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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


2001. 5ª ed., traduzido do original alemão Kritik der reinen Vernunft por Manuela Pinto
dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.

Introdução

I – Da diferença entre conhecimento puro e conhecimento empírico

(...) todo o nosso conhecimento começa pela experiência (...)

Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele
derive da experiência.

juízos a priori (...) não aqueles que não dependem desta ou daquela experiência, mas
aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos
conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico se mistura. (...) a
proposição, segundo a qual toda a mudança tem uma causa, é uma proposição a priori,
mas não é pura, porque a mudança é um conceito que só pode extrair-se da experiência.

II – Estamos de posse de determinados conhecimentos a priori e mesmo o senso


comum nunca deles é destituído

(...) se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária,
estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for
derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição
necessária, então é absolutamente a priori. (...) a experiência não concede nunca aos
seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e
comparativa (por indução) (...) se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer
dizer, de tal modo que nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da
experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é, assim,
uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a
validade da maioria (...) Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence,
essencialmente, uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular
do conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e
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rigorosa universalidade são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são
inseparáveis uma da outra.
(...) há realmente no conhecimento humano juízos necessários e universais, no mais
rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori. (...) basta volver os olhos para todos os
juízos da matemática (...)

III – A filosofia carece de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e


a extensão de todo o conhecimento a priori

É precisamente em relação a estes conhecimentos, que se elevam acima do mundo


sensível, em que a experiência não pode dar um fio condutor nem correção, que se
situam as investigações da nossa razão, as quais, por sua importância, consideramos
eminentemente preferíveis e muito mais sublimes quanto ao seu significado último, do
que tudo o que o entendimento nos pode ensinar no campo dos fenômenos. (...) Estes
problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, a liberdade e a imortalidade e a
ciência que, com todos os seus requisitos, tem por verdadeira finalidade a resolução
destes problemas [e] chama-se metafísica. O seu proceder metódico é, de início,
dogmático (...)
(...) quando se ultrapassa o círculo da experiência, há a certeza de não ser refutado pela
experiência. (...) A matemática oferece-nos um exemplo brilhante de quanto se pode ir
longe no conhecimento a priori, independente da experiência. É certo que se ocupa de
objetos e de conhecimentos, apenas na medida em que se podem representar na
intuição. Mas facilmente se deixa de reparar nesta circunstância, porque essa intuição
mesma pode ser dada a priori e, portanto, mal se distingue de um simples conceito
puro.

[IV] – Da distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos

(...) os juízos (os afirmativos) são analíticos, quando a ligação do sujeito com o
predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa ligação é pensada sem
identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam igualmente
denominar-se juízos explicativos; os segundos, juízo extensivos; porque naqueles o
predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos

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conceitos parciais, que já nele estavam pensados (embora confusamente); ao passo que
os outros juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um predicado que
nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer decomposição.
Quando digo, por exemplo, que todos os corpos são extensos, enuncio um juízo
analítico, pois não preciso de ultrapassar o conceito que ligo à palavra corpo para
encontrar a extensão que lhe está unida; (...) Em contra-partida, quando digo que todos
os corpos são pesados, aqui o predicado é algo de completamente diferente do que
penso no simples conceito de um corpo em geral. A adjunção de tal predicado produz,
pois, um juízo sintético.
Os juízos de experiência, como tais, são todos sintéticos (...) antes de passar à
experiência já possuo no conceito todas as condições para o meu juízo; basta extrair-lhe
o predicado segundo o princípio de contradição para, simultaneamente, adquirir a
consciência da necessidade do juízo, necessidade essa que a experiência nunca me
poderia ensinar. (...) sobre a experiência que se funda a possibilidade de síntese do
predicado do peso com o conceito de corpo, porque ambos os conceitos, embora não
contidos um no outro, pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo
contingente, como partes de um todo, a saber, o da experiência, que é, ela própria, uma
ligação sintética das intuições.
Ora é sobre estes princípios sintéticos, isto é, extensivos, que assenta toda a finalidade
última do nosso conhecimento especulativo a priori, pois os princípios analíticos sem
dúvida que são altamente importantes e necessários, mas apenas servem para alcançar
aquela clareza de conceitos que é requerida para uma síntese segura e vasta que seja
uma aquisição verdadeiramente nova.

[V] – Em todas as ciências teóricas da razão encontram-se, como princípios, juízos


sintéticos a priori

Os juízos matemáticos são todos sintéticos. (...) uma proposição sintética pode, sem
dúvida, ser considerada segundo o princípio de contradição, mas só enquanto se
pressuponha outra proposição sintética de onde possa ser deduzida, nunca em si própria.
Antes de mais, cumpre observar que as verdadeiras proposições matemáticas são
sempre juízos a priori e não empíricos, porque comportam a necessidade, que não se
pode extrair da experiência.

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No conceito de uma soma de 7 + 5 pensei que devia acrescentar cinco a sete, mas não
que essa soma fosse igual ao número doze. A proposição aritmética é, pois, sempre
sintética, do que nos compenetramos tanto mais nitidamente, quanto mais elevados
forem os números que se escolherem, pois então se torna evidente que, fossem quais
fossem as voltas que déssemos aos nossos conceitos, nunca poderíamos, sem recorrer à
intuição, encontrar a soma pela simples análise desses conceitos.
Do mesmo modo, nenhum princípio de geometria pura é analítico.
A ciência da natureza (physica) contém em si, como princípios, juízos sintéticos a
“priori”.
Na metafísica, mesmo considerada apenas como uma ciência até agora simplesmente
em esboço, mas que a natureza da razão humana torna indispensável, deve haver juízos
sintéticos a priori; por isso, de modo algum se trata nessa ciência de simplesmente
decompor os conceitos, que formamos a priori acerca das coisas, para os explicar
analiticamente; o que pretendemos, pelo contrário, é alargar o nosso conhecimento a
priori, para o que temos de nos servir de princípios capazes de acrescentar ao conceito
dado alguma coisa que nele não estava contida e, mediante juízos sintéticos a priori,
chegar tão longe que nem a própria experiência nos possa acompanhar.

VI – Problema geral da razão pura

Ora o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são
possíveis os juízos sintéticos a priori?
No que respeita à metafísica, pelo seu escasso progresso até hoje realizado e porque não
pode dizer-se de nenhuma até agora apresentada que tenha alcançado o seu propósito
essencial, há motivo bastante para se duvidar da sua possibilidade.
(...) a metafísica, embora não seja real como ciência, pelo menos existe como disposição
natural (metaphysica naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias,
que não pela simples vaidade de saber muito, prossegue irresistivelmente a sua marcha
para esses problemas, que
não podem ser solucionados pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da
experiência. Assim, em todos os homens e desde que neles a razão ascende à
especulação, houve sempre e continuará a haver uma metafísica. (...) como é possível a
metafísica enquanto disposição natural? ou seja, como é que as interrogações, que a

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razão pura levanta e que, por necessidade própria, é levada a resolver o melhor possível,
surgem da natureza da razão humana em geral?
(...) não podemos dar-nos por satisfeitos com a simples disposição natural da razão pura
para a metafísica, isto é, com a faculdade pura da razão, da qual, aliás, sempre nasce
uma metafísica (seja ela qual for); pelo contrário, tem que ser possível, no que se lhe
refere, atingir uma certeza: a do conhecimento ou ignorância dos objetos, isto é, uma
decisão quanto aos objetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou
incapacidade da razão para formular juízos que se lhes reportem; consequentemente,
para estender com confiança a nossa razão pura ou para lhe pôr limites seguros e
determinados. Esta última questão, que decorre do problema geral acima apresentado,
poderia justamente formular-se assim: como é possível a metafísica enquanto ciência?
A crítica da razão acaba, necessariamente, por conduzir à ciência, ao passo que o uso
dogmático da razão, sem crítica, leva, pelo contrário, a afirmações sem fundamento, a
que se podem opor outras por igual verossímeis e, consequentemente, ao cepticismo.
Esta ciência também não poderá ser de uma extensão desencorajante, pois não se ocupa
dos objetos da razão, cuja variedade é infinita, mas tão-somente da própria razão, de
problemas todos eles engendrados no seu seio e que lhe são propostos, não pela
natureza das coisas, que são distintas dela, mas pela sua própria natureza; portanto, uma
vez que tenha aprendido a conhecer a sua capacidade em relação aos objetos que a
experiência lhe pode apresentar, ser-lhe-á fácil determinar de maneira completa e segura
a extensão e os limites do seu uso, quando se ensaia para além das fronteiras da
experiência.

VII – Idéia e divisão de uma ciência particular com o nome de crítica da razão pura

(...) podemos considerar como uma propedêutica do sistema da razão pura, uma ciência
que se limite simplesmente a examinar a razão pura, suas fontes e limites. A esta ciência
não se deverá dar o nome de doutrina, antes o de crítica da razão pura e a sua utilidade
[do ponto de vista da especulação] será realmente apenas negativa, não servirá para
alargar a nossa razão, mas tão-somente para a clarificar, mantendo-a isenta de erros, o
que já é grande conquista. Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral
se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este
deve ser possível a priori. (...)Não podemos verdadeiramente chamar-lhe doutrina, mas

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apenas crítica transcendental, porquanto a sua finalidade não é o alargamento dos
próprios conhecimentos, mas a sua justificação, e porque deve fornecer-nos a pedra de
toque que decide do valor ou não valor de todos os conhecimentos a priori. (...) Que
isto seja possível e mesmo que um sistema como este possa ser de uma extensão
bastante reduzida para que esperemos acabá-lo inteiramente, pode-se já conjecturar
antecipadamente pelo fato de o nosso objeto não ser aqui a natureza das coisas, que é
inesgotável, mas o entendimento que julga a natureza das coisas, e ainda o
entendimento considerado unicamente do ponto de vista dos nossos conhecimentos a
priori, cujas riquezas não podem ficar-nos escondidas, pois não precisamos de as buscar
fora de nós e tudo faz presumir que serão assaz restritas, para que possam ser totalmente
captadas, julgadas quanto ao seu valor ou desvalor e apreciadas corretamente.
A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência para a qual a crítica da razão pura
deverá esboçar arquitetonicamente o plano total, isto é, a partir de princípios, com plena
garantia da perfeição e solidez de todas as partes que constituem esse edifício.
À crítica da razão pura pertence, pois, tudo o que constitui a filosofia transcendental; é a
idéia perfeita da filosofia transcendental, mas não é ainda essa mesma ciência, porque
só avança na análise até onde o exige a apreciação completa do conhecimento sintético
a priori.
Na divisão desta ciência dever-se-á, sobretudo, ter em vista que nela não entra conceito
algum que contenha algo de empírico, ou seja, vigiar para que o conhecimento a priori
seja totalmente puro. Daí resulta, que os princípios supremos da moralidade e os seus
conceitos fundamentais, sendo embora conceitos a priori, não pertencem à filosofia
transcendental, [porque, não obstante não serem por si mesmos os fundamentos dos
preceitos morais, os conceitos de prazer e desprazer, de desejos e inclinações, etc., todos
de origem empírica, devem estar necessariamente incluídos na elaboração do sistema da
moralidade pura, pelo menos no conceito do dever, enquanto obstáculos que deverão ser
transpostos ou enquanto estímulos que não deverão converter-se em móbiles].
(...) há dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de uma raiz comum,
mas para nós desconhecida, que são a sensibilidade e o entendimento; pela primeira
são-nos dados os objetos, mas pela segunda são esses objetos pensados. Na medida em
que a sensibilidade deverá conter representações a priori, que constituem as condições
mediante as quais os objetos nos são dados, pertence à filosofia transcendental.

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INTRODUÇÃO

I - Idéia da filosofia transcendental

A experiência é, sem dúvida, o primeiro produto que o nosso entendimento obtém ao


elaborar a matéria bruta das sensações. (...) Porém, nem de longe é o único campo a que
se limita o nosso entendimento. É certo, que a experiência nos diz o que é, mas não o
que deve ser, de maneira necessária, deste modo e não de outro. Por isso mesmo não
nos dá nenhuma verdadeira universalidade e a razão, tão ávida de conhecimentos desta
espécie, I vê-se mais excitada por ela do que satisfeita. (...) Por esse motivo se intitulam
conhecimentos a priori; enquanto tudo aquilo que, pelo contrário, é extraído
simplesmente da experiência, é conhecido, como se diz, apenas a posteriori ou
empiricamente.
(...) mesmo às nossas experiências se misturam conhecimentos que devem ter uma
origem a priori e que talvez apenas sirvam para fornecer uma ligação às nossas
representações sensíveis. Com efeito, se dessas experiências retirarmos tudo o que
pertence aos sentidos, ainda ficam certos conceitos primitivos e os juízos deles
derivados, conceitos e juízos que devem ser formados inteiramente a priori, isto é,
independentemente da experiência, pois que, graças a eles, acerca dos objetos que
aparecem aos nossos sentidos se pode dizer ou pelo menos se julga poder dizer mais do
que ensinaria a simples experiência e essas afirmações implicam uma verdadeira
universalidade e uma rigorosa necessidade, que o conhecimento empírico não pode
proporcionar.

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