digamos uma enxada, e não vende a sua força de traba- dorias, que pode ser medida em tempo de trabalho. Me-
lho, a qual portanto não é mercadoria. Isto é possível dindo este valor, estaremos medindo, indiretamente, o
porque o artesão é dono tanto de seu trabalho como de valor da força de trabalho.
seus meio de produção, quer dizer, é dono de seus instru-
Casa, comida, roupa e educação, entretanto, podem ser
mentos e da matéria-prima que vai usar; em consequen-
boas e podem ser ruins. Em regime capitalista, porque a
cia é dono, também, de seu produto, da enxada que o seu
oferta de mão-de-obra tende a ser maior que a procura, o
trabalho produziu. A expansão capitalista, entretanto,
trabalhador é forçado a bastar-se com o mínimo vital,
liquidou a maior parte dos artesãos, que não puderam
para não perder o emprego. De modo que sua casa, comi-
concorrer com as fábricas sempre crescentes. Endivida-
da, roupa e educação são ruins. Portanto, o valor da força
vam-se e perdiam os seus meios de produção, até que
de trabalho é igual ao valor dos meios de subsistência,
nada lhes restasse para vender. Nada? Não é certo. Endi-
principalmente gêneros de primeira necessidade, indispen-
vidavam-se até que nada lhes restasse para vender, a não
sáveis à reprodução da classe operária. Este valor é pago
ser a sua força de trabalho. Sua força de trabalho, no caso,
no salário, que deve dar para o estrito: a sobrevivência e
é a sua força física mais a sua inteligência, ou , noutras
o mínimo de educação necessário ao futuro trabalhador.
palavras, o seu músculo mais o seu cérebro. Ora, sem os
É este o círculo vicioso do capitalismo, em que o assalari-
meios de produção a força de trabalho não tem préstimo.
ado vende a sua força de trabalho para sobreviver, e o
O melhor tecelão não tece nada se não tiver tear e fio.
capitalista lhe compra a força de trabalho para enrique-
Separada de seus meios de produção, a classe trabalha-
cer. A razão de círculo vicioso está na mais-valia, que
dora passou a depender, para o seu trabalho, da classe
passamos a estudar.
dos capitalistas, isto é, da classe dos proprietários dos
meios de produção. O trabalhador foi forçado a procurar A mais-valia — Vimos que o valor de troca da força de
o capitalista, para vender-lhe a sua força de trabalho, em trabalho é igual ao valor dos meios de subsistência indis-
troca de um salário. Assim, o artesão transformou-se em pensáveis à reprodução da classe operária. Suponhamos
assalariado, passando a vender a sua força de trabalho, que a produção desses meios de subsistência, necessários
por dia, por semana ou por mês. Foi o que fizeram os ao trabalhador médio, leve em média 4 horas de trabalho.
artesãos arruinados, e também os camponeses, que o Suponhamos também que o preço de 4 horas de trabalho
capitalismo expulsava e expulsa de suas terras. Surgia seja $4,00. Neste caso, a força de trabalho vale 4 horas de
deste modo a grande massa proletarizada e pobre das trabalho, e seu preço — seu salário — é $4,00. Traba-
cidades, cuja única mercadoria são seus músculos e o seu lhando 4 horas por dia o trabalhador médio produz seus
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meios de subsistência, ou um produto de valor igual ao de espaço de um dia, de uma semana ou de um mês de tra-
seus meios de subsistência. Este produto pode ser cha- balho, o trabalhador produz muito mais do que o seu
mado necessário, pois é necessário à renovação física do salário. Esta diferença, chamada mais-valia, é embolsada
trabalhador. Pela mesma razão, estas 4 horas podem ser pela classe capitalista, e é a substância de toda a sua ri-
chamadas de trabalho necessário. queza. Assim como o boi produz mais do que come, e
enriquece o seu dono, a classe trabalhadora produz mais
Entretanto, o operário é obrigado a trabalhar muito mais
do que consome, e enriquece os proprietários dos meios
do que as 4 horas necessárias. Trabalha 8, 10, 12 horas
de produção. Deste modo, os trabalhadores são bois do
por dia. Noutras palavras, produz muito mais do que o
sistema capitalista: consomem apenas uma parte do que
produto necessário, produz muito mais do que consome,
produzem, a parte necessária para que continuem vivos e
produz um excedente. Este excedente para onde vai?
trabalhando; a outra parte, a mais-valia, é apropriada
Vejamos o que acontece quando o trabalhador vende a pela burguesia, que vive às custas da classe trabalhadora.
sua força de trabalho ao capitalista. A força de trabalho,
Mas um homem não é um boi, e para conservá-lo na con-
como qualquer outra mercadoria, tem um valor de uso e
dição de boi é necessária a violência. De fato, a função
um valor de troca. Em nosso exemplo, o valor de troca é
principal da repressão nos países capitalistas é de garan-
de $4,00, equivalentes à 4 horas de trabalho necessário.
tir, pela força, a propriedade privada dos meios de pro-
Qual será o valor de seu uso? Quando paga estes $4,00 —
dução, isto é, a exploração capitalista do trabalho. Em
o salário do trabalhador — o capitalista adquire o direito
troca deste serviço, as forças repressivas — que não vi-
de consumir, de utilizar a sua força de trabalho por um
vem de brisa — recebem uma parte da mais-valia produ-
dia. É este o seu valor de uso. Portanto, o capitalista con-
zida pelo operariado. Noutras palavras, a classe operária
some a força de trabalho fazendo que ela trabalhe e pro-
— hoje — sustenta as forças da repressão, que a opri-
duza durante um dia normal, digamos 8 horas. ATENÇÃO: o
mem, e a classe capitalista, que a explora. Para recapitu-
capitalista pagou 4 horas de trabalho, mas recebeu 8. As 4
lar: a força de trabalho é uma mercadoria cujo valor de
horas que não foram pagas, as horas de trabalho exceden-
troca — pago no salário — é menor do que o valor criado
te, são a mais-valia do capitalista. Essa troca desigual,
no seu uso — o produto de um dia, de uma semana ou de
repetida milhares de vezes com milhares de operários ao
um mês de trabalho. A força de trabalho, portanto, é uma
longo dos anos, é a mola e a essência deste sistema de
mercadoria desvantajosa para o seu vendedor — o ope-
exploração.
rário — e vantajosa para o seu comprador — o capitalis-
É necessário entender bem esta troca, por mais legal e ta. Portanto, enquanto a força de trabalho for mercadoria,
contratada que pareça, é uma violência diariamente co- haverá exploração capitalista. Por outro lado, vimos que a
metida contra a classe operária. Como pôde o trabalhador força de trabalho é mercadoria porque a classe trabalha-
aceitá-la? Vamos repetir o argumento. O trabalhador não dora está separada de seus meios de produção. Em con-
tem o que vender, além da sua força de trabalho, e preci- sequencia, deixará de ser mercadoria quando a classe
sa vendê-la, para sobreviver. Portanto, é forçado pela trabalhadora tomar a si os meios de produção, expropri-
fome, ou mesmo pela repressão organizada, a concordar ando a classe dos exploradores. Este é o programa da
com o salário que os patrões propõem. Entretanto, no revolução.
[1968]

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