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‘Goucs Ernsticise Go hives, oF, easily SEMIOTICA APLICADA Lucia SANTAELLA Qierts ua Editora > browwyiatica desis ona & cana he Sim ae rnportane: ga nas Para ormact st no O8UG- 111938. Contamae com sue alo rracgo ¢ anleewadamenie agiodacerns por 8 Erie CENGAGE (EARRING 4. CENGAGE = Learning: SeMrorics APLICADA 3. O que dé fundamento ao signo? Se qualquer coisa pode ser um signo 0 que é preciso haver nela para que possa funcionar como signo? Para Peirce, entre as infini- tas propriedaces materiais, substanciais ete. que as coisas tém, ba trés propriedades formais que lhes dao capacidade para funcionar como signo: sua mera qualidade, sua existéncia, quer dizer, o sim- ples fato de existir, e seu carater de lei, Na base do signo, esto, como se pode ver, as trés categorias ‘enomenolégicas. Ora, essas trés propriedades s4o comuns a todas as coisas. Pela qualidade, tudo pode ser signo, pela existéncia, tudo é signo, e pela lei, tudo deve ser signo. E por isso que tudo pode ser signo, sem deixar de ter suas outras propriedades Diante disso, é importante agora saber por que e como uma simples qualidade ¢ uma propriedade formal que faz algo ser signo. Quando funciona como signo, uma qualidade € chamada de quali-signo, quer dizer, ela € uma qualidade que é um signo. ‘Tomemos, por exemplo, uma cor, qualquer cor, um azul-claro, sem considerar onde essa cor est corporificada, sem considerar que é uma cor existente € sem considerar seu contexto. Tomemos apenas a cor, nela mesma, s6 cor, puza cor. Quantos artistas nao fizeram obras para nos embriagar apenas com uma cor? Por que € ‘como uma simples cor pode funcionar como signo? Ora, uma si ples cor, como 0 “azul-claro”, imediatamente produz uma cadeia associativa que nos faz lembrar céu, -oupa de bebé etc.; par isso mesmo, esse tom de azul costuma ser chamado de azul-celeste ou azul-bebé. A mera cor nao é 0 céu, nao é a roupa de um bebé, mas lembra, sugere isso. Esse poder de sugestéo que a mera qualidade apresenta Ihe da capacidade para funcionar como signo, pois, quando 0 azul lembra o céu, essa qualidade da cor passa a fun- cionar como quase-signo do céu. O mesmo tipo de situagao tam- bém se cria com quaisquer outras qualidades, como 0 cheiro, 0 som, 03 volumes, as texturas etc Vejamos agora por que o fato de existir faz daquilo que existe um signo, Todo existente, qualquer existente é multiplamente —12— BASES TEORICAS ps a aPicAchO determinado, é uma sintese de miiltiplas determinagées, pois exis- tir significa ocupar um lugar no tempo no espaco, significa rea- gir em relagdo a outros existentes, significa conectar-se. Por isso mesmo, os existentes apontam ao mesmo tempo para uma sévie de outros existentes, para uma série de diregées, infinitas diregécs. Cada uma das direcécs para a qual o existente aponta é una de suas referéncias posstveis, em um campo de referéncias que s2 per- dom de vista. O existente fuunciona assim como signo de cade uma ¢ potencialmente de todas as referéncias a que se aplica, pcis ele age como uma parte daquilo para 0 que aponta. Essa propriedade de existir, que di ao que existe © poder de funcionar como signo, é chamada de sin-signo, onde “sin” quer dizer singular. Pensemos em um exemplo. Voot leitor(a) que me Ié neste mo- mento (uma frase, por sinal, curiosa, pois quem escreve neste momento sou eu!), Mas voltemos a vocé que existe no universo dos seres humanos. Sua pessoa emite sinais para uma infinidade de direcdes: 0 modo de se vestir, a maneira de falar, a lingua que fala, © que escolhe dizer, o contetido do que diz, 0 jeito de olhar, de andar, sua aparéncia em geral etc. so todas estes, € muitos outros mais, sinais que estdo prontos para significar, latentes de significado. Quanto A propriedade da lei, embora parega complicado com- preendé-la, um breve exame j& é capaz de revelar que ndo € to complicade quanto parece. O que é uma lei? Uma lei uma abs: tracdo, mas uma abstragdo que é operativa. Ela opera tao logo encontre um caso singular sobre 0 qual agit. A ago da lei é fazer com que o singular se conforme, se amolde A sua generalidade, E fazer com que, surgindo uma determinada situacao, as coisas ocor- ram de acordo com aquilo que a lei prescreve. Se nao fosse pela lei, as ocorréncias seriam brutas € cegas. E por isso que também fala- mos em leis da natureza. Quando algo tem a propriedade da lei, recebe na semiética o nome de legi-signo e 0 caso singular que se conforma generalidade da lei é chamado de réplica. Assim fun- cionam as palavras, assim funcionam todas as convengées socio- culturais, assim também funcionam as leis do direito. =e Seunorica APLECADA No caso das palavras, por exemplo, elas so leis porque per- tencem a.um sistema, sem 0 qual palavras nao passariam de tar- tamudeios, Por pertencerem a um sistema, em cada lingua, as palavras se conformam a certas combinatérias de sons e de se- giéncias de palavras que so préprias da lingua em questao. A lei de que as palavras sao portadoras fara com que, cada vez que uma palavra ou grupo de palavras ocorrerem, sejam entendidas como significando aquilo que o sistema a que pertencem determina que las significam. Acima descritas estdo as trés propriedades que habilitam as coisas a agirem como signos. Essas propriedades nao sao exclu- dentes. Na maior parte das vezes, operam juntas, pois a lei incor- pora o singular nas suas réplicas, e todo singular & sempre um. compésito de qualidades. Quase todas as coisas, se nao todas, es- tao sempre sob o dominio da lei, de modo que, no mais das vezes, as trés propriedades estéo operando conjuntamente. H4 certas situagdes muito particulares ¢ até mesmo privilegiadas, entretan- to, em que a propriedade puramente qualitativa fica proeminente, o que € 0 caso da arte, da misica, da poesia, por exemplo. Hé tam- bem situagdes em que domina a singularidade cega do puro acon- tecer, no exilio de qualquer lei, Mas esses sao casos de dominancia, pois as trés propriedades sio sempre onipresentes em todos os fenémenos, nao apenas humanos, mas também naturais. 4, A que os signos se refere: Dependendo do fundamento, ou seja, da propriedade do signo que est sendo considerada, seré diferente a maneira como ele pode representar seu objeto, Como sao trés os tipos de propriedades — qualidade, existente ou lei —, so também trés 0s tipos de relagao que o signo pode ter com o objeto a que se aplica ou que denota. Se o fundamento € um quali-signo, na sua relacao com 0 objeto, 0 signo seré um icone; se for um existente, na sua relago com 0 objeto, ele sera um indice; se for ume lei, seré um simbolo. —4— BASES TEORICAS pata 4 sPLICACIO Ha uma distingdo que Peirce estabeleceu para © objeto que pode nos ajudar a compreender melhor as relagées do fundamen- to do signo com seu respectivo objeto. Essa distincao & a do objeto dinamico e do objeto imediato. Quando pronunciamos uma frase, nossas palavras falam de alguma coisa, se referem a algo, se aplicam a uma determinada situagdo ou estado de coisas. Elas tém um contexto. Esse algo a que elas se reportam € 0 seu objeto dinamico. A frase € o signo © aquilo sobre 0 que ela fala é 0 objeto dindmico. Quando olhamos para uma fotografia, 14 se apresenta uma imagem. Essa imagem € 6 signo ¢ 0 objeto dinamico ¢ aquilo que a foto capturou no ato da tomada a que a imagem na foto corresponde. Quando cuvimos uma miisica, 0 objeto dindmico € tude aquilo que as seqiiéncias de sons so capazes de sugerir para a nossa escuta. Ora, quaisquer que sejam os casos, uma frase, uma foto ou ‘uma mtisica, ou seja 16 0 que for, os signos s6 podem se reportar a algo, porque, de alguma maneira, esse algo que eles denotam esté representado dentro do proprio signo. 0 modo como o signo re~ presenta, indica, se assemelha, sugere, evoca aquilo a que ele se refere é o objeto imediato. Ele se chama imediato porque s6 temos acesso ao objeto dinamico através do objeto imediato, pois, na sua fungao mediadora, é sempre 0 signo que nos coloca em contato com tudo aquilo que costumamos chamar de cealidade. Assim, por exemplo, fagamos a experiéncia de comparar a primeira pagina de dois jornais diferentes em um mesmo dia. 0 objeto dindmico dessas duas paginas sio presumivelmente os acontecimentos mais quentes de uma conjuntura recente. Como esse objeto dindmico é apresentado em cada uma das paginas vem a ser o objeto imediato, quer dizer, aquele recorte especffico que a pagina, que é um signo, de cada um dos jornais fez do objeto dindmico, a conjuntura da realidade. B claro que esse recorte depende de uma série de aspectos, tais como a ideologia do jornal, © que foi decidido na pauta como merecedor de atengio ete. Mas 0 recorte especifico que aquele signo faz, com todos 0s aspectos SmWoTICA APLICADA que ele envolve, que € 0 objeto imediaio, ou seja, o modo como signo representa ou indica ou, ainda, sagere o objeto dinamico, Estou insistindo nesses trés verbos, “representa”, “indica” e “sus sere’, porque sua semantica & indicadora do fato de que, depen- dendo da natureza do fundamento do signo, se é uma qualidade, um existente ou uma lei, também seré diferente a natureza do objeto imediato do signo e, conseqiientememte, também sera diferente a relacdo que o signo mantém com o objeto dindmico, Vem dai a clas- sificasdo dos signos ei icones, indices e simbolos, Assim, 0 objeto imediato de um feone s6 pode sugerir ou evocar seu objeto dina. nico. O objeta imediato de um indice indica seu objeto dinamico © objeto imediato de um simbolo representa seu objeta dinAmico, Vem dessa distingéo tripartite a div-séio dos objetos imediatos em trés tipes: descritivos, designatives copulantes. No caso do quali-signo fe6nico, seu objeto imediato tem sempre um cardter des. critivo, pois estes determinam seus objetos dinamicos, dectarando Sens caracteres. No caso do sin-signo indicial, seu objeto imediato é tum designativo, pois dirige a retina mental do intérprete para o ob- Jto dindmico em questo. No caso do legi-signo simbélico, seu obje- to imediato tem a natnreza de um copulante, pois meramente ox. Pressa as relagGes légicas destes objetos com seu objeto dinamico, Assim como ha uma divisio tridica do objeto imediato tam- bém o dinamico se subdivide em trés, de acordo com a mesma Ll sica do primeiro, segunda e terceiro. Quando 0 objeto imediato é tum descritivo, 0 objeto dindmico é um possivel ¢ sieno em si mesmo, um abstrativo, Por exemplo: a pelavra beleza ou “o belo” & um signo abstrativo que tem por objetc imediato um deseritivo culo objeto dinémico s6 pode ser um possivel, quer dizer, todas as Coisas que foram, so e sero possivelmente belas. Quando o objeto imediato € um designative, quer dizer, quan- dlo dirige a mente do intérprete para seu objeto dinamico, este +6 Pode ser uma ocorréncia, coisa existente ou fato atual do passado ou futuro, Nesse caso, 0 signo em algo concreto, existente. € um concretivo, quer dizer, —i6— eect i I Bases ridarcas baad aarcicacio Quando o objeto imediato é um copulante, apresentando rela- Goes l6gicas, 0 objeto dindmico é um necessitante, algo de carter geral, um tipo, e o signo em si é um coletivo. Para que os objetos dos signos fiquem mais explicitos, vejamos em mais detalhes como agem os fcones, indices e stmbolos para denotar aquilo que denotar. Um fcone é um signo que tem como fundamento um quali- signo. Lembremos do exemplo de quali-signo: uma cor azvlclara. © que dé poder a essa cor para funcionar como signo & téo-s6 € apenas sua qualidade. Na relacio com o objeto que o quali-signo pode porventura sugerir ou evocar, o quali-signo é icénico, quer dizer, € icénico porque o quali-signo s6 pode sugerir seu objeto por similaridade. fcones séo quali-signos que se reportam a seus obje- tos por similaridade. Quando a cor azul-clara lembra 0 cé:1 on os olhos azuis Iimpidos de uma crianga, ela sé pode lerbré-los porque hé uma semelhanga na qualidade desse azul com o azul do céu ou dos olhos. 0 fcone s6 pode sugerir ou evocar algo porque a qualidade que ele exibe se assemelha a uma outra qualidace. ‘Uma vex que qualidades nao representam nada, pois quali- dades s6 se apresentam, 6 se presentificam, em princfpio nao ha nada no icone que possa remeté-lo a um objeto dinamico. Por isso, © objeto imediato de um icone é 0 seu préprio fundament>, quer dizer, 6 a qualidade ou qualidades que ele exibe. No momento em que, através de uma comparagao, essa qualidade sugere uma outra qualidade, a qualidade sugerida vem a ser 0 objeto dinimico do cone. Pensemos em mais um exemplo: manchas de tinta com for- mas completamente casuais em um papel. Retendo sé a qualidade dessas formas, as formas nelas mesmas, independentemente de qualquer outra coisa, a aparéncia que as formas exibem cumpre 20 mesmo tempo a fungio de fundamento, quali-signo, e de objeto imediato. Nao ha nada nelas que possa representar qualquer outra coisa, Sao simplesmente manchas que se apresentam a si mesmas. Entretanto, justamente porque nao representam nada, elas ficam abertas para despertar cadeias associativas de semelhanga com Seatomica APLICADA uma infinidade de outras formas. Por isso mesmo, manchas so usadas em testes psicolégicos, Quando dizemos isso parece com uma cachoeira, ou parece com uma montanha, ou parece com uma escada, através da comparacéo, estamos dando um objeto dinami- co para formas que, em si mesmas, de fato, néo tém poder de re- presenta vutras aparenicias, Peirce dividiu os signos icbnicos, ou seja, 0s signos que agem como tal em funcdo de uma relagao de semelhanga com seus obje- tos, em trés niveis: imagem, diagrama e metéfora, A imagem estabelece uma relagao de semelhanca com seu objeto puramente no nivel da aparéncia, Imagens de um gato, de um bosque, de uma praca podem representar esses objetos quan- do apresentam niveis de similaridade com 0 modo como os mes- mos s40 visualmente percebidlos. diagrama representa seu objeto por similaridade entre as relagées internas que o signo exibe € as relagées internas do obje- to que o signo visa representar. O mapa do metré de Londres, por exemplo, é um diagrama, pois a similaridade com seu objeto nao se da no nivel das aparéncias, mas no nivel das relagées internas. O grafico demonstrando a taxa de crescimento da inflacéo no ano também € um diagram por exibir usa correspondéncia do dese- nho com as relagées internas do objeto representado. A metéfora representa seu objet por similaridade no signifi- cado do representante € do representado. Ao aproximar 0 sig- nificado de duas coisas distintas, a metéfora produz uma fafsca de sentido que nasce de uma identidade posta a mostra, £ justa- mente esse efeito que uma frase do tipo “Ela tem olhos de azei- tona” produz. 0 caso do indice é bem diferente do fcone discutido acima através do exemplo das manchas de-tinta. Um bom exemplo para evidenciar essa diferenca € 0 de uma fotografia, digamos, de uma montanha ou de uma escada ou de uma cachocira, pois falar de fotografias ¢ j4 comegar a tratar dos indices. A montanha, cuja imagem foi capturada na foto, de fato, existe fora e independente- —18 Bases Teonreas sun a aruicacdo mente da foto. Assim, a imagem que est na foto tem 0 poder de indicar exatamente aquela montanha singular na sua existéncia, O que d4 fundamento 20 indice & sua existéncia concreta, Para indicar a montanha, a foto evidentemente também precisa ser um existente tanto quanto a montanha o é Se, no caso do icone, nao ha distingdo entre o fundamento ¢ 0 objeto imediato, j4 no caso do indice essa distingao ¢ importante. 0 objeto imediato do indice é a maneira como 0 indice € sapaz de indicar aquele outro existente, seu objeto dinamico, com ¢ qual ele mantém uma conexdo existencial. Para que a imagem da monta: nha possa estar, de algum modo, na foto, houve uma corexéo de fato entre a montanha e a foto. Mas a foto nao é a montanha, ape- nas a indica dentro de certos limites que sao préprios da fotogra- fia, Esse recorte espectfico que a foto faz do objeto fotografado € 0 objeto imediato. Pode-se fotografar a mesma montanhe de diversos Angulos, em diferentes proximidades, de variados lacios, ou mesmo de cima, se tomarmos a foto de um helicéptero, por exemplo, Em cada uma dessas variagées, so distintos os objetos imediatos, pois varia 0 modo como 0 mesmo objeto dinamico, a montanha, nelas aparece. Todos os indices envolvem icones. Mas nao sao os {cones que 08 fazem funcionar como signos, Assim, a imagem da montanha, que se apresenta na foto, tem alguma semelhanca com a eparéneia da prépria montanha. Nesse aspecto, age como um icone dela, E por isso que somos capazes de reconhecer imediatamente uma foto da montanha Matierhorn, na Suiga, devido & sua forma muito peculiar, Mas a imagem funciona como indice da montanha por- que cla 0 resultado de uma conexao de fato entre a temada da foto e a montanha. ‘Tomemos uma forma mais pura de indice (pois, na fotografia, 6 aspecto icénico é também muito dominante), por exemplo, os muito citados casos da fumaga como indice de foge ou do chéo molhado como indice de chuva. A fumaga no apresenta qualquer semelhanga com 0 fogo, nem 0 chao molhade com a ckuva, Tsso 19 SeMIOTICA APLIEADA ao significa que a fumaga nao exibs quali-signos icdnicos que lhe 880 prdprios, assim como o chéo molhado, pois todo existente con, tém um compésito de qualidades que podem funcionar como ‘cones, Entretanto, a acio do indice ¢ distinta do aspecto icbmice Para agir indicialmente, o signo deve ser considerado no seu as, Peeio existencial como parte de tim outro existente para 0 qual o indice aponta e de que o indice 6 uma parte, A acto do simbolo é bem mais complexa. Seu fundamento, come 48 sabemos, é um legi-signo. Leis operam no modo condi. cional, Preenchidas determinadas condigdes, a lei agiré. Se a frate sollarse da arvore, la caird, Eis um exemplo da acéo da lei, Mas a lei da gravidade s6 funciona como um simbolo se a tomarmos como simbolo dos designios da natureza ou de uma entidade divi, na. Vejamos, pois, casos menos discutiveis de simbolos, Se o funda. mento do simbolo é uma lei, entéo, o simbolo esta plenamente habi, Mado para representar aquilo que ale prescreve que cle represente © hino nacional representa o Brasil, A bandeira brasileira repre- Senta 0 Brasil. A Praga dos Trés Poderes, em Brasilia, representa Pu ists poderes, Convengées sociais azem af no papel de leis que fazem com que esses signos devam representar seus objetos dlinamicos. Qual vem a ser, entdo, o objeto imediato dos simboloc? © objeto imediato do icone é o modo como sua qualidade pode Sugerir ou evocar outras qualidades. 0 objeto imediato do indice é © modo particular pelo qual esse signo indica seu objeto, 0 objeto imediato do simbolo é 0 modo como o simbolo representa 6 obje- to dindmico, Enquanto o icone sugere através de associagées por Semelhanea ¢ o indice indica através de uma conexao de fato, ente tencial, o simbolo representa através de uma lei Pensemos em um exemplo para ajudar na compreensao: este capitulo mesmo que escrevo e que o letor esté lendo. Que se trata Saui de legi-signos e de simbolos nao hé éhivida, pois toda Lingua ¢ Convencional, denotando seuss referentes devido ao legi-signo ou Convengdo que the dé suporte. © objetc din&mico dos simbolos é ‘ama refecéncia tltima que engloba todo 0 context a que o simbo- —20— ee | | I Bases TEOHICAS man a geLICAGkO lo se refere ou se aplica, se fosse possivel pensar uma tal referén- cia Ultima ou contexto global do signo. E evidente que nac é pos- sivel pensar essa totalidade muito justamente porque o pensamen- to gue tenta pensé-la € um signo que s6 pode representa o seu contexto de referéncia dentro de certas capacidades e limites. Ora, esse recorte especifico que um simbolo faz de seu contexto de referéncia é 0 objeto imediato do simbolo. Voltemos, assim, para o exemplo: este capitulo no qua. busco ignos de Peirce. O objeto transmitir 05 conceitos da teoria dos dindmico deste capitulo, em tiltima instancia, seria a totalidade da obra de Peirce: os textos que publicou em vida, 05 90 mil manus- critos inéditos que deixou etc. Essa obra existe como palavras inscritas em objetos fisicos como livros e papéis arquivacos. Os objetos fisicos dio suporte & obra, so sin-signos, insténcias de atualizacao dos simbolos, isto €, dos textos deixados por Peirce Isso quer dizer que 0 objeto dindmica deste meu texto também so simbolos, ou seja, os textos de Peirce. Os simbolos também tém seu objeto dinamico: todas as obras que Peirce leu para poder desen- volver suas idéias. Essas obras, que também séo simboles, tém sens préprios objetos dinamicos, ¢ assim indefinidamente, A cadeia indefinida de simbolos que remetem a sitnbolos comega a nos dar uma idéia do que seria 0 objeto dinamica como referéncia tiltima deste meu texto. Mas essa referéncia Altima ainda engloba tudo que li sobre Peirce, os outros autores que con- sultei para poder compreendé-to e para conferir a adequasdo de minha propria compreensao, os congressos de que participei em que discuti a obra de Peirce, todas as aulas que dei sobre esse assunto, Enfim, 0 objeto dinamico de um simbolo, especialmente quando o simbolo um conceito, se perde de vista. Ora, tudo isso que foi af indicado nao cabe neste meu texto, pois este texto par- ticular faz um certo recorte particular de todas essas referéncias. Esse recorte particular, o modo espectlico com que este capitulo representa os conceitos da teoria dos signos de Peirce, € 0 abjeto imediato deste texto. SEMIOTICN AMLIEADN Para deixar a necdo do objeto ainda mais fina, Peirce desen- volveu 0 conceito de experiéncia colateral. Este se refere a intimi- dade prévia com aquilo que © signo denota, Todos aqueles que j4 tiveram outras experiéncias de leitura da tcoria dos signos de Peirce certamente lerao com muito mais facilidade este meu texto, porque j6 tiveram experiéneias colaterais com o ubjetw dinamico deste texto. Uma vez que o objeto imediato deste texto tem limites, quer dizer, nao pode representar tudo sobre a teoria dos signos, aqueles que tiverem interesse em saber mais sobre o assunto podem consultar outros livros, em que encontrarao outros recortes da obra de Peirce, quer dizer, outros cbjetos imediatos desse obje- to dinamico que € a obra em suas referencias dltimas, Consideremos agora a bandeira brasileira que é um simbolo do Brasil, assim como a italiana 6 da Itélia, ¢ assim por diante. Aqui, o funcionamento do simbolo é bem menos complicado, por- que a bandeira nao é um simbolo genuino como uma palavra o 6, pois seu aspecto icdnico, isto é, a imagem de formas e cores que exibe, é dominante, além de que se trata af de um simbolo simples € nao complexo como um texto. Quando, por uma convengao sociocultural, um {cone é tomado como simbolo, como 6 © caso de wma bandeira, ou do crucifixo como simbolo do Cristianismo, as formas ¢ cores que constituem esse {cone passam a funcionar tam- bém come legi-signos porque @ convengao lhes imputa esse car ter, Assim sendo, todas as bandeiras ou crucifixes particulares, em cada estadio, em cada igreja, se constituem em sin-signos, réplicas do legi-signo, © objeto dindmico da bandeira é 9 Brasil, 0 objeto imediato, que € 0 icone com suas cores ¢ formas, nio poderia representar o Brasil se ndo fosse pela convencdo que faz com que a lei aja, isto é, se aquele fcone nao tivesse sido escolhido para representar 0 que representa, Mas esse icone nao ¢ inteiramente arbits io, Ble tam- ‘bém funciona por similacidade, que ¢ 0 modo préprio de o icone fun- cionar como signo: o azul da bandeira tem semelhanca com 0 céu, © verde com a mata, 0 amarelo cam 0 ouro. Quanto a inscrig&o ‘Bases TEORICAS Pana AAPLICACAO “Ordem e Progresso”, esta ¢ decididamente um simbolo, Por ironia do destino, se a ordem e o progresso ai inscritos tém funcionado como uma parddia do pats, s6 pode ser 0 caso de uma vinganga do objeto dindmico, isto é, uma vinganga do real contra seu simbolo. Tendo isso em vista, ndo fica dificil entender por que todo sim- bolo inclui dentro de si qualt-signos icénicos e sin-signos-indiciais. Mesmo as palavras, que séo genuinamente simbélicas, exibem seu aspecto icdnico na materialidade da escrita que os jornais, por cxemplo, exploram muito bem no uso diferenciado que fazem dos tipos graficos e do corpo das letras. Na linguagem falada, o modo como as palavras soam, a sua musicalidade particular corres- ponde a seu aspecto icénico que pode até funcionar por similari- dade em relacdo ao seu referente, como ocorre com palevras do tipo olho, por exemplo, em que se tem uma similaridade visual da escrita - 0 0 ~ com os préprios olhos. 5. Como os signos sao interpretados? A tworia dos interpretantes de Peirce é um conjunte de conceitos que fazem uma verdadeira radiografia ou até uma microscopia de todos os passos através dos quais os processos interpretatives Como ja se viu, o interpretante é o terceiro elemento da triade de que 0 signo se constitui, 0 objeto é aquilo que determina o signo © que o signo representa. J o interpretante é 0 efeito interpretative que © signo produz em uma mente real ou meramente potencial. Para radiografar o circuito da interpretacéo, Peirce partiu de és tipos basicos de interpretante, Assim como o signo tem dois objetos, © imediato e o dinamico, ele tem também trés interpretantes. $40 36 dois objetos porque a relacao de referéncis do signo com aquilo que ele representa é uma relago dual. £ s6 no proceso interpre- tativo que essa relagdo dual se completa. Daf o interpretante ser triddico, pois hé, pelo menos, trés passos para que o percurso da. interpretagao se realize. 23 SeutoTica APLICAOA Antes de tudo, & preciso considerar que interpretante nao quer dizer intérprete. E algo mais amplo, mais geral. O intérprete tem um lugar no proceso interpretativo, mas este proceso esté aquém ¢ vai além do intérprete. Logo, o primeiro nivel do interpretante chamado de interpretante imediato. um interpretante interno ao signo, Assim como 6 signo tem um objeto inuediata, que Ihe € inter: no, também tem um interpretante interno. Trata-se do potencial interpretative do signo, quer dizer, de sua interpretabilidade ainda no nivel abstrato, antes de o signo encontrar um intérprete qual- ‘quer em que esse potencial se efetive, Um livro em uma livraria, por exemplo, tem um potencial para ser interpretado, antes mesmo que qualquer pessoa o tenha aberto para ler. As palavras esto 14 com toda a carga de signifi- cagao que elas contém. Quando um leitor ler o livro, algo dessa carga de significacdo se atualizara, se efetivar, Mas isso néo quer dizer que 0 poder para ser interpretado ja ndo esteja nos préprios signos de que o livro é feito ‘Uma pintura em uma parede, musicas em um CD, um video em uma fita, todos eles contém internamente um potencial para serem interpretados téo logo encontrem um intérprete. Esse po: tencial é o interpretante imediato do signo. E algo que pertence ao signo na sua objetividade, Uma comécia no teatro ou cinema, por exemplo, nao esta apta a levar seus espectadores ag choro, pois ha nela determinadas caracteristicas que delineiam o perfil de sua interpretabilidade. © segundo nivel € o do interpretante dinamico, que se refere 20 efeito que o signo efetivamente produz em um intérprete. Tem-se ai a dimensao psicol6gica do interpretante, pois se trata do efeito sin- gular que o signo produz em cada intérprete particular. Esse efeito ou interpretante inamico, por sua vez, de acordo com as trés ca- tegorias da primeiridade, secundidade e terceiridade, subdivide-se em trés nfveis: interpretante emocional, energético e logico. © primeiro efeito que um signo esta apto a provocar em um intérprete é uma simples qualidade de sentimento, isto é um in- 24 Bases TORICAS mea 4 AMLICHCAD terpretante emocional. {cones tendem a produzir esse tipo de interpretante com mais intensidade: miisicas, poemas, certos filmes trazem qualidades de sentimento para o primeiro plano, Mas os interpretantes emocionais esto sempre presentes em quaisquer interpretagées, mesmo quando nao nos damos conta deles. 0 segundo efeito significado de um signo é o energético, que corresponde a uma acao fisica ou mental, quer dizer, o interpre- tante exige um dispéndio de energia de alguma espécie. indices tendem a produzir esse tipo de interpretante com mais intensi- dade, pois os indices chamam nossa atencéo, dirigem nossa retina mental ou nos movimentam na direcdo do objeto que eles indicam. O terceiro efeito significado de um signo é o interpretante logi- co, quando 0 signo ¢ interpretado através de uma regra interpre- tativa internalizada pelo intérprete. Sem essas regras interpretati- vas, 08 simbolos no poderiam significar, pois 0 simbolo est asso- ciado ao objeto que representa através de um hébito associative que se processa na mente do intérprete e que leva o simbo. a sig- nificar o que ele significa. Em outras palavras, 0 sfmbolo esté conectado a seu objeto em virtude de uma idéia da mente que usa © simbolo, sem o que uma tal conexao no existitia. Portanto, é no interpretante que se realiza, por meio de uma regra associativa, uma associagio de idéias na mente do intérprete, associagdo esta que estabelece a conexio entre o signo e sett objeto. Dai Peirce ter repetido muitas vezes que o simbolo se constitui como tal apenas através do interpretante. Isso nos leva a compreender por que s6 0 simbolo é genuina- mente triddico. A lei que Ihe da fundamento tem de estar interna- lizada na mente de quem o interpreta, sem o que 0 simtolo nao pode significar, O hino nacional s6 simboliza o Brasil para quem internalizou essa convengéo. Por isso mesmo; para agir como si no, 6 simbolo independe de uma conexdo factual com sea objeto (caso do indice), assim como independe de qualquer semelhanga com seu objeto (caso do icone). Smauorica AnLicADA Dentro do interpretante I6gico, Perce introduziu wm conceito muito importante, o de interpretante légico tiltimo, que equivale a mudangas de habito. De fato, se as interpretacées sempre depen- dessem de regras interpretativas j4 internalizadas, nao haveria espaco para a transformagéo e a evolugo, A mudanca de habito intraduz esse elemento transformative € evolutivo no proceso de interpretacao. O terceito nivel do interpretante é 0 interpretante final, que se refere ao resultado interpretativo a que todo intérprete estaria des- tinado a chegar se os interpretantes dindmicos do signo fossem le- vados até 0 seu limite tiltimo. Como isso nao € jamais posstvel, 0 interpretante final ¢ um limite pensdvel, mas ounca inteiramente atingivel. ‘Na relagao do signo com o interpretante final, vamos encon- trar novamente trés niveis de interpretante: rema, dicente e argu- mento. Um signo € um rema para o seu interpretante quando for um signo de possibilidade qualitativa. Assim sao prioritariamente 08 icones. O rema nao vai além de uma conjectura, de uma hipétese interpretativa. Quando uma qualidade & tomada como signo de uma outra qualidade sob efeito de alguma comparacdo, essa ape- ragéo é sempre hipotética. Por exemplo, quando dizemos que uma nuvem tem a forma de um castelo, esse comparagiio nao passa de uma conjectura. Como se pode ver, se tenos diante de nés quali nos icdnicos, eles sé podem produzir interpretantes reméticos Um dicente é um signo de existéneia real, portanto nao pode ser um icone, uma vez que este no dé base para uma interpre- taco de que algo se refere a uma existéncia real. Quando dizemos que 0 copo esta sobre a mesa, este & umn signo de existéncia real, pois sua veracidade pode ser constatada no local em que 0 copo deveria estar; Por isso mesmo, dicentes séo interpretantes de sin- signos indiciais. Para o seu interpretante, o argumento & um signo de lei. A base do argumento est nas seqiiéncias légicas de que o legi-signo simbélico depende. —26— ft i Bases rednrcas Pasa aarLicAco Podemos dizer, enfim, que um rema é um signo que é enten- dido como representando seu objeto apenas em seus caracteres; que um dici-signo é um signo que é entendido como representan- do seu objeto com respeito a existéncia real e que um argumento & um signo que é entendido como representando seu objeto em seu caréter de signo. Como se pode ver, os niveis do interpretante incorporam nao 36 elementos l6gicos, racionais, como também emotivos, sensé- ros, ativos ¢ reativos como parte do processo interpretative. Este se constitui em um compésito de habilidades mentais e sensérias que se integram em um todo coeso. Sao essas habilidades que pre- cisamos desenvolver na pratica das leituras semiéticas, como espe- ramos poder deixar explicito nos préximos capftulos. a7 ~tsitiesobe eiaalg Percutso para a aplicacdo O 8 cnseits essen explictades no captalo anterior funco- nam como alicerces para as leituras e andlises semisticas. A seqiiéncia em que eles apareceram é também indicadora dos pas- s0s a serem seguidos no percurso das anilises visadas, conforme sera explicitado neste capitulo, Para isso, 0 leitor pod: também encontrar em Ferreira (1997) uma ontra fonte de consulta na apre- sentagdo que a autora faz de um roteiro para anélises semisticas que é similar ao percurso apresentada a seguir. Assim sendo, dian- te de um processo de signos que se quer ler semioticamente, 0 primeiro passo a ser dado é o fenomenol6gico: contemplar, entao disctiminar e, por fim, generalizar em correspondéncia com as categorias da primeiridade, secundidade e terceiridade. 1. Abrir-se para o fenémeno e para 0 fundamento do signo Peirce nos adverte que 0 exercicio da fenomenologia exige de nés téo-s6 € apenas abrir as portas do espirito e olhar para os fend- menos. 0 primeiro olhar que devemos dirigir a eles é 0 olhar con- templativo. Contemplar significa tornar-se disponivel para o que esta diante dos nossos sentidos, Desautomatizar tanto quanto pos- —29— Seuiricn APLICADS sivel nossa percepgao. Auscultar os fendmenos. Darlhes chance de se mostrarem, Deixé-los falar. Para Peirce, essa capacidace con- templativa corresponde & rara capacidade que tem o artista de ver as cores aparentes da natureza como elas realmente so, sem subs- litutlas por nenhuma interpretagéo. Nossas interpretagées vém ‘sempre muito depressa, sem nos dar tempo para simplesmente nos abrirmos com certa singeleza para o que se apresenta. Essa candi- dez intelectiva nos disponibiliza para as primeiras impressdes tanto senis6rias quanto abstratas que os fendmenos despertam em nés Passear por um bosque europeu, em um verao ameno, onde a exuberncia do verde é atravessada por feixes de Juz e a frenética e delicada orquestracao dos pissaros se faz acompanhar pelo fres- cor da terra 6 uma experiéncia fadada a produzir qualidades de sentimento, impresses vagamente definidas de prazer e bem-estar fisico ¢ espiritual que nos predispéem >ara a contemplagéo ¢ me- ditagao livre que se aproximam do estado desarmado que 6 pré- prio da primeiridade. O efeito estético produzido em nés pelas obras de arte, certos filmes, a audicao da miisica, muitos poemas leva esse estado ao seu limiar mais ber realizado quando se dé a suspensao dos nossos julgamentos na demora do sensfvel. E algo similar a esse estado que temos de aprender a desen- volver quando nos colocamos diante de processos de signos que pretendemos ler semioticamente. Em um primeiro momento, pelo menos, temos de dar aos signos o tempo que eles precisam para se mostrarem. Sem isso, estamos destinados a perder a sensibilidade Para seus aspectos qualitatives, para seu caréter de quali-signo. Aquilo que apela para a nossa sensibilidade e sensotialidade sao qualidades. O signo diz o que diz, antes de tudo, através do modo como aparece, to-somente através de suas qualidades. Nesse nivel, portanto, o signo € considerado como pura possi- bilidade qualitativa. Para isso, € preciso ter porosidade para suas qualidades sem a pressa das interpretagdes ja prontas, A capaci- dade para apreender quali-signos deve ser aprendida. Ela s6 parece natural ao artista porque qualidades de linhas, cores, for- 30 — mien i tt aerate | | | | PeRcUso rans antzcago mas, volumes, texturas, sons, movimentos, temporalidade ete. se constituem no material mesmo com que os artistas trabalham, Para.desenvolver essa capacidade, temos de expor pacientemente nossos sentidos As qualidades dos fendmenos, deixé-los apare- cerem to-s6 € apenas como quali-signas. O segundo lipo de olhar que devemos dirigir para os fendme- nos é 0 olhar observacional. Nesse nivel, € a nossa capacidade per- ceptiva que deve entrar em ago. Estar alerta para a existtncia sin gular do fendmeno, saber discriminar os limites que o diferenciam. do contexto ao qual pertence, conseguir distinguir partes ¢ todo. Aqui, trata-se de estar atento para a dimensio de sin-signo do fend- meno, para o modo como sua singularidade se delinefa no seu aqui e agora. Segundo Ferreira (1997), esse segundo tipo de fundamento do signo implica a observag4o de modo particular como o signo se corporifiea, a observagio de suas caracteristicas existenciais, quer dizer, daquilo que ¢ nele irrepetivel, tinico. Para isso, € recessirio desenvolver consideragoes situacionais sobre o universo no qual 0 signo se manifesta e do qual é parte. Quando analisamos modo de existéncia de um determinado fendmeno, estamos analisando-o no sen cardter de sin-signo. Por exemplo: o relégio digital particular que tenho em fren:e a mim. Fabricado industrialmente, ele vem do mesmo protétips de uma infinidade de relogios iguais a ele. Mas este tem uma histéria pré- pria, Por tomar sol quase todos os dias perto da janela, adquirie uma certa descoloragio e perdeu um pouco do brilho devido 20 envelhecimento do material de que € feito. E certo que esses aspec- tos de descoloragao e perda de brilho sao claramente aspectos qua- litativas, mas © modo como essas qualidades esto enearnadas nes- se corpo particular com um tempo histérico que Ihe é p-6prio diz respeito ao seu aspecto de sin-signo. Ao se considerar que todo existente deve se compo- com ou- tos existentes em uma classe que lhes é prépria, constata-se que todo sin-signo é, em alguma medida, uma atualizacdo de um legi- sai SeMEOTICA APLICADA signo. Nesse ponto, entramos na dimensio do terceiro tipo de olhar que devemos dirigit aos fendmenos, isto é, aquele que brota do desenvolvimento da capacidade de generalizagéo que os ma- tematicos levam ao seu ponto maximo. Trata-se aqui de conseguir abstrair o geral do particular, extrair de um dado fendmeno aqui- Jo que ele tem em comum com todos 0s outres cum que compoe uma classe geral. Esse relégio particular ¢ um rel6gio entre outros que vieram do mesmo protétipo industrial, Embora tenha uma existencia que é s6 dele, ele € também um tipo de relégio, Em um nivel de abstracdo ainda maior, relégios pertencem a uma classe ainda mais geral que é a classe dos objetos produzidos em série; do mesmo modo, objetos produzidos em série pertencem a uma classe que 0s diferencia de objetos produzidos artesanalmente, ¢ assim por diante. Essas generalizacdes sio préprias do aspecto de lei do fundamento do signo, Em suma, para se detectar as fungdes desempenhadas pelos legi-signos, deve-se dirigir a atengao para as regularidades, as leis, ou seja, para os aspectos mais abstratos do fenémeno, respon- saveis por sua localizagao numa classe ce fendmenos. (© que deve ser compreendido nesse passo da andllise é que os sin-signos dao corpo aos quali-signos enquanto os legi-signos fun- cionam como prineipios-guias para os sin-signos. Quali-sin-legi- signos, 0s trés tipos de fundamentos dos signos, séo, na realidade, trés aspectos inseparaveis que as coisas exibem, aspectos esses ou propriedades que permitem que elas funcionem como signos. O fundamento do signo, como 0 préprio nome diz, é 0 tipo de pro- priedade que uma coisa tem que pode habilité-la a funcionar como signo, isto , que pode habilité-la a representar algo que esta fora dela ¢ produzir um efeito em uma mente interpretadora Nesse nivel da anélise em que nossa atengao se volta apenas para o fundamento do signo, isto é, para signo em si, devernos fazer um certo esforgo consciente para ignorar todos os outros as- pectos do signo, tanto sua relacdo com o objeto como com o inter- Pretante. Como bem nos lembra Ferreira (1997), na posigéo da- ane rennet mg Pencewso muna aarticecto queles que Bem o signo, estamos inevitével e obviamente na posi- 40 de intérpretes e, portanto, estamos desempenhando 9 papel previsto em um dos niveis do interpretante dos signos que estéo sendo analisados, a saber, o interpretante dinamico. Ent:etanto, quando dizemos que devemos ignorar a relagdo do signc com 0 interpretante, queremos signiticar com isso que essa relagao ndo estd sendo tematizada nesse momento. Cabe aqui um sinal de alerta bem sutil. Quando nos reporta- mos a0 fundamento do signo, a realidade de fendmeno ¢ de signo se misturam. O que quer dizer isso? Um signo est sempre encar- nado, corporificado em uma “coisa”. Para Peirce, o mundo nao é feito de coisas, de um lado, e de signos, de outro, como se as coisas fossem materiais ¢ as linguagens, os signos, imateriais. Todo signo, segundo Peirce, est encarnado em alguma espécie de coisa, quer dizer, todo nossa mente, Por isso, todas as coisas podem funcionar ccmo sig- igno € também um fenémeno, algo que aparece & nos sem deixarem de ser coisas, Agir como signos é um dos aspec- tos das coisas ou fendmenos. Assim, as palavras que vocé Ie agora 1m seu corpo fisico no papel impresso deste livro. Imagens tém seu corpo fisico em pelfculas, papéis, telas eletronicas etc. Sons tém seu corpo fisico na vibragao do ar, ¢ assim por diante. Mesmo © pensamento mais abstrato tem uma materialidade prépria na neuroanatomia do cérebro. ‘Uma vez que 0 fundamento do signo é uma propriedade que existe nas coisas que as faz agir como signos, quando anzlisamos © fundamento que 6 0 nivel primeiro dos signos, nesse nivel os sig- nos nos aparecem como fendmenos, quer dizer, estamos ainda no dominio da fenomenologia. Atravessamos esse dominio na direcao da semiética no momento em que passamos a buscar nos fend- menos as trés propriedades que os habilitam a agir como signos: as qualidades, sua existéncia e seu aspecto de lei. Depois de analisado 0 fundamento, podemos passar para a andlise do objeto do signo. Seamoricn AnLICADS 2. Explorar 0 poder sugestivo, indicativo e representative dos signos Neste momento da anélise, devemas recordar que a relagio do signo com 0 objeto diz respeito A capacidade referencial ou nao do signo. A que o signo se refere? A que ele se aplica? O que ele denota? 0 que ele representa? Para te © signo tem dois objeto: |, temos de considerar que objeto din&nico o objeto imediato. 0 melhor caminho para comecar a analise da relagdo objetal é 0 do objeto imediato, Afinal, parece nao haver outro modo de comegar, visto que o objeto dindmico s6 se faz presente, mediatamente, via objeto imediato, este interno ao signo. © objeto imediato, como ja vimos, 6 0 modo pelo qual aquilo Que 9 signo representa esté, de alguma maneira ¢ em uma certa medida, presente no préprio signo. O objeto imediato depende, portanto, da natureza do fundamento do signo, pois é 0 fundamen- to que vai determinar o modo como o signo pode se referir ou se aplicar ao objeto dinamico que esta fora dele. Novamente aqui devemos desenvolver trés espécies de olhares. A primeira espécie de olhar é aquela que leva em consideragao apenas 0 aspecto qualitative do signo, apenas sua face de quali- signo. A apreensio do objeto imediato do quali-signo exige do con- templador uma disponibilidade para o poder de sugestio, evo- cagéo, associagéio que a aparéncia do signo exibe. Sob esse olhar, © objeto imediato coincide com a qualidade de aparéncia do signo, uma vez que qualidades de aparéncia podem se assemelhar a quaisquer outras qualidades de aparéneia, Assim, a pele aveluda- da de uma jovern mulher pode se asserrelhar & pele imaculada de um péssego. Vern dai a metafora “pele ce péssego” A segunda espécie de olhar & aquela que leva em consideracao apenas 0 aspecto existente de um signo, isto é, 0 sin-signo. Neste ca- 30, 0 objeto imediato ¢ 2 materialidade do signo como parte do uni- verso a que o signo existencialmente pertence. Aqui, 0 objeto ime- diato aparece como parte de um outro existente, a saber, 0 objeto —34— | | | | | | | | | | | | | | | PERCURSO bane 4 APLiCAiO dindmico que est fora dele. Esse é 0 caso de uma fota cujo objeto imediato esté no enquadramento ¢ Angulo especificos que aquela foto fez do objeto fotografado. Quer dizer, a imagem que aparece na foto é apenas uma parte de algo maior que a foto nao pode abracar por inteiro, A Lewweira especie de olhar que devemos dirigir ao fundamen- to do signo ¢ aquela que leva em conta a propriedade da ‘ei, o legi: signo como fundamento. Dessa forma, o objeto imediato é um certo recorte que 0 objeto imediato apresenta de seu objeto dina- mico. Esse recorte coincide com um certo estagio de conhecimen- to ou estigio técnico com que o signo representa seu ob:eto. Uma maquina fotografica lambe-lambe nao pode representar 0 objeto retratado do mesmo modo que uma sofisticada maquina Nikon do ano 2001, nem as convengées fotograficas que valiam para o pas- sado continuam a valer agora, © mode como a mulher est repre- sentada nos romances do século XIX, de Ega de Queiroz, néo é 0 mesmo com que a mulher esta representada nos romances por- ‘tugueses contemporaneos. Uma vez que no legi-signo aquilo que 0 objeto imediato repre- senta € ele préprio um signo, a tendéncia, neste caso, éa de que quanto mais tentamos nos aproximar do objeto dinamico, mais mediages vio sendo exigidas. Neste caso, so as finalidades visa- das pela anélise que fazemos que deverdo determinar até onde deve ir a regressio de signos que representam signos na direcao do objeto dinamico, © exame do objeto imediato nos remete diretamente para 0 objeto dinamico. Por isso mesmo, fica dificil pensar os dois sepa- radamehte. No entanto, a separacao imposta pela analise, que nos leva ao exame cuidadoso dos objetos imediatos do quali-sin ¢ legi signos, pode nos revelar aspectos importantes do signe que nos passariam despercebidos se fOssemos apressadamente para a de- terminagao de seu campo de referencia sem nos demorarmos na anélise do modo como esse campo de referéncia se constitui den- tro do signo. Sextomics ARLICADA Falar em objeto dindmico significa falar do modo como 0 sig- no se reporta Aquilo que ele intenta representar. O objeto dindmi- co determina signo, mas n6s 56 temos acesso aquilo que o signo representa pela mediagao do objeto imediato, interno ao signo. H4 trés modos através dos quais os signos se reportam aos seus obje~ tos dinmicos: modo icénico, o indicial ¢ simbélico. Assim como a andlise do objeto imediato depende do exame do fundamento do signo, a anélise do objeto dinamico depende do exame desses dois niveis anteriores. A andlise semidtica deve se efetivar em um crescendo. Desse modo, a base para analisar 0 aspecto icdnico do signo esté no seu furdamento e no seu objeto imediato, ambos coincidentes com as qualidades que 0 signo exibe. Uma vex que o fcone é um signo que representa seu obje- to por apresentar qualidades em comurt com ele, a nica capaci- dade referencial que o icone pode ter ¢ a de apresentar algum grau de semelhanga com as qualidades de algum objeto. Por isso mesmo, as referéncias do icone séo muito abertas, ambiguas, in- determinadas. Elas dependem do campo associative por simila- ridade que os quali-signos despertam na mente de algum intér- prete, Quando exploramos 0 aspecto icSnico do signo, devemos estar atentos ao poder sugestivo e evocative dos quali-signos, pois € desse poder que depende a possivel referencialidade dos fcones. Enquanto nos icones a referencialidade é aberta, nos indices ela é direta e pouco ambigua. A andlise da indexicalidade & a mais facil de ser conduzida, basta estar atentc para as diregdes em que o sin-signo aponta. Sin-signos dirigem a retina mental de um even- tual intérprete para os objetos dindmicos de que os sin-signos so partes. Por isso, os indices tém a forma de vestfgios, marcas, tra- 0s, e, no caso da linguagem verbal, de referéncias factuais. Dife- rentemente dos fcones que, para funcionarem como signos, depen- dem de hipotéticas relagdes de similaridade, os indices séo exis- tentes com os quais estamos continuamente nos confrontando na experiéncia vivida, Pencunso paps 4 aptrcacho Embora bem menos simples do que a andlise do aspecto indi- cial do signo, a do aspecto simbélico pode ser muito rica. Tendo sua base nos legi-signos que, na semiose humana, sda, quase sem- pre, convengées culturais, o exame cuidadoso do simbolo nos con- duz para um vasto campo de referéncias que incluem os costumes ¢ valores colctives ¢ todos os tipos de padrécs estéticos, comporta- mentais, de expectativas sociais ete Da anélise da referencialidade dos signos, passamos, entao, para 0 exame do processo interpretativo em todos 05 seus niveis. 3, Acompanhar os niveis interpretativos do signo E86 na relagao com o interpretante que o signo completa sua agéo como signo. & apenas nesse ponto que ele age efetivamerte como signo. Entretanto, quando o signo é interpretado, esse atc embute ‘0s outros dois aspectos do signa: o de seu fundamento ¢ 9 da sua relacéo com 0 objeto. Quando interpretamos signos — aligs, algo que estamos fazendo continuamente, sem descanso —, nossas interpretagées so intuitivas e no nos damos conta da camplexi- dade das relacdes que esto implicadas nesse ato. Contrariamente a isso, ao analisarmos signos, temos de tornar essas relegoes ex: plicitas, E por isso que a anélise dos interpretantes deve estar alicergada na leitura cuidadosa tanto dos aspectos envolvidos no fundamento do signo como nos aspectos envolvidos nas relages do signo com seu objeto. ‘Tais cuidados sdo importantes para que ndo fiquemes presos nas armadilhas dos esteredtipos. Pessoas inexperientes na andlise semidtica costumam chegar apressadamente a suas interpretacdes sem levar em conta 0 fundamento ¢ os objetos do signo. Quando isso se dé, pensando estar interpretando o signo, o intérprete, na maior parte das vezes, esta apenas impondo sobre o signo uma interpretagao j4 pronta extraida de um repertorio prévio, Esse tipo de interpretacdo s6 no € inteicamente arbitrério porque a intui- aye Semciica APucADA co. que esta sempre subjacente a qualquer ato interpretative, tem uma forea propria capaz de produzir iluminagées que vao além dos esterestipos. ‘Sao trés os niveis do interpretante, como foi visto no capitulo anterior, dos quais a andlise deve dar conta. O p: imediato, que diz respeito ao potencial cue o signo tem para pro- meiro nivel é 0 duzir certos efeitos, e nao outros, no instante do ato interpretativo a ser efetuado por um intérprete. Sendo interno ao signo, esse interpretante fica no nivel das possibilidades, apenas latente, a espera de uma mente interpretadora que venha efetivar, no nivel logicamente subsegiiente, o do interpretante dindmico ou atual, al- gumas dessas possibilidades. No caso de icone, essas possibilida- des sio sempre abertas, pois nada no icone é definitive, Tudo depende das cadeias associativas que o signo icdnico esta apto a provocar no intérprete, assim como depende da maior ou menor riqueza do repertério cultural do intérprete que o capacite a inferir 2S sugestées que, nos icones, costumam ser férteis. No caso dos indices, as pos ilidades interpretativas sao fe- chadas, mesmo quando se consideram os casos de indices que apontam para uma pluralidade de diregies. Por ser uma relacdo dual, na qual signo e objeto esti dinamicamente conectados, 0 potencial interpretative dos indices se reduz & ligagao existencial de um signo indicando seu objeto ou objetos. O simbolo, por seu lado, tem um potencial interpretativo incxaurivel. Todo simbolo € incompleto na medida em que sé funciona como signo porque de- termina um interpretante que o interpretaré como simbolo, assim indefinicamente. Basta um exempls: o que significava a pa- lavra “crianea”, no século XVIII, e 0 que ela significa hoje? Os sim- bolos crescem porque seu potencial para significar e ser interpre- tadas nao se esgota em nenhuma interpretagao particular. O sim- bolo ¢ um signo geral, e, para Peirce, “geral” é tudo aquilo que ne- nhum particular pode exaurir. Quando analisamos o interpretante imediato em um proceso de signos, temos de levar em consideragio o ato de que, por ser —38— r Pencunse mana aartscaco um interpretante em abstrato, potencial, o que fazemos na reali- dade, no ato da anélise, ¢ levantar, a partir do exame cuidadoso da natureza do signo, da relagao com o objeto ¢ do potencial sugesti- vo, no seu aspecto icénico, referencial, no seu aspecto indicial, e significativo, no seu aspecto simbélico, algumas das possibilidades que julgamos que o signo apresenta, Ora, quando levantamos essas, possibilidades, assim o fazemos na posigao do interpretante di- namico, isto é, na posigdo de uma mente interpretadora singular, de um intérprete particular daquela semiose especifica que esté sob nosso exame. E muito importante lembrar que, em todo ato de andlise semi- ética, sempre ocupamos a posicao légica do interpretante dindmi- co, pois analisar também significa interpretar. Uma semiose sé pode ser estudada a partir do ponto de vista do anslista. Este ponto de vista corresponde, na semiose, ao lugar do interpretante dina- mico. A diferenca que vai entre uma interpretagéo analitica e uma interpretagao intuitiva, muito embora a primeira nao exclua a segunda, esta na utilizagdo que a anélise faz. das ferramentas con- ceituais que permitem examinar como e por que a sugestao, a referéncia ¢ a significagio sfo produzidas. Saber que estamos na posigao do interpretante dinamico, ou seja, de uma interpretacdo singular € um indicador de um certo teor de humildade que deve sempre nos acompanhar, pois inter- pretacées singulares so sempre incompletas e faliveis. Mas é a consciéncia mesma da falibilidade que deve nos munir de energia © empenho para que a anilise seja to cuidadosa e escrupulosa quanto possivel, © que implica um conhecimento seguro dos con- ceitos e de sua aperacionalizacao analitica, Como contraponto para as anélises individuais, e na tentativa de evita a singularidade que Thes é propria, a ciéncia faz uso das pesquisas de campo, pois estas tém por funcao avaliar que efeitos um dado proceso de signos est produzindo em um determinado universo de pessoas. Nao obstante a importancia desse tipo de pes- quisa, ndo se pode esquecer de que seus resultados se baseiam em 30 SeMIOTICA AMLECADA quantificagdes de atos interpretatives meramente intuitivos. Assim sendo, o que se ganha em coletivizagao da interpretagao perde-se em acuidade analitica. A importancia dessa acuidade para se co- nhecer o potencial comunicativo de um de:erminado processo de signos advém do fato de que, quando analisamos signos, estamos diante de um processo interpretative que tem por objeto um outro processo que também tem natureza comunicativa e interpretativa Isso posto, cumpre ainda ressaltar que, se o interpretante ime- diato € um interpretante abstrato, meramente potencial, a rigor, quando, no ato de analise, falamos sobre o interpretante imediato, com base naquilo que os varios aspectos anceriormente analisados da semiose nos permitiu perceber, jé estamos antecipando as con- clusées do interpretante dinamico, quer dizer, j4 estamos nos colo- cando na pele de um intérprete singular com sua interpretagdo particular. Isso é inevitavel. De todo modo, a diferenga que vai entre o interpretante imediato ¢ o dindmico, no proceso analitico, est no respeito que se deve ter, na etapa do interpretante imedia: to, pela objetividade semiética (ver Ransdell 1979), quer dizer, 0 respeito pela potencialidade do signo para sugerir, indicar e sig- nificar, potencialidade esta que esta inscrita no préprio signo e da ar apenas uma gama. Quando, na andlise de uma semiose, chegamos na etapa do interpretante dindmico, estaremos explicitaade os niveis interpre- tativos que as diferentes facetas do signo e‘etivamente produzem em um intérprete, no caso, o préprio analista, Os niveis interpre- qual o ato interpretativo vira atu tativos efetivos distribuem-se em trés camadas: a carnada emo- cional, ou seja, as qualidades de sentimento e a emogao que 0 signo ¢ capaz de produzir em nés; a camada energética, quando 0 signo nos impele a uma acao fisica ou puramente mental; e a ca mada légica, esta a mais importante quando o signo a produzir cognicao. Se o intérprete ndo tiver internalizado a regra inter pretativa para guiar uma determinada interpretacao, pode-se fica sob a dominaneia do nivel energético ou mesmo do puramente emativo. Esse é 0 caso muito comum na misica, Os intérpretes que Pasctaso pane a spticagto nao tém conhecimento musical ficam sob o dominio da irterpre- tante emocional ou do energético, quando dangam sob efeito da misica ou fazem algum esforgo para compreender scus pressu postos, ndo atingindo do interpretante logico nada além da simples constatagéio de que se trata de algum tipo de misica: popular, clas- sica, instrumental, cantada ete, Quanto ao interpretante final, este néo pode ser nunca efeti- vamente aleancado por um intérprete particular. Como ja afirmei em um outro contexto (Santaella 199Sa: 99), leitores desavisados costumam tomar 0 termo ‘final’ ao pé da letra, confundindo-o com 0 significado empirico, estético e definitive do signo. Ao con- trério, “final” refere-se ai ao teor coletivo da interpretagdo, um li. mite ideal, aproximavel, mas inatingivel, para © qual os interpre- tantes dindmicos tendem. 4, Questées para memorizar ‘Antes de terminarmos este roteiro, devem ser assinalados alguns pontos essenciais que o percurso pressupée. Esses pontos foram apresentados por Ferreira (1997) com base em alguns cursos sobre metodologia semistica que ministrei na Puc-SP. Dada a releviincia desses pontos para quem pretende analisar processos de signos, néo custa aqui colocé-los novamente em destaque. # A caracteristica fimdamental do percurso de uma andlise semiética € que seus passos buscam seguir a prépria légica interna das relagdes do signo, Essa légica, alids, j4 esta ex- plicitada nas numeragdes de 1, 2 ¢ 3 que seguem a légica das categorias. Assim, o fundamento do signo, em nivel 1, deve ser analisado antes da relagao do signo com c objeto, nivel 2. O objeto imediato, nivel 2.1, deve anteceder o exame do objeto dinamico, nivel 2.2, e assim por diante. E claro que, na percepgao, todos esses niveis sempre se misturam, mas o percurso analitico, que é um percurso autocontrola- SemioTica APLICADA do, ¢ tanto quanto possfvel autocriticado, deliberadamente estabelece passos para a andlise + A semiose, de acorde com Peirce, é um processo ininter- rupto, que regride infinitamente em direc ao objeto dina- mico ¢ progride infinitamente em direc&o ao interpretante final, Assim sendo, quando realizamos uma anilise semisti- ca, precisamos estabelecer alguns cortes arbitrarios, sob o ponto de vista externo, mas internamente necessarios: como € onde colocar um limite no objeto din&mico? As neces- sidades internas que mencionamos referem-se as necessi- dades que so ditadas pelo préprio objeto analisado, sob o ponto de vista em que esté sendo analisado. Os limites devem ser ditados pelas exigéncias internas da andlise. © que, afinal, quere- mos revelar com a andlise? Que objetivos ela visa atingir? B essa pergunta que deve sempre estar norteando até onde se vai na pesquisa do objeto dinamico e onde se deve parar 0 processo interpretativo. © O signo é miiltiplo, variével e modifica-se de acordo com o olhar do observador que, na semiose analitica, na sua po- sigdo de interpretante dinamico, também é signo em did- logo com o signo que esté sendo interpretado. Mas é preciso lembrar que o signo tem uma autonemia relativa em re- Jacao ao seu intérprete. Seu poder evocativo, indicative signilicativo no depende inteiramente do intérprete. Este apenas atualiza alguns niveis de um poder que ja est no signo. E por isso que analisar semioticamente significa em- impostos a regressao do objeto dinami preender um didlogo de signos, no qual nés mesmos somos signos que respondem a signos. + Nenhum signo pertence exclusivamente a um tipo apenas Tconicidade, indexicalidade ¢ simbolicidade séo aspectos Presentes em todo e qualquer processo signico. 0 que h4, nos pracessos signicos, na realidade, é a preponderancia de um desses aspectas sobre os outros. como sa os casos da PERcURSO nuR4 A WHICACAO preponderancia do icone na arte, do simbolo em um dis- curso cientifico, do indice nos sinais de transito « Nao h4 nenhum critério aprioristico que possa infalivel- mente decidir como uma dada semiose funciona, pois tudo depende do contexto de sua atualizacio e do aspec:o pelo qual ela é observada e analisada, Enfim, néo ha receitas prontas para a andlise semiética. Ha conceitos, uma légica para sua possivel aplicac4o. Mas isso ndo dispensa a neces- sidade de uma heurfstica por parte de quem analisa e, sobretudo, da pacigncia do conceito ¢ da disponibilidade para auscultar os signos e para ouvir o que eles tém a dizer. Quando analisamos semioticamente, estamos sempre na posigdo do interpretante dindmico, de um intérprete singu- lar e, por isso mesmo, falivel. Isso 6 aumenta nossa respon- sabiljdade, pois toda semiose tem uma objetividade semisti- ca que deve ser respeitada. Quanto as andlises que se seguirdo neste livro, cumpre alertar 0 leitor para o fato de que nem todos os conceitos semidtices apre- sentados neste € no capitulo anterior aparecem em todas as andli- ses, Que conceitos deve ser acionados e quio longe se vai no uso deles é algo para ser decidido de acordo com as exigéncias daqui- Jo que esta sendo analisado. Assim sendo, algumas andlises se- guem o roteiro com certa preciso, outras fazem um uso mais livre dos conceitos. Matisse: uma semiética da alegria A. tistise a seguir fot iniiada no contexto de um curse de pos- graduagho interinstitucional firmado entre © programa de estudos pés-graduados em Comunicagdo e Semistica da Puc-SP ¢ © Centro de Artes da Universidade Federal do Espirito Santo, Due rante 0 segundo semestre de 2000, ministrgi a disciplina Semistica Peirceana. Fazia parte da programagao final da disciplina a rea~ lizagéo de andlises de processos de signos voltadas para a apli- cacdo dos conceitos trabalhados durante 0 curso, A escolha de uma obra de Matisse como objeto de andlise foi do grupo de pés- graduandos composto por Joyce Brandéo Ferreira, Miguel I. da Silva Neto, Maria Auxiliadora de C. Corassa, Neima M. P Rocha e Neusa M. Mendes. Assim sendo, a andlise aqui expandida tomou como base a primeira abordagem que foi feita por esse grupo € as discusses que foram realizadas em aula. Por se tratar de wma pro- posta didatica, @ anélise procura seguir passo a passo 0 roteiro apresentado no Capitulo 2 deste livre. 1. Apresentagao de Matisse Henri Matisse (1869-1954), considerado um dos mais importantes pintores franceses do século XX, foi um dos lideres do movimento SeOTIeA APLICADA fanvista, Foi eleito membro da Associagio Nacional de Belas Artes em 1896, Era um antagonista do pontilhismo e evitou seguir a escola dominante do seu tempo, 0 cubismo, mantendo-se fiel ao estilo fauvista, no sentido de cores dramaticamente expressivas, como € 0 caso dos seus interiores vermelhos. 2. Experiéncia fenomenolégica e fundamentos signicos da pintura ohn Abra Interior Vermelho, natureza-morta sobre mesa azul, éle tela, tem a dimensfo de 116x89 cm. (ver Figura 6.1). Foi pintada em 1947; pertence a série Interiores Vermethos de Matisse ¢ se enquadra no movimento fauvista. Antes de dar inicio analise propriamente dita, devemos nos deixar afetar pela experiéncia fenomenoligica. Abrir os olhos do espirito ¢ olhar para a pintura, como na lenda chinesa em que o observader demorou-se tanto ¢ tao profundamente na contem- plagao da paisagem de um quadro, que, de repente, penetrou den- tro dela e se perdeu nog seug interiorgy, De acordo com as trés categorias, sdc trés as fases dessa ex- periéncia ® Disponibilidade contemplativa, deixar abertos os poros do olhar; com singeleza e candidez, impregnar-se das cores, li- nhas, superficies, formas, luzes, complementaridades e con- trastes; demorar-se tanto quanto possivel sob © dominio do puro sensivel. © Observar atentamente a situagéo comunicativa em que a pintura nos coloca; a experiéncia de estar aqui € agora diante de algo que se apresenta na sua singularidade, um existente com todos os tracos que Ihe so particulares, © Generalizar o particular em fungao da classe a que ele per- tence. Neste nivel, nao se trata mais apenas de qualidades apreendidas, nem de singularidades percebidas, mas de en- quadramentos do particular em class s gerais, —s6— Manisse: usa seuiorey pxazeans Figura 6.1. Henri Matisse, intévieur rouge, nature morte sur la table bleue (1947), Kunstsammlung Nordtheinwestalen, Diisseldort foto: Walter Klsin, 87 Seqnomics ArticaDa Realizada essa experiéncia, com todo o turbilhao sempre confu- 80 de idéias que ela costuma provocar, estamos aptos a dar inicio & atividade mais propriamente analitica. Comecamos pelo fundamen- to do signo, Que a pintura é um signo nao deve haver diividas, Bla é algo que representa algo, sendo capaz de produzir efeitos interpre- tativos em mentes reais ou potenciais, Essas con Ses, toda pintur preenche, Essa, no menos do que quaisquer outras. O que importa, nd entanto, discernir € © modo como esta pintura particularmente representa o que professa representar e, em fungdo disso, quais efeitos esta habilitada a produzir em possiveis intérpretes. © primeiro fundamento do signo esté nas qualidades que ele exibe. Para sermos figis A apreensao dos quali signos, devemos veementemente evitar uma transferéncia imediata para os indices. Diante de uma pintura como essa, a primeira coisa que o obser- vador costuma fazer ¢ enxergar 0s indices: “ali est uma mesa, ali uma janela, 1d um jardim, aqui um vaso" etc. Néo hd caminho mais veloz para se perder os quali-signos do que esse. 0 exereicio de apreensio dos quali-signos que deveria ser limpidamente simples, torna-se 0 mais dificil porque nossa cabeca se coloca na frente dos sentidos e como que Ihes apaga a visio. Para evitar esse risco sem- pre iminente, temos de procurar olhar com olhos novos. Retardemos também a nomeagao, “isto é aquilo”, ‘aquilo & aquilo” ete., pois esse jd seria o universo des legi-signos que retrai nossa sensibilidade das simples qualidades. Fiquemos no plano puramente sens6rio e sensivel, como uma crianga que ainda nao é capaz de reconhecer figuras. O que temos ciante de nés? Antes de tudo, a exuberfncia da cor, ckapada e pura, um ver- dadeiro hino visual de exaltagao da cor: vermelho em contraste vibrante com o amarelo, complementados pelo azul e verde, tudo, além de fundos brancos aqui ¢ ali, iluminando 0 conjunto. Linhas negras sobre o vermelho rebatem nas linhas vermelhas sobre o amarelo. Linhas retas contrastam com linhas curvas € com tracos diagonais negros em ziguezague, elemento mais marcante na pintura depois das cores dominanies. A oposigéo entre as linhas —ss— Mansse: via seurdnce Du anecaLs mais duras dos retangulos dentro de retangulos e as linhas sinuo- sas dos circulos dentro de cireulos, especialmente o grande circu- lo azul que salta & frente no conjunto, € também uma ofosicéo entre o geométrico e 0 orgdnico, entre os quais destaca-se a pura gestualidade das linhas ziguezagueantes negras, Eun uivia a essas vores © linhas, rota urn feixe de p coloridas com énfase no verde na metade superior direita da tela. A gestualidade nos tracos e pinceladas salta 3 vista A pintura é pura superficie, A ruptura com a linha do hori- zonte apaga qualquer ilusdo de profundidade de campo e cria um Jogo de planos no qual se destaca o plano superior a direita ocu- pado pelo grande retangulo e o plano inferior & esquerda, ocupa- do pelo grande circulo, numa composigao equilibrada de volumes € pesos. A continuidade do fundo vermelho e das linhas diagonais em ziguezague tomam conta de todos os planos, penetrando, incli- sive, dentro do retangulo dominado pelo verde. Esses ziguezagues, que tudo atravessam, criam uma atmosfera de flutuagao. Os cam- weladas pos de referéncia do olhar hesitam ¢ se misturam entre os planos pictéricos em superficie chapada. Esses so 0s quali-signos, Evidentemente, ao serem descritos em linguagem verbal, perdem o sabor da mera apreensdo senséria que é mais coetinea com o universo das qualidades visuais. Neste nivel da andlise, ainda ngo fazemos referéncia a quaisquer figuras ou dquilo que elas podem indicar, pois isso é uma fungao do indice. O segundo fundamento do signo est no seu caréter de exis- tente, osin-signo. Tem-se aqui a realidade do quadro como quadro. Importantissimo neste momento € nos darmos conta de cue nao estamos, de fato, diante de um quadro, mas de uma reproducéo de um quadro, Essa é a realidade existencial do que se apresenta diante de nés. Esse aspecto é muito importante para quem estuda ignos que so arte, porque um sin-signo quadro apresenta qual diferentes dos quali-signos de um sin-signo reprodugdo, Quando © suporte se modifica, mesmo em se tratando de uma reproducao, 0s quali-signos necessariamente também se modificam —29- SeMICTICA APLICADA Para a pintura, como objeto tinico que &, o quali-signo é subs- tancial. Por isso, a exigéncia de se trabathar com o original nao é meramente formal. Em uma reprodugao, as cores adquirem uma Pigmentagdo distinta da original. Quando passamos de um quadro a éleo para uma reproducao em papel, perde-se a textura, a marca do gesto. Perde-se, além do mais, a dimensio, O tamanho de nm. quadro é um ato de escolha do artista. As reprodugdes também perdem esse quali-signo. As qualidades que se transformam devem ser levadas em conta porque quali-signos distintos produzirao efeitos, impresses de qualidade também distintas Isso posto, se estivéssemos diante do proprio quadro, o si signo seria sua realidade particular de um quadro singular, com uma dimensio de 116x89 cm., devendo-se .evar em consideracéo também 0 lugar que ocupa, seu ambiente ce insergdo, enfim, seu contexto existencial: as paredes de wm museu, de uma habitagao ete 0 terceiro fundamento do signo esta nos seus aspectos de lei Neste caso, esse sin-signo particular pertence & classe das pin- turas. No universo das pinturas, pertence 4 classe de pinturas a 6leo. Enquadra-se ainda na classe das pinturas modernas ¢, no interior dessa classe, no género fanvista, Além disso, enquadra-se na tradicgao das naturezas-mortas ¢ em um certo padréo de pin- turas em telas retangulares, verticais, Sob esses aspectos, esse quadro particular é um sin-signo de tipo especial, quer dizer, € uma réplica qu: se conforma a uma série de legi-signos, 0 quadro, portanto, é um exemplar das leis que nele se corporificam. 3. Nos intersticios da sugestao e da sinalizacao Examinados os fundamentos, © caminho esté aberto para a andlise dos tipos de objetos a que esses fundamentos podem se reportar, Dependendo da natureza do fundamento, também seré diferente o tipo de relacie do signo com seu objeto dinamico. A via para o exa == -Marsse: Ula sexaorics aaatecaia me desses tipos de relagdes, que podem ser icénicas, indiciais ou simbélicas, est4 no objeto imediato do signo, a saber: no modo como 0 quali-signo sugere seus objetos possiveis, no modo como 0 sin-signo indica seus objetos existentes e, por fim, no modo como © legi-signo representa seu objeto. A profusio de quali-signos acima mencionada, e1 si asin, néo seria capaz de representar nada fora dela se os tracos, as nhas, 0s contrastes entre as cores nao sugerissem, como € 0 caso nessa pintura, algumas figuras que poderiam existir e serem perce- bidas fora da pintura: mesa, vaso, magas, quadro, porta, jerdim, chéo, parede, B certo que as sugestdes nada tém de realistas. Sao. vagas, reduzidas ao tracado minimo necessario para terem algum poder de referencia, isto é, para funcionarem como imagens, no sentido peirceano, signos que representam seus objetos por apre- sentarem semelhangas de aparéncia com eles. Entretanto, as imagens aqui so bastante ambiguas na sua referencialidade, A porta poderia ser uma janela, $6 nao o € devi- do ao recurso sutil da continuidade do chao que a atravessa na diregao de fora. Mas esse chao s6 se define como tal em oposigio a parede que, por sua vez, se define como parede devido a um outro recurso ainda mais sutil, 0 de um cfrculo amarelo no alto & esquerda que bem pode ser um quadro ou algo similar. Sobre a mesa repousam 0 que devem ser magas sobre algo indefinivel: uma forma de ameba que pode ser uma bandeja, toalha ou uma frn- teira, impossivel de decidir, Enfim, todos os elementos ficam reduzidos a formas muito elementares, quase infantis, ndo fosse a inteligéncia visual dos recursos sutis utilizados na composigao do todo. A ambigitidade referencial néo é sem conseqiiéncias. Uma vez que 0 poder re- presentativo fica no nivel de pura sugestao, a pintura acata por chamar atengao para si mesma como pintura, para aquilo que faz dela uma pintura: cores, tracos, linhas, volumes, contrastes, tex- turas etc. Isto é, chama a atencdo para suas qualidades internas, para 0 seu lado puramente icénico, pois tudo o que diz respeito or Semionca AMLICAD ao poder de referencialidade das imagens, o reconhecimento € identilicagao daquilo a que ela se refere j4 desliza para o seu lado indicial. Ao dificultar 0 reconhecimento € identificagao, ao suspendé- Jos, essa pintura cria uma demora icénica. E claro que pessoas esquecidas do icoue isu iiuediataneute dizer: “ali esté uma mesa, 4 esta uma porta”. De todo mado, mesmo aos esquecidos, as qua- lidades internas dessa pintura nao podem passar despercebidas. ‘Mas ao mencionarmos o intérprete j4 passamos para o nivel do in- terpretante. Voltemos, pois, para o indice. Pera analisar o aspecto indicial temos de nos fazer a seguinte pergunta: mesmo sendo 0 aspecto icOnico muito proeminente, em que medida essa pintura ainda guarda residuos de figuratividade, quer dizer, em que medida ela ainda é capaz de indicar objetos que estdo fora dela e que ela retrata? Quando examinado com atengao, o aspecto indicial dessa pin- tura também se revela muito rico, pois ele se distribui em dois niveis: * a indexicalidade interna a prépria composicao; ‘a indexicalidade externa, a saber, o peder indicativo das ima- gens. No nivel interno, o chao que continua stravés da porta indicia que se trata de uma porta. 0 quadro ou algo similar, situado no alto do canto esquerdo, indicia que se trata de uma parede, 0 vaso sobre a mesa indicia que se tem ai uma mesa, Sem 0 vaso, a figura da mesa ficaria ainda mais ambigua. A porta indicia uma divisio entre o inte- rior e o exterior no qual se situa um jardim, Enfim, como ocorre na mitisiea, a composigéo, neste caso visual, se organiza em fungao de um processo de indexicalidade interna dos seus elementos. Ainda como indexicalidade interna tem-se a relagao da pintura com seu titulo. Este funciona como um fndice de que 0 quadro per- tence a uma série realizads pelo pintor, a dos interiores vermelhos. —o2— MATISSE UNA SEOOTICA De atzA No nivel da indexicalidade externa, as figuras, embora epenas de modo evocativo, sinalizam uma sala (interior) com objetos que lhe so préprios: mesa, vaso, quadro, chao, parede, porta, jardim (exterior). Os tracos indicam a energia do gesto do artista; o modo de compor traz as marcas de autoria de Matisse; as cores indicam © periode diurno; as flores indicam 9 estagio do ano, as macs indicam outras mags em um outro quadro nao menos famoso, co- mo veremos mais 4 frente na andlise dos interpretantes. O interior também indica outras pinturas de interiores, muitas delas verda- deiros documentos de costumes e perfodos histéricos, inte:iores, aliés, que Matisse universalizou nessa pintura, reduzindo o interior @ um puro jogo composicional de interpenetracao do exterior no interior e vice-versa, Como se pode ver, 0s indices séo sempre muito eloqtentes. Basta atentar para eles Ja os simbolos dizem respeito, em primeiro lugar, aos padrées pictéricos que séo af utilizados, no casa, padrées da arte moderna, evidentemente com a marca siti-generis de Matisse, Aquilo que se repete regularmente em todos 0s quadros de Matisse, e que torna possivel reconhecer que se trata de uma pintura dele, também acaba por simbolizar Matisse, ou seja, o pintor erigido como um dos simbolos da arte moderna, um de seus maiores expoentes. © simbolo também diz respeito aos elementos culturais, as convengdes de época que a pintura incorpora. Entretanto, é pre- ciso lembrar aqui que os elementos culturais ¢ as convengses 56 funcionam simbolicamente para uzn interpretante. Dependendo do lipo de intérprete, dependendo especialmente do repertorio cul- tural que o intérprete internalizou, alguns significados simbélicos se atualizarao, outros néo. Desse modo, os aspectos simbélicos so mais propriamente examinados no momento da andlise do inter- pretante dinamico, quando a autora desta anélise assume explici- tamente 0 papel que vem desempenhando desde o inicio da ané- lise, quer dizer; © papel de interpretante dinamico do processo de signo que vem sendo examinado. Antes disso, porém, fagamos uma sintese dos objets imediatos e dinamicos dessa pintura. —93 Sexrortca AricADA 4. Os objetos do Interior Vermetho No seu aspecto icdnico, o objeto imediato dessa pintura define-se através do modo muito sui-generis com que Matisse reinterpretou 6 tema dos interiores e da natureza morta, nas qualidades pict6ri- cas especificas que ele acionou para isso e na ambigiiidade refe- rencial das imagens. No seu aspecto indicial, o objeto imediato reside no poder de referencialidade das imagens. Hi, nessa piatura, uma espécie de luta entre a ambigitidade iconica, de um lado, e a referencialidade indicial, de outro, Essa luta resulta em um equilibrio entre ambas as partes, Hai uma referencialidade, ndo se pode negar, mas essa referencialidade é hesitante. No seu aspecto simbélico, 0 objeto imediato diz respeito aos padrées pictéricos pertencentes & arte mode:na de que o pintor fez uso, As rupturas com a tradigao pictérica ocidental, levadas a efeito pela arte moderna, acabaram por criar novos tipos de convengées, tais como a tela-superficie, a gestualidade marcante das pinceladas € dos tragos, os paralelismos entre os planos pictéricos ete, © objeto dinamico dessa pintura é, enfim, aquilo a que a pin- tura se reporta, Mesmo que de maneira difusa, as imagens indicam uma sala com objetos, um jardim, visto através de uma porta aber- ta, e, dentro da sala, uma natureza-morta. Neste aspecto, 0 quadro indica toda uma tradicéo pictérica de naturezas-mortas. O contex- to dessa pintura, muito mais do que ser uma possivel sala retrata- da pelo artista, € 0 contexto da histria da pintura, especificamente da histéria das naturezas-mortas. Tanto é assim que pouco impor- ta se o ambiente retratado existiu de fato, ou se foi uma projecao da imaginagéo do artista. Este quadro’ nao professa representar um ambiente determinado, documentar esse ambiente. Ao con- trario, esté na realidade dialogando com a propria pintura, Neste Ponto, entretanto, ja estamos introduzindo elementos que fazem parte do repertério de quem esta analisando essa pintura ¢ que ocupa, nesta semiose, a posigao de objeto dinamico. Passemos, assim, para a face dos interpretantes, 04 -Marsse: una senacrica baat 5. Os efeitos interpretativos do Interior Vermelho © primeiro nivel do interpretante € 0 imediato, a saber: todos os efeitos que 0 signo est apto a produzir no momento em que encontrar um intérprete. Que potencial interpretativo essa pintura tem? Ha nela, sem diivida, uma predominancia do sensério sobre © documental e 0 simbélico. A exuberancia das cores, sua exal- tagdo, esta destinada a produzir uma exultacao do olhar, um certo efeito de alegria visual, leveza, flutuagao, que, aliés, se constitu em marca de identidade de Matisse. Por isso mesmo, quando 0 seu processo interpretativo se efetivar, nele tender a dominar a inter- pretante dinamico de nivel emocional. Aquilo que a audico de uma miisica como a de Mozart produz no ato da escuta, essa pin- tura esté fadada a produzir no olhar. ‘Também produzira uma hesitaco quanto & referencialidade das figuras e A composi¢e como um toda. Nao ha como evitar essa hesitagéo. Dela resulta a demora, a suspensio perceptiva do observador. Percepgao que devera oscilar no jogo de planos que essa pintura realiza: o exterior que avanga para a frente, invadin- do 0 interior, 0 que cria a sensagéo de um quadro dentro do quadro, pois a porta é também uma espécie de quadro. Devido & essa suspensio de uma percepgao automatizada, nessa pintura existem elementos para convocar 0 observador a entrar tatimente no ambiente. Nesse nivel ¢ 0 interpretante dindmico energético que entrara em acéo. No nivel do interpretante dindmico, na sua subdivisao do in- terpretante légico, as regras interpretativas, os habitos associativos que 0 intérprete acionard dependem do repertério do intérprete, ou melhor, dependem da experiéncia colateral que esse intérprete jd teve com 0 campo contextual do signo, dependem dos conheci- mentos histéricos e culturais que j4 internalizou. Assim sendo, alguns intérpretes poderdo perceber a intertextualidade dessa pin- tura especialmente com a natureza-morta de Cézanne, cujes s marcaram a histéria da pintura para sempre. Poderao —9s SemiSrica APuCADA perceber também a fungao metalingtiistica dessa pintura no ques- tionamento que ela promove, usando de meios estritamente pic- X6ricos, das formas de representagao pictiricas do quadro-janela ‘na pintura ocidental. Nesse nivel do interpretante l6gico, essa pintura foi feita para ser vista por quem conhece arte, particularmente a hist6ria da arte moderna. Sem isso, o observador podera ticar apenas no nivel do interpretante emocional, exatamente come acontece na miisica. Os leigos ouvem mitsica no nivel do interpretante emocional, enquan- to 08 especialistas avangam até 05 mais variados aspectos do inter- pretante I6gico que serao tantos mais quanto mais amplo for 0 repertério de conhecimentos do intérprete, E muito dificil falar sobre o interpretante imediato, pois ele um interpretante abstrato. Trata-se do potencial do signo para sig- nificar © que vier a significar ao encontrer seus intérpretes. Por- tanto, ao falar do interpretante imediato, com base naquilo que os varios aspectos ja analisados da semiose nos permitiram perceber, J fazemos previsées quanto ao interpretante din&mico, quer dizer, quanto Aquilo que o signo provavelmente peoduzir como efeito no encontro com seus intérpretes. Isso é poss vel porque o potencial significativo do signo tem uma objetividade que € propria do signo, ‘que depende de sua constitui¢ao como signo, Por isso mesmo, quando falamos do interpretante imediato ja estamos falando a partir da posigao do interpretante dinarhico, Posigao que inevitavelmente desempenhamos quando fazemos uma andlise semistica. Quer dizer, desde > principio, aquele que faz uma andlise semistica a faz assumindo necessariamente a posigao do interpretante dinamico daquela semiose especifica Isso significa que 0 analista est necessariamente implicado na andlise que realiza. Nao se deve entender com isso que a anilise esté fadada a submergir na mera subjetividade, pois o percurso da semiose, que comecou.no fiandamento do signo avangando até 0 interpretante, segue uma légica que obriga o analista a se despren- der de una visdo puramente subjetiva $5 MATISSE: Ui SEMIOTICA 94 ALEGRIA Por fim, 0 interpretante final é 0 interpretante em devir: toda a admiracéo e gratificacao ao olhar que essa pintura ainda poderd despertar no futuro. O que sera dela no confronto com os desen- volvimentos que a arte tiver no futuro? Como a estarao sentindo, como estarao reagindo a cla ¢ valorizando-a daqui para a frente? Por isso mesmo, o interpretante final é um interpretante em aber to. Por estarem no mundo, por fazerem parte dos designios da vida, os efeitos que os signos poderao porventura produzir no seu devir sho tio enigmiticos quanto proprio desenrolar da vide.

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