Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
de Sarov
Conteúdo:
Deus. Razões por Que Cristo Veio a Este Mundo. Da Fé. Da Esperança.
Do Amor de Deus. Contra a Inquietude Inútil. Do Cuidado da Alma. De
Que Devemos Munir a Alma? Da Paz da Alma. Como Conservar a Paz
da Alma? Da Guarda do Coração. Das Tentações. Do Discernimento dos
Espíritos. Da Contrição. Da Oração. Da Luz de Cristo. Da Atenção. Do
Temor de Deus. Do Desapego do Mundo. Da Vida Ativa e
Contemplativa. Da Solidão e do Silêncio da Multiplicidade das Palavras
do Silêncio Interior. Das Façanhas Ascéticas. Da Resistência às
Tentações. Da Tristeza — do Tédio — do Desespero. Da Doença. Dever
e Amor para com o Próximo. Do Julgamento do Próximo. Do Perdão das
Ofensas. Da Paciência e da Humildade. Da Misericórdia. Regra de
Oração.
Primeira Parte
— Na Sombra.
Pano de Fundo.
Essas novidades todas não atingiam a província. A classe dos comerciantes à qual
pertencia a família Mochnine continuava solidamente tradicionalista e mantinha intactos
os velhos costumes. Vestidos como nos bons tempos, corpulentos e usando barba (o que
era proibido na corte), seus membros davam à Igreja dinheiro e filhos, coisa que os
nobres, com os olhos fixos na França de Luís XV, quase não faziam mais.
Foi contudo, uma igreja, cujo plano havia sido estabelecido pelo célebre Rastrelli, que a
cidade de Kursk decidiu construir. As obras foram confiadas a Isidoro Mochnine, pai do
pequeno Prokhore, que possuía uma fábrica de tijolos e tinha a reputação de ser um
construtor de edifícios íntegro e consciencioso. Ainda jovem, morreu antes de terminar
sua obra, da qual sua viúva se encarregou.
Que sabemos desta mulher a quem Prokhore (que tinha apenas três anos por ocasião da
morte de seu pai) deverá o melhor de si? Na falta de um retrato, ela é representada como
uma destas matronas russas, ligeiramente obesa, com traços regulares, rosto sereno,
firme, porém doce, inteligente sem ostentação, trabalhadora discreta e sem pressa. Não
somente encontrava tempo de gerir seu comércio e sua casa, criar seus dois filhos,
Alexis e Prokhore, supervisionar a construção da igreja, mas também tinha prazer em
levar para casa, instruir, dotar e casar convenientemente órfãs cuja sorte nesta época era
das mais tristes.
Encontram-se ecos da ordem que reinava na casa de Ágata em certos conselhos que seu
filho espalharia posteriormente e que se referiam a varrer bem seu quarto, de manhã,
"com uma boa vassoura" assim como acender logo o samovar, "pois a água quente é boa
para a alma tanto quanto para o corpo." É de sua mãe provavelmente que ele herdou o
seu amor pelo trabalho bem feito, seu horror pela preguiça e seus olhos de um azul tão
puro.
Prokhore tinha sete anos quando pela primeira vez ouviu falar do "sobrenatural" naquela
calma existência provincial. Durante uma visita em companhia de sua mãe, à igreja em
construção, caiu do alto do andaime que rodeava o campanário e levantou-se ileso.
Aos dez anos — já ia a escola — uma doença de natureza ignorada quase o levou.
Ágata estava sem esperança de que seu filho sobrevivesse quando ele lhe contou um
belo sonho que acabara de ter: a Santa Virgem lhe aparecera para anunciar que viria
cura-lo em pessoa. Ora, alguns dias depois, um ícone de Nossa Senhora de Kursk,
considerado milagroso, foi levado em procissão pelas ruas da cidade. Quando a
procissão se aproximava da casa dos Mochnine, desabou uma tempestade acompanhada
de uma chuva torrencial. Para proteger o ícone, fizeram-no entrar no quintal. Ágata
aproveitou para trazer seu filho e o doente se curou. Curiosidades como as que se lêem
às vezes nos jornais? Pequenos "milagres" anódinos com que os fiéis são agraciados ao
menos uma vez em sua existência? Porém havia mais.
— Bem aventurada és, viúva — disse um dia à valente Ágata, quando a encontrou na
rua com seus dois filhos, um "louco em Cristo" que tinha, como muitos de seus
semelhantes a reputação de conhecer o futuro — bem aventurada és de ter um filho que
tornar-se-á um poderoso intercessor junto à Santíssima Trindade, um homem de oração
para o mundo inteiro.
Um louco em Cristo? A Rússia seria mal representada sem estes seres de olhos claros,
fala enigmática, gestos desordenados, freqüentemente simbólicos, como os dos antigos
profetas, caminhando seminus — ou totalmente nus, como Isaías — sem abrigo contra o
frio e a neve, deitados sob as sacadas das igrejas, arrastando pesadas correntes,
impondo-se terríveis penitências, escolhendo como ascese suprema o simulacro da
loucura. Para um ocidental de espírito cartesiano o próprio fato de esconder a
inteligência sob uma aparência de ridículo é prova de uma incômoda falta de equilíbrio.
No Oriente, o ponto de vista é outro. Loucos em Cristo ("Saloi") existiam em Bizâncio,
e a Rússia canonizou trinta e cinco deles. Em vida, alguns foram perseguidos e
maltratados. Desejando a Cruz, procuravam a desonra. Havia certos histéricos e
impostores entre eles, mas os verdadeiros "yourodivi" eram autênticos filhos de Deus,
aqueles pequeninos que o pai pusera no lugar dos doutores e sábios para que neles os
simples pudessem se reconhecer. E o povo russo, sempre ávido de Justiça-Verdade
(Pravda), reconhecia-se efetivamente naqueles contestadores de um Estado tirânico, de
uma igreja por demais institucionalizada, de um Cristianismo superficial e hipócrita.
Pela boca dos "yourodivi" o povo russo posicionava-se frente aos grandes deste mundo
e afrontava sem temor os príncipes cruéis. O mais célebre destes pequenos profetas —
um grande santo — morto no séc. XVI, está enterrado em Moscou, na Praça Vermelha,
em uma igreja de uma beleza multicor e singular que leva seu nome: Basílio, o Bem-
Aventurado.
Ignora-se por quais excentricidades o louco em Cristo de Kursk ganhou seu título de
"yourodivi" — seu nome nem chegou a ser conhecido — mas sabe-se que na época em
que se dirigiu à viúva Mochnine ele já gozava da veneração de seus concidadãos. Teria
ela se impressionado por sua predição? Seria seu filho uma "criança predestinada"?
O caráter de Prokhore se fortalecia. Ele pertencia a uma raça viril. A cidade de Kursk
esta situada na fronteira das estepes. Desde sempre seus habitantes haviam sido
conclamados a se bater contra invasores. O "Documento" medieval da "Tropa de Igor"
descreve-os como se segue: "agasalhados sob suas trombetas, alimentados a ponta de
lança, seus arcos retesados, suas coleiras de ferro abertas, como lobos cinzentos eles
galopam nos campos procurando para si a honra e para seu príncipe, a glória."
Embora ávido de heroísmo, não
eram os grandes feitos dos
guerreiros que entusiasmavam o
jovem Prokhore Mochnine. Ele
sonhava com outras lutas.
Combates mais perigosos o
atraíam: as façanhas ascéticas dos
santos opondo-se às forças do
demônio.
"Vai sem medo" teria dito Dositev, "e permanece lá. É lá que salvarás tua alma. É lá
também que terminarás tua peregrinação terrestre. Familiariza-te com a lembrança
constante de Deus. Invoca seu Santo Nome. E o Espírito Santo virá habitar em ti e
guiará tua vida em total santidade."
Prokhore estava transbordante de alegria. Era precisamente para o Deserto de Sarov que
ele se sentia atraído. Muitos de seus concidadãos já se encontravam lá. Mas a separação
de sua mãe foi dolorosa. Ele se jogou a seus pés. Desfeita em lágrimas, ela lhe deu a
beijar os ícones familiares e pendurou em seu pescoço uma cruz de cobre em forma
octogonal sobre a qual estava representado o Senhor crucificado. Esta cruz jamais
abandonou o filho de Ágata. Até sua morte ele a levava à mostra em seu peito e pediu
que após sua morte ela fosse posta em seu caixão. Em seguida, com o bastão de viajante
à mão, em companhia de dois de seus cinco amigos com quem havia feito a peregrina
cão de Kiev, tomou seu caminho. Cerca de seiscentos quilômetros separavam Sarov de
Kursk.
O Deserto.
Neste sentido, o deserto não é obrigatoriamente uma extensão de areia como o Saara.
Para os russos, a floresta imensa, quase virgem que ocupava uma parte enorme de seu
território fazia-lhe as vezes. E a tradicional santidade ortodoxa florescia ali, tanto quanto
na Síria, Palestina ou Egito.
O que é mais miraculoso, talvez, ainda que mais prosaico, é que o "deserto de Sarov"
pudesse ser fundado e que pudesse se desenvolver e prosperar, em um momento da
história Russa pouco propício ao monaquismo. Pedro, o Grande, havia dirigido seu país
para o Ocidente. A herança de Bizâncio, inclusive sua cultura religiosa, devia dar lugar
a rudimentos de técnica moderna importados da Holanda. O Patriarcado foi abolido. Os
mosteiros, "gangrena do Estado" e os monges, "aqueles vagabundos" estavam fadados a
desaparecer. Foi proibido às casas religiosas receber noviços. Proscritos os estudos, o
monge em cuja célula fossem encontrados papel e tinta, estava sujeito a castigos
corporais.
O Noviço.
Amavam-no no mosteiro por sua animação e bom humor. "Como eu era feliz então! . . .
dirá mais tarde a uma religiosa. A alegria não é um pecado, Matushka, * ao contrário.
Ela expulsa o cansaço, e do cansaço provém o desencorajamento, e não há nada pior!
O futuro Padre Serafim já está todo neste pequeno sermão, reproduzido fielmente: seu
falar tão característico, propositadamente popular, gentil; seu hábito de tratar
familiarmente seus interlocutores chamando-os "minha alegria" o que em russo é menos
estranho do que em português; seu horror ao desencorajamento e ao pessimismo.
Apesar de disposições tão felizes, não se deve crer que o noviciado deste menino
transbordante de vida, que gostava de cantar, sensível à beleza, se passasse sem
choques. "Até os trinta e cinco anos, isto é, até a metade da vida terrestre, confessará ele
mais tarde, é grande o esforço que precisa ser feito para se guardar do mal. São
numerosos os que não conseguem e que se desviam do caminho reto para seguir suas
próprias inclinações.
Para perseverar, o que fazer? Uma série de conselhos dados a este postulante lança uma
certa luz sobre os anos da juventude de Prokhore, o carpinteiro. Ei-los:
Seja qual for o modo pelo qual você entrou neste mosteiro, não perca a coragem: Deus
está aqui. A vida monástica não é fácil. Na primeira decepção, é preciso não pensar em
deixar um mosteiro por outro. O noviço deve ter força de vontade.
* A língua russa é particularmente rica em diminutivos constantemente empregados, como
"Batiushka"-paizinho, "Matushka" — mãezinha. Em russo, são respeitosos e carinhosos. São
usados para se falar com um padre,, uma religiosa, mas pode-se também em certos casos, dizer-
se "batiushka" por "senhor" e "matushka" para "senhora." Também usa-se normalmente em
russo expressões afetuosas como "dusha moia" — minha alma; golubtchik mói" — meu
pombinho "radost moia" — minha alegria, que era a expressão favorita de Prokhore Mochnine,
conhecido mais tarde por Serafim de Sarov.
Vivendo nesta santa casa, faça o seguinte: na igreja, esteja atento, familiarize-se com os
ofícios, vésperas, completas, vigílias noturnas, matinas, leituras das horas. Durante a
liturgia, permaneça em pé, com os olhos fixos em um ícone ou uma vela. Que o fedor de
suas distrações não se misture com o incenso da Salmodia. Releia cada verso muitas
vezes, a fim de guardá-lo de memória. Se tens trabalho, deve fazê-lo. Se o chamam para
uma obediência, vá. Enquanto trabalha, repita continuamente a oração: "Senhor Jesus
Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim pecador."
Ao rezar, fique à escuta de si mesmo, isto é, levante seu espírito e una-o ao coração. No
começo, um dia ou dois, ou mais, ore com sua inteligência, pronunciando
separadamente cada palavra. Em seguida, quando o senhor houver aquecido seu coração
por Sua graça, em união com o Espírito, sua oração fluirá sem interrupção e estará sem
pré consigo, alegrando-te e alimentando-te. Quando estiveres de posse deste alimento
espiritual, isto é, o diálogo com o próprio Senhor, por que ir ás celas dos irmãos, mesmo
se eles o convidam? Em verdade lhe digo: o amor à loquacidade é também o amor pela
preguiça. Se você não compreende a si mesmo, o que pode conversar com os outros, o
que pode lhes ensinar? Cale-se o tempo todo, lembre-se sempre da presença de Deus e
de Seu nome. Não converse com ninguém, mas guarde-se de criticar os risonhos e bem-
falantes. Seja surdo e mudo.
No refeitório, não olhe o que os outros comem e não julgue, mas preste atenção a si
mesmo, alimentando sua alma pela oração. Ao meio dia coma segundo sua fome. À
noite, abstenha-se. A gula não é coisa para monges. Às quartas e sextas, se possível,
faça apenas uma refeição e o Anjo do Senhor se afeiçoará a você. É preciso, entretanto
comer alimento suficiente para que o corpo, reconfortado, seja um ajudante para o
homem no cumprimento de seu dever. De outra forma pode acontecer que, estando o
corpo debilitado, a alma se enfraqueça. O jejum não consiste somente em comer
raramente, mas em comer pouco. Não é razoável o jejuante que, tendo esperado com
impaciência a hora da refeição, entregue-se com voracidade — corporal e mental — ao
consumo do alimento. O verdadeiro jejum, aliás, não consiste somente em domesticar o
próprio corpo, mas em se privar, a fim de dar pão a quem não o tem.
Todas as noites, não durma menos de quatro horas: a décima, undécima, duodécima e
uma hora depois da meia noite. Se você se sentir fatigado, pode, depois do meio-dia,
tirar uma sesta. . . É o que tenho feito desde a juventude. Conduzindo-se assim, você
não ficará triste, mas composto e feliz. E permanecerá no mosteiro até o fim de seus
dias.
A primeira virtude do noviço deve ser a obediência, melhor remédio contra o tédio,
perigosa doença que é difícil a um principiante evitar, a menos que siga rigorosamente
as ordens dadas por seus superiores. Juntamente com a obediência, o jovem monge deve
praticar a paciência. Sem resmungar ele deve suportar vergonhas e ofensas.
Um perigo: as mulheres.
Desde sua entrada no mosteiro, e até sua morte, a vida do monge é apenas uma luta
terrível contra o mundo, a carne e o diabo. Não é monge aquele que gosta de se
pavonear, recostado; não é monge aquele que em tempos de guerra cai por terra e rende-
se sem combater."
Estes são os conselhos de um homem, maduro. Mas refletem o problema dos jovens
religiosos de todos os tempos. Vindo de tempos imemoriais, uma voz parece responder:
"É monge aquele que torna firme seu coração e aspira a circunscrever o incorporal em
uma morada de carne." É S. João Clímaco, higumeno no séc. VII do mosteiro de Santa
Catarina no Sinai, que fala. Os anos não mudaram em nada os preceitos da ascese, pelo
menos na ortodoxia.
A Herança do Hesiquiasmo.
"Enquanto trabalha, repita continuamente a oração: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
Tem piedade de mim, pecador. . ." Lembre-se sempre da presença de Deus e de Seu
Santo Nome. . . Em Kiev, "o ancião" Dositeu não dissera a mesma coisa?
Na oração ensinada por Jesus a seus discípulos, o primeiro pedido é: "Santificado seja o
Teu Nome." O nome de Jesus, que, desde o começo de sua pregação, os apóstolos
enfatizaram e que eles invocavam para curar os doentes, representava uma força assim
como uma fonte de salvação. É por isso que os membros do Senhedrim proibiam sua
divulgação (Ato. 4:17-18, Ato. 5:28 e 40-41). Em sua epístola aos Filipenses, São
Paulo, falando de Cristo, escreve: "pelo que Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o
Nome que estava acima de todo Nome, para que do Nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é
o Senhor, para glória de Deus Pai" (Fil. 2:9-11). Jesus glorificado é o Ungido, o
Senhor. Ao Nome de Jesus, exprimindo sua glória, pertence uma força salvadora e
vivificante, donde a propagação progressiva entre os monges, em seguida entre todos os
cristãos, da "oração de Jesus."
O nome de Jesus implica sua presença. "Entre o Nome e aquele a quem o Nome invoca
não há nem a distância de uma lâmina" disse um teólogo russo contemporâneo.
Com alguém que está presente, falamos. Falar com Deus é rezar. "Orai sem cessar," diz
São Paulo (I Tes. 5:17). Mas, por si só, o homem tem dificuldade em rezar mesmo um
pouco, mesmo raramente. Felizmente, "também o Espírito, semelhantemente, nos
assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo
Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexplicáveis" (Rom. 8:26). Não
se pode separar Jesus e o Espírito Santo.
Mas fará o Espírito sua morada em um ser com pensamentos divagantes, com a veste
suja pelo pecado? Certamente não. Para começar, é preciso se arrepender. Em seguida,
empenhar-se em vigiar o coração para defender-lhe o acesso as tentações, aos
pensamentos nocivos, e a esta louca, a imaginação, de quem o inimigo se serve para
desviar os inexperientes por meio de visões pseudo-celestes. É por isso que os conselhos
dados ao postulante estipulam: "ao rezar, escuta a ti mesmo, isto é, levanta teu espírito e
une-o ao coração" (a união da inteligência com o coração, considerado como centro, é
indispensável). "Em seguida, quando o Senhor houver aquecido teu coração por sua
graça, em união com o espírito, tua oração fluirá sem interrupção. . ." Esta forma de
oração nascida no deserto, elaborada nos mosteiros do oriente através dos séculos,
tornada uma verdadeira doutrina afirmada pela igreja, recebeu o nome de hesiquiasmo,
do grego "hesychia": paz interior, calma, tranquilidade.
Ela tem dois ápices. Um é atingido quando a oração tornada parte integrante do homem
não é mais algo que o homem diz, mas algo que é dito nele. "Quando o Espírito
estabelece sua morada no homem, este não pode mais parar de orar, pois o Espírito não
para de orar nele. . . Doravante, ele não domina a oração durante determinados períodos
de tempo, mas todo o tempo. Mesmo quando ele faz seu repouso visível, a oração está
garantida nele, pois "o silêncio do impassível é oração" diz Isaac o Sírio. "Seus
pensamentos são impulsos divinos, os movimentos do intelecto purificado são vozes
mudas que cantam em segredo esta Salmódia ao invisível." Mas o Sírio apressa-se em
acrescentar: "encontra-se dificilmente em toda geração um só homem que se tenha
aproximado deste conhecimento da glória de Deus."
O segundo ápice é inundado por uma luz que a ortodoxia qualifica de incriada. Apesar
da interdição que lhes estava feita de "meditar" sobre qualquer episódio da vida do
Cristo, de permitir a imagens de se formarem em seu espírito, os adeptos da "oração de
Jesus" beneficiaram-se por vezes de visões luminosas que não eram nem o produto de
sua imaginação, nem o efeito de uma luz metereológica simbolicamente interpretada,
mas uma teofania — uma revelação divina — tão real quanto a do Monte Thabor
prefigurando a glória do Ressuscitado, assim como a luz perene que iluminará
Jerusalém Celeste e cuja luminária será o Cordeiro (Apo. 21:23). Um grande místico do
séc. XI, "hi gumeno" do Mosteiro de São-Mamas em Constantinopla, São Simeão, a
quem a Igreja honrou com o título de "Novo Teólogo" foi o cantor inspirado desta Luz-
Espírito.
Estavam os monges de Sarov cientes da doutrina e práticas hesiquiastas? Pelos
conselhos e respostas que acabamos de citar, a resposta é afirmativa. Desde o começo
do séc. XV, S. Nil de Sora, eremita da "Thebaide do Norte" no além Volga, erudito que
falava grego fluentemente, tendo passado longo tempo no Monte Athos, deixou a seus
descendentes espirituais uma regra inspirada pelos grandes mestres da doutrina
hesiquiasta: João Clímaco, Isaac de Nínive, Simeão o Novo Teólogo. Os textos que
sobraram "constituem ao mesmo tempo um exemplo marcante de fidelidade absoluta à
tradição hesiquiasta bizantina e de uma notável simplicidade espiritual que caracterizava
a própria pessoa de Nil e que constituirá o traço marcante dos santos russos posteriores"
(Jean Meyendorff). Isto deve ser guardado. "Os santos russos, escreveu o Padre
Meyendorff, tendo menos interesse pela especulação teológica, contribuíram
frequentemente, por meio de um certo lirismo cósmico, para humanizar a mística
hesiquiasta; eles acentuaram, muito mais do que os gregos, as implicações sociais do
monaquismo eremítico."
A Doença.
A Santa Virgem, que em Kursk aparecera sob o aspecto de um ícone para salvar a
criança doente, viera, desta vez em pessoa, salvar o jovem noviço do Deserto de Sarov.
Estava acompanhada dos apóstolos Pedro e João. Virando-se para eles, pronunciou
estranhas palavras: "ele é da nossa raça" disse, apontando o moribundo. Essas coisas
não se inventam. Como teriam vindo ao espírito de um aspirante à humildade? "Ela
pousou sua mão direita sobre minha fronte, contaria ele na velhice. Em sua mão
esquerda havia um cetro. Com o cetro, ele tocou o pobre Serafim. Neste lugar, — sobre
a minha coxa direita-cavou-se um buraco. Por ali a água escorreu. E foi assim que a
Rainha do Céu salvou o humilde Serafim." Uma profunda cicatriz na coxa dava
testemunho do milagre.
Serafim. . . oito anos após sua entrada no deserto de Sarov, Prokhore, aos 27 anos de
idade, considerado digno de vestir o hábito monástico, foi recebido em 13 de agosto de
1786 na comunidade do deserto. Sem perguntar sua opinião, impuseram-lhe o nome de
Serafim, que em hebraico quer dizer: resplandescente. Breve foi ordenado diácono. Mas
antes, ele insistia em pagar uma dívida de gratidão: com a benção de seus superiores,
partiu a buscar fundos para a construção de uma pequena igreja sobre sua cela,
testemunho de seus sofrimentos, onde ele havia sido visitado e curado.
Dizem que no decorrer desta fatigante caminhada pelo país ele teria ido até Kursk, teria
abraçado sua mãe pela última vez e predito a seu irmão Alexis que iria seguí-lo de perto
para o túmulo, o que, a seu tempo, aconteceu. Mas nunca se pensou na impressão que
esta longa caminhada através da terra russa teria deixado em um jovem marcado pelo
sofrimento e, em decorrência disto, particularmente receptivo.
A Rússia era feliz então? Algum dia o foi? O longo reinado de Catarina II, brilhante no
exterior, só trouxe ao povo mais dificuldades.
Abençoando-a."
Tiutchev.
A obsessão por um reino camponês, ideal e santo, com sua "justiça da floresta"
permanecia viva na alma popular que guardava no íntimo o sonho de uma Jerusalém
russa com seu Czar branco e seu Cristo peregrino.
Em Sarov foi ordenado diácono. Novamente, zelou com desvelo. Demasiado, pensavam
certos monges. Havia-se algum dia visto um diácono preparar-se para a liturgia
dominical passando a noite a orar na igreja imóvel até o amanhecer? Terminado o
ofício, ainda hesitava em partir. Teria ele se comprazido, como um puro espírito, em
servir continuamente o Senhor esquecendo-se de comer e beber? Enquanto o coro
cantava, acontecia-lhe de ver passarem anjos, dizia. Vestidos de branco, brilhantes
como relâmpagos, atravessavam a igreja cantando bem melhor do que os monges. É
certo, pensavam estes últimos, que os anjos tomam parte na celebração da eucaristia, é
ortodoxo. Durante a Grande Quaresma, nas liturgias dos pré-santificados, não
proclamamos: "hoje as forças celestes concelebram invisivelmente conosco?" Aquele
homem calmo, sólido, equilibrado, aquele bom operário que Prokhore, o carpinteiro,
havia sido transformava-se em um daqueles místicos de quem desconfia, como da peste,
a severa sobriedade tradicional do monasticismo oriental?
Mas o Padre Serafim não era mais um noviço. Sabia que a humildade é o cimento que
sustenta o edifício da perfeição espiritual. Mas sabia também que uma vez engajado na
via de união a Deus, o homem não pode mais parar. "Se alguém diz: eu sou rico, estou
bem com o que consegui, não tenho mais necessidade de nada, não é cristão, e sim um
vaso de iniquidade diabólica" escreveu Macário do Egito. "Pois o prazer que se tem em
Deus é tamanho que não podemos nos saciar d'Ele. Quanto mais O saborearmos, quanto
mais o comungarmos, mais temos fome d'Ele."
O Padre Serafim entrara naquele mundo invisível a que poucos homens têm acesso. Mas
ele não falava: "Eu sou rico." Ao contrário, sua sede de contemplação só fazia crescer.
Ordenado padre, não deixava de sentir a atração pela grande solidão do verdadeiro
deserto. Será que a contemplação de um anacoreta é mais preciosa do que o sacerdócio
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque?" Eis aí um mistério.
O abade Pakhôme morreu. Sua doença havia retido o Padre Serafim no mosteiro. Uma
vez desaparecido o ancião a quem tratara como um filho, ele pediu a seu sucessor, o
Padre Isaías, a permissão de se retirar para a floresta e deixou o mosteiro munido de
uma dispensa oficial na devida forma. A data de sua partida é conhecida: vinte de
novembro de 1794, véspera da apresentação no Templo da Santa Virgem, exatamente
dezesseis anos após sua entrada. Ele tinha trinta e cinco anos, etapa importante, segundo
suas próprias palavras, na vida de um homem.
O Eremita.
Há uma carta escrita a um amigo pelo Staretz Paissy Velitchkovsky a respeito da vida
eremítica onde ele diz: "Deves saber, caríssimo amigo, que o Espírito Santo dividiu a
vida monástica em três categorias: a vida eremítica; a vida em companhia de dois ou
três irmãos em um skit; e a vida cenobítica. A vida eremítica deve ser compreendida
como uma existência longe dos homens, no deserto. O eremita entrega-se somente a
Deus no que concerne à saúde de sua alma, o alimento, a vestimenta e toda necessidade
terrestre. Ele só espera nEle em todos os combates da alma e do corpo, pois somente Ele
é sua ajuda e esperança neste mundo. Mas essa existência não é possível senão para os
espiritualmente maduros, os inteiramente pacificados. Quanto aos inexperientes que se
engajam nisto inconsequentemente, que estejam atentos para não cair na sonolência,
desatenção ou perplexidade — ninguém estará lá para ajudá-los."
O Padre Serafim fez a experiência. "Os que vivem em mosteiros, disse, lutam contra os
inimigos do gênero humano como contra pombas; os anacoretas — como contra leões e
leopardos."
Mas quem são estes "inimigos do gênero humano"? Contra quem esta luta no vazio? O
homem do século XX sabe que seu destino, em grande parte, depende dela?
Na opinião dos antigos, o Universo era gerado por espíritos que governavam os astros e
moravam "nos céus" e "nos ares." Eles coincidiam em parte com que S. Paulo chama
"os elementos do mundo" (Gal. 4:3). Infiéis a Deus, eles quiseram e conseguiram
escravizar o homem no pecado. Mas Cristo veio livrar a humanidade de sua escravidão,
arrancá-la do império das trevas. "Nascido antes de todas as criaturas, é nEle que foram
criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, visíveis e invisíveis, sejam troncos,
sejam soberanas, quer principados, quer potestades, tudo foi criado por meio dEle e para
Ele. . . Por que aprouve a Deus que nele residisse toda a Plenitude e que, havendo feito a
paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas,
quer sobre a terra, quer nos céus" (Col. 1:15-20).
Para São Paulo, a encarnação coroada pela ressurreição colocou a natureza humana do
Cristo à frente não só da raça humana mas ainda de todo o Universo criado, interessado
na salvação como o fora no erro. Esta reconciliação universal engloba todos os espíritos
celestes assim como todos os homens. Ela não significa a salvação individual de todos,
mas sim a salvação coletiva do mundo por meio de seu retorno à ordem e à paz perfeita
na submissão a Deus.
O pecado do homem foi uma maldição para a terra. Cabe a ele trabalhar para sua
redenção. "Pois a ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de
Deus" diz São Paulo nesta admirável passagem da Epístola aos Romanos, tantas vezes
citadas (Rom. 8:19-23), "na esperança de que a própria criação será redimida do
cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Por que sabemos
que a criação inteira geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas
também nos que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo,
aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo."
Eis aí, então, trabalho para um místico, para um anacoreta. A salvação do mundo
depende disto. Retornando a si mesmo, ele se fechará na "cela" interior de seu coração,
para encontrar lá, "mais profundo do que o pecado" o começo de uma ascensão durante
a qual o Universo lhe aparecerá cada vez mais unido, cada vez mais coerente,
impregnado por forças espirituais, formando um só todo nas mãos de Deus.
A floresta que serviu de "deserto" ao Padre Serafim era imensa e sombria. Pinheiros se
erguiam como mastros de navios. Alguns tinham muitos metros de circunferência. Uma
modesta "isba" situada sobre uma margem escarpada do rio Sarovka, a cerca de seis
quilómetros do mosteiro, servia-lhe de retiro. Um ícone em um canto, um fogareiro em
outro, um pedaço de tronco à guisa de cadeira — era tudo. Uma cama? — inútil. Ele
batizou o conjunto de "Monte Athos."
Um eremita, para se preservar do tédio, precisa de um emprego de seu tempo dos mais
rígidos. O dia de Padre Serafim começava à meia noite. Ele seguia a regra de São
Pakhôme o Grande, usada pelos Padres do Deserto. Para começar, ele recitava o ofício,
matinas e laudes. As nove horas, era a vez das tercias, sextas e nonas. Ao fim da tarde,
ele cantava as vésperas e completas. Ao cair da noite, recitava as orações que precedem
o sono, acompanhadas de numerosas prosternações, como os monges orientais
costumam fazer. No meio tempo, o que quer que fizesse, a oração do coração
ininterrupta ritmava suas atividades. Em seu desejo imenso de tudo referir a Jesus, havia
dado aos arredores nomes bíblicos. Em "Nazaré" ele cantava os hinos acatistas à
Virgem; recitava sexta e nona no "Gólgota"; lia o evangelho da Transfiguração no
"Monte Thabor" e entoava em Belém o "Glória a Deus no mais alto dos Céus."
Entretanto a humilde e casta natureza russa quase não se parecia com a Longínqua
Palestina. No verão, a suavidade do céu descia sobre os troncos cor-de-rosa das
coníferas; os troncos prateados das bétulas miravam-se na palidez dos riachos de curvas
sinuosas e suaves. Diversas flores do campo alegravam as clareiras. A floresta cheirava
a resina quente, a musgo, a cogumelos; ouvia-se o sussurro do vôo de inumeráveis
insetos dançando ao sol. À noite, escutava-se ao longe o coaxar das rãs, o grito das
garças nos pântanos e, cobrindo tudo, triunfando sobre as trevas, o dilacerante concerto
dos rouxinóis.
O Padre Serafim cultivava uma horta. Como adubo, utilizava o musgo úmido que, com
o torso nu, ia buscar nos brejos, oferecendo "a carne rebelde" às picadas dos pernilongos
e mosquitos.
E vinha a primavera com sua brisa tépida, trazendo o aroma da neve que derrete, da
seiva que corre. A primavera — a ressurreição -A Páscoa. Abandonando seu retiro, o
Padre Serafim passava a primeira semana da Grande Quaresma no mosteiro, privando-
se completamente de alimento, repetindo com seus irmãos a oração penitencial do S.
Ephrem, o Sírio.
"A oração e o jejum, a solidão e a abstinência formam o alicerce que leva a alma ao
reino de Deus" dizia o habitante do pequeno deserto longínquo. Quanto à leitura, ela
continuava sendo uma das ocupações favoritas deste homem do ar livre. O evangelho
que ele carregava em um saco nas costas acompanhava-o por toda parte. Cada dia, ele
lia alguns capítulos, "alimentando" assim sua alma. Pois a "alma deve ser nutrida pela
palavra de Deus." "É preciso se habituar a que o espírito esteja imerso na lei de Deus"
ensinará ele. De fato, sua conversa frequentemente será apenas uma série de paráfrases
de textos bíblicos livremente aplicados às situações dadas.
"O homem precisa das Escrituras porque não está ainda possuído pelo Espírito que
afasta os erros. Porém quando o Espírito se houver apoderado do homem, seus preceitos
se enraizarão nele, em lugar da lei das escrituras. Ele será misteriosamente guiado pelo
Espírito e não terá necessidade de nenhuma ajuda sensível. Enquanto o coração aprende
por intermédio de coisas materiais, o aprendizado é seguido por erro e esquecimento.
Mas quando o ensinamento vem do Espírito, a memória se conserva intacta." Doutrina
ousada — Ortodoxa? — que o eremita de Sarov nunca realizou inteiramente, já que até
sua morte ele continuou as leituras diárias da Bíblia mas que ele compartilhava com o
"enfant terrible" da Igreja, São Simeão, o novo Teólogo. "Aquele que tem por
interlocutor o Inspirador dos que escreveram os livros divinos (o Espírito Santo), que é
iniciado por Ele nos arcanos dos mistérios secretos, é então para os outros um livro
inspirado de Deus" escrevia o Higumeno de S. Mamas.
Havia ele chegado ao estado descrito por Isaac, o Sírio quando "o Silêncio do
impassível é oração"?
Desejoso de saudar o Padre Serafim, os Padres Marx e Alexandre, solitários como ele,
encontravam-no às vezes em sua horta, a enxada largada a seus pés, o olhar perdido no
céu. Não ouvia nem o zumbido das abelhas a sua volta, nem a chegada dos visitantes.
Compreendendo que seu espírito havia "emigrado em Deus" eles partiam lentamente.
Mas frequentemente visitantes inoportunos menos discretos teimavam em ir ver o
jovem anacoreta e entre eles — para seu grande desprazer — mulheres. Já no séc. IV,
cameleiros egípcios alugavam montarias para curiosos ávidos de dar uma olhada no
modo de vida dos Padres do Deserto. Basta-se proclamar eremita para não ficar mais só.
Irritado, pediu a seus superiores a permissão de obstruir com galhos a trilha que levava a
seu retiro, e a obteve.
O Cosmos.
As Feras.
"À meia noite, conta uma testemunha ocular, o Padre Joseph — ursos, lobos, lebres e
raposas assim como lagartos e répteis de toda espécie, rodeavam o retiro. Tendo
terminado suas orações segundo a regra de S. Pakhôme, o asceta saía de sua cela e
punha-se a alimentá-los." Igualmente testemunha, o Padre Alexandre, intrigado,
perguntara uma vez como o pouco pão seco que havia em seu saco seria suficiente para
o Padre Serafim satisfazer tantos animais. "Sempre há suficiente" foi a resposta
tranquila. Um urso gordo, em particular, gozava da intimidade do santo homem. Relatos
detalhados de seu encontro, à primeira vista pouco tranquilo, com este habitante dos
bosques, foram deixados pelo Padre Alexandre, como também por outras pessoas. O
que os impressionava sobremaneira era a alegria que o Padre Serafim irradiava então.
Sorrindo, ele dava uma ordem ao urso e o animal voltava, andando sobre as patas
traseiras, trazendo um favo de mel que o anacoreta oferecia amavelmente a seus
visitantes. Entre as representações póstumas de Serafim de Sarov, as mais populares
tornaram-se aquelas em que ele era visto sentado sobre um pinheiro, dando um pedaço
de pão a um urso*.
Aquele que tem este coração não poderá ver ou se lembrar de uma criatura sem que seus
olhos se encham de lágrimas por causa da compaixão imensa que invade seu coração. E
o coração suaviza-se e não pode mais suportar ver ou escutar um sofrimento qualquer,
mesmo uma pena mínima infligida a uma criatura. É por isso que tal homem não para
de orar também pelos animais, pelos inimigos da verdade, pelos que lhe fazem mal a
fim de que eles sejam conservados e purificados. Ele ora até pelos répteis, movido por
uma piedade que é despertada no coração dos que se assimilam a Deus."
* Em memória de S. Serafim, a caça ao urso era proibida na floresta de Sarov até a revolução.
Nunca houve incidente algum. Na Ilha de Patmos, na Grécia, um eremita morto em 1917 vivia
em uma gruta em companhia de várias cobras, e mais tarde, já velho, alimentava diante de sua
cela uma gorda serpente que todo dia, ao meio dia, vinha beber a ração de leite que o santo lhe
servia em um pires.
O Demônio.
Mas a natureza não é sempre clemente. São longas as noites de inverno quando sopra
um vento glacial, os galhos dos velhos pinheiros gemem e os lobos uivam, em bandos.
O demônio procura abalar o coração do asceta pelo terror e angústia. O demônio? Mas
ele não existe, dirá com um muxôxo, um homem do séc. XX, mesmo sendo cristão. Não
é esta a opinião, baseada na experiência, dos eremitas e santos. A um jovem que,
perante ele, levantava dúvidas quanto à existência e o poder do maligno, Serafim de
Sarov respondia, brincalhão: "o que lhes ensinam nas Universidades? Claro que ele
existe!" E a um indiscreto que perguntava se ele vira diabos, ele retorquia brevemente:
"eles são abjetos."
Como seus ancestrais espirituais no Egito e na Síria, como o próprio Cristo no deserto,
Serafim de Sarov, na floresta, foi abordado e tentado pelo demônio. Que armas usar
contra ele? O Cristo disse: "esta casta não pode sair senão por meio de oração e jejum"
(Mc. 9:29).
O Jejum.
O Padre Serafim dava grande importância ao jejum "Nosso Senhor Jesus Cristo, antes
de começar seu ministério de salvação do gênero humano, dizia ele, fortificou-se por
meio de um jejum prolongado. E todos os ascetas, ao se colocar ao serviço do Senhor,
não abordavam a via crucificante senão após ter, primeiro, jejuado. Eles mediam seu
progresso nesta via de acordo com o progresso que faziam no jejum. Ele mesmo depois
de se tornar eremita, o que comia? Um pouco de pão trazido do mosteiro — cuja maior
parte ia para as feras — algumas batatas, cebolas, beterrabas que colhia de sua horta.
Com o tempo, decidiu que podia prescindir do pão. Depois, parou de cultivar seus
legumes."
De que se alimentava? De uma certa erva chamada egopódio. "Eu a colhia e a colocava
em uma panela; acrescentava um pouco d'água e punha no fogo — fazia uma bela
sopinha. Eu a secava e me alimentava deIa no inverno, e os fiéis perguntavam-se o que
eu estaria comendo! E eu, concluía marotamente o Padre, eu comia egopódio. Mas não
dizia nada a ninguém!"
A Oração.
Então ele jejuava. Quanto à oração, seria para fazer face ao demônio que este homem
que já orava sem cessar empreendeu uma façanha que aproximou-o dos ermitões de
outrora, dos quais Simeão, o ermitão no séc. V, foi o mais célebre? Durante mil dias e
mil noites, em pé ou ajoelhado sobre uma grossa pedra chata, ou em uma caverna
cavada sob seu isba, Serafim de Sarov exclamou, como o publicano do Evangelho:"
Senhor Jesus tem piedade de mim pecador." Ninguém saberá jamais a que imagens
terríveis, a que sensações tão sutis quanto atrozes respondia este grito de alerta. Mas
Cristo estava lá, "Quem nos separará do amor do Cristo?" Exclama São Paulo. "Será
tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? . . .
Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados,
nem coisas do presente, nem do porvir, nem dos poderes, nem alturas, nem
profundidades, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que
está em Cristo Jesus Nosso Senhor" (Rom. 8:35-39).
Quando, à beira da morte, Serafim de Sarov mandou um noviço procurar a pedra sobre
a qual ele tinha ficado tanto tempo em pé, e as pessoas maravilhavam-se com sua
façanha, ele respondeu: "Simeão, o ermitão ficou quarenta e sete anos em pé sobre uma
coluna. Em comparação a ele, o que eu fiz," "Sentia a ajuda da graça?" — "certamente.
As forças humanas seriam insuficientes." E acrescentava, fazendo eco à ardente
declaração de amor de São Paulo: "Quando o coração esta cheio de ternura adoradora,
Deus está aqui."
Mas o Padre Serafim não estava morto. Voltando a si, conseguiu se desfazer de suas
amarras. Felizmente um monge passou por ali e correu para prevenir o abade. Coberto
de sangue, lama, poeira, ninguém acreditava que ele pudesse sobreviver. Por desencargo
de consciência, mandaram buscar médicos. Diagnosticaram uma fratura no crânio, um
pulmão perfurado, costelas quebradas, sem falar dos vários ferimentos e, desamparados
diante de tantos males, porem fiéis aos métodos da época, declararam que era preciso
fazer uma sangria. O abade Isaías se opôs à idéia. Seu bom senso dizia que o infeliz já
havia perdido sangue suficiente. Cabia ao próprio Padre Serafim tomar uma decisão.
Em um estado de feliz excitação que durou cerca de quatro horas, o Padre Serafim
recusou a assistência dos médicos e depois, mais calmo, levantou-se. Para assombro
geral deu alguns passos na cela e, peIa primeira vez em oito dias, aceitou um pouco de
alimento: um bocadinho de chucrute e pão.
Sua saúde, desde então, fez notáveis progressos. Cinco meses mais tarde ele, pedia a
benção do abade para reintegrar seu "Pequeno Deserto longínquo." Mas o Padre Isaías
hesitava. O eremita não era mais o homem de porte atlético que era conhecido antes do
atentado, mas, às portas do cinquentenário, um ancião curvado andando com difi —
culdade, com a ajuda de um machado ou bengala. Foi assim que ficou gravado na
memória de seus contemporâneos: "um velhinho encarquilhado, todo branco, todo seco,
vestido com um casacão branco."
Neste meio tempo, os culpados haviam sido encontrados — três camponeses de uma
aldeia vizinha, Kremenok. O Padre Serafim opôs-se enerticamente à ideia de inflingir-
lhes o menor castigo. Porém um destes incêndios terríveis que fazem arder os isbas das
aldeias russas devastou Kremenok. As casas dos malfeitores foram o alimento das
chamas. "O céu os puniu" diziam todos. Interpretando assim seu infortúnio, os pobres
diabos acorreram, arrependidos, para se jogar aos pés do santo homem que eles quase
assassinaram.
O perdão às ofensas sempre foi, para um fiel russo, a pedra de toque de um Cristianismo
autêntico. Pouco depois do batismo do país pelo Príncipe Vladimir, seus dois filhos,
Boris e Gleb, deixaram-se assassinar, após a morte de seu pai (1905), pelos emissários
de um irmão mais velho temeroso de sua influência. Eles eram jovens cheios de vida.
Mas, ao invés de derramar sangue em uma luta fratricida, como cordeiros que se levam
ao matadouro, eles não ofereceram nenhuma resistência. O povo russo recém-
convertido ao cristianismo compreendeu sua atitude e pediu sua canonização. Os
Bizantinos ficaram atônitos. Aqueles jovens príncipes não eram confessores, nem
doutores, nem mártires propriamente ditos. Eles eram "strastorerpzi" — "os que
sofreram a paixão" — responderam os russos. Seu heroísmo, pode-se talvez dizer, ao
inverso, sem ostentação, particularmente apreciado por seus compatriotas, inimigos de
gestos largos e atitudes teatrais, colocou-os repentinamente entre os santos mais
amados. Pode-se vê-los em ícones, lado a lado, montando fogosos cavalos cor de noite,
cor de aurora, enquanto que, do alto do céu, a mão do Cristo os abençoa. Por intermédio
destes inocentes, o Cristo sofredor, paciente e doce fez, desde o começo, Sua entrada na
igreja russa para não mais sair. Perseguida, ela não maldisse seus inimigos. Um de
nossos contemporâneos, Sylvain de Athos, morto em estado de perfeição espiritual na
península da Virgem (+ 1938), escrevia: "Você pergunta como poderia eu amar o
inimigo que persegue nossa igreja? Respondo: sua pobre alma não conheceu a Deus,
não compreendeu o que significa: Ele nos ama de um amor infinito, Ele deseja, Ele
espera que todos os homens encontrem a salvação. O Senhor é amor e Ele deu sobre a
terra o Espírito Santo que ensina a alma a amar os inimigos e lhe dá a força de rezar
para que também eles sejam salvos."
O Silêncio.
De volta ao "pequeno deserto longínquo" como era chamado seu retiro devido à
distância que o separava do mosteiro, o eremita se dedicou a uma nova forma de ascese:
ele entrou em silêncio. Tendo começado sua vida de anacoreta após a morte de seu
primeiro superior, o Padre Pakhome, ele encerrou-se em mutismo completo após o
desaparecimento de seu sucessor, o Padre Isaías. Estes dois anciãos, "colunas de fogo
subindo da terra ao céu" como ele os chamava, haviam acolhido, guiado, compreendido
o monge fora de série que Prokhore Mochnine se tornara. Com a nova geração, os laços
foram desfeitos. Propuseram-lhe o posto de abade — ele recusou. O administrador
Nifon te foi eleito em seu lugar. Espiritualmente um estrangeiro.
Ninguém saberá jamais como ele viveu o mistério deste silêncio. Ele se cortara
completamente do mundo. Quando lhe acontecia de encontrar alguém na floresta ele
caía de joelhos, o rosto no chão, e permanecia nesta posição até que o passante se
afastasse. Uma vez por semana, no domingo, um monge trazia-lhe um pouco de
alimento. Antes de entrar, ele pronunciava a oração de costume. Tendo respondido
interiormente: Amém, o silencioso abria a porta e parava na soleira, com os braços
cruzados sobre o peito e os olhos baixos. O monge, após uma curta oração e uma
metanóia, colocava o alimento que trouxera sobre um prato perto do qual, por sua vez, o
eremita havia deposto um pequeno pedaço de pão, ou um pouco de chucrute para
mostrar o que era preciso trazer no domingo seguinte. O monge, tendo novamente
orado, se inclinava diante do Padre Serafim e deixava o retiro sem ter ouvido o som de
sua voz. Ascética pantomina que durou dois anos.
A Paz.
Qual era, segundo o Padre Serafim, o fruto desta nova ascese? A paz. A paz de Cristo
que ultrapassa todo entendimento. Paz mais preciosa do que todas as alegrias do mundo,
para a aquisição da qual longos anos de trabalho não são demais. "Não há nada acima da
paz do Cristo, dirá Serafim de Sarov. Eu te suplico, minha alegria, adquire o espírito de
paz. O homem com este espírito não é perturbado por nada. É como que surdo e mudo,
como morto quando se abatem sobre ele tristezas, calúnias e perseguições que todo
cristão que quer seguir Cristo deve obrigatoriamente vivenciar e atravessar. Porque é
por meio de muitos males que devemos entrar no Reino dos céus. É assim que os justos
entraram neste Reino em comparação com o qual toda a glória do mundo não é nada.
Todas as volúpias deste mundo não são nem mesmo uma sombra da felicidade
reservada nos céus aos que amam a Deus. Lá está a alegria eterna, o triunfo e a festa." E
ele acrescentava alguma coisa que, de repente, reconcilia a nós, os utilitários, com
aquilo que teríamos tendência a condenar como mística ridícula, supérflua, inumana.
Ah, cá estamos. Enfim. Eis algo que justifica e explica tantos anos de dura ascese, de
dolorosas ascensões. "Milhares, ao redor de ti, encontrarão a salvação" encontrarão já
na Terra aquela paz que nenhum escritório de beneficiência, nenhuma Clínica
psiquiátrica pode dar, Paz que somente Cristo possui e que Ele transmite por meio de
seus servidores; aquela Paz que milhares de infelizes, ávidos de justiças e carinho
paternal, virão procurar.
O Recluso.
"A obediência, para o monge, é mais importante do que o jejum e a oração." O Padre
Serafim o havia dito, e agia conformemente. Por obediência, este homem, com mais de
cinquenta anos, experiente asceta, abandonava seu retiro florestal onde durante
dezesseis anos ele se comprazerá em louvar seu Senhor e seu Deus. O período de
silêncio que o Espírito lhe impunha não havia contudo terminado. Como perseverar em
um mosteiro em plena atividade, ruidoso, cheio de visitantes e peregrinos? Pediu ao
abade a benção para se enclausurar em sua antiga cela e receber ali os sacramentos.
Esta cela era uma pequena peça de teto baixo, mal iluminada por duas janelas estreitas
dando sobre um barranco. O interior lembrava por sua pobreza o do pequeno deserto
longínquo: em um canto, um ícone da Virgem com velador sempre iluminado. Um
tronco à guisa de cadeira; um aquecedor — que não era usado nunca — e em frente ao
aquecedor vazio, algumas achas de lenha. Na entrada que partilhava com um vizinho, o
Padre Serafim guardava um caixão em carvalho bruto que ele mesmo talhara no tronco
de uma arvore grossa. Seu vizinho, Frei Paulo, homem simples de coração puro, trazia-
lhe, uma vez por dia, seu alimento. Como no deserto, recitava uma prece diante da porta
fechada. Porém ao abri-la, o recluso não lhe mostrava nem mesmo seu rosto. Com a
cabeça coberta por um pano, colocava-se de joelhos, pegava o prato e levava-o para
dentro. Tendo terminado de comer, recolocava o prato defronte a porta, e seu rosto
continuava invisível. Seu cardápio era sempre o mesmo: um pouco de farinha de aveia
seca e um pouco de chucrute.
Cristo fizera-se obediente até a morte. Por obediência, Serafim de Sarov trocara o
majestoso silêncio da floresta pelos barulhos de uma casa atarefada; o ar balsâmico das
resinas, o colorido dos crepúsculos sobre a elegância dos grandes pinheiros contra a
poeirenta penumbra de um cubículo de teto baixo. Dezesseis anos permaneceu trancado.
O que fazia ele? Mais do que nunca, mergulhava na leitura da Bíblia. Durante a semana,
lia o Novo Testamento inteiro. Às vezes, ele comentava as leituras em voz alta. Os
monges vinham escutar na porta e obtinham grande proveito espiritual. Ele tinha
também visões. Uma delas levou-o, como S. Paulo, às "moradas celestes." Juntamente
com seu corpo ou fora dele, ele não sabia.
Cinco anos se passaram assim. Um dia, sem sair de sua cela, o recluso abriu sua porta.
Quem queria vê-lo podia entrar. Sempre mudo, ele se ocupava de suas obrigações
cotidianas. Mais cinco anos e ele começou a responder perguntas, dar conselhos. No
começo, somente os monges o visitavam. Foram logo seguidos por leigos. A própria Vir
— gem havia dado ao recluso a ordem de recebê-los. O fluxo não parava mais. Mas ele
não deixava nunca seu reduto escuro.
A falta de ar e de exercício lhe causava insuportáveis dores de cabeça. Ele saia à noite,
às escondidas. Foi visto assim uma ou duas vezes, perto do cemitério, transportando
algo pesado e murmurando a oração de Jesus. "Sou eu, sou eu, o pobre Serafim. . . Cala-
te, minha alegria!" dizia. Sentindo suas forças diminuírem, pediu a Deus a permissão de
terminar sua reclusão. E a permissão veio. Em 25 de novembro, dia em que se
comemoravam os santos Clemente de Roma e Pedro de Alexandria, a Virgem Maria,
enquanto o Padre Serafim dormia, apareceu-lhe em companhia deles e o autorizou a
voltar a seu retiro. Tendo obtido a benção do Higumeno, o recluso, após dezesseis anos
de aprisionamento voluntário, saiu abertamente em pleno dia e dirigiu-se à floresta.
Segunda Parte
— Em Plena Luz.
Retorno no Tempo.
"Vem tanta gente ver o Padre Serafim" dizia, não sem um certo mau humor, o
higumeno Nifonte, "que não conseguimos fechar as portas do mosteiro antes da meia-
noite."
A partir do momento em que, novamente livre, Serafim de Sarov dividiu seu tempo
entre a floresta e sua cela monástica, ele deixou, efetivamente, de pertencer a si mesmo.
Era às multidões que ele pertencia daí por diante. Tinha sessenta e seis anos. Havia
passado os dezesseis primeiros anos de sua vida religiosa no mosteiro. O homem
maduro — a partir dos trinta e cinco anos — escondera-se na floresta, escolhera se
enclausurar durante 16 anos em sua cela monástica. Quase meio século de preparação
para um ministério que devia durar oito anos. Havia ele vivido este meio século fora do
tempo? Nada indica, mas poucas informações que se tem a seu respeito, a menor
influência dos acontecimentos contemporâneos na formação espiritual de Serafim de
Sarov. A história, entretanto, neste interim, seguia seu curso.
Ele recém havia se retirado para a floresta quando terminava, em meio à inquietude, o
brilhante reinado de Catarina. Atemorizada com as primeiras medidas da Marseillaise, a
Imperatriz, para obter da nobreza reacionária o perdão por sua aproximação epistolar
com Voltaire e Diderot e sua leitura de "O Espírito das Leis" de Montesquieu, prendeu
definitivamente os camponeses à terra, transformando a servidão de outrora em
verdadeira escravidão. O reinado, felizmente curto, de seu filho Paulo, cabe-de-esquadra
prussiano que via jacobinos em toda parte e semeava pânico ao seu redor, terminou em
um assassinato trágico (1801). Sucedendo-lhe aos 24 anos, Alexandre I, neto adorado da
grande Catarina, foi aclamado como libertador. Educado por um preceptor suíço,
discípulo de Rousseau, belo, elegante, cortês, o novo monarca encheu de esperanças os
corações da jovem nobreza livre-pensadora. Seus admiradores chamavam-lhe "nosso
Anjo" os desconfiados — a "esfinge charmosa." Completamente envolvido na política
européia, ora se desentendia, ora se reconciliava com Napoleão.
Serafim de Sarov havia entrado no silêncio quando, em 1812, Moscou ardeu e a Grande
Armada foi engolida pela neve. Finalmente vencedor, o Anjo revelou-se um engodo.
Sonhando com uma Europa unida antes do tempo, ecumênica antes da hora, ele próprio
enganado por Metternich e a Santa Aliança, foi buscar a ortodoxia junto a um
arquimandrita pouco confiável, Fotius, a mística junto a uma madame Kruedener e caiu,
finalmente desiludido, na influência de um verdadeiro monstro que ele considerava fiel:
o sádico e reacionário general Arakcheev.
O fim deste soberano ambíguo, deste Janus de duas caras, permanece um mistério que a
história não consegue elucidar. Será que ele morreu — jovem ainda — como quer a
versão oficial, na cidadezinha de Tagamog, na costa de Azov, cujo clima convinha, ao
que parece, à saúde vacilante da Imperatriz? Ou, como afirmam alguns e como quer a
espiritualidade russa, será que ele colocou em um caixão, no lugar do seu, o corpo de
um soldado recém falecido, e foi-se, peregrino sem dinheiro e sem passaporte, pelas
estradas de seu imenso império, para acabar na Sibéria onde viveu longos anos,
conhecido pelo nome de "Staretz Feodor Kouzmitch"? Por mais inverossímil que isto
possa parecer a um ocidental (imagine só um Louis-Philippe carregando um alforje de
peregrino mendigante!), é bem possível que a segunda versão seja a verdadeira.
O Imperador.
Foi em 1825, ano em que Serafim de Sarov terminava sua reclusão. Um monge que,
mais tarde, iria contar a história a um oficial da marinha iniciado em religião no Deserto
de Sarov, reparou um dia que o Padre Serafim limpava e varria sua cela com um
cuidado incomum. Ao cair da tarde, uma "troïka" parou em frente à escadaria. Vindo a
seu encontro, o staretz curvou-se até o chão, saudando o oficial que desceu. Em seguida,
ambos se retiravam para a cela do Padre e lá ficaram trancados durante cerca de três
horas. Era noite quando o desconhecido saiu para retomar seu lugar na carruagem. O
staretz disse, do alto da escada à guisa de adeus, estas misteriosas palavras: "Lembra-te,
Senhor, do que te disse, e cumpre-o." O monge, intrigado, teria se escondido e teria
ouvido.
O que dá um certo peso a este relato é a ausência do Imperador, durante três dias, da
cidade de Nizhni-Novgorod, distante de 60 kilometros de Sarov, onde, na época, ele
ficava. O emprego do tempo imperial não fala nada destes dois dias. Alexandre gostava
de agir as ocultas. Era assim que frequentemente visitava — alma atormentada —
monges reputados por sua vida de oração. Por intermédio dos nobres próximos a ele —
proprietários de terra dos arredores é possível que tenha ouvido falar do eremita. O
trajeto de Nizhni Novgorod ao Deserto de Sarov, devido ao estado deplorável das estra
— das, exigia pelo menos dois dias. Teria o "humilde" Serafim, de posse da paz de
Cristo, oferecido seus conselhos e dado sua benção ao soberano, dono da sexta parte do
globo que, do alto de sua glória, teria visto o abismo de todas as vaidades? Não se pode
afirmar, nem negar*. A família imperial entrou, mais tarde, em contato com Feodor
Kouzmitch que viveu na Sibéria até uma idade bastante avançada, porém desencorajou
todas as especulações a seu respeito.
O Staretz.
"Staretz" — doravante, assim era chamado o eremita de Sarov. Literalmente, "staretz"
quer dizer "ancião" "yerontas" em grego. Tomado no sentido monástico, um pai
espiritual. São Paulo já reclamava para si esta paternidade quando escrevia aos
Coríntios: "Pois eu vos gerei pelo Cristo Jesus" (l Cor. 4:15) e aos Gálatas: "Meus
filhos, por quem de novo sofro as dores do parto" (Gal. 4:19). Nos mosteiros orientais,
os "anciãos" guiavam noviços. Grandes santos foram formados por "startzi." Simeão o
Novo Teólogo proclamava dever tudo a seu staretz, Simeão o Piedoso. Mas na Rússia, o
"starchestvo" — o ministério do Staretz — novamente posto cm vigor por Paissy
Velitchkovsky no fim do séc. XVIII, tornou-se, pode-se dizer, uma verdadeira
instituição que teve um papel considerável na história do país. Serafim de Sarov foi o
primeiro, o maior, destes homens de Deus. Após sua morte, o carismo do "Starchestvos"
sob cuja forma "a santidade dos tempos passados voltou à vida na santidade moderna de
uma forma tão tradicional e ao mesmo tempo tão surpreendente por sua novidade"
passou para o "Deserto" de Optino onde, tornada hereditária, manifestou-se em várias
gerações de "Startzi" que se sucederam até a Revolução. Como se sabe, Tolstoi e
Dostoievsky foram a Optino buscar a sabedoria. E convertido por sua mulher, o filósofo
Kireyvsky escrevia: "Todos os livros, todas as obras do espírito não valem, a meu ver, o
exemplo de um santo staretz."
O exemplo, sim. Pois é sobretudo pelo exemplo que pregavam os eleitos do Espírito.
Eles próprios deviam ter feito suas provas e se mostrado dignos de seus dons. Um guia
inexperiente é perigoso. É um destes cegos de quem fala o Evangelho que cai num
buraco junto com aquele que pretendia levar ao bom caminho. "O Senhor não abençoa
aqueles que se contentam em ensinar, mas antes aqueles que pela prática anterior dos
mandamentos mereceram ver e contemplaram em si mesmos a luz resplandecente e
cintilante do Espírito e que, nesta visão, neste conhecimento e influxo, conheceram pelo
Espírito aquilo de que devem falar e que devem ensinar aos outros" escreveu S. Simeão
o Novo Teólogo."
Com sua habitual bondade, bem russa, Serafim de Sarov confirmava as palavras do
grande Bizantino: "Sei que ele é muito hábil em inventar sermões" dizia ele de um
teólogo a quem ia ser apresentado. Porém, ensinar é tão fácil quanto jogar pedras do alto
de nosso campanário. Quanto a executar o que ensinamos, é tão difícil quanto levar
pedras para o alto do campanário. Esta é a diferença entre o ensinamento e a prática."
Uma tirada talvez discutível, mas não desprovida de verdade, conta que existe um
peregrino adormecido em cada russo, e que cada russo está pronto a percorrer centenas
de kilômetros para encontrar um "staretz" autêntico. A reputação do staretz Serafim
crescia dia após dia; multidões — não raro vários milhares de pessoas de uma vez —
invadiam o Deserto de Sarov. O que viam elas lá?
O Resultado da Ascese.
Amadurecido em perfeito silêncio, o recluso intercede pelo mundo inteiro em sua prece.
"Porém aquele, disse Isaac o Sírio, que entra em relação com os homens e ignora suas
misérias, crendo ser mais fiel assim às austeridades de sua regra, não é misericordioso, e
sim cruel. . . Quem não visita um doente não verá a luz. Quem desvia sua face de um
aflito, verá seu dia tornar-se em trevas. E os filhos daquele que não ouve a voz do
sofrimento irão, cegos, às apalpadelas, procurar um refúgio. . . pois a cada existência
sua hora, seu lugar e sua particularidade."
Houve um tempo em que o Padre Serafim obstruía com troncos de árvores o caminho
do Pequeno Deserto Longínquo, recusava-se a falar com seus semelhantes e escondia
sua face perante eles. Agora sua hora era chegada.
— Admitamos, dizia ele, que eu feche a porta de minha cela. Aqueles que virão,
esperando uma palavra reconfortante, implorar-me-ão, em nome de Deus, de abrir. Não
tendo recebido resposta, irão tristonhos para casa. Que álibi poderei apresentar a Deus
no dia de Seu terrível julgamento?
Sua paciência era inesgotável. Ele escutava cada um com atenção e doçura, mas não
abria indistintamente perante todos os tesouros de seus carismas.
— Não se deve, dizia ele, abrir sem necessidade, seu coração a outros. Entre mil haverá
um único, talvez, capaz de entrar em seu mistério. Com um homem psíquico, deve-se
falar em coisas humanas. Mas com aquele que tem a inteligência aberta ao sobrenatural,
deve-se falar de coisas celestes.
Da Clarividência.
"Eu sei" dizia o staretz. Mas como ele sabia? Um de seus amigos, o Padre Antônio,
higumeno do mosteiro de Vissokogorsk, um frequentador assíduo de Sarov, um dia foi
testemunha de uma conversa entre o santo homem e um comerciante de Vladimir que
via pela primeira vez, mas cuja alma era como se fosse um livro aberto. O Padre
Antonio lhe perguntou em seguida como ele conseguia penetrar nas profundezas mais
íntimas de cada consciência sem fazer perguntas, sem esperar confidências.
A resposta do staretz abre-nos os olhos. "Ele vinha até mim, respondia, falando do
comerciante, como os outros, como você, vendo em mim um servo de Deus; e eu,
indigno Serafim, me considero um pobre servo de Deus, e o que Deus ordena a seu
servo, eu transmito. O primeiro pensamento que me ocorre, suponho que é Deus que o
manda, e falo sem saber o que se passa na alma de meu interlocutor, mas crendo que é a
vontade de Deus e que é para seu bem. Às vezes, me fiando em minha própria razão, eu
respondia, achando que era fácil. Nesse caso, produziam-se erros. Como o ferro se
entrega à bigorna, eu entrego minha vontade a Deus. Ajo como Ele quer. Não tenho
vontade própria." Porém o Padre Antonio replicou que o staretz via a alma de um
homem, como um rosto no espelho, por causa da pureza de seu espírito. O Padre
Serafim pôs a mão direita sobre a boca do higumeno. "Não, minha alegria, não se deve
falar assim. O coração humano é aberto unicamente a Deus. Se o homem se aproxima,
vê como o coração do outro é profundo" (Sal. 64:7) O staretz não ia do homem a Deus,
mas do Deus ao homem. Não fazia psicanálise, mas punha-se à escuta do Espírito.
"Ele advinha" diziam os camponeses. Um deles correu uma bela manhã pedir a ajuda do
staretz em um assunto para ele vital: haviam-lhe roubado o cavalo, e sem cavalo ele não
poderia trabalhar nem alimentar sua família. "O Padre Serafim, conta uma testemunha
ocular, pegou em suas mãos a cabeça do camponês e aproximou-a da sua. "Envolve-se
em silêncio, disse-lhe, vai a X (designou um vilarejo vizinho). Antes de entrar neste
vilarejo, vira à direita. Percorre, por trás, quatro pátios de fazendas. Veras então um
portão. Empurra-o, pega teu cavalo e leva-o sem dizer nada." O que foi feito.
O staretz era aquilo que chamamos, hoje em dia, "social"? Nas raras instruções
espirituais deixadas por escrito, ele nos da estas linhas significativas: "Ao se aproximar
dos homens, é preciso ser puro em palavras e espírito, igual para com todos (grifo
nosso), nunca elogiar ninguém — senão, tornaremos nossa vida inútil." Estava inteirado
das condições miseráveis da vida camponesa, o que não fazia dele um revolucionário.
Tanto quanto São Paulo, ele não pregava a abolição da escravatura, mas chamava ao
coração e à consciência de cada um. Ao tocar com o dedo as cruzes que ornavam o peito
de certas altas dignidades, lembrava-lhes que foi sobre uma cruz que o Senhor morrera e
que, conseqüentemente, as cruzes que eles ostentavam, ao invés de ser objeto de
orgulho, deviam ao contrario inspirar-lhes uma conduta digna de um cristão. A um
funcionário importante e rabugento que se recusava a receber durante muito tempo,
tendo-lhe finalmente aberto a porta, perguntou: "vosso pessoal não age para com os que
vêm vos ver como eu agi para convosco? "O Patrão não está em casa" dizem eles; ou "O
Patrão não tem tempo." Entristecendo assim, vosso próximo, atraís sobre vós a cólera
divina." Ouviu-se um orgulhoso general, vindo a ele por curiosidade, chorar como uma
criança em sua cela. "Atravessei toda a Europa com os exércitos russos, explicou ele
mais tarde, e nunca encontrei nada parecido: toda minha vida estava aberta perante ele,
até os mínimos detalhes, ignorados por todos." Por outro lado, o staretz amou o grande
Senhor que era o príncipe Golitzine, chegado incógnito a Sarov. Ao se separar dele,
instou-lhe que prestasse uma atenção especial no último versículo do Credo: "Espero a
ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir."
Paternidade Maternal.
Entre os visitantes que ele recebia, havia naturalmente muitos monges e clérigos. Um
deles, aquele higumeno de Vissokogorsk, Antonio, que havia feito ao staretz perguntas
sobre sua clarividência, acorreu um dia para contar-lhe a angústia que o sufocava.
Crendo que sua morte estava próxima, ele vinha se despedindo de todos os que o
cercavam, em seu mosteiro. "Você não esta entendendo bem, minha alegria" disse-lhe
afetuosamente o staretz. Você deixará o mosteiro, mas não morrerá. Você será colocado
à frente de um grande Mosteiro." A predição não demorou a se realizar. O Padre
Antonio foi designado pelo Metropolita Filareto de Moscou para representá-lo como
vigário naquela abadia, venerável entre rodas, a Trindade-São-Sérgio. As
recomendações que lhe fez o staretz, prevendo esta nomeação, podem e devem ser
comparadas às que outrora ele fez a um noviço, a respeito da vida religiosa (ver na la
parte). Vistas em conjunto, elas formam como que um par onde o comportamento do
superior e o dos inferiores se harmonizam, completando-se.
"Seja para teus monges antes uma mãe do que um pai, dizia ele a Antonio*. Todo
superior deve ser — e permanecer — para suas ovelhas como uma mãe sensata. Uma
mãe amorosa não vive para si, mas para suas crianças. Ela suporta com amor as
enfermidades dos doentes; ela purifica os que estão sujos, lava-os suavemente, com
calma; veste-os com roupas limpas e novas; calça-os, aquece-os, nutre-os; consola-os e
ocupa-se em ambienta-los de forma a nunca ouvir de sua parte a menor queixa. Tais
crianças são muito ligadas à mãe. Assim cada superior deve viver não para si, mas para
suas ovelhas. Deve ser indulgente para com suas fraquezas; suportar com amor suas
enfermidades; cobrir as feridas do pecado com emplastros de misericórdia; erguer com
delicadeza aqueles que caem; purificar tranqüilamente aqueles que se sujaram por um
vício qualquer, impondo-lhes uma penitência suplementar de oração e jejum; vesti-los
de virtude pelo ensinamento e o exemplo; ocupar-se deles constantemente e salvaguar
— dar sua paz interior de forma a nunca ouvir deles choro ou lamento. Então eles, por
sua vez, farão o possível para facultar ao superior a tranquilidade e a paz."
* As recomendações feitas por S. Francisco de Assis aos Superiores de suas fundações são
curiosamente semelhantes. Ele usa também o termo "mãe."
Ascese e Símbolos
Assim rodeado, procurado, venerado, o staretz relaxava sua ascese pessoal? "É difícil
para o homem viver a glória sem prejuízos para sua alma, lia ele em seu autor preferido,
Isaac o Sírio (Homilia I). Isto é difícil não somente aos apaixonados e aos que estão
lutando contra suas paixões, mas igualmente aos que venceram suas paixões, santos.
Ainda que lhes esteja dada a vitória sobre o pecado, a faculdade de mudar permanece. A
possibilidade de retorno ao pecado não lhes é retirada. . ." A inclinação ao orgulho,
observa Macário o Grande, reside nas almas mais purificadas.
Serafim de Sarov continuava a dormir sobre sacos de pedra, com uma tora como
travesseiro, ou encostado na parede, com a cabeça entre os joelhos. Comia, como antes,
uma vez por dia um pouco de chucrute e um bocadinho de aveia seca, vestia-se com um
velho casacão branco e calçava "lapte" feitos de casca de bétula. Sua cela ainda era
aquele pardieiro atravancado de garrafas de vinho de missa e de sacos de pão seco que
ele distribuía em pequenos pedaços a seus visitantes. Outras garrafas continham óleo
para as lamparinas.
A um discípulo que lhe perguntara por que ele acendia tantas velas e lamparinas em
frente a seus ícones, o staretz respondia: "Várias pessoas me trazem óleo e velas
pedindo-me para rezar por elas. Menciono seus nomes ao recitar minha regra. Mas
como eles são numerosos, não poderia menciona-los cada vez que a regra exige — não
teria tempo de terminar a leitura da regra, se o fizesse. Então acendo uma vela para cada
um em sacrifício a Deus, às vezes uma vela grossa para muitos, e também lamparinas, e
onde a regra exige que os mencione, eu digo: "Senhor, lembra-te de todas estas pessoas,
teus servos, por cujas almas eu, indigno Serafim, queimo estas velas e lamparinas."
O Padre Serafim dava grande importância a este procedimento que remontava a Moisés
segundo ele. Não havia Deus falado com Moisés nestes termos: "Moisés, Moisés, diz a
teu irmão Arão que acenda perante Mim lamparinas de dia e à noite: isto me é agradável
e um sacrifício que me agrada." Em vão procurar-se-ia na Bíblia um texto exato
correspondente! É um exemplo de uma destas paráfrases bíblicas que o Padre Serafim
usava frequentemente, inspiradas, no caso, do Êxodo, 40:25 e do Levítico 24:2-4.
Ele gostava de comparar a vida humana a uma vela. "Ao fitarmos uma vela acesa —
sobretudo na igreja — pensemos sempre no começo, no desenrolar e no fim de nossa
vida, assim como se derrete uma vela acesa perante a face de Deus, nossa vida diminui a
cada instante, aproximando-se de seu termo. Este pensamento nos ajudará a não nos
dispersar na igreja, a rezar com mais fervor, e a fazer o possível para que nossa vida seja
semelhante a uma vela fabricada com cera pura, queimando e se apagando sem fedor."
As Mulheres.
Nesta cela tão frequentemente descrita, cujo ar, apesar do atravancamento, permanecia
curiosamente puro, ele recebia todo mundo, inclusive muitas mulheres. Não havia ele
um dia dito que era preciso desconfiar, como da peste, "destas gralhas pintadas"? Ao
envelhecer, cheio de força espiritual como estava, sua atitude para com elas havia
mudado. Foi o primeiro dentre os santos russos a se ocupar de sua sorte, prever o papel
que, no futuro, lhes estava destinado.
"Nunca esquecerei, conta uma delas, como, tendo orado comigo perante o ícone da Mãe
de Deus, ele pousou suas mãos quentes em minha cabeça e eu senti de repente uma
força vivificante se espalhar pelo meu corpo inteiro. Levantei meus olhos para o Padre e
vi que ele chorava. Uma de suas lágrimas caiu sobre minha testa. Chorava ele por mim?
Não ousei lhe perguntar. . .
Chorava ele pela sorte de tantas mulheres escravas de senhores desumanos, de maridos
cuja brutalidade mortificava suas almas e corpos, órfãs sem dote e sem apoio de quem
outrora se ocupava sua mãe, Ágata Mochnine de memória eterna? E mais que provável.
Ao falar com casais, o staretz não entrava em detalhes de sua vida conjugal.
Contentava-se em recomendar aos cônjuges a fidelidade recíproca e o amor que
asseguram à família a estabilidade e a paz. Insistia na hospitalidade e na esmola. "Não
negligencieis a hospitalidade pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos,"
disse S. Paulo (Ite. 13:2-3). Quanto à esmola, é alegremente que deve ser dada: "Deus
ama a quem dá com um coração alegre." Assim o staretz parafraseava as palavras do
Apóstolo (2 Cor. 9:7).
Era grande o respeito deste monge pela família. Se um homem vinha se queixar de sua
mãe alcoólatra, imediatamente tapava sua boca com a mão, para impedi-lo de falar e
para mostrar que os vícios dos pais não desobrigam as crianças de honrá-los, como
manda a Bíblia.
"Ao chegarmos no sábado para as vésperas, soubemos que o Padre Serafim estava no
mosteiro e que iria, como de hábito, comungar na manhã seguinte. Finda a liturgia,
fomos, em fila, para a cela do staretz onde ele se pôs a oferecer a seus visitantes, como
de costume, minúsculos pedaços de pão bento que retirava de uma taça cheia de vinho e
que oferecia em uma colher de estanho. Uma jovem senhora, Madame Z, parecia muito
espantada com esta regalia insólita e quando o Padre Serafim aproximou-se dela e lhe
colocou a colher perto da boca, não quis aceitar e, várias vezes, virou a cabeça. O bom
staretz pensando talvez que ela hesitava diante da largura da colher, disse-lhe
ingenuamente: "Use o dedo, minha bela senhora. . . "querendo dizer empurre o
conteúdo da colher para sua boca com o dedo. Ouvindo este conselho, a dama pôs-se a
rir, e eu também, em seguida, caí na gargalhada. O venerável staretz afastou-se
desconcertado, e a dama deixou a cela. Quanto a mim, como minha gargalhada
continuava solta, apesar dos esforços de minha mãe para freá-la, fui posto para fora e
recebi um duro sermão por minha conduta inconveniente. Fui privado de lanchar e
jantar, e minha mãe declarou que não me perdoaria se eu não obtivesse o perdão do
Padre Serafim, a quem ela me mandou ver.
Qual não foi minha surpresa quando vi, no meio da cela, um caixão e, sentado no
caixão, o venerável staretz com um livro na mão. Saudou-me com bondade.
— Minha mãe me manda lhe pedir perdão porque agora mesmo zombei do senhor.
— Sua mãe o manda? Está bem, agradeça-lhe de minha parte, meu amigo, agradeça-lhe
por interceder por um velhinho. Rogarei por ela. Agradeça-lhe!
Estas palavras foram ditas com bondade, mais uma ligeira entonação peculiar sobre a
frase "Sua mãe o manda" teve para mim o efeito de uma reprimenda. Sentindo-me em
falta e desejando obter o perdão do staretz a qualquer preço, tomei a liberdade de dizer:
— Não, não foi minha mãe que me mandou. Vim por vontade própria.
— Veio por vontade própria, meu amigo, eu lhe agradeço, lhe agradeço. Deus te
abençoe.
"Em seguida, perguntou-me se eu lia o Evangelho. Respondi que não. Naquela época,
quem lia o Evangelho, senão o diácono na igreja? O staretz convidou-me a sentar perto
dele. Abriu o livro que tinha na mão — que era justamente um Evangelho — e começou
a ler o capítulo 7 de S. Mateus: "Não julgueis para que não sejais julgados; pois com o
critério com que julgardes, sereis julgados." Ele leu o capítulo inteiro, sem comentários,
sem fazer a menor referência à minha conduta. Porém, escutando-o, compreendi
profundamente meu erro, e esta leitura deixou em mim uma impressão tão forte que as
palavras evangélicas ficaram marcadas para sempre em minha memória. Tendo
adquirido um Evangelho, li diversas vezes aquele capítulo de S. Mateus, e durante
muito tempo pude recitá-lo quase todo de cor.
Após terminar sua leitura, Padre Serafim me abençoou mais uma vez e, antes de me
deixar partir, aconselhou-me a ler o Evangelho sempre que possível, o que, tendo
gravado suas palavras no coração, passei a fazer regularmente.
As Crianças.
"Como sempre, após a liturgia, os peregrinos vindos ao Deserto para ver o starez
acorreram à sua cela. Porém a porta fechada não se abriu. Fatigado pelo contato com os
homens, ás vezes o Padre Serafim escapava para tomar fôlego em sua querida floresta."
— Ele deve ter escapado pela janela ao ouvir o barulho de suas carruagens no pátio,
disse um velho monge. Para vê-lo, é preciso procurá-lo no meio da mata.
— Não têm muita chance de encontrá-lo, disse o higumeno do mosteiro ao ver o bando
de visitantes partirem. Ele se deitará na grama. A menos que responda ao chamado das
crianças. Mandem que corram na frente.
A floresta, conta Nádia Aksakov, tornava-se cada vez mais espessa. Mal víamos a
claridade sob a abóbada dos imensos abetos. Tínhamos uma sensação de mal estar
naquela floresta obscura. Felizmente, um raio de sol brilhou entre os galhos
pontiagudos. Tomando coragem, lançamo-nos na direção desta luz. Uma clareira verde,
inundada pelo sol, abriu-se á nossa frente. Lá, ao pé de um abeto que se destacava, um
velhinho encarquilhado, curvado até o chão, cortava rapidamente com seu machado
(sic!) altas hastes de mato. Ouvindo o barulho, ele se ergueu, espichou o pescoço na
direção do mosteiro e, como uma lebre assustada, lançou-se na floresta; porém, logo
ofegante, parou, olhou receosamente para trás e, deitando na relva, tornou-se invisível.
Éramos uns vinte a chamá-lo assim. Ao som de nossas vozes infantis, ele não conseguiu
ficar escondido. Sua cabeça branca apareceu por sobre a relva. Com o dedo sobre os
lábios, parecia nos pedir para não denunciar sua presença à gente grande.
Afastando a relva para nos dar passagem, sentou-se e nos fez sinal de nos aproximarmos
e nos chamou com um gesto. A pequena Lisa — quase um bebê — foi a primeira a se
lançar em seus braços, apoiando sua bochecha macia no ombro enrugado do ancião.
— Que tesouros! que tesouros! — murmurava ele apertando cada um de nós contra seu
peito magro.
Confiantes, felizes, nós o abraçávamos. Mas o jovem pastor Sioma deu meia-volta e
correu para o mosteiro gritando: "Por aqui, por aqui! o Pe. Serafim está aqui!"
Voltando para o mosteiro, a pequena Lisa, que fora a primeira a ser abraçada pelo Pe.
Serafim, aproximou-se de sua irmã e, tomando-lhe a mão, disse: "O Pe. Serafim
somente finge ser velho, disse ela. Na verdade, ele é criança como nós, não é, Nádia?"
Com efeito, nunca em toda sua vida, escreveu, Nádia Aksakov, ela encontrou um olhar
de uma pureza tão infantil como o do Padre Serafim, e nunca viu um sorriso semelhante
ao seu. "Assim sorri um recém-nascido quando, como dizem as velhas babás, brinca
com os anjos durante o sono."
Espírito de infância? Loucura em Cristo? Será que isto era tudo o que os peregrinos de
Sarov viam quando acorriam ao deserto, curiosos ou cheios de fervor? A mesma Nádia
Aksakov, em suas memórias, nos dá uma imagem diferente do homem de Deus.
"Ele estava vestido com o hábito monástico tradicional (uma grande capa preta) e trazia
as insígnias de seu presbiterado — a estola (epitrachilion) e os punhos (que os padres
ortodoxos prendem nos punhos para celebrar). A alegria de um homem que havia
participado da refeição eucarística irradiava de seu rosto de testa alta e traços
expressivos. O brilho da inteligência resplandecia em seus grandes olhos azuis. Descia
das escadas lentamente, mancando um pouco e, apesar de sua enfermidade e a corcunda
que tinha no ombro, parecia ser — e era realmente — de uma beleza majestosa."
Depois de comungar, o Pe. Serafim passou entre as apertadas filas de peregrinos, com
os olhos baixos, sem se dirigir a ninguém. Desta vez, contra seu costume, parou.
Jamais esquecerei, escreve Nádia, seu olhar inspirado, seu rosto transfigurado e o som
de sua voz quando se dirigiu à multidão. Falava da Santa Cruz e de seu significado para
o cristão. Suas palavras sonoras, simples, eloqüentes, fluíam sem esforço e penetravam
nas almas. Falava com autoridade, à maneira do Cristo, seu Senhor e Mestre, e não
"como os escribas e os fariseus."
O Taumaturgo.
O Pe. Serafim discernia uns espíritos dos outros, predizia o futuro, mantinha relações
telepáticas com eremitas que viviam a milhares de kilometros de distância, respondia às
cartas sem nunca abri-las. Tinha o dom de levitação e de bilocação, e eis que o dom de
fazer milagres e de curar enfermos lhe foi concedido. Isso foi para ele motivo de
alegria?
"Os verdadeiros santos não somente não desejam fazer milagres, como também recusam
o dom quando este lhes é conferido. Não é só perante os homens que eles não querem
este dom, mas no fundo de seu coração. Se alguns aceitavam este dom, era por
necessidade. . . outros por ordem do Espírito Santo atuando neles, nunca por acaso, sem
necessidade."
— Você acredita em Deus? perguntou três vezes o santo homem. "Se acredita, minha
alegria, tudo é possível àquele que crê."
Tendo obtido uma resposta afirmativa, entrou em sua cela e voltou trazendo um pouco
de óleo proveniente da lamparina que queimava diante do ícone da Virgem. Com este
óleo, friccionou os pés e as pernas do doente, repetindo: "Pela graça recebida de Deus, é
o primeiro que curo." Em seguida enfiou nos pés de Manturov meias de pano, trouxe de
sua cela uma boa quantidade de pequenos pedaços de pão seco, com os quais encheu os
bolsos da sobrecasaca do jovem, e disse-lhe que voltasse a pé para a estalagem.
Manturov não estava seguro. Havia muito tempo que perdera o uso das pernas. Porém,
tendo posto os pés no chão, sentiu que tinha força para ficar de pé. Não cabendo em si
de contente, prostrou-se diante do staretz Serafim. Este ergueu-o e, severamente, disse-
lhe que devia agradecer a Deus, não a ele.
Feliz, Manturov voltou para casa, onde sua jovem mulher alemã, que desposara durante
seu serviço militar nas Províncias Bálticas. Mas ao fim de um certo tempo pôs-se a
refletir. Agradecer a Deus? Como? Voltou a Sarov e fez a pergunta ao staretz Serafim.
O velho fitou-o com um amor infinito. Porém, a resposta que deu deixou Manturov
consternado.
— Veja, minha alegria, disse ele jovialmente, você dará tudo o que possui a Deus e se
tornará um mendigo por vontade própria.
Seria essa "a terrível doçura do Evangelho"? Michel pensou em sua mulher, acostumada
com uma vida fácil, amante do luxo. . . O preço exigido pela cura não seria alto demais?
— Não tenha medo, acrescentou o staretz. O Senhor não o abandonará jamais nem nesta
vida, nem na outra. Ore. Reflita. E venha me ver novamente.
Antes de Lourdes.
O Higumeno Nifonte.
"Ninguém é profeta em seu país" diz a Bíblia. Quanto mais gente o Pe. Serafim recebia,
quanto mais milagres fazia, mais os monges do Deserto de Sarov olhavam-no com
suspeita e animosidade. O Padre Abade, sobretudo, desaprovava este velhinho
inconformista cuja presença transtornava o ritmo normal da vida monástica. Há um
"instantâneo" — de autoria do Pe. Antônio, higumeno do mosteiro de Vissokogorsk,
visitante assíduo do Deserto — que é revelador.
"Cheguei uma vez a Sarov, conta ele, para visitar o higumeno Nifonte que, segundo
diziam, estava seriamente doente. Para meu grande espanto, encontrei-o em perfeito
estado de saúde. Vendo minha surpresa, ele me contou o seguinte: "O Pe. Serafim veio
me ver e trouxe com ele um pedaço de pão preto que me deu dizendo: "Você está
doente, Padre. Pois bem, ordene que lhe preparem um caldo de peixe e tome-o,
comendo este pão; isso lhe dará forças e, com a ajuda de Deus, será curado! — "Que
está dizendo, staretz! Há um bom tempo que não como nada e não posso comer nada, e
os médicos me proibiram pão preto." — "Seus médicos não lêem os salmos. E nos
salmos está escrito, o pão fortifica o coração do homem. Então, coma um pouco deste
pão." Ele insistia tanto que eu não pude recusar. Os monges pegaram peixe e fizeram
um caldo. Pus-me a bebê-lo comendo o pão que o Padre Serafim trouxera, e ele me
controlava para que eu comesse tudo. Quando terminei, ele disse: "Assim é que é bom.
Agora, com a ajuda de Deus, você recobrará a saúde." Assim que ele partiu, senti uma
grande vontade de dormir, eu que há tanto tempo não conseguia pegar no sono.
Adormeci profundamente e despertei empapado de suor. A doença desaparecera. E
agora, vou muito bem, "
"Que você pensa disso, Padre Antônio, concluiu o higumeno de Sarov, será que nosso
Padre Serafim é realmente um taumaturgo?"
Diveyevo.
Porém nada do que o staretz fez ou disse exasperou os monges do deserto de Sarov
tanto quanto a fundação de um convento de mulheres. Entretanto, ele não agia por conta
própria, e sim cumpria ordens. "Em Diveyovo, dirá ele, não dei um passo, não preguei
um prego contra a vontade da Mãe de Deus, a Santíssima Virgem Maria."
Tudo começou quando ele ainda era diácono. Uma vez, ao ir para o enterro de um rico
benfeitor do mosteiro, o Padre Pakhôme, superior de Sarov na época, acompanhado do
hierodiácono Serafim, parou em Diveyevo para saber notícias de uma enferma, a
piedosa viúva Ágata Melgunov que, durante muitos anos, vivera neste pobre lugarejo do
qual se tornara benfeitora. Para seus habitantes, construíra uma igreja e, no fim de sua
vida, com a benção do higumeno de Sarov, fundara ali uma pequena comunidade.
Sentindo que o fim estava próximo, Ágata pediu a extrema unção e entregou ao
Superior do Deserto três pequenos sacos — um cheio de ouro, outro de prata, o o
terceiro com moedas de cobre — tudo o que restava de sua fortuna, outrora
considerável, pois antes de se entregar a Deus ela havia sido uma nobre dama, viúva do
rico coronel Melgunov. Ao lhe confiar suas pequenas economias, a moribunda suplicou
ao Pe. Pakhôme que nunca abandonasse suas "órfãs" as irmãs de sua jovem
comunidade.
"Minha Mãe — teria respondido o ancião — não quero mais nada, senão fazer a sua
vontade. . . Mas sou idoso e só Deus sabe quanto tempo de vida me resta. Enquanto que
o hierodiácono Serafim, que aqui está, é jovem e vivera o bastante para ver sua
comunidade crescer e se desenvolver. É a ele que deve confiá-la. A própria Santa
Virgem o instruirá e lhe mostrara o que deve fazer." Profecia que levou tempo para se
cumprir.
Passando por Diveyevo dois dias depois, os Padres encontraram a santa monja em seu
caixão e concelebraram uma missa de requiem. Era dia 13 de junho de 1789 e chovia a
cântaros. Porém, após o enterro, ao invés de compartilhar uma refeição com as
mulheres, o jovem hierodiácono Serafim, ainda misógino, partiu sob a chuva torrencial
para atravessar a pé os doze kilômetros que separavam Diveyevo de Sarov.
Ágata e suas órfãs . . . essas palavras encontraram eco no coração do filho de sua xará, a
comerciante de Kursk? Em todo caso, aparentemente sem se preocupar com as monjas
de Diveyevo, ele se retirou para a floresta, enclausurou-se, e passaram-se os anos.
Porém eis que um dia — em 1823, quando após uma longa reclusão ele abriu aos
visitantes a porta de sua cela — o Pe. Serafim, aos 64 anos de idade, mandou buscar
Michel Manturov que ele recém havia curado e a quem aconselhara fazer voto de
pobreza. Michel vendera todos os seus bens e, tendo deixado de lado todo o dinheiro,
como desejava o staretz, instalava-se, em companhia de sua mulher alemã, em uma
casinha que comprou em Diveyevo, suportando pacientemente as zombarias de seus
amigos e o mau humor de sua esposa.
Quando o jovem se apresentou, o staretz pegou uma pequena estaca, fez o sinal da cruz,
beijou a estaca e pediu que Manturov fizesse o mesmo. Em seguida, cumprimentou-o,
curvando-se até o chão e disse: "Vá, batiushka, a Diveyevo.
Chegando lá, coloque-se de frente à janela da nave da igreja de Nossa Senhora de Kazan
(construída pela Mãe Ágata). Em seguida, você dará X passos (o número exato foi
esquecido), e se encontrará em uma trilha; de lá, contará X passos e chegará a uma
lavoura; mais X passos e chegará a um prado. La, no centro — bem no centro — você
plantará esta estaca. É isso, batiushka, que eu peço que você faça."
Passou-se um ano. Como o staretz não falava mais da pequena estaca, Michel Manturov
concluiu que ele a esquecera. Porém um belo dia o Padre Serafim o chamou novamente
e, desta vez, confiou-lhe quatro pequenas estacas.
Quando Manturov voltou, o staretz, sem uma palavra, curvou-se até o chão. E,
novamente, a extraordinária irradiação de seu rosto impressionou o jovem.
O que significava esta estranha pantomíma? Como podia o Pe. Serafim, que não havia
posta os pés em Diveyevo desde o enterro da Madre Ágata em 1789, conhecer, 34 anos
depois, a distância exata entre as lavouras e os prados atrás da Igreja? Em todo caso, foi
neste momento que tudo começou.
Uma nova comunidade nasceu. A "Comunidade do Moinho" (chamada assim por causa
do moinho que alimentava as órfãs, construído no lugar marcado pelas estacas) deveria
ser nitidamente diferente da antiga comunidade da Madre Ágata. Somente virgens
poderiam fazer parte dela, e a própria Virgem Maria seria a Superiora.
Não se sabe precisamente em que momento Ela deu as ordens ao Pe. Serafim. Mas uma
vez plantadas as estacas — em uma terra que ainda não lhes pertencia — ele pôs mãos à
obra. O Padre Abade Nifonte fê-lo pagar a madeira que ele pegava na floresta de Sarov
para a construção do moinho, e enviou inspetores a Diveyevo. "O Pe. Serafim nos afana
tudo" dizia. Porém o moinho — graças à ajuda de um camponês devoto — foi
construído o pôs-se a moer. Sete irmãs viveram ali, dormindo sobre pedras de moinho
até o frio de outubro quando ficaram prontas as primeiras celas.
Quem eram estas irmãs? Jovens aldeãs escolhidas pelo Pe. Serafim com a aprovação da
Celeste Superiora. Se sua escolha Lhe desagradava, ele mandava a postulante para a
Madre Xênia, mulherzinha seca, rude e iletrada, mas de um espírito indomável, que
dirigia a comunidade da Madre Ágata.
— Pedi às senhoritas que viessem — elas não quiseram, dirá o Padre Serafim.
"Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sabias; e Deus
escolheu as coisas fortes deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as
coisas vis deste mundo e as desprezíveis" (l Cor l:27-28). Eis o que a Virgem Maria,
"humilde serva" escolhia com um objetivo que só seria conhecido anos mais tarde.
As recrutas do Padre Serafim não eram todas entusiastas. A penúria em que a
comunidade seria obrigada a viver amendrontava seu bom senso camponês. Em que
aventura o staretz se lançava?
— Não, Batiushka, não! Não quero, não posso! gritava a bela Xênia Putkov, filha de
ricos latifundiários; noiva de um jovem que amava, à qual o staretz pedia que tomasse
os véus. Mas ele replicava: Escute, minha alegria. Vou lhe contar um segredo.
Por enquanto, não o revele a ninguém: Foi a Própria Mãe de Deus que escolheu a
localização desta comunidade. Tudo o que Ela quiser nos dar, nós teremos: um moinho,
em seguida uma igreja. Veja, minha alegria, teremos tudo, terras para nós. . .
Mas por enquanto não havia nada e estas promessas pareciam inverossímeis ao senso
prático da rica camponesa.
— Você diz que me ama e não quer acreditar em mim — insistia o staretz.
"E — contava, em sua velhice, a bela Xênia, futura Madre Capitolina — ele aparecia de
repente irresistivelmente sedutor, todo luminoso."
Ainda assim, uma jovem veio — Helena Manturov, irmã de Michel. Menina mimada de
grandes olhos negros — bela, viva, charmosa — noiva aos 17 anos, tendo rompido sem
motivo seu noivado, ela teve, ao voltar do enterro de seu pai, uma visão terrível que a
orientou para a vida religiosa. Pareceu-lhe ver um enorme dragão negro avançar para
ela, cuspindo fogo. É verdade que ela estava sob a influência de seu primeiro contato
com a morte, ardendo em febre. Não obstante, ela levou a visão a sério, abandonou a
vida mundana, mergulhou em leituras edificantes e tudo o que queria era a tomada de
véu e a vida monástica. Porém o Pe. Serafim, que ela foi consultar, recebeu-a bonachão.
— Ih, Matiushka, que história é essa? Entrar no convento — que idéia! Você tem que se
casar, minha alegria!
Helena chorou; rogou à Santa Virgem, e seu desejo de entrar no convento só aumentou.
Depois de pô-la longamente à prova, o staretz finalmente a mandou para Diveyevo e
nomeou-a a "superior terrestre" de sua virginal comunidade.
Neste mesmo ano, um novo pároco foi nomeado na paróquia de Diveyevo: o Pe. Basílio
Sadovsky, de somente 25 anos de idade. O staretz amou este jovem padre de coração
puro e fez dele, apesar de sua juventude, o confessor de suas "órfãs."
As Igrejas.
— Lembre-se de uma vez por todas — dizia ele à bela Xênia que veio lhe falar de uma
oferta — que não é qualquer dinheiro que é agradável ao Senhor e a Sua Santa Mãe.
Nem tudo o que querem me dar entrará em meu convento, Matiushka. Existem alguns
quem a doação em si seria o bastante. Simplesmente a aceitariam. Porém, a Rainha do
Céu não aceita tudo o que lhe oferecem. Há dinheiro e dinheiro. Não raro ele é fruto da
violência, de lágrimas e de sangue. Não temos o que fazer com este dinheiro. Não
devemos aceitá-lo.
Este ponto de vista era idêntico ao dos loucos em Cristo que recusavam a esmola
oferecida por certos ricaços para aceitar a ajuda fraternal dos pobres de coração puro.
A Igreja ficou pronta em 1829 e foi sagrada, como queria expressamente o staretz, no
dia 6 de agosto, festa da Transfiguração do Senhor. Uma cripta dedicada à Santa Mãe de
Deus foi anexada e sagrada no ano seguinte, no dia 8 de setembro, festa da Natividade
da Virgem.
Mas poderia-se perguntar — por que tantas igrejas? Elas não são centros, não
geográficos porém cósmicos, de um universo destinado a ser eucarístico? Partindo da
igreja, a benção do óleo, do pão, do vinho e do trigo sacraliza os elementos de toda a
superfície da Terra.
— A terra sob nossos pés é santa — dizia o staretz. Todos os que nela vivem serão
salvos. Vocês sabem que o inimigo havia se instalado aqui e nas imediações. Porém o
misericordioso Senhor me permitiu expulsar aquele bando de satanás.
Com a chegada da Madre Ágata, a fundação dos conventos e a construção das igrejas, o
clima mudou, como mudou, após o batismo da Rússia, na cidade pagã de Kiev, como
mudou, na França, na aldeia de Ars quando ali chegou um santo pároco, como continua
a mudar em todo lugar onde a graça ganha terreno nas consciências e corações. Tudo o
que se passa no homem tem um significado universal. Será que ele se dá conta desta
temível responsabilidade.
O Padre Serafim amava muito suas igrejas. "O que há de mais beIo, mais doce, mais
elevado do que uma Igreja? Onde nos alegraria-mos em espírito mais do que na Igreja,
na presença de nosso Senhor e Deus? Não há obediência mais importante do que a que
realizamos na igreja. Se com um pequeno esfregão apenas limparmos a poeira da Casa
de Deus, não ficaremos sem recompensa."
Depois que Helena Manturov pronunciou seus votos nas mãos do hieromonge Hilário
de Sarov, o staretz a nomeou sacristã com a bela Xênia Putkov como adjunta. Na
presença de seu pároco, o Padre Basílio, deu-lhes instruções precisas a respeito dos
ofícios e das normas do mosteiro. Dois monges de Sarov iriam ajudar o Pe. Basílio a
ensinar as irmãs as rubricas e o canto litúrgico. Sem nunca ir a Diveyevo, o staretz, de
longe, supervisionava tudo e queria que tudo fosse impecável. Fazia Questão que uma
vela ardesse constantemente, dia e noite, diante do ícone do Salvador na igreja da
Natividade, e que uma lamparina ficasse eternamente acesa embaixo, na cripta, diante
do ícone da Mãe do Verbo. Ele apreciava muito o simbolismo destas luzinhas que ele
dizia serem agradáveis a Deus e que fazia remontar a Moisés.
"Enquanto ele viveu — contava a bela Xênia — nós não sabíamos o que era comprar
velas. Traziam-lhe muitas e ele, nosso Batiushka, guardava tudo para Diveyevo.
Quando nós íamos vê-lo — sobretudo nos últimos tempos, antes de sua morte — ele só
falava de suas igrejas: "Vocês têm tudo o que preciam, Matushka? Não lhes falta nada?"
"Não, Batiushka" — "Graças a Deus, minha alegria, agradeçamos ao Senhor!"
murmurava ele fazendo rapidamente o sinal da cruz."
Entretanto, apesar da solicitude do santo ancião, nem sempre deixava de faltar algo: a
jovem comunidade era pobre, e as irmãs não ousavam importunar o staretz.
Um dia, tencionando colocar óleo na lamparina cuja chama perpétua iluminava o ícone
da Santa Virgem, a irmã Xênia constatou que a garrafa estava vazia. Aproximando-se
após a liturgia ela viu que, por falta de óleo, a lamparina estava apagada. O que fazer?
Não havia óleo nem dinheiro na comunidade. A dúvida invadiu o espírito da jovem. Se
durante a vida de seu batiushka suas diretrizes não podiam ser respeitadas, como seria
após sua morte? Tristemente dirigia-se à saída quando escutou um leve crepitar e,
voltando-se, viu que a lamparina, cheia de óleo, acendera novamente por si só. Feliz,
novamente serena, correu para contar o prodígio a Helena Manturov quando, perto da
porta, um camponês a chamou: "A senhora é a sacristã?" — "Sim, por que?" — "O Pe.
Serafim lhe recomenda que mantenha uma chama perpétuamente acesa diante do ícone
da Mãe de Deus. Assim, veja, trago 300 rublos. É para o óleo. E para que inscrevam
meus pais no necrológio e mencionem seus nomes em suas preces."
A Regra.
A regra com que a Soberana do Céu havia dotado a jovem comunidade era das mais
simples: seus fundamentos eram a oração de Jesus e a obediência. Três "Pai-Nosso" e
três "Ave-Maria" e a recitação do Credo, de manhã, `a tarde e `a noite, eram suficientes
à pratica cotidiana destas camponesas que, para ter o que comer, continuavam a
trabalhar no campo, acompanhando todavia — e isto era o mais difícil — suas
atividades cotidianas da oração do coração ininterrupta. Hesiquiasta convicto, o Pe.
Serafim não hesitara em fazer deste diálogo íntimo com o Senhor a própria base do
novo edifício. Entretanto, a leitura ininterrupta dos salmos na Igreja, por 12 irmãs
especialmente designadas para esta tarefa, era obrigatória, assim como o canto da
"Paraklisis" — um ofício à Virgem — nos domingos antes da liturgia.
Milagres.
Enviadas pelo staretz, algumas irmãs colhiam frutinhas na floresta. Um guarda florestal
a cavalo quis enxotá-las e ergueu sobre elas seu chicote. Porém o chicote caiu-lhe das
mãos e ele não conseguiu reencontrá-lo. Ele até ficou chateado, coitado, pois o chicote
não lhe pertencia. Quando as irmãs contaram o incidente ao staretz, ele se pôs a rir. "Ele
pode procurar à vontade disse. O chicote esta é debaixo da terra."
"O Padre me falou muito sobre a vida eterna" — lê-se frequentemente em declarações
feitas por algumas delas, inscritas na crônica de Diveyevo. Mas elas eram incapazes de
dizer em que consistia este ensinamento. Por outro lado, lembravam-se muito bem do
dia em que viram seu Batiushka andar em um prado por cima da relva; do dia em que
uma futura irmã, instantaneamente curada de uma paralisia nas pernas, pôs-se a enfeixar
feno com elas; ou ainda do dia em que, após trabalhar exaustivamente, o staretz lhes
havia servido, em sua cela florestal, uma suculenta refeição sem carne preparada não se
sabe como nem com o quê, enquanto que ele próprio comia uma velha casca de pão que
elas haviam encontrado suspensa na ponta de um barbante em seu retiro.
O clima paradisíaco que cercava o homem de Deus, ao qual os animais haviam sido
sensíveis, triunfava sobre os determinismos e as limitações da matéria? "Cristo
ressuscitou,!" clamava o staretz. Nele, um mundo transfigurado surgia à luz do Espírito.
Para ele, não havia portas fechadas. O milagre florescia, sinal do retorno ao Paraíso.
Mas, podemos nos perguntar ao lermos na Crônica de Diveyevo relatos dos
contemporâneos do staretz tão simples, mas tão palpitantes de vida — Manturov, o
Padre Basilio, as próprias irmãs — porque esta prodigalidade descabida, inútil, esta
avalanche de maravilhas derramada sobre rudes aldeãs de uma província qualquer no
centro da Rússia? Por que este interesse, excepcional, que a Virgem tinha na fundação e
desenvolvimento da Comunidade do Moinho? A luz dos acontecimentos que se
desenrolaram em seguida, torna-se claro que uma visão profética do futuro era
subjacente a tudo o que se passava em Diveyevo. Monjas semelhantes às que, em
Diveyevo, andavam, por obediência, 24 km em jejum, terão, cem anos mais tarde, a
força de vontade necessária para jejuar, durante a Quaresma, nos campos de
concentração em regime de fome; preferirão ficar de pé um dia inteiro, imóveis na água
gélida da neve derretida, do que trabalhar no dia da Páscoa, suscitando através de
heróicos testemunhos a curiosidade e a admiração dos descrentes.
A Igreja russa tem poucos santos canonizados. A História russa, por outro lado, conhece
poucas — ou nenhuma — cortesãs. A santidade da Rússia está espalhada entre suas
mulheres. Em diversos níveis, elas são portadoras de seu ideal. Um bom exemplo é
dado por um retrato de mulher esboçado por Leon Tolstoi. Trata-se de sua tia que lhe
serviu de mãe quando ele ficou órfão.
"O que mais me impressionava e influenciava nela era sua surpreendente bondade para
com todos, sem exceção. Tento inutilmente me lembrar de pelo menos uma vez que ela
houvesse se irritado, dito uma palavra dura, emitido um julgamento. Em trinta anos de
vida não consigo me lembrar que ela o tenha feito sequer uma vez! Ela nunca ensinava
por palavras como se devia viver, nunca fazia "sermões. "Todo seu trabalho espiritual
era no interior, e no exterior só se viam seus atos — nem mesmo seus atos, mas sua
vida, calma, doce, resignada, amorosa, não de um amor inquieto, voltado para si mesma,
mas de um amor pacífico e como que secreto. Ela trabalhava em uma obra de amor
interiorizada, e por isso a pressa lhe era impossível. E estes dois dons — a paz e o amor
— faziam-na atraente e o convívio com ela encantador. Era alegre o ambiente de amor
que a cercava — de amor pelos presentes e ausentes, pelos vivos e pelos mortos, pelos
homens e também pelos animais."
A paz. O amor. A resignação. A alegria. Este retrato não lembra Serafim de Sarov?
Uma mulher como a tia de Tolstoi foi modelada por uma espiritualidade idêntica à sua.
A Morte.
Neste refúgio de promessas divinas, o Gólgota já projetava sua sombra. A Rússia estava
em guerra com a Polônia.
— Seja para ele uma mulher sábia. Esse nosso Mishenka é "muito estourado." Não
permita que ele se descontrole, é preciso que ele a escute.
Ela estava contente de partir. A eterna penúria em que o casal vivia era-lhe dolorosa. No
começo — mesmo não o abandonando — ela o criticava constantemente. Mas, como
ela própria conta em suas memórias, ele não fazia mais do que suspirar. A perspectiva
de ganhar um pouco de dinheiro lhe sorria.
— Você sempre me obedeceu — disse-lhe o ancião. Pois bem, minha alegria, eu queria
lhe dar uma obediência.
— Veja você, minha alegria, teu irmão Michel está muito doente. Ele está para morrer.
Porém eu ainda preciso dele para o convento, para as órfãs. Então, a obediência de que
quero a encarregar é a seguinte: morra em seu lugar.
Ele reteve-a por muito tempo, falando-lhe da vida eterna. Ela escutava sem dizer uma
palavra.
Mesmo levando em conta tudo isso, o staretz tinha direito de apressar sua morte? Ele
tinha o dom de curar. Não poderia curar a jovem se ela estava doente, e também seu
irmão Michel?
Ela se despediu mas, mal passou a soleira da porta, caiu desmaiada. O staretz deitou-a
no caixão que guardava na entrada (coisa que não deve tê-la tranquilizado quando a
pobrezinha recobrou a consciência), aspergiu-lhe água benta, deu-lhe de beber.
— Por que chorar? Como vocês são tolas ao chorar, minhas alegrias — dizia o staretz à
bela Xênia e as irmãs inconsoláveis com a perda de sua "superiora terrestre" — Vocês
deveriam tê-la visto pegar impulso e voar para o Reino de Deus: ela agora é dama de
honra da Rainha do Céu. . .
A Primeira Andorinha.
Entretanto, houve uma morte que o ancião lamentou. No momento em que recrutava
postulantes para sua nova fundação, a irmã Parasceva veio lhe ver em companhia de sua
caçula que, no dizer da primogenita, havia lhe seguido "como um cãozinho." Apesar de
sua pouca idade — tinha apenas 13 anos — ela insistia em querer entrar no convento.
Reservada, silenciosa, ela impressionou o staretz por apresentar algo de severamente
angélico em sua beleza juvenil. Sem sequer lhe dar tempo de voltar para casa, mandou-a
para Diveyevo. Enquanto aquela maravilhosa adolescente viveu, foi sua preferida. Ele
tinha por ela um carinho todo especial. Somente a ela falava de suas visões, confiando-
lhe segredos a respeito do futuro.
— O indigno Serafim poderia enriquecê-las se quisesse — dizia. Mas isto não lhes
serviria de nada. A abundância, para vocês, não aumentara; a escassez não diminuirá.
Nos últimos tempos, vocês conhecerão a abundância, mas então será o fim.
Sentado em um tronco, traçava o plano do convento*, como ele seria depois de sua
morte, com sua muralha de pedra, diversas igrejas, um campanário, novos alojamentos,
um refeitório, uma hospedaria. "E as terras?" perguntavam as irmãs — "Elas serão
nossas.
O Czar virá com toda sua família. O grande sino soará. Beng! Beng! (o staretz imitava o
som do sino). Em pleno verão, serão cantados hinos pascais. Mas esta alegria durará
pouco."
O rosto do ancião tornava-se sombrio. Abaixava a cabeça e lágrimas rolavam por suas
bochechas.
— A vida será curta então — suspirava. Os Anjos mal terão tempo de recolher as almas.
Dizia mais outras coisas — incompreensíveis — que a jovem Maria tentou transmitir
para as irmãs antes de morrer. Tratava-se de coisas que flutuavam, vagavam no mar,
que voavam no ar — grandes partidas. "Preparem sacos e lapti-(sapatos de casca de
bétula) — precisarão deles. Preparem o máximo que puderem: um par nos pés, outro na
cintura — nunca se sabe. . ." Quem poderia imaginar que, cem anos mais tarde,
aconteceria o êxodo e a dispersão dos Russos?
Ela própria partiu bem antes da hora — aos 19 anos de idade. Durante toda sua curta
vida, havia sido a imagem da obediência. Um dia, quando sua irmã Parasceva lhe falava
de um certo monge de Sarov, perguntou ingenuamente: "Como são os monges?
Parecem-se todos com Batiushka?"
— Não, nunca. Quando vou a Sarov, não vejo nada, não ouço nada. Batiushka me falou
para nunca olhar os monges. Então coloco meu xale sobre os olhos de forma a ver
somente o caminho de meus pés."
O staretz conheceu em espírito a hora da morte da doce criança que ele amava. Pôs-se a
chorar e disse a seu vizinho de cela, frei Paulo: "Maria deixou este mundo, Paulo.
Tenho saudades dela. Tenho tantas saudades que, como você esta vendo, não paro de
chorar."
Enviou círios em profusão para queimar em seu enterro, ordenou que a vestissem com
"a maior pompa." Entre seus dedos, enrolaram um rosário de couro, presente do staretz,
e ao redor de sua cabeça, amarraram o belo xale azul de franjas que ele lhe dera para os
dias em que ia comungar. A velha criança de olhos límpidos que o Padre Serafim era,
sentia-se aparentada em espírito à camponesinha, primeira andorinha de seu convento,
que partiu para a primavera sem fim do Reino. "No outro mundo, suspirava ele, ela será
sub-prioresa da Comunidade do Moinho e minha noiva na eternidade."
Uma vez, conseguiu fazê-la recuar. Era meia-noite quando um habitante do vilarejo
vizinho, Vorotilov, se jogou aos pés do staretz de Sarov, implorando-lhe que salvasse
sua mulher moribunda. "Ela deve morrer" respondeu ele. Mas de joelhos, soluçando,
Vorotilov suplicou ao homem de Deus que rezasse por sua esposa. O staretz fechou os
olhos. Ao fim de algum tempo, abriu-os, brilhando de felicidade. "Muito bem, minha
alegria, disse, erguendo Vorotilov, volta para casa. O Senhor concede a vida à tua
mulher." Voltando para casa, Vorotilov soube que uma melhora decisiva se produzira
no momento em que, em Sarov, o staretz havia orado pela enferma.
Tristes Pressentimentos.
Sua própria morte se aproximava. Ele sabia disto. As multidões, cada vez maiores, que
invadiam o Deserto e perseguiam-no na floresta, fatigavam-no. Era também dolorosa a
animosidade do higumeno Nifonte e da maioria dos monges em relação a sua obra
preferida — o convento de Diveyevo. Mas pior do que tudo era a atitude insincera e
melosa daquele que se revelaria como inimigo numero l da amada fundação.
"Quando eu ia a Sarov" lê-se nos depoimentos de Michel Manturov, feitos após a morte
do staretz e anexados à Crônica de Diveyevo, "eu não via nada de errado em Ivan
Tikhonov. Mesmo achando-o pouco simpático, entrava na casa dele se me convidava
para tomar um chá. Um dia, Batiushka me perguntou de onde eu vinha. Eu disse: "Eu
estava tomando chá em casa do pintor de Tambov" respondi. "Ah, minha alegria, não
vai lá, não! Vai te fazer mal. Ele não te convida com o coração puro, mas para espionar.
Desde então, suspendi minhas visitas. E extraordinário como Batiushka sabia tudo de
antemão e como nos protegia de todo mal."
"O coração frio" repetia o staretz, angustiado. Ivan Tikhonov teria o coração frio. Por
que o staretz tinha tamanho medo da frieza do falso discípulo? Porque o demônio é frio,
ele que é o pai da mentira.
A irmã Ana conta que um dia ela se encontrava perto da fonte milagrosa em companhia
do Padre que, apoiado na rampa, inclinava-se sobre a agua. "Veja, Matiushka. . . . —
disse ele de repente. Vi a agua ficar turva, agitada e, apavorada, perguntei: "O que isto
quer dizer? Neste exato momento eu vi Ivan Tikhonov descendo a ladeira. Batiushka
apontou para ele. "É ele que vai perturbar tudo. Ele perturbou a mim, o mísero Serafim,
e também a fonte, e perturbará todo o mundo."
Nas horas difíceis que precederam sua morte, quando o staretz sofria ao pensar nos
estragos que aquele homem falso e sem escrúpulos iria causar no feudo de sua
Soberana, a Rainha do Céu vinha reconfortar aquele que Ela chamava de "Liubimitche
Moï" — expressão popular carinhosa introduzível — alguma coisa entre "meu amado" e
"meu preferido."
"Uma vez" conta o Padre Basílio Sadovsky em suas memórias, "três dias depois da festa
da Assunção da Santa Virgem, fui ver o Padre Serafim e encontrei-o só em sua cela.
Recebeu-me muito bem e me falou da vida dos santos que agradam a Deus, dignos de
diversas graças, de visões maravilhosas, e até de visitas da Rainha do Céu em pessoa.
Depois de me falar longamente sobre isto desta maneira, ele me perguntou: "Você tem
um lenço, Batiushka?" Respondi que sim. — "Dê-me." Eu lhe dei. Ele desdobrou-o e,
tirando de um potinho, aos punhados, biscoitinhos brancos diferentes de tudo que eu já
tinha visto, pôs-se a encher meu lenço. "Eu também fui visitado por uma rainha" dizia,
"eis o que resta de sua passagem." Enquanto dizia isto, seu rosto estava tão feliz, tão
radioso, que é impossível descrever. Ele mesmo deu um nó bem apertado no lenço. "Vá
para casa, Batiushka, come destes biscoitos, dê deles para tua "amiga" (é assim que ele
sempre chamava minha mulher); depois vá à comunidade e põe três biscoitos na boca de
cada uma de tuas filhas espirituais."
"Eu ainda era jovem" continua o Padre Basílio. "Não compreendi que a Rainha dos
Céus o havia visitado. Pensei simplesmente que uma rainha terrestre havia vindo ver-lhe
incógnita, e não ousei perguntar-lhe qual. Somente mais tarde é que o homem de Deus
me explicou de quem se tratava. "A Rainha do Céu — Ela mesma, a Rainha do Céu,
Batiushka, visitou o pobre Serafim. Que alegria para nós, Batiushka! A Rainha do Céu
cobriu o pobre Serafim com Sua graça inefável. "Liubimitche Moï — meu preferido —
dignou-se a dizer a bendita Soberana, pede-me o que quiseres." Está ouvindo
Batiushka? Que dádiva!" Ao dizer estas palavras, o homem de Deus, transbordante de
alegria, tornava-se todo luminoso. "E o pobre, o miserável Serafim rogou à Mae de
Deus por suas órfãs, pedindo-lhe que todas fossem salvas. E a Mãe de Deus prometeu
ao pobre Serafim esta alegria inefável. . ."
Um ano e nove meses antes de sua morte, o staretz teve a felicidade de receber uma
ultima vez — a décima segunda — a Visitante Celeste. Foi na madrugada de 25 de
março de 1831, dia da Anunciação. (O Santo pároco de Ars, seu contemporâneo, a viu
também 12 vezes).
A Madre Eudóxia foi testemunha desta visão, como outrora o Monge Michel, no
Mosteiro da Santíssima Trindade, fora testemunha da última aparição da Toda Pura a
São Sérgio.
Após orar, o staretz disse à religiosa: "Não tenha medo. Aproxime-se de mim."
O staretz caiu de joelhos, e com os braços erguidos ao Céu, exclamou: "Ó Virgem
Bendita e Puríssima Soberana, Mãe de Deus!"
Então Ela entrou, precedida pelo Precursor e por São João Evangelista que Ela tomara
por filho ao pé da Cruz e que sempre A acompanhava. Doze virgens a seguiam, com os
cabelos de ouro caídos sobre os ombros resplandescentes de pedras preciosas. Incapaz
de suportar a visão, a religiosa caiu por terra e perdeu a consciência. Foi a própria
Virgem que a pegou pela mão e a ergueu.
Madre Eudóxia viu então que o staretz não estava mais ajoelhado diante de sua
Soberana Celeste, porém de pé, conversando com Ela de igual para igual, na maior
simplicidade. Quanto à Rainha do Céu, falava-lhe familiarmente, como a um parente
próximo.
A conversa durou muito tempo, mas a Madre Eudóxia só ouviu as últimas palavras:
"Meu Preferido — Liubimitche Moi" — disse a Toda Pura — em breve você estará
conosco."
Uma tal intimidade com a Theotokos pode parecer estranha, até mesmo chocante, ao
ponto de prejudicar o testemunho da Madre Eudóxia. Entretanto, um homem como São
Simeão o Novo Teólogo afirma a possibilidade de um tal contato: "Aquele que se
enriqueceu com a riqueza celeste, quero dizer, com a presença e a permanência daquele
que disse: "Eu e meu Pai viremos e faremos nele nossa morada", este sabe, do
conhecimento da alma, a grandeza da graça que recebeu e a beleza do tesouro que
carrega no castelo do coração. Como um amigo conversando com outro, posta-se perto
de Deus, entregando tudo na presença d’Aquele que habita na luz inacessível. Feliz do
que crê nisto: Três vezes feliz aquele que se esforça, pela prática e pelos santos
combates, em adquirir o conhecimento daquilo que dissemos: é um anjo, para não dizer
mais, aquele que pela contemplação e pelo conhecimento conseguiu chegar à elevação
deste estado. Ele está perto de Deus, filho de Deus".
Terceira Parte
— O Espírito Santo.
O escolhido para seu porta-voz não era monge nem clérigo, como Michel Manturov, um
jovem fidalgo dos arredores, um grave enfermo. Filho único, tendo perdido seu pai
cedo, Nicolau Motovilov fez estudos universitários, viveu como se vive no mundo,
pecou e sofreu. Atingido por uma doença incurável na época — provavelmente uma
esclerose — consultou em vão, como ele próprio dizia, alopatas, homeopatas e
renomados cirurgiões tanto na Rússia quanto no exterior. Desesperado, pediu que o
levassem a Sarov para pedir as orações do célebre Staretz Serafim.
O infeliz confessou seus fracassos junto ao corpo médico e disse que a graça de Deus,
por intermédio das orações do Staretz, era sua única esperança.
"Ele me fez uma pergunta — continua Motovilov. Você crê em Nosso Senhor Jesus
Cristo, que Ele é Deus — Homem, e em Sua Santíssima Mãe, que ela é sempre
Virgem?"
Eu respondi: Creio.
— E você crê — perguntou ele ainda — que o Senhor que, antigamente, por uma única
palavra, um único gesto, curava imediatamente as doenças dos homens, pode, tão
facilmente quanto antes, vir em socorro daqueles que lhe rogam? E que a intercessão de
sua Santíssima Mãe é ainda toda-poderosa, e que em virtude desta intercessão, Nosso
Senhor Jesus Cristo pode imediatamente, e por uma única palavra, lhe devolver a
saúde?
Respondi que em verdade, de todo meu coração de toda a minha alma, eu acreditava.
Senão não teria vindo.
— Não, disse ele, você está completamente curado, todo seu corpo agora é são.
"Ele ordenou a meus amigos que se afastassem e, pegando-me pelo ombro, me colocou
de pé."
— Fique direitinho, ponha seus pés no chão, assim. Não tenha medo, você está
totalmente curado!
Depois ele acrescentou, fitando-me alegremente: Veja como você se mantêm bem!
— Agora eu não o mantenho mais, e você permanece de pé sem a minha ajuda. Então
vá sem medo. Deus o curou. Vá! Ande!
Ele me pegou pela mão e, empurrando-me as costas ligeiramente, me fez dar alguns
passos sobre a grama e o terreno acidentado perto do abeto, repetindo: veja, meu amigo,
veja como você está andando bem!
— Não (ele tirou sua mão), o Senhor o curou completamente. Sua Santa Mãe lhe pediu.
Você pode agora andar sem mim. Vá! E me empurrava para que eu avançasse.
— Não, você não vai cair, você não vai se machucar, e, sim, você andará com passo
seguro.
"Sentindo-me repleto de uma força nova, pus-me a andar, mas ele me parou."
— Basta. Agora você está persuadido que o Senhor realmente o curou, de verdade?
Veja que milagre Ele fez para com você. Ele perdoou os seus pecados e retirou suas
iniqüidades. Então creia Nele, espere em Sua bondade, ame-O com todo seu coração e
agradeça à Rainha dos Céus por Seu benefício. Entretanto, enfraquecido por três anos
de sofrimento, não ande demais de uma vez só e zele por sua saúde como por um dom
precioso de Deus.
"Deus perdoou seus pecados e retirou suas iniqüidades" disse o staretz. No homem
psicossomático, na maior parte do tempo os pecados e os males físicos andam juntos.
Ao curar o paralítico, Jesus perguntou aos fariseus: "Que é mais fácil? dizer: Os teus
pecados te são perdoados; ou dizer: levanta-Te, e anda?" (Luc 5:23). Uma coisa é
necessária: a fé. O staretz fazia insistentemente a mesma pergunta a Manturov e a
Motovilov: "Você crê?" Realizado o milagre, o Senhor constatava: "Tua fé te salvou."
A alma de Motovilov estava, pois, doente, assim como seu corpo. Como o Padre
Serafim sabia disto? Sem dúvida o jovem havia se aberto com ele durante a conversa da
véspera, mas havia mais. Um staretz tem o dom de ver um homem como ele é na
realidade, e não como ele crê ser ou como tem a pretensão de se apresentar. "Nossas
virtudes visíveis, porém irreais nos impedem de lutar contra nossos pecados invisíveis
porém reais" dizia o Metropolita Filareto de Moscou. Um confessor superficial e
apressado se contenta, por desencargo de consciência, em absolver esta imagem
estereotipada e falaciosa que seu penitente lhe apresenta, enquanto que, em virtude de
um dom especial, um staretz vê cada ser tal como Deus o vê e procura ajudá-lo a se
libertar de seus entraves ocultos.
Complicado, passional, generoso e instável, Nicolau Motovilov não tinha nem a alegria
cândida, nem a simplicidade pura de um Michel Manturov.
Foi ele, contudo, que o staretz escolheu. Curado e cheio de gratidão, vinha sempre ver
seu benfeitor e foi durante uma dessas visitas, no fim do mês de novembro de 1831,
cerca de um ano antes da morte do staretz, que aconteceu a agora célebre conversa sobre
o objetivo da vida Cristã que o homem de Deus endereçava "ao mundo inteiro" e que
Motovilov devia transmitir.
"Era quinta-feira, escreveu Motovilov. O céu estava nublado. A terra estava coberta de
neve e flocos espessos continuavam a cair, quando o Padre Serafim começou nossa
conversa em uma clareira, perto de seu "Pequeno Retiro" diante do rio Sarovka que
corria no pé da colina. Ele me fez sentar sobre o tronco de uma árvore que acabara de
abater e ele mesmo se acocorou em frente a mim.
— O Senhor me revelou, disse o grande staretz, que desde pequeno você quer saber
qual é o objetivo da vida cristã, e que diversas vezes interrogou a este respeito
personagens até mesmo da mais alta hierarquia da Igreja.
Com efeito, aos 12 anos, Motovilov havia sido atormentado por inquietudes deste
gênero. Entretanto, não falara delas ao Padre Serafim. A resposta que ele recebeu diferiu
sensivelmente das ouvidas até então.
O Objetivo da Vida Cristã Consiste na Aquisição do Espírito Santo.
A terceira pessoa da Santíssima Trindade. Não uma força impessoal e impalpável. Uma
pessoa a quem a Igreja dirige suas preces. O Espírito anuncia o Messias, fala pelos
profetas, inspira as Escrituras. Ele repousa sobre Cristo até o fim de Seu Ministério
terrestre. Ressuscitado, Cristo dá o Espírito à Igreja. "Onde está o Espírito, lá está a
Igreja" dirá S. Irineu de Lyon. No ocidente esta Pessoa que não tem nome próprio foi
esquecida a tal ponto que o Concílio Vaticano II chegou a chamá-la "este grande
desconhecido." "Aquele de quem não sabemos como falar e onde as palavras são
vazias."
Era realmente difícil de entender. Como pode alguém adquirir apropriar-se — a terceira
Pessoa da Santíssima Trindade, e que benefício o homem tiraria disto?
O Staretz explica:*
O Espírito Santo é doador de graças tanto quanto é um Dom. É neste sentido que
podemos "adquiri-lo" enchendo-nos de Sua graça, fazendo-O habitar em nós, tornando-
nos "templos do Espírito Santo" (Efe 2:22; 2 Cor 6:16). Toda virtude praticada em
Nome de Cristo nos traz a graça do Espírito Santo. A oração mais do que tudo. . .
Porém Motovilov se impacienta. "Padre" diz ele, "o Senhor sempre fala da aquisição da
graça do Espírito Santo como objetivo da vida cristã. Como se pode reconhecê-la? As
boas ações são visíveis. Mas como pode o Espírito Santo ser visto? Como posso saber
se, sim ou não, Ele está comigo?"
Ver Deus.
A grande pergunta está feita. O homem pode ou não pode ver Deus? Segundo
Aristóteles, todo conhecimento tem origem na experiência dos sentidos. Segundo os
neoplatônicos, como Deus está para além da experiência sensível, o conhecimento
místico pode apenas ser simbolicamente real.
"Deus é luz — diz são Simeão — e Ele transmite Sua claridade aos que se unem a Ele,
na medida de sua purificação. . . Ó Milagre! O homem se une a Deus espiritual e
corporalmente, porque sua alma não se separa do espírito, nem o corpo se separa da
alma. Deus fica em união com o homem inteiro."
"Aquele que é Deus por natureza conversa com aqueles que Ele fez deuses pela graça,
como um amigo conversa com seus amigos, frente a frente. . . O Espírito Santo torna-se
neles tudo o que as Escrituras dizem a respeito do Reino de Deus."
"Não estamos falando de algo que ignoramos, afirma Simeão — mas damos testemunho
daquilo que conhecemos. Deus é luz e aqueles que Ele torna digno de vê-Lo, vêem-No
como Luz, aqueles que O receberam, receberam-No como Luz. Pois a luz de Sua glória
precede Sua face e é impossível que Ele apareça a não ser na luz."
Mas tarde, no séc. XIV, a polemica questão da possibilidade de uma união real com
Deus, do acesso a Sua natureza inacessível, provocou novamente debates teológicos
passionais em Bizâncio. São Gregório Palamas (1296-1359), porta-voz dos monges
atonitas e arcebispo de Tessalônica, defendeu, perante concílios por vezes
tempestuosos, o ponto de vista hesiquiasta que não deixava nenhuma dúvida sobre a
realidade da luz incriada.
Não entraremos aqui nos detalhes de uma doutrina que remonta aos primeiros séculos
da Igreja, e que faz parte de sua tradição oriental, professada pelos Padres Gregos.
Gregório Palamas teve o mérito de calcá-la sobre um fundo dogmático, formulando-a
definitivamente. Para ele, é preciso distinguir entre Deus Sua essência — totalmente
incognoscível e inacessível — e suas energias, transbordamentos da natureza divina,
fluindo eternamente da essência una da Trindade, e aos quais o homem pode ter acesso.
Os Padres davam a estas energias o nome de "raios de divindade." Palamas as chamava
"divindade" simplesmente, "luz incriada" ou "graça."
É a luz eterna de que a humanidade do Cristo estava imbuída e que tornou Sua
divindade visível aos Apóstolos quando da Transfiguração.
Enfim, é o Reino dos Céus onde os justos resplandecerão como o sol (Mat 13:43).
Na Rússia.
Os santos russos tiveram esta experiência?
Uma outra vez Simão o eclesiarca viu, durante a liturgia, um fogo se propagar ao redor
do altar e, no momento da Comunhão, entrar no cálice de que o santo bebeu.
Mas voltemos à floresta de Sarov onde, sob a neve que caía suavemente do céu
cinzento, o Staretz Serafim, no séc. XIX, conversava sobre estes mistérios com um
jovem leigo, Motovilov.
Sob a ótica do que acabamos de dizer, será mais fácil seguir sua conversa e apreciar, sob
sua aparente simplicidade, a estrita conformidade das palavras do staretz à tradição
ortodoxa.
À pergunta de Motovilov: "Como pode o Espírito Santo ser visto? Como posso saber se
Ele está comigo? O staretz respondeu:
— Nós dois estamos na plenitude do Espírito Santo. Por que você não olha para mim?
— Não consigo, Padre. Raios jorram de seus olhos. Seu rosto tornou-se mais luminoso
do que o sol.
— Não tenha medo. Você tornou-se tão luminoso quanto eu. Você também está agora
na plenitude do Espírito Santo, senão não conseguiria me ver. . . Por que você não me
olha nos olhos? Ouse olhar para mim sem medo. Deus está conosco.
Olhei para ele, e um medo maior ainda me dominou. Imagine um homem falando, e seu
rosto no meio de um Sol de meio-dia. Você vê o movimento de seus lábios, a expressão
de seus olhos mudando; você ouve o som da voz dele, você sente a pressão das mãos
dele sobre os seus ombros, mas ao mesmo tempo você não percebe nem as mãos dele,
nem o corpo dele, nem o seu próprio, nada além de uma cintilante luz se espalhando por
tudo em volta, a uma distância de muitos metros, iluminando a neve que cobria a
planície e caía suavemente sobre o staretz e sobre mim mesmo. Como descrever o que
eu sentia então?
O diálogo que se segue é extraordinário. Motovilov está feliz. Sua alma repleta de
silêncio, está cheia de paz e alegria. Seu corpo, apesar do frio, se envolve em um
agradável calor. Ele aspira um delicioso perfume. O staretz comenta longamente todos
estes estados.
— É assim que as coisas devem ser — terminou dizendo — a graça divina habitando no
mais profundo de nós, em nossos corações. "O Reino dos céus está dentro de vós"
ensina o Senhor. Pelo Reino dos Céus, Ele entende a graça do Espírito Santo. . . É o
estado no qual estamos atualmente que o Salvador tinha em vista quando prometeu a
Seus discípulos: "Em verdade, vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não
provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder" (Mac 9:1).
— Parece-me que agora você não vai mais me interrogar, amigo de Deus, sobre a forma
como se manifesta no homem a presença da graça do Espírito Santo. Você se lembrará
desta manifestação, não é?
Difusão da Mensagem.
— Eu só não sei, Padre, se Deus me tornará digno de sempre ter esta graça em minha
memória com tanta nitidez quanto agora.
— Pois eu — respondeu o staretz — creio que Deus o ajudará a guardar para sempre
essas coisas em sua memória, senão Ele não teria sido tocado imediatamente pela minha
humilde oração, não teria realizado tão rapidamente o desejo do miserável Serafim.
Ainda mais que não foi só a você que Ele deu a manifestação desta graça, mas ao
mundo inteiro por Seu intermédio.
Só se pode admirar a tranquila segurança com que, do fundo do bosque em que sua vida
de eremita transcorrera, o staretz profetizava a difusão mundial de uma mensagem
confiada a um jovem leigo pouco preparado para se lembrar do seu conteúdo. Mas
"quando o ensinamento vem do Espírito, a memória se conserva intacta" dizia o Padre.
Sem Sua ajuda, é evidente que Motovilov jamais conseguiria reconstituir uma conversa
cheia de doutrina, Teologia e citações bíblicas.
Monge e Leigo.
"Quanto aos nossos diferentes estados de monge e leigo, não se preocupe" diz o ancião.
Seu jovem interlocutor é um leigo. Ele mesmo é um monge. Não tem importância,
afirma o staretz: a fé, o amor é que contam. Ele, tampouco, é um teólogo propriamente
dito. O que ele é? Um hesiquiasta que se tornou todo oração. E quem quer que saiba
orar é teólogo, diz a sabedoria ortodoxa.
"É preciso ter a sabedoria patrística pelo interior. A intuição pode ser mais importante
do que a erudição. Somente ela ressuscita e vivifica os velhos textos, transformando-os
em testemunhos. Esta intuição é justamente a graça do Espírito Santo."
O Padre Serafim possuía esta intuição nascida da graça no mais alto grau, ao ponto, de
ilustrar suas palavras por um testemunho visual e vivo.
"A virtude — dizia o Padre Serafim — não é uma pera que se come de uma vez só."
Tanto quanto a obediência, ele pregava a paciência. "A subida para o Reino exige
paciência e generosidade. Pois não é fácil vencer o apego às vaidades deste mundo."
"É apenas após haver suportado múltiplas tentações, involuntárias com a ajuda da
oração que um homem se torna humilde, seguro e vivido."
"A paciência — dizia ele por fim — é a aplicação da alma ao trabalho."
Sendo o coração do homem capaz de conter o Reino dos Céus, é preciso que antes de
tudo ele busque este Reino, o que não quer dizer que todo gozo terrestre lhe seja
proibido.
— Quando a solicitar bem pessoais, tenham o cuidado de rezar somente por coisas de
que se tenha necessidade urgente. Talvez vocês sejam atendidos, mas ser-lhes-á
perguntado por que quiseram obter algo de que poderiam facilmente prescindir.
— Pois é, amigo de Deus. Agora já lhe disse tudo. Mostrei-lhe com toda realidade
aquilo que o Senhor e Sua Santa Mãe quiseram, por meu humilde intermédio, lhe
revelar. . .
— Amém. Vá em paz.
"Vi com meus próprios olhos — concluiu Motovilov — os raios da luz inefável cuja
fonte era o Santo, e estou pronto a afirmar tudo sob juramento."
Transfiguração.
Aquilo que um bizantino refinado, Simeão o Novo Teólogo, havia ensinado, contado
em seus escritos e sermões belos como poemas, o "miserável" Serafim havia
humildemente demonstrado em um cenário do interior a um jovem atônito e de lenta
compreensão. Longe do Sinai, da Palestina e da Grécia, a luz "incriada" havia se
manifestado em uma floresta austera e triste, em um dia gelado de novembro. O céu
estava baixo e nevava. Nada se compara à doçura macia de um dia de neve na Rússia.
Como com o profeta Elias, Deus não veio nem no furacão, nem na tempestade. Para o
staretz Serafim, Ele veio na paz da neve que cai.
Ao jovem sentado diante dele no tronco cortado de uma árvore, o ancião dá o estranho
título de "Vossa Teofilia" — Amigo de Deus. Pois todos os que buscam Deus com o
coração sincero são Seus amigos. Motovilov representa estes buscadores. Universitário
influenciado pelo Ocidente, temperamento passional, alma inquieta, ele já é
contemporâneo dos estudantes revoltados, dos enfermos — tão frequentes no séc. XX,
de quem um psiquiatra pôde dizer: "Cerca de um terço dos pacientes não são vítimas de
uma neurose clínica determinada, mas sofrem do fato de sua vida ser desprovida de
sentido e de conteúdo."
Sinônimo do Reino de Deus, Ele nos leva para lá. Definitivamente, quem é Ele, senão o
Agente de nossa deificação? Pois, a exemplo de São Irineu, os Padres da Igreja nunca
deixaram de afirmar que"Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus."
Inebriante perspectiva! Antídoto do qual um mundo secularizado e cheio de incertezas
precisará desesperadamente um mundo século mais tarde.
Enquanto esperava, ajudado pelo Espírito Santo, Motovilov guardou seu diálogo com o
staretz em suas Memórias que, antes de morrer, 40 anos mais tarde, confiou a sua
mulher. Sentindo por sua vez a chegada do fim, ela retirou o caderno do sótão onde ele
jazia, para confiá-lo a um escritor de passagem que publicou o diálogo sobre o Espírito
Santo no "Jornal de Moscou" com o título: "Como o Espírito de Deus se manifestou em
São Serafim durante sua conversa sobre o sentido da vida cristã."
Ele podia dizer "São Serafim" já que a canonização do staretz ocorreu no próprio ano de
1903, 70 anos após sua morte, 72 anos após a conversa perto do "Pequeno Deserto
Próximo" na floresta.
A Grande Partida.
Como muitos santos, o Padre Serafim conhecia com antecedência a hora de sua morte e
se preparava para ela. "Quando vocês voltarem a Sarov, encontrarão minha porta
definitivamente fechada" dizia ele a certas pessoas. A outras, ele mandava bilhetes.
"Eles mesmos não me verão mais." A seu vizinho de cela, o irmão Paulo ele
anunciava:"Breve será o fim." Na simplicidade de seu coração, o bom frei Paulo se
perguntava se era do fim do mundo que o staretz falava.
"Mïnha vida está diminuindo — dizia ele — Meu corpo não presta para nada, mas meu
espírito, é como se ele tivesse nascido ontem!" E, enquanto ele dizia estas palavras, seu
rosto resplandecia com aquela luz radiosa com que ele era frequentemente visto.
A principal preocupação do ancião era o futuro de Diveyevo que ele previa turvo e
tempestuoso.
"Agora nada lhes falta — dizia ele às irmãs — mas quando eu não existir mais, vocês
terão muitos, muitos males. O que fazer — isto é o que lhes cabe! Vocês terão que ter
paciência. Orem constantemente. Agradeçam a Deus por tudo. Estejam sempre alegres.
Não deixem o espírito de desencorajamento as invadir. Orem por seus benfeitores. Não
lhes agradeçam em palavras. Agradecendo-lhes diretamente, vocês os privariam da
recompensa a que eles têm direito. Depois que eu partir, venham em minha tumba.
Quando vocês tiverem tempo. O mais frequente possível. Tudo o que tiverem no
coração, todas as dificuldades, com o rosto por terra, contem-me, como a um vivente. E
eu lhes escutarei, e expulsarei sua tristeza. Pois para vocês, estarei sempre vivo."
"Eu as confio a Deus e à sua Santa Mãe. Não temam a nada. Depois de muitas
tribulações, a ordem voltará ao convento com a décima segunda superiora cujo nome
será "Maria."
Ao Padre Basílio, pároco de Diveyevo e confessor das monjas, ele renovava suas
instruções de mansidão, "ordenando-me — escreveu o Padre Basílio — que fosse tão
tolerante quanto possível no confessionário, o que eu sempre fiz, apesar das críticas."
Esta tolerância, baseada na esperança ilimitada na bondade divina, era um dos traços
marcantes da espiritualidade do Padre Serafim. Os pecadores e os "infelizes" para ele
eram um só.
O dia 19 de janeiro de 1833 era um domingo. O staretz veio à Igreja para cuja
construção ele havia angariado fundos em sua juventude, venerou os ícones, acendeu
velas perante eles — o que era contrário a seus hábitos — e comungou na liturgia.
Terminado o ofício, despediu-se dos irmãos ali presentes, abraçou-os, abençoou-os e
saiu da Igreja pela porta do Norte. Sua fadiga e fraqueza corporal eram visíveis, mas seu
comportamento era como de hábito, tranqüilo e alegre.
Durante o dia, recebeu muita gente. A uma irmã de Diveyevo ele deu 200 rublos para
comprar pão em uma aldeia vizinha, pois a provisão da comunidade estava esgotada. A
uma outra ele disse: "Ah, Matushka, que ano novo vocês terão! A terra se encherá de
suspiros e de lágrimas."
Entretanto, o frei Paulo reparou que durante o dia, o staretz saiu da sua cela 3 vezes para
ir aos arredores da igreja da Assunção da Virgem, no lugar que havia designado como o
de sua futura sepultura, e ali ficou muito tempo meditativo, olhando a terra.
Tarde da noite, frei Paulo o ouviu cantar. Era época de Natal, mas da cela do Padre
Serafim subiam hinos pascais. "Tendo visto a ressurreição de Cristo. . . "; "resplandece,
resplandece, ó Nova Jerusalém. . . ." "Ó Cristo, nossa Páscoa toda santa. . . "; "Cristo
ressuscitou dos mortos, pela morte Ele venceu a morte. . ."
De manhã, perto das seis horas, na hora de ir para o ofício, frei Paulo sentiu cheiro de
fumaça na entrada. Ele sempre alertava o Padre Serafim da possibilidade de um
incêndio quando ele partia para a floresta, deixando sua cela cheia de velas acesas. O
staretz respondia que não havia perigo — somente sua morte seria anunciada por um
princípio de incêndio.
Naquele momento frei Paulo não pensou nisso. Dizendo a oração como de hábito, bateu
à porta, mas não obteve resposta. Do lado de fora, vislumbrava-se, na penumbra, os
monges entrando na Igreja. Frei Paulo gritou: "Meus Padres e irmãos! Sinto cheiro de
fumaça — e não sei o que está queimando. O staretz deve ter partido para o "deserto."
Um jovem noviço, Anikita, acorreu e, com um violento golpe, fez o trinco da porta
saltar. Viram-se na cela pedaços de tela, assim como livros jogados sobre um banco
consumindo-se lentamente, inflamado por uma vela caída de um castiçal. Fora isso, não
havia nenhuma luz. Perguntando-se se o staretz havia cochilado após uma noite passada
em oração, os monges, indecisos, acotovelavam-se na porta.
Na igreja, nesse meio tempo, a liturgia da aurora prosseguia. Após a Epiclese cantava-se
"Verdadeiramente é digno e justo que Te bendigamos, ó bem Aventurada Mãe de Deus"
quando um jovem entrou precipitadamente e advertiu os monges do que estava
acontecendo. Muitos deles saíram correndo para a cela do staretz.
Os que Ficam.
As pessoas choram por terem ofendido um ser amado, ao passo que não lamentam ter
transgredido os mandamentos de um déspota. Na ótica do staretz, Deus era amor.
Unicamente. As pessoas se esquecem demais disso. Ao invés de atormentar os
pecadores e ameaçá-los, o Padre Serafim falava da misericórdia divina. "Se
enchêssemos um oceano de lágrimas de arrependimento — dizia — não chegaríamos a
satisfazer o Senhor que nos dá gratuitamente Sua carne e Seu sangue em alimento e
bebida a fim de nos lavar de nossas sujeiras, nos purificar, nos vivificar, nos
ressuscitar."
A paz do homem de Deus era transmitida a seus interlocutores. "Aquele que anda na
paz, junta, como com uma colher, os dons da graça" dizia ele. A seu redor, o paraíso se
reconstituía. Ouvia-se dizer que os animais selvagens o serviam e que ele oferecia a
seus visitantes, fora da estação, frutos "celestes" de sabor exótico. Milhares de infelizes
vindos a Sarov viam ao fim de sua penosa estrada terrestre entreabrir-se o portal
luminoso do Reino dos Céus.
"Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai
sobre vós o Meu jugo. . . que Sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso
para vossas almas. Porque o Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve" (Mat. 11:28-30).
Este tipo de cristianismo, pensa Berdiaev, para o qual o impulso para Deus, a graça, os
dons carismáticos contam mais do que a disciplina eclesiástica e os preceitos da moral
juridicamente formulados, poderia levantar no ocidente suspeitas a respeito de sua
"eficácia." De todas as formas de cristianismo, contudo, esta é a mais próxima das
origens evangélicas. Um staretz é um guia perfeito para um cristianismo deste tipo.
Nicolau Motovilov, que estava na cidade de Voronejo, foi advertido da morte de seu
benfeitor pelo bispo do lugar, um santo homem a quem o staretz apareceu às 2:00 horas
da madrugada para avisar que havia deixado a terra. Sem esperar outras confirmações, o
prelado celebrou no mesmo dia uma missa de requiem. Quanto a Motovilov, pegou a
estrada imediatamente. Sendo considerável a distância entre Voronejo e Sarov, não
chegou a tempo para o último adeus. Seu desespero era tamanho que o higumeno
Nifonte, para consolá-lo, deu-lhe o livro dos Evangelhos que o staretz lia todo dia e cuja
cobertura havia sido ligeiramente chamuscada pelo fogo, como também uma cruzinha
em madeira de cipreste que o próprio Padre Serafim fabricara e emoldurara em prata
provinda de uma moeda antiga que sua mãe havia lhe dado quando de sua peregrinação
a Kiev.
"Quanto à grande cruz octogonal de couro, benção materna, e o ícone da Mãe de Deus,
"Alegria das Alegrias" diante da qual, ajoelhado, ele morreu — disse o higumeno — eu
os enviei à Comunidade de Diveyevo."
Tribulações Preditas.
Era grande a pobreza das irmãs. Mal alimentadas, com frequente carência de primeiras
necessidades, trabalhando duro, elas se sentiam, entretanto, sustentadas pela oração
diante do ícone da "Alegria das Alegrias" e pelo amor que tinham umas pelas outras. O
bom Padre Basílio Sadovsky as reconfortava com frequentes visitas. Tanto quanto
possível, elas iam a Sarov, à tumba de seu amado "Batiushka" para lhe confiar, como
ele permitira, suas dores e tristezas. À noite, trabalhando à luz enfumaçada de uma
"lutchina"(fino pedaço de madeira que era aceso para iluminar); elas repassavam na
memória as lembranças do tempo feliz quando ele estava neste mundo, rememorando
seus milagres, sua alegria, suas palavras afetuosas. Cada uma tinha uma coisa para
contar.
O "Visitante Estrangeiro."
O Senhor teve Judas; Francisco de Assis, Elias de Cortone; Serafim de Sarov e Ivan
Tikhomov. Cada vez mais ele se pôs a visitar sua prima, monja da Comunidade de
Kazan, cujas irmãs haviam sido menos próximas do staretz Serafim do que as da
comunidade mais recente. Persuasivo, com boa lábia, tendo uma certa instrução,
sabendo pintar ícones e cantar na Igreja, ele se impunha às mulheres simples e terminou
por conseguir simpatizantes entre elas. Na Comunidade do Moinho, ao contrário, a
resistência a seus avanços foi imediata e unânime. As irmãs lhe disseram na cara que o
Padre Serafim as proibira de conviver com ele. Furioso, ele teria exclamado: "Juro não
descansar enquanto não apagar da terra até a lembrança da Comunidade do Moinho! Eu
me transformarei em serpente, mas conseguirei entrar!"
Poderia se dizer que seu propósito era destruir sistematicamente tudo o que o homem de
Deus havia desejado e realizado. O staretz queria conservar a separação das duas
comunidades? O Padre Josafat obteve sua fusão. A comunidade de Kazan perdia sua
regra, a do Padre Serafim não era mais composta de virgens. O staretz era louco por
suas igrejas? O Padre Josafat as fechou, apagou as lamparinas, interrompeu a leitura dos
Salmos, retirou o moinho, demoliu as celas. O staretz sonhava em construir, sobre um
terreno que adquirira a preço de ouro, uma igreja-catedral. A realização deste projeto
devia ser impedida. Michel Manturov detinha os papéis legalizando a compra do
terreno. Como ele se recusava em se desfazer deles — o staretz lhe proibira
expressamente — o Padre Josafat caluniou Michel aos olhos do general Kuprianov.
Sem pagar a indenização que devia a seu intendente, o irascível militar, ao voltar da
Polônia, expulsou-o das terras que em sua ausência ele havia gerido tão bem. A pé,
morrendo de fome, Michel e Ana — mendigos voluntários! — voltaram a Diveyevo
onde, para que pudessem construir um isba, o Padre Basílio lhes deu os 70 rublos que
havia sofridamente economizado para sua velhice.
A ingênua crônica tem razão. O combate que o staretz, durante toda sua vida, havia
mantido contra o demônio, prosseguia após sua morte. "Vocês não viverão até o
Anticristo, mas vocês atravessarão os tempos do Anticristo" dizia ele a suas "órfãs."
Poder-se-ia até supor, sem muita inverossemelhança, que os tempos agitados de
Diveyevo prefiguravam os tempos agitados e trágicos que a Rússia logo havia de passar.
Tudo leva a crer que o staretz entendia assim, Diveyevo, feudo da virgem, sendo
ameaçado pelas forças da escuridão como a própria terra russa.
Depois de um longo período de interregno, uma nova superiora acabava de ser eleita
pela comunidade. Vinda de uma família de nobreza agrária, Isabel Oushakov era
inteligente, equilibrada e de caráter firme. Durante muitos anos ela havia ocupado em
Diveyevo o ingrato cargo de administradora e conhecia bem a situação em que se
encontrava o convento. O dinheiro que o Padre Josafat coletava em S. Petersburgo por
intermédio das irmãs que ele mandava aprender pintura na capital, desaparecia sem
nunca chegar a seu destino. As despesas loucas a que se entregava o "visitante
estrangeiro" acabavam com o orçamento. Não somente não havia dinheiro, mas também
havia dívidas. Até pão não raro faltava. Com muita paciência, Isabel encarou essa
situação difícil. Calma, ordenada, doce com as irmãs, logo ela obteve o amor e o
respeito de todo mundo. Em Diveyevo, começava-se a respirar quando um rumor
inquietante chegou à infeliz comunidade: o novo bispo de Nizhni-Novgorod, que diziam
ser favorável a Josafat, viria breve a Diveyevo receber os votos da Superiora por
ocasião da transformação da antiga comunidade mista em convento regular, decretada
pelo Santo Sínodo.
Era maio, pouco depois da Páscoa. Monsenhor chegou durante uma noite tempestuosa.
De manhã, antes mesmo de ir à Igreja, ele convocou Isabel Ushakov.
— Digo que deve deixar Diveyevo e ir para o convento de Davidovo. Ele está
desorganizado. A senhora o porá em ordem.
Um Pouco de Loucura.
Entretanto, seu ponto de vista sobre a loucura em Cristo era dos mais severos. "Aqueles
que tomam para si a loucura em Cristo sem um chamado particular de Deus — dizia ele
com indignação — correm direto para a perdição. Entre os "yurodivi" que andam,
simulando loucura, de uma aldeia para outra, é difícil encontrar um só que não seja
induzido a tentação pelo demônio sem sucumbir. Nossos Padres não permitiam que
ninguém se fizesse de "yurodivi." No meu tempo, somente um quis tentar, durante o
ofício, pôr-se a miar como um gato. Imediatamente o Padre Pakhome ordenou que o
fizessem sair, primeiro da igreja, em seguida dos limites do mosteiro. Existem 3
caminhos que não se devem seguir sem ser chamado de uma forma particular: o da
direção de um mosteiro; o da reclusão; e o da loucura em Cristo."
Vê-se então que definitivamente era em alta conta que São Serafim tinha estes
"fanáticos" por Deus. Ele próprio um profeta, serviu-se destes pequenos profetas para
que, após sua desaparição, eles pudessem agir em seu lugar.
Como os do Antigo Testamento, estes últimos deviam chocar a imaginação popular com
costumes pouco comuns. Sabe-se que Isaías andou totalmente nu durante 3 anos,
Jeremias levava uma carga nos ombros para predizer a captividade de Israel, Ezequiel
teve de fazer um buraco em sua casa e sair por ali, levando sua bagagem, para mostrar
aos habitantes de Jerusalém o que os esperava, "porque por sinal te pus à casa de Israel"
disse Deus (Isa 20:3-4; Jer 27; Eze 12:1-7). O casamento infeliz de Oséas não passava
de uma metáfora do casamento do Senhor com seu povo infeliz.
As misteriosas palavras dos "yurodivi" suas ações simbólicas e seu dom de prever o
futuro aparentavam-nos aos profetas. Não somente eles deviam "significar" a vontade
de Deus, mas eles próprios deviam se transformar em símbolos. Como seus confrades
bíblicos, eles tinham às vezes o dom de evocar o futuro por metáforas, por mímica. Sob
uma aparência propositalmente repugnante, escondiam os dons do Espírito que somente
a claridade de seus olhos e a extraordinária limpidez do seu olhar revelavam.
Pelagia.
Enfim, expulsa pelo marido e por sua própria mãe, ela acabou em Diveyevo. O staretz já
estava morto. No começo as irmãs não foram carinhosas para com ela. Cheia de lama,
sujava a casa, pois passava a maior parte de seu tempo em um buraco que havia no
quintal, como um cachorro. Chorava muito. Quando lhe perguntavam por quê,
respondia que chorava pela Rússia. O staretz também não tinha derramado lágrimas
antecipadas por sua desafortunada pátria?
A clarividência concedida aos verdadeiros loucos em Cristo pelo Espírito Santo breve
tornou Pelagia celebre. Muita gente vinha lhe pedir conselhos. Ouvindo falar daquela
mulher, Monsenhor Nectário demonstrou ter vontade de vê-la.
"Que devo fazer, serva de Deus, que devo fazer?", disse ele.
A "louca" pousou sobre ele um olhar severo e profundo, com seus olhos límpidos.
Parasceva.
Ajudando-a um dia a descer de uma carroça, o staretz lhe dissera: "Você está melhor
colocada do que eu. No fim da vida você será louca em Cristo. Quando ver a fonte
borbulhar com impurezas, saberá que a hora é chegada. Não tenha medo — diga a
verdade. Em seguida, você morrerá." Ora, indo a Sarov para rezar junto ao túmulo do
staretz, alguns dias antes da chegada do bispo, Parasceva foi à fonte buscar água.
Sempre límpida, a fonte, de repente, se turvou. Como que projetados por uma força
invisível, areia e pedregulhos subiam do fundo para a superfície. Atordoada, a velha
religiosa olhou em volta para compreender a causa deste fenômeno insólito; foi quando
viu a irmã Lukia, adepta fervorosa do Padre Josafat, descer para a fonte. Compreendeu
tudo. O Staretz Serafim havia discernido, um dia, na água turva, a aproximação daquele
que ainda não passava do noviço Ivan Tikhonov, hoje Padre Josafat, e que, depois, se
revelara como inimigo mais terrível da comunidade. O momento de "cuspir a verdade"
tinha chegado, então!
Parasceva se lembrou das palavras do Padre Serafim: "Em seguida, você morrerá."
— Adeus, Elias — disse ela a um frei de Sarov vindo à fonte. Não te verei mais.
— Que está dizendo, Matushka? Por que falar de morte? Mas ela, muito calma, insistia:
* "Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas
interiormente são lobos devoradores. Por seus frutos os conhecereis" (Mat 7:15-16).
Em Plena Ação.
Tudo ia de mal a pior. Monsenhor declarou que no dia seguinte após a liturgia a sorte de
Diveyevo seria tirada. "Se a sorte cair sobre irmã Lukia, aquelas que se recusarem a
aceitá-la como superiora serão expulsas."
Tinha ele a consciência tranquila? É de se crer que não. Na manhã do dia seguinte, ao
voltar à igreja, ele viu a "bem-aventurada" Pelagia sentada na beira da estrada rolando
ovos de Páscoa, jogo comum entre as crianças na Rússia. Poderia se dizer que ele
tentava se assegurar do que acabara de fazer.
— Veja, Serva de Deus, uma prósfora, (pão de oferenda litúrgica), da liturgia que acabo
de celebrar.
Ela se virou.
"Ele devia ter compreendido e partido — contava "Benedito". Mas não. Aproximou-se
pelo outro lado e, novamente, estendeu a prósfora.
— Com que está se metendo? — urrou a louca, acertando no bispo uma magistral
bofetada.
Com efeito, o caso não teve, para a "bem aventurada" nenhuma consequência. De volta
ao episcopado de Nizhni-Novgorod, Monsenhor Nectário várias vezes lhe mandou a
benção, pedindo-lhe suas preces. Pensava ele no salmo onde se diz: "Que o justo me
bata, é caridade, que ele me censure" (Sal 140:5) Uma vez fez até chegar um presente a
ela, por intermédio de um peregrino.
Quanto à "bem aventurada" Parasceva, viveu somente nove dias após a partida do bispo.
Assistida pelo Padre Basílio, munida dos últimos sacramentos, ela extinguiu-se
docemente, como lhe predirá o staretz. Ao saber de sua morte, Monsenhor Nectário
ficou pensativo. "Era uma grande serva de Deus!" suspirou.
O Desenlace.
O staretz não era, como havia demonstrado várias vezes, um filho amoroso e obediente
da Igreja? Como muitos santos, contudo — Simeão o Novo Teólogo no Oriente, S.
Francisco de Assis no Ocidente ele conheceu este doloroso conflito entre um profeta e
os padres cuja cegueira provisória impede de aceitar a visão. Os acontecimentos de
Diveyevo, a guerra, pelo staretz bendito, das loucas em Cristo, não devem ser
interpretados como gestos de insubordinação, mas como um meio de luta contra os
espíritos das trevas. Foi, aliás, pela intervenção da mais alta autoridade da Igreja que a
verdade finalmente triunfou.
Antes de morrer, o Padre Serafim havia nomeado Motovilov "Defensor das órfãs." Ele
vinha muito à Diveyevo, e acabou desposando uma jovem sobrinha da irmã Parasceva,
criada no convento. Acompanhado peIa mulher e duas filhas, ia de Simbirsk a Moscou
quando um leve acidente de carro obrigou-o a parar em Diveyevo onde ele tinha uma
casa. Ciente do que se passava, foi testemunha de eleição forçada de uma nova
superiora e, sem perda de tempo, decidiu agir.
Seu plano era de pôr o Metropolita Filaret de Moscou — alta e venerável personalidade
que teve um papel importante na renovação da Igreja Russa — ao par do caso. Mas o
prelado havia partido para o Mosteiro da Trindade São Sérgio (onde, desde 1770, os
Metropolitas de Moscou eram oficialmente abades), receber a família Imperial que
estava sendo esperada.
Mas ele compreendeu, quando Motovilov, que apressadamente fora para o Mosteiro,
apresentou-lhe seu pedido. Escolhendo um momento propício, falou com o Metropolita
Filaret, seu superior e amigo que, por sua vez, pôs o Imperador ao par.
— Sempre tive dúvidas quanto a esse Padre Josafat quando a Imperatriz me falava dele
— disse o Soberano.
Um inquérito foi aberto. Bem conduzido, com objetividade, inteligência e tato, sob a
supervisão do próprio Metropolita, teve por resultado a reabilitação de Isabel Ushakov
— a quem o Padre Josafat tentava caluniar — e sua confirmação como superiora do
convento Serafim — Diveyevo, designação da comunidade daí por diante. Ela recebeu o
hábito e pronunciou os votos sob o nome de Maria. "A ordem será restabelecida com a
12a superiora, predissera o staretz, cujo nome será Maria".
Padre Josafat, que teve algumas condutas excusas reveladas pelo inquérito, foi posto em
observação e obrigado a assinar uma declaração com a promessa de nunca mais se
intrometer nos negócios de Diveyevo. Mais tarde, ele chegou a ser nomeado hígumeno
de um mosteiro e tomou o "megalo esquema" sob o nome de. . . Serafim, O amor
vencera o ódio?
Mil religiosas — como a Rainha dos Céus havia predito ao staretz — logo se
aglutinaram em torno da Madre Maria que, com uma mão firme e doce, estabilizou o
barco vacilante que havia sido chamada a dirigir. O 25o jubileu da amada superiora foi
alegremente festejado em Diveyevo em 1887. Ao lado da Madre estava, durante as
cerimônias, a outrora bela e recalcitrante Xênia, agora Madre Capitolina, aos 83 anos de
idade.
Manturov foi efetivamente colocado, para dormir seu último sono, à esquerda da igreja
que havia construído de seu próprio bolso. Fadado à abnegação, não chegou a ver o
triunfo da justiça em Diveyevo.
Ele partiu em um momento em que parecia certa a vitória do "Visitante Estrangeiro" nos
sacrilégios visados a que ele se opunha com todas as suas forças.
Apesar de seu otimismo, o pobre Michel estava a ponto de perder a coragem quando viu
em sonho seu Batiushka dizendo: "Venha, vamos orar juntos!" Concluiu que sua hora
estava próxima, pediu ao genro do Padre Sadovsky que celebrasse uma liturgia na Igreja
da Natividade, comungou e, voltando para casa, disse à sua mulher: "Apresse o jantar.
Senão você vai se lamentar — será tarde demais. . ." Depois saiu ao jardim para dar
framboesas ao genro do Padre Sadovsky, sentiu-se um pouco cansado, sentou-se em um
banco — e rendeu a alma. Sua partida foi tão tranquila que sua mulher veio chamá-lo
para jantar e pensou que ele estivesse dormindo. Tinha apenas 60 anos.
Era talvez o discípulo mais perfeito do staretz, buscando acima de tudo o Reino de Deus
e confiando em receber o resto por acréscimo. Leigo casado, não encarnava na época o
que hoje em dia se chama "monaquismo interiorizado"? De uma bondade enorme,
coração aberto, tinha um bom físico, um rosto alegre e simpático, de grandes olhos
claros. Convertida à ortodoxia, Ana, sua fiel esposa alemã, terminou seus dias em
Diveyevo onde, em segredo, tomou o véu.
Quanto à promessa feita pelo staretz de um dia repousar entre seus dois amigos, Padre
Basílio e Michel, muitos se espantavam. Ele não estava enterrado em Sarov? Por que
seria levado para Diveyevo? Alguém fez a pergunta à Madre Maria. Ela pareceu pensar.
Depois de um momento de silêncio, disse: "Frequentemente as relíquias ficam muito
tempo escondidas." Estranha resposta, hoje em dia melhor compreendida, pois ignora-se
o paradeiro dos restos do Padre Serafim.
Um mês antes de sua morte, Motovilov teve um sonho que contou à sua mulher. A
Rainha do Céu apareceu-lhe em sonho e prometeu-lhe de breve levá-lo em peregrinação
a uma região desconhecida onde Ela lhe apresentaria a muitos santos de quem ele nunca
tinha ouvido falar. Depois deste sonho as forças começaram a abandoná-lo. Morreu
tranquilamente em sua propriedade de Simbirsk, mas foi enterrado em Diveyevo.
Sua mulher voltou a viver no convento onde havia passado a infância e juventude.
Antes de morrer, como dissemos, confiou o caderno de memórias de seu marido a um
escritor de passagem, Sérgio Nilus.
Foi então que pela primeira vez ouviu-se falar da extraordinária conversa coroada de luz
que o staretz havia recomendado a Nicolau Motovilov que divulgasse. Teria sido
incompreendida na 2a metade do séc. XIX, porém adquire, no séc. XX, uma amplitude
do significado inesperado, não somente para a Rússia, mas, como o staretz havia
previsto, para o "mundo inteiro."
Epílogo.
Em número cada vez maior, peregrinos chegavam a Sarov. Muitos viam o homem de
Deus em sonho. A outros ele aparecia, principalmente as crianças. Às vezes ele se
encontrava na casa de Manturov, como atestava sua viúva.
Bem antes da canonização oficial, a vox populi beatificara este homem calçado de casca
de bétula, ancião de traços severos e finos, com os olhos de um azul límpido, dizendo
aos que vinham a seu encontro: "Bom dia, minha alegria!" e acrescentando: "Cristo
Ressuscitou!"
Agora que ele encontrara na eternidade a Virgem Maria, primeira criatura divinizada
que dizia que ele também era "de sua raça" seu poder parecia maior do que nunca. "Se
eu obtiver graça, diante de Deus — prometia antes de deixar a Terra — orarei por todos
prostrado diante do Trono do Altíssimo."
Sessenta anos após sua morte, o Santo Sínodo encarregou uma comissão especial de
pesquisas sobre os milagres e as curas atribuídas ao Padre Serafim. Dez anos mais tarde,
em 1902, o Imperador Nicolau II exprimiu o desejo de ver o Santo Sínodo levar a cabo
a instrução da canonização. Em janeiro de 1903, "persuadido da autenticidade dos
milagres atribuídos as orações do staretz Serafim e dando graças a Deus glorificado em
seus santos" o Sínodo submetia sua decisão ao Imperador de todas as Rússias. Ela foi
publicada no número 5 do Jornal Eclesiástico publicado em 19 de fevereiro de 1903
com a recomendação de ser lida em todas as Igrejas do Império no domingo seguinte à
publicação do Jornal.
A Canonização.
Nas raras estradas arenosas, peregrinos caminhavam sob o sol ardente de julho, alguns
em grupos, cantando hinos, outros solitários, curvados sob o peso de sua mochila,
apoiando-se sobre o bastão de viagem. Carroças transportavam inválidos e doentes. Os
mais afortunados chegavam de trem, descendo em Nizhni-Novgorod, porém a maioria
percorria à pé os 60 km que a separava de Sarov.
Porém eis que entre os grandes abetos surgiam os muros brancos do mosteiro, suas
igrejas de cúpulas brilhantes e cruzes douradas. A fadiga se transformava em alegria.
Homens e mulheres se persignavam, caíam de joelhos, invocavam São Serafim. Quem
poderia imaginar, 126 anos antes, que um modesto adolescente, chegado àqueles muros
em uma fria noite de novembro, um dia atrairia para si multidões vindas dos 4 cantos da
imensa Rússia?
"O grande sino tocara: Bum! Bum! (o staretz imitava o som do sino), o Czar virá com
toda sua família. . ." A promessa do santo homem se realizava.
Na manhã seguinte, assim que a liturgia da aurora começou, entraram, na igreja já cheia,
sós e sem escolta, o Imperador e a Imperatriz. Vinham pedir a graça de ter um herdeiro?
Como simples peregrinos, misturados com o povo, aproximaram-se dos sacramentos. A
multidão chorava de alegria.
O belo dia de verão chegava ao fim. Aproximava-se o momento solene das festividades:
a transferência, em procissão, das relíquias do novo santo da igreja Zocime-Sabati para
a igreja-catedral da Assunção da Virgem, onde elas deviam ser abertas à veneração da
multidão.
Toda a Santa Rússia estava lá, com seu Czar, reunida em torno de seu amado
"Batiushka" tão próximo do coração de cada um, tão representativo de seu misterioso
país.
O ofício terminou à meia-noite. Depois o clero, a família real, e enfim os fiéis foram
venerar as relíquias. Seu desfilar durou toda a noite.
Neste meio tempo, fora das muralhas do mosteiro, ao longo dos rios Satis e Sarovka,
haviam se acendido fogos. Sem poder entrar, a imensa maioria dos peregrinos havia
orado do lado de fora, ao ar livre. Ninguém pensava em dormir. Haviam se formado
grupos, cantando sob as estrelas: "Glória a Deus no mais alto dos Céus" hinos à Virgem,
o novo tropário composto em honra do Santo. Passava da meia noite e os cânticos
continuavam quando explodiram, de repente, jubilosos, os hinos de Páscoa: "Dia da
Ressurreição" "Que Deus ressuscite" "Cristo ressuscitou dos mortos, pela morte Ele
venceu a morte, aos que estavam no túmulo Cristo deu a vida."
"Em pleno verão, a Páscoa será cantada" o staretz profetizara varias vezes. Mas seu
rosto logo se anuviava. Lágrimas corriam por suas bochechas. "Esta alegria durará
pouco" dizia.
Naquelas horas de apoteose, naqueles dias de união entre o povo, o czar e a Igreja
Terríveis Perspectivas.
Entretanto, um aviso bem ao estilo do staretz foi dado quando, após deixar Sarov e o
interminável desfilar de peregrinos que ainda devia durar vários dias, a família imperial
parou em Diveyevo. Lá ela encontrou uma louca em Cristo chamada Pasha de Sarov.
Filha de servos, expulsa por seus senhores por causa de uma calúnia, foi nas grutas e
cavernas da floresta de Sarov que ela encontrou refúgio. Após alguns anos, veio à tona o
dom da clarividência que os sofrimentos lhe valeram, e ela passou a ser visitada. Foi
atacada por bandidos como um dia São Serafim o fora, deixando-a semi-morta, numa
poça de sangue. Ela nunca se restabeleceu completamente. "Ah, mamãe — gemia ela,
falando sozinha — que dor!" E mostrava sua cabeça ou sua costela. (Alguns de nossos
comtemporâneos a conheceram. Ela morreu em 1917, com mais de cem anos).
Após a morte de Pelagia que partiu envolta em uma aura de santidade e que fora
apelidada de "o serafim de Serafim" Pasha veio para Diveyevo onde Madre Maria a
acolheu alegremente. Foi com prazer que aquela mulher que, por tanto tempo, vivera
como um animal, instalou-se em uma cela limpinha e vestiu-se de cores vivas. Quando
lhe foi anunciada a visita do Imperador, para surpresa geral, ela tirou as roupas limpas e
— mau agouro — cobriu-se com velhos trapos. Tinha o hábito de servir chá a seus
visitantes. Aos que seriam atingidos por alguma desgraça, ela colocava muito açúcar na
xícara, "para consolar." Colocou tanto açúcar na xícara do Imperador que o chá
transbordou. O soberano pediu para ficar a sós com ela. Quando saiu da cela, a corte
ficou impressionada com a palidez e a tristeza de seu rosto. Ele jamais revelou a
ninguém o que a "louca de Sarov" acabara de lhe dizer.
O Grão-Duque Sérgio, cunhado da Imperatriz, era do cortejo. Logo que eles partiram,
Pasha suspirou: "não conseguia olhar para ele. Via seu cérebro espalhado sobre uma
calçada. Pouco tempo depois, o Grão-Duque caía, vítima de um atentado terrorista.
Um ano depois, nasceu o herdeiro tão esperado — mas ele era hemofílico.
Em 1904, a guerra com o Japão causava ao colosso russo a dolorosa vergonha de uma
derrota.
O balanço das guerras — as duas guerras mundiais e a guerra civil que dilacerou a
Rússia — com seu desfile de horrores, epidemias, perseguições, fomes, sofrimentos —
é calculado pelo imponente número de 40 milhões. Alguns levam-no até 60 milhões.
Exageradas ou não, estas estimativas são aterrorizantes. O staretz tinha razão ao dizer:
"A vida será curta então. Os anjos mal terão tempo de recolher as almas."
Ao voltar, por assim dizer corporalmente, entre os seus naqueles luminosos dias de
julho, parece que o staretz se colocava deliberadamente no limite do que havia sido e do
que estava por vir, aproximando-se ainda mais, na véspera de dias trágicos e
imprevisíveis, do povo russo pelo qual ele prometera orar, prostrado diante do Trono do
Altíssimo.
A Loucura da Cruz.
Cheio de uma angústia profética, o staretz previa claramente os terríveis dias que se
seguiram? Não haveria nisto nada de inverossímil. Tudo o que ele havia previsto sempre
se realizou. E poderíamos nos perguntar, como já o fizemos, se nos problemas de
Diveyevo que temia tanto, o homem de Deus não via metaforicamente o futuro de seu
bem-amado país e da Igreja russa, e na pessoa do "visitante estrangeiro" um precursor
do Anti-Cristo. Lobo em pele de cordeiro, haverão muitos como ele em uma Igreja às
vezes órfã. (cf. Mat 7:15-16).
Mas o Espírito Santo inspira o discernimento dos espíritos e não abandona a Igreja.
Muitos se espantam do incrível faro que os cristãos russos provavam possuir, ao
distinguir nos tempos mais difíceis os verdadeiros dos falsos pastores. "Da para
reconhecê-los pelos olhos. . ." como se reconhecem pelos olhos os verdadeiros loucos
em Cristo.
Sobre eles, desgrenhados, piolhentos, afamados, semi-nus, o Anti-Cristo não terá vez.
Não poderá tentá-los nem pelas promessas de um paraíso terrestre, nem pelas
maravilhas da técnica e da ciência. Qual é o ícone deles? A imagem do Cristo vestido
com uma túnica escarlate, escarnecido pelos soldados, O Rei da Glória poderia se
apresentar mais abjeto e ridículo?
É preciso heroísmo — e muito — para ser louco em Cristo. E se São Serafim o era até
certo ponto, o povo não fazia senão amá-lo mais ainda. Porque o heroísmo russo não
tem plumas; não teria sido por causa desta simplicidade que o homem de olhos claros da
floresta se tornou o eleito Daquela que se dizia "Humilde Serva" e que, deificada, foi
coroada Rainha dos Céus?
Não era Ela, a Celeste soberana, que dava a Seu eleito, diretrizes a respeito do convento
de Diveyevo, do qual escolheu ser Abadessa? Por que inclinava-se Ela com tanto amor
sobre aquele canteiro de jovens camponesas analfabetas?
Isto já foi perguntado, mas hoje a resposta com certeza é sabida. E, por sua importância,
merece que nos detenhamos nela.
A obediência do staretz à Rainha dos Céus traz seus frutos. Outros startzi —
especialmente os do "Deserto de Optina" na segunda parte do séc. XIX, também
prepararam a mulher russa para seu papel de guardiã da fé. Serafim de Sarov pode ser
considerado como seu precursor. O interesse que estes homens tinham pelas mulheres
parecia escândalo só na época. Mas o trabalho destes instrumentos do Espírito Santo
não foi em vão. É preciso ter estado nas igrejas russas ainda abertas a culto, é preciso ter
visto aqueles rostos de mulheres, duros, fechados, severos — como é severo, nos
retratos que se têm dele, o rosto de São Serafim — ter sentido a qualidade e a força
desta prece, tão diferente da prece negligente e distraída dos cristãos "que-não-
sofreram-a-paixão."
"Seus ícones são tão severos!, dizem sempre os ocidentais. Sim. Mas, por trás desta
severidade — que ternura!"
Dizem também, desdenhosamente: "São velhas, estas mulheres." Nem todas. E mesmo
se fossem, Deus não é Mestre em fazer brotar rebentos verdejantes de um tronco seco?
O que diz a Bíblia? Sara, mãe do povo eleito, era velha. Velha também era Ana, mãe da
Virgem. Velha Isabel, mãe do Precursor. E a profetisa Ana que, cheia do Espírito Santo,
proclamava a divindade de Jesus quando da apresentação no templo, não tinha 84 anos
de idade?
Influência Póstuma.
Desde a Revolução, a Igreja Russa, mais do que nunca, precisou do Espírito Santo,
Consolador a quem por antecipação Serafim pedia ajuda.
"Quando, pois, vos conduzirem para vos entregarem, não estejais solícitos de antemão
pelo que haveis de dizer; mas, o que vos foi da do naquela hora, isto falai; porque não
sois vós os que falais, mas o Espírito Santo" (Mc. 13:11)
É esse mesmo Espírito que dará aos mártires a alegria do perdão das ofensas, cujo sabor
o eremita do "Deserto Longínquo" conhecia.
Embora o staretz não tenha tido discípulos diretos enquanto vivo, todos os homens de
Deus que viveram desde então podem ser considerados como seus continuadores,
pertencendo a mesma tradição, comungando o mesmo Espírito: João de Cronstadt,
Siluano de Athos, o genial Paulo Florensky morto em um campo de concentração perto
do círculo polar, assim como também aquele humilde padre de uma paroquia moscovita,
Alexis Metchev, viuvo precoce, pai e avô, que, doente, vivia em plena revolução em um
constante turbilhão de gente, dispensando a todos sua sabedoria e amor, e que era
comparado a São Serafim.
Inovador cuja bravura passava desapercebida, por estar escondido em seu "Deserto", o
staretz de Sarov recomendava a comunhão freqüente, a promoção dos leigos à mesma
dignidade dos monges e, sobretudo, o uso constante da "oração de Jesus" que, naquele
tempo, estava apenas começando a penetrar nas camadas populares. Ousou até colocar
esta oração na base da regra que deu ao convento que fundara.
Desde então, toda a Rússia se deixou impregnar fortemente pelo espírito do staretz. Um
padre vindo da U.R.S.S. dizia recentemente em Genebra a um pastor anglicano que no
confessionário, escutando seus penitentes, parecia-lhe várias vezes ouvir o próprio São
Serafim. Ele queria dizer que era no espírito do staretz que aqueles homens e mulheres
se confessavam; suas atitudes em relação à vida e à morte, o pecado, a redenção e a
Igreja, eram inspirados na dele.
Mas não é só isso. Como o staretz previa, sua mensagem devia atravessar fronteiras. Era
destinada ao mundo inteiro.
A um mundo que sofre.
"Eis que vêem dias, diz o Senhor Jeová, em que enviarei fome sobre a terra, não fome
de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor. E irão vagabundos de
um mar até outro mar, e do norte até ao oriente; Correrão por toda a parte, buscando a
palavra do Senhor, e não a acharão" (Amós, 8:11-12).
Não a acharão porque é com orgulho, usando a inteligência humana, que eles buscarão.
Buscarão sem pedir a ajuda do Espírito Santo.
Por este sopro de orgulho luciferino os cristãos, como todos os outros, são derrotados.
Perdem-se nos labirintos daquela fé "razoável e racional" inimiga do Espírito. Voltando
às heresias de outrora, tornam-se semelhantes àqueles "cães que voltam a seu próprio
vômito" como diz São Pedro (2 Ped. 2:22). Afundando em um poço de desespero,
jovens "loucos em anticristo" bêbados de ódío, drogados, vomitam todas as impurezas
de seu ser e acham isso lindo de morrer. Quanto ao homem respeitável e sensato, põe
suas esperanças na técnica. Útil como ferramenta, ela se torna terrível como ídolo.
Robô ou Deus?
Há tantos caminhos para Deus como há homens sobre a terra. A peregrinação para o
Reino é aberta para todos. O Espírito está em cada homem criado por Deus.
— Batiushka — perguntou um dia um noviço ao starez Serafim-por que nós não
levamos uma vida semelhante à dos antigos?
Estes buscadores sempre existirão. Tanto na Rússia quanto "no mundo inteiro."
* O Metropolita de Lattaquié, Inácio Hazim, a quem fora confiada a tarefa de abrir os trabalhos
da Assembléia do Conselho Ecumênico por uma exposição sobre o tema que devia orienta-los:
"Eis que faço novas todas as coisas" (Apo. 21:5), foi formado pelo Instituto São Sérgio, em
Paris. Pioneiro do Movimento da Juventude do Patriarcado de Antioquia, ele se enraíza em um
Cristianismo de expressão semítica, próximo das fontes bíblicas. (Olivier Clement. Diálogos
com o Patriarca Athenágoras, p. 495).
Até aqui, ao deparar com citações bíblicas, simplesmente transcrevi a versão de João Ferreira
de Almeida do versículo citado.
Entretanto, nesta segunda parte do texto, que foi escrita em russo, a palavra passa ao próprio
Padre Serafim e suas citações nem sempre correspondem exatamente às palavras da versão
portuguesa. Colocou-se então uma dificuldade, sentida também pela tradutora francesa, como
é salientado na última nota desta parte. O texto original é em russo; o Padre Serafim utilizava
uma versão eslavônica, e a tradução francesa lançou mão da Bíblia de Jerusalém.
Assim, peço desculpas por eventuais erros e recomendo que a leitura das duas próximas
partes seja feita com a Sagrada Escritura à mão, dada a abundância de citações.
Ele me fez sentar sobre o tronco de uma árvore que acabara de abater e acocorou-se à
minha frente.
— O Senhor me revelou — disse o grande staretz — que desde a infância você queria
saber qual era o objetivo da vida cristã e que o perguntou muitas vezes, até mesmo a
altos personagens da hierarquia da Igreja.
Devo dizer que desde aos 12 anos esta idéia me perseguia e que efetivamente fizera a
pergunta a diversas personalidades eleciásticas, sem jamais receber uma resposta
satisfatória. O staretz ignorava isto.
A oração, o jejum, as vigílias e outras atividades cristãs, por melhores que possam
parecer em si mesmas, não constituem o objetivo da vida cristã, mesmo ajudando a
chegar a ele. O verdadeiro objetivo da vida cristã consiste na aquisição do Espírito
Santo. Quanto à oração, o jejum, as vigílias, a esmola e toda boa ação feita em nome de
Cristo, elas não passam de meios para a aquisição do Espírito Santo.
Em Nome de Cristo.
Reparem que somente uma boa ação praticada em nome de Cristo nos proporciona os
frutos do Espírito Santo. Tudo que não é feito em Seu nome, mesmo o bem, não nos
proporciona nenhuma recompensa no mundo que há de vir, e tampouco nos dá nesta
vida a graça divina. É por isso que o Senhor Jesus Cristo dizia: "quem Comigo não
ajuntar espalha" (Luc. 11:23).
Entretanto devemos chamar uma boa ação de "ajuntamento" ou colheita, pois mesmo se
ela não é feita em Nome de Cristo, continua sendo boa. A Escritura diz: "Mas que lhe é
agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e obra o que é justo" (Atos 10:35). O
centurião Cornélio, que temia a Deus e agia segundo a justiça, enquanto orava foi
visitado por um anjo do Senhor que lhe disse: Envia homens a Jope, na casa de Simão o
curtidor e encontrarás lá um certo Pedro que te fará ouvir as palavras da vida eterna
pelas quais serás salvo, tu e toda a tua casa" (Atos 10).
Vemos então que o Senhor lança mão de Seus meios divinos para permitir que um
homem assim não seja privado da recompensa que lhe é devida. Mas para obtê-la é
preciso que desde aqui embaixo ele comece por acreditar em Nosso Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus descido a Terra para salvar os pecadores, e adquirir a graça do Espírito
Santo que introduz em nossos corações o Reino de Deus e nos abre o caminho da
beatitude do mundo que há de vir. É até aí que vai a satisfação que dão a Deus as boas
ações que não são feitas em nome de Cristo. O Senhor nos dá os meios de remata-las.
Ao homem cabe aproveitar ou não. É por isso que o Senhor disse aos Judeus: "Se
fosseis cegos, não teríeis pecados; mas como agora dizeis: vemos, por isso o vosso
pecado permanece" (João 9:41). Quando um homem como Cornélio cuja obra não foi
feita em Nome de Cristo, mas foi agradável a Deus, passa a crer em seu Filho, esta obra
lhe é contado como feita em Nome de Cristo, por causa de sua fé Nele (Ite 11:6). Caso
contrário, o homem não tem direito de reclamar que o bem realizado não lhe foi
proveitoso. Isso nunca acontece quando uma boa ação foi feita em Nome de Cristo, pois
o bem realizado em Seu Nome traz não somente uma coroa de glória no mundo que há
de vir, mas desde aqui em baixo enche o homem da graça do Espírito Santo, como foi
dito: "Não lhe dá Deus o Espírito por medida. O Pai ama o Filho, e todas as coisas
entregou nas Suas mãos" (João 3:34-35).
— Aquisição é a mesma coisa do que obtenção. Você sabe o que é adquirir dinheiro?
Com o Espírito Santo, é igual. Para as pessoas em geral, o objetivo da vida consiste na
aquisição de dinheiro — o ganho. Os nobres, além de tudo, desejam obter honras,
marcas de distinção e outras recompensas concedidas por serviços feitos ao Estado. A
aquisição do Espírito Santo também é um capital, porém um capital eterno, dispensador
de graças; muito semelhante aos capitais temporais, e que se obtêm pelos mesmos
procedimentos. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus — Homem, compara nossa vida a um
mercado e nossa atividade na terra a um comércio. Recomenda a nós todos: "Negociai
até que Eu venha; economizando o tempo, porquanto os dias são maus" (Luc. 19:12-13;
Efe. 5:15-16), o que quer dizer: Apressem-se em obter os bens celestes negociando
mercadorias terrestres. Essas mercadorias terrestres são exatamente as ações virtuosas
feitas em Nome de Cristo e que nos trazem a graça do Espírito Santo.
Na parábola das Virgens Prudentes e das Virgens Loucas (Mat 25:1-13), quando estas
últimas ficam sem óleo disseram-lhe: "Ide aos que o vendem e comprai-o para vós."
Mas, ao voltarem, encontraram a porta do quarto nupcial fechada e não puderam entrar.
Alguns acham que a falta de óleo nas Virgens Loucas simboliza a insuficiência de ações
virtuosas feitas no decorrer de suas vidas. Essa interpretação não é inteiramente certa.
Como poderia haver falta de ações virtuosas se elas eram chamadas virgens, ainda que
loucas? A virgindade é uma alta virtude, um estado quase angélico, podendo substituir
todas as outras virtudes. Eu, miserável, acho que faltava-lhes justamente o Espírito
Santo de Deus. Mesmo praticando virtudes, estas virgens, espiritualmente ignorantes,
acreditavam que a vida cristã consistia nestas práticas. Agimos de forma virtuosa,
fizemos obras de piedade, pensavam elas, sem se preocupar se, sim ou não, haviam
recebido a graça do Espírito Santo. Deste gênero de vida, baseado unicamente na prática
das virtudes morais, sem um exame minucioso para saber se elas nos trazem — e em
que quantidade — a graça do Espírito de Deus, foi dito nos livros patrísticos: "Há
caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte" (Pro.
14:12).
Falando destas virgens, Antônio o Grande diz, em suas Epístolas aos Monges: "Muitos
monges e virgens ignoram completamente a diferença que existe entre as três vontades
que agem dentro do homem."
É justamente a graça do Espírito Santo, simbolizada pelo óleo, que faltava às Virgens
Loucas. Elas são chamadas "loucas" porque não se preocupavam com o fruto
indispensável da virtude que a graça do Espírito Santo, sem o qual ninguém pode ser
salvo, pois "toda alma é vivificada pelo Espírito Santo para que seja iluminada pelo
sagrado mistério da Unidade Trinitária" (Antífona antes do Evangelho das matinas). O
próprio Espírito Santo vem habitar em nossas almas, e esta residência em nós do Todo-
Poderoso, a coexistência em nós de sua Unidade Trinitária com nosso espírito só nos é
dada à condição de trabalharmos por todos os meios a nosso alcance, na obtenção deste
Santo Espírito que prepara em nós um lugar digno deste encontro, segundo a imutável
palavra de Deus: "E viremos para ele, e faremos nele morada; e serei seu Deus e ele
será Meu povo" (Apo. 3:20; João 14:23). É isso, o óleo que as Virgens Prudentes
tinham em suas lâmpadas, óleo capaz de queimar durante muito tempo, alto e claro,
permitindo-as esperar a chegada, à meia-noite, do esposo, e a entrada, com Ele, no
quarto nupcial da felicidade eterna.
Quanto as Virgens Loucas, vendo que corriam o risco da lâmpada apagar, foram ao
mercado, mas não tiveram tempo de voltar antes da porta fechar. O mercado — é a
nossa vida. A porta do quarto nupcial, fechada, e interditando o acesso ao Esposo — é a
nossa morte humana; as virgens — prudentes e loucas — são as almas cristãs. O óleo
simboliza não as nossas ações, mas a graça pela qual o Espírito Santo enche nosso ser,
transformando isto naquilo; o corruptível em incorruptível, a morte psíquica em vida
espiritual, as trevas em luz, o estábulo onde, como animais, nossas paixões estão
acorrentadas, em Templo de Deus, em câmara nupcial onde encontramos nosso Senhor,
Criador e Salvador, Esposo de nossas almas. É grande a compaixão que Deus tem por
nosso infortúnio, quero dizer, por nossa negligência em relação à Sua solicitude. Ele diz
"Eis que estou à porta, e bato" (Apo. 3:20), entendendo-se por "porta" a corrente de
nossa vida ainda não estancada pela morte.
A Oração.
Ah, como eu gostaria, amigo de Deus, que nesta vida você estivesse sempre no Espírito
Santo. "Eu vos julgarei no estado em que vos encontrar," diz o Senhor (Mat. 13:33-37;
Luc. 19:12 em diante). Que grande infortúnio se Ele nos encontrar sobrecarregados
pelas preocupações e males terrestres, pois quem pode suportar Sua cólera e resistir-
Lhe? É por isso que foi dito: "Vigiai e orai para que não entreis em tentação" (Mat.
26:41), em outras palavras, para não ser privado do Espírito de Deus, pois as vigílias e
orações nos dão Sua graça.
É verdade que toda boa ação feita em Nome de Cristo confere a graça do Espírito Santo,
mas a oração mais do que tudo, por estar sempre à nossa disposição. Você poderia, por
exemplo, ter vontade de ir à igreja, mas a igreja é longe, ou o ofício já acabou; poderia
querer dar esmolas, mas você não vê um pobre por perto, ou não tem dinheiro; você
poderia querer permanecer virgem, mas não tem força suficiente para isso, por causa de
sua constituição ou das armadilhas do inimigo a que a fraqueza de sua carne não lhe
permite resistir; você poderia querer talvez encontrar uma outra boa ação para fazer em
Nome de Cristo, mas não tem força, ou a ocasião não se apresenta. Quanto à oração,
nada disso a afeta: Todos têm sempre a possibilidade de orar, ricos e pobres, famosos e
comuns, fortes e fracos, são e enfermos, virtuosos e pecadores.
Pode-se julgar o poder da oração, mesmo pecadora, sendo de um coração sincero, pelo
seguinte exemplo trazido pela Santa Tradição: por pedido de uma infeliz mãe que
acabara de perder seu único filho, uma cortesã que ela encontrou no caminho,
mobilizada pelo desespero maternal, ousou gritar ao Senhor, mesmo orando ainda suja
por seu pecado: "Não por mim, horrível pecadora, mas pelas lágrimas desta mãe que
chora seu filho crendo firmemente em Tua misericórdia e em Tua Onipotência,
ressuscita-o, Senhor!" E o Senhor o ressuscitou.
Tal é o poder da oração, amigo de Deus. Mais do que qualquer coisa, ela nos dá a graça
do Espírito de Deus e, mais do que tudo ela está sempre a nosso alcance. Bem
aventurados seremos quando o Senhor nos encontrar vigilantes, na plenitude dos dons
de seu Espírito Santo. Podemos então esperar ser arrebatados às nuvens ao encontro de
Nosso Senhor vindo pelos ares revestido de poder e de glória, julgar os vivos e os
mortos e dar a cada um seu quinhão.
Você acha, amigo de Deus, que é uma grande felicidade poder conversar com o
miserável Serafim, por estar persuadido de que ele não é desprovido de graça. Que
diríamos, então, de uma conversa com o próprio Deus, fonte inesgotável de graças
celestes e terrestres? É pela oração que nos tornamos dignos de conversar com Ele,
nosso vivificante e misericordioso Salvador. Mas, ainda assim, só se deve orar até o
momento em que o Espírito Santo desce sobre nós e nos concede, em certa medida
conhecida apenas por Ele, Sua graça celeste. Visitado por Ele, é preciso parar de orar.
Com efeito, para que serve implorar-lhe: "Vem e habita em nós, purifica-nos de toda
impureza e salva as nossas almas, Tu que és bom"(Tropário ortodoxo recitado no
começo dos ofícios), quando Ele já veio, em resposta às nossas humildes e amorosas
solicitações, templo de nossas almas sedentas por sua vinda? Explico isto com um
exemplo. Suponhamos que você tenha me convidado à sua casa, que eu tenha vindo
conversar com você, mas que, apesar da minha presença, você não pare de repetir:
"Você gostaria de vir à minha casa?, eu certamente pensaria: "O que ele tem? Perdeu a
cabeça. Estou na casa dele, e ele continua me convidando." A mesma coisa é válida a
respeito do Espírito Santo. É por isso que foi dito: (segundo o texto francês) "Afastai-
vos, e sabei que Eu sou Deus; serei entre as nações, serei exaltado sobre a Terra" (Sal.
46:10). O que significa: aparecerei e continuarei a aparecer a cada crente e conversarei
com ele, como conversava com Adão no paraíso, com Abraão e Jacob e meus outros
servidores. Moisés, já e seus semelhantes. Muitos acreditam que este "afastamento"
deve ser interpretado como referindo-se aos negócios deste mundo, o que quer dizer que
ao se falar com Deus na oração é preciso se afastar de tudo o que é terrestre.
Certamente. Mas eu, por Deus, direi-lhes que apesar de que seja necessário, durante a
oração, afastar-se disto, também é preciso, quando o Senhor Deus, o Espírito Santo nos
visita e vem em nós na plenitude de Sua indescritível bondade, afastar-se da oração,
suprimir a própria oração.
A alma orando fala e profere palavras. Porém, na descida do Espírito Santo convém
estar absolutamente silencioso, a fim de que a alma possa ouvir claramente e
compreender bem os anúncios da vida eterna que Ele Se digna a trazer. A alma e o
espírito devem se encontrar em estado de completa sobriedade e o corpo em estado de
castidade e pureza. É assim que as coisas se passaram no Monte Horeb quando Moisés
ordenou aos israelitas que se abstivessem de mulheres três dias antes da descida de Deus
sobre o Sinai, pois Deus é "um fogo consumidor" (Heb. 12:29), e nada de impuro, física
ou espiritualmente, pode entrar em contato com Ele.
Comércio Espiritual.
— Mas como praticar, Padre, em Nome de Cristo, outras virtudes que permitiriam a
aquisição do Espírito Santo? O Senhor só fala da oração.
Como eu gostaria, amigo de Deus, que você encontrasse esta fonte inesgotável de graça
e que você se interrogasse sem cessar: "O Espírito Santo está comigo? Se Ele está
comigo, bendito seja Deus, não preciso me preocupar — mesmo se o juízo final for
amanhã, estou pronto a comparecer. Porque foi dito: "Eu vos julgarei no estado em que
vos encontrar." Se, ao contrário, não temos mais a certeza de estar no Espírito Santo, é
preciso descobrir por que Ele nos abandonou e buscá-Lo sem parar, até achá-Lo
novamente, Ele e Sua graça. É preciso perseguir os inimigos que nos impedem de ir até
Ele até seu completo aniquilamento. O profeta David disse: "Persegui os meus inimigos
e os alcancei: não voltei senão depois de os ter consumido. Atravessei-os, de sorte que
não se puderam levantar; caíram debaixo dos meus pés" (Sal. 18:38-39).
Pois é, é bem assim. Faça comércio espiritual com a virtude. Distribua os dons da graça
a quem os pede, inspirando-se no seguinte exemplo: uma vela acesa, mesmo queimando
com um fogo terrestre, acende, sem por isso perder seu brilho, outras velas que
iluminarão outros lugares. Se esta é a propriedade do fogo terrestre, que dizer do fogo
da graça do Espírito Santo? A riqueza terrestre, distribuída, diminui. Quanto à riqueza
celeste da graça, ela não faz senão aumentar naquele que a propaga. Assim o próprio
Senhor diz à Samaritana: "Qualquer que beber desta água tornará a ter sede, mas
aquele que beber da água que Eu lhe der nunca terá sede, porque a água que Eu lhe
der se fará nele uma fonte d' água que salte para a vida eterna" (João 4:14).
Ver Deus.
— Padre, disse-lhe eu, o senhor sempre fala na aquisição da graça do Espírito Santo
como objetivo da vida cristã. Mas como posso reconhecê-la? As boas ações são visíveis.
Mas o Espírito Santo pode ser visto? Como posso saber se, sim ou não, Ele está em
mim?
Então alguns dizem: "Estes trechos são incompreensíveis. Pode-se admitir que homens
possam ver Deus de uma forma tão concreta?" Esta incompreensão vem do fato de que,
sob pretexto de instrução, de ciência, nós nos comprometemos com tamanha escuridão
de ignorância que achamos inconcebível tudo aquilo de que os anciões tinham uma
noção bastante clara, a ponto de poder falar entre si das manifestações de Deus aos
homens como de coisas conhecidas por todos e nem um pouco estranhas. Assim Jó,
quando seus amigos o censuravam por blasfemar contra Deus, respondia: "Como
poderia fazer isso quando sinto o sopro do Todo Poderoso nas minhas narinas?" (Jó.
27:3). Em outras palavras, como posso blasfemar quando o Espírito Santo está comigo?
Se eu blasfemasse, o Espírito Santo me abandonaria, mas sinto Sua respiração em
minhas narinas. Abraão e Jacó conversaram com Deus. Jacob até lutou com Ele. Moisés
viu Deus, e todo o povo com ele, quando ele recebeu as Tábuas da Lei no Sinai. Uma
coluna de nuvem de fogo — a graça visível do Espírito Santo — servia de guia ao povo
hebreu no deserto. Os homens viam Deus e Seu Espírito não em sonho ou em êxtase —
frutos de uma imaginação doentia — mas em realidade.
A Criação.
Muitos, por exemplo, interpretam as palavras da Bíblia: "E formou o Senhor Deus o
homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida" (Gen. 2:7), como
querendo dizer que até então não havia em Adão nem alma nem espírito humano, mas
somente uma carne criada do pó da terra. Esta interpretação não é exata, pois o Senhor
Deus criou Adão do pó da Terra no estado de que fala o Apóstolo Paulo quando afirma:
"e todo o nosso espírito, e alma, e corpo, sejam perfeitos na vinda do Senhor Jesus
Cristo."
Todas estas três partes de nosso ser foram criadas do pó da terra. Adão não foi criado
morto, mas criatura animal ativa, semelhante às outras criaturas que viviam sobre a terra
e animadas por Deus. Mas eis algo importante. Se Deus não houvesse depois soprado na
face de Adão o fôlego de vida, isto é, a graça do Espírito Santo procedente do Pai e
repousando sobre o Filho e enviando a este mundo por causa dele, sendo perfeito e
superior às outras criaturas, Adão teria ficado privado do Espírito divinizante e seria
semelhante a todas as criaturas que têm carne, alma e espírito conforme sua espécie,
mas privadas, no interior, do Espírito Santo que torna semelhante a Deus. A partir do
momento em que Deus lhe deu o sopro de vida, Adão se tornou, segundo Moisés, "uma
alma vivente" quer dizer, em tudo semelhante a Deus, eternamente imortal. Adão fora
criado invulnerável. Nenhum elemento tinha poder sobre ele. A água não podia afogá-
lo, o fogo não podia queimá-lo, a terra não podia engoli-lo e o ar não poderia fazer mal.
Tudo lhe era submetido como ao preferido de Deus, como ao proprietário e rei das
criaturas. Ele era a própria perfeição, a coroa das obras de Deus, e era admirado como
tal. O fôlego da vida que Adão recebeu do Criador encheu-o de sabedoria ao ponto de,
jamais ter havido, e provavelmente jamais vir a nascer, um homem tão cheio de
conhecimento e de sabedoria quanto ele. Quando Deus lhe ordenou que desse nomes a
todas as criaturas, ele as nomeou segundo as qualidades, as forças e as propriedades
conferidas por Deus a cada uma.
Este dom da graça divina supranatural, vinda do fôlego de vida que recebera, permitia a
Adão ver Deus passeando no paraíso e compreender suas palavras, assim como a
conversa dos santos Anjos e a língua de todas as criaturas, pássaros, répteis que vivem
sobre a terra, tudo o que nos é dissimulado, a nós pecadores, desde a queda, mas que,
antes da queda, era totalmente claro para Adão.
A mesma sabedoria, a mesma força e o mesmo poder, assim como qualquer outra
qualidade boa e santa, haviam sido conferidas por Deus a Eva no momento da criação,
não do pó da terra, mas de uma costela do Adão no Éden das delícias, no paraíso
manifestado no meio da terra.
Para que Adão e Eva sempre pudessem manter em si suas propriedades imortais,
perfeitas e divinas, vindas do sopro da vida, Deus plantou no meio do paraíso a árvore
da vida, em cujos frutos toda a substância e a plenitude dos dons de seu divino fôlego.
Se Adão e Eva não houvessem pecado, teriam podido, eles e seus descendentes,
comendo os frutos daquela árvore, manter em si a força vivificante da graça divina,
assim como uma plenitude imortal, eternamente renovada, das forças corporais,
psíquicas e espirituais, um não-envelhecimento perpétuo, um estado de beatitude que
nossa imaginação atual mal consegue conceber.
Isto não quer dizer que o Espírito Santo tenha abandonado completamente o mundo,
porém sua presença não era tão manifesta como era em Adão ou como é em nós cristãos
ortodoxos, mas permanecia exterior, e os homens bem sabiam. Assim por exemplo,
muitos segredos a respeito da futura redenção da humanidade foram revelados a Adão e
Eva após a queda. Apesar do seu crime, Caim pôde ouvir a voz divina proferindo
reprimendas. Noé conversou com Deus. Abraão viu Deus e Sua Luz e se rejubilou. A
graça do Espírito Santo manifestava-se exteriormente em todos os profetas
veterotestamentários e nos santos de Israel. Os judeus tinham até escolas especiais para
aprender a discernir os sinais das aparições de Deus ou dos anjos e a diferenciar as
ações do Espírito Santo dos acontecimentos da vida cotidiana, privada da graça.
Simeão, Joaquim e Ana, e vários outros servidores de Deus eram frequentemente
gratificados por manifestações divinas. Eles ouviam vozes, recebiam revelações
confirmadas em seguida por acontecimentos miraculosos, porém verídicos.
O Espírito de Deus manifestava-se igualmente, embora com uma força menor, entre os
pagãos que não conheciam o verdadeiro Deus, mas entre os quais Ele também
encontrava adeptos. As virgens profetisas, por exemplo, as sibilas, mantinham a
virgindade para um Deus Desconhecido — mas ainda assim um Deus — que se
estimavam ser o Criador do Universo, o Todo-Poderoso que governava o mundo. Os
filósofos pagãos, errando nas trevas da ignorância de Deus, porém em busca da verdade,
podiam, por causa desta busca agradável ao Criador, receber, até certo ponto o Espírito
Santo. Está dito: "As nações que ignoram Deus agem segundo a lei natural e fazem o
que lhe agrada" (Rom. 2:14). A verdade é tão agradável a Deus que Ele mesmo
proclama por meio de Seu Espírito: "A justiça" irradia da Terra e a verdade se inclina
dos céus (Sal. 85:11).*
Mas eis que São Simeão — a quem foi revelado, à idade de 65 anos, o mistério da
concepção e do nascimento virginal de Cristo proclamou em voz alta no Templo que
tinha certeza, no Espírito Santo, de ver diante de si o Cristo, Salvador do Mundo, cujo
nascimento, da Puríssima Virgem Maria, havia lhe sido predito 300 anos antes por um
anjo **. E também Sant'Anna, a profetisa, filha de Fanuel, que desde a viuvez, durante
80 anos serviu o Templo, mulher cheia de graça e sabedoria, anunciou que ali estava o
Messias, o verdadeiro Cristo, Deus e homem, o Rei de Israel vindo salvar Adão e todo o
gênero humano.
** (N. da Ed. original) O texto é aqui provindo de uma tradição apócrifa, segundo a qual o
ancião Simeão teria vivido até os 385 anos.
Quando Nosso Senhor Jesus Cristo completou Sua obra de salvação, ressuscitado dos
mortos, Ele soprou sobre os Apóstolos, renovando o sopro de vida de que Adão usufruía
e lhes devolvendo a mesma graça que Adão havia perdido. Mas isto não é tudo. Ele lhes
disse: "Digo-vos a verdade, que vos convêm que vá; porque, se Eu não for, o
Consolador não virá a vós; mas, se Eu for, enviar-vo-Lo-ei; e quando Ele vier, Ele vos
guiará em toda a verdade; vós e todos os que crerem em vosso ensinamento e Ele vos
fará lembrar tudo quanto vos tenho dito" (João 16:7-26). É a graça que Ele já prometia.
"Graça sobre graça."
O Pentecostes.
E eis que no dia de Pentecostes, Ele lhes enviou solenemente o Espírito Santo em um
sopro de tempestade, sob o aspecto de línguas de fogo que pousaram sobre cada um
deles e encheram-nos da força fulgurante da graça divina, orvalho vivificante e alegria
para as almas daqueles que comungam com Seu poder e Seus efeitos.
O Batismo.
Esta graça fulgurante do Espírito Santo é conferida a todos nós fiéis de Cristo, no
sacramento do batismo. Ela é selada pelo crisma — unção feita com os santos óleos
sobre os principais membros de nosso corpo indicados pela Santa Igreja, depositária
eterna desta graça. Dizemos: "O selo do dom do Espírito Santo" Ora, sobre o que
colocamos nossos selos senão sobre os recipientes cujo conteúdo é particularmente
precioso? E o que há de mais precioso e demais sagrado no mundo do que os dons do
Espírito Santo enviados do Alto durante o sacramento do batismo?
Esta graça batismal é tão grande, tão importante, tão vivificante para o homem que
mesmo se ele se torna um herege ela não lhe é retirada até a morte, isto é, até o fim de
sua prova temporal fixada pela Providência, a fim de lhe dar uma chance de se reerguer.
Arrependimento.
Quando um homem, trazido de volta à vida pela sabedoria divina sempre em busca de
nossa salvação, decide se voltar para Deus para escapar da perdição, deve seguir a via
do arrependimento, praticar as virtudes contrárias aos pecados cometidos, e agindo em
Nome de Cristo, esforçar-se por adquirir o Espírito Santo que, dentro de nós, prepara o
Reino Celeste.
Não foi à toa que o Verbo disse: "O Reino de Deus está dentro de vós.* Entra-se nele
pela violência do esforço" (Luc 17:21). Se, apesar dos laços do pecado que os mantêm
cativos, impedindo-os, por renovadas iniqüidades, de voltar-se para o Salvador em
perfeita contrição, os homens se esforçarem por romper estes laços, eles chegarão
finalmente perante a Face de Deus mais brancos do que a neve, purificados por Sua
graça.
"Vinde, diz o Senhor, e ainda que vossos pecados sejam como a escarlata, eles se
tornarão brancos como a neve" (Isa. 1:18). O Vidente do Apocalipse, o Apóstolo São
João Teólogo, viu tais homens vestidos de branco, justificados, com palmas nas mãos
em sinal de vitória e entoando Aleluia. Era incomparável a beleza deste canto. O Anjo
do Senhor disse falando deles: "Estes são os que vieram da ** grande tribulação, e
levaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro" (Apo. 7:14).
* (N. da T). — No francês figura "dentro de vós" ("au dedans de vous") . Na tradução de J. F. de
Almeida, entretanto, temos "entre vos."
A Virgem Maria.
Apesar do fato de satan ter seduzido Eva, arrastando Adão em seguida, Deus não
somente nos deu um Redentor que pela Morte venceu a Morte, mas também na pessoa
de Maria, a Mãe de Deus, Maria sempre Virgem, que esmagou em Si mesma e em todo
o gênero humano a cabeça da serpente, Ele nos forneceu uma advogada incansável ante
Seu Filho e nosso Deus, uma medianeira invencível pelos pecadores mais endurecidos.
E por causa disso que Ela é chamada "O Flagelo dos demônios" pois é impossível que
um demônio faça um homem perecer enquanto o próprio homem não parar de recorrer à
ajuda da Theotokos.
Devo ainda, eu, miserável Serafim, explicar-lhe, amigo de Deus, em que consiste a
diferença entre a ação do Espírito Santo tomando posse misteriosamente dos corações
daqueles que crêem em Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e a ação tenebrosa do
pecado que vem a nós como um ladrão, instigado pelo demônio.
O Espírito Santo nos traz à memória as palavras de Cristo e trabalha em sintonia com
Ele, guiando nossos passos, solene e alegremente, no caminho da paz. Enquanto que as
ações do espírito diabólico, oposto ao Cristo, nos incitam à revolta e nos tornam
escravos da luxúria, da vaidade e do orgulho.
"Em verdade, em verdade vos digo, aquele que crê em Mim não morrerá jamais" (João
6:47). Aquele que por sua fé em Cristo está de posse do Espírito Santo, mesmo tendo
cometido por fraqueza humana um pecado qualquer, causando a morte de sua alma, não
morrerá para sempre, mas será ressuscitado pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
que tomou para Si os pecados do mundo e que dá gratuitamente graça após graça.
É falando desta graça manifestada ao mundo inteiro e a nosso gênero humano pelo Deus
Homem que o Evangelho diz: "De todo ser Ele era a vida, e a vida era a luz dos
homens," e acrescenta: "e a luz resplandece nas trevas, e as trevas não O
compreenderam" (João l:4-5). O que quer dizer, que a graça do Espírito Santo recebida
no batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, apesar das quedas
pecaminosas, apesar das trevas que envolvem nossa alma, continua a resplandecer em
nosso coração com sua eterna luz divina por causa dos inestimáveis méritos de Cristo.
Diante de um pecador endurecido, esta luz de Cristo diz ao Pai: "Abba, pai, que Tua
cólera não se acenda contra este endurecimento." E, em seguida, quando o pecador se
volta ao arrependimento, ela apagará completamente os traços dos crimes cometidos,
revestindo o antigo pecador de uma veste de incorruptibilidade tecida pela graça deste
Espírito Santo de cuja aquisição lhe falo o tempo todo.
Toda a Santa Escritura fala disso. David, o ancestral do Deus Homem, disse: "Lâmpada
para os meus pés é Tua palavra, e luz para o meu caminho" (Sal. 119:105). Quer dizer, a
graça do Espírito Santo que a lei revela sob forma de mandamentos divinos é minha
luminária e minha luz, e se não fosse esta graça do Espírito Santo "que com tanta
dificuldade me esforço por adquirir, buscando sete vezes por dia sua verdade" (Sal.
119:164)*, como no meio de numerosas preocupações inerentes a minha posição real
poderia eu encontrar em mim uma só faísca de luz para me clarear no caminho da vida
obscurecida pelo ódio de meus inimigos?
* (N. da T) — O versículo citado é "Sete vezes no dia Te louvo pelos juízos da tua justiça."
— É muito simples — respondeu ele. Deus disse: "Tudo é simples para aquele que
adquire a Sabedoria" (Pro. 14:6)*. Nosso infortúnio é que não a procuramos, esta
Sabedoria divina que, não sendo deste mundo, não é presunçosa. Cheia de amor por
Deus e pelo próximo, ela modela o homem para sua salvação. É falando desta Sabedoria
que o Senhor disse: "Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade" (ITim. 2:4). A seus Apóstolos que careciam desta Sabedoria, Ele disse: "Como
lhes falta Sabedoria! Não lestes as Escrituras?" (Luc. 24:25-27). E o Evangelho diz que
Ele "lhes abriu a inteligência para que eles pudessem compreender as Escrituras."
Tendo adquirido esta Sabedoria, os Apóstolos sabiam sempre se, sim ou não, o Espírito
de Deus estava com eles e, cheios deste Espírito, afirmavam que sua obra era santa e
agradável a Deus. É por isso que, em suas Epístolas, eles podiam escrever: "pareceu
bem ao Espírito Santo e a nós" (Ato. 15:28), e era apenas por estarem persuadidos de
Sua presença sensível que eles enviavam suas mensagens. Então, amigos de Deus, esta
vendo como é simples?
Respondi:
— Já lhe disse que é muito simples e lhe expliquei com detalhes como os homens se
encontravam no Espírito Santo e como era preciso compreender Sua manifestação em
nós. . . que lhe falta ainda?
A Luz Incriada.
— Estamos ambos, você e eu, na plenitude do Espírito Santo. Por que você não olha
para mim?
— Não consigo, Padre, olhar para o senhor. Raios jorram de seus olhos. Seu rosto
tornou-se mais luminoso do que o Sol. Meus olhos estão ardendo. . .
— Não tenha medo, amigo de Deus. Você ficou tão luminoso quanto eu. Você também
esta agora na plenitude do Espírito Santo, senão não conseguiria me ver.
— Agradeça ao Senhor por nos ter concedido esta graça indescritível. Você viu — eu
nem mesmo fiz o Sinal da Cruz. Em meu coração, em pensamento somente, eu orei:
"Senhor, torna-o digno de ver claramente, com os olhos da carne, a descida do Espírito
Santo, como a Teus servidores eleitos quando Te dignaste aparecer-lhes na
magnificência da Tua glória!" E imediatamente Deus atendeu a humilde prece do
miserável Serafim. Como deixar de Lhe agradecer por este dom extraordinário que Ele
concede a nós dois? Não é sempre que Deus manifesta assim Sua graça, nem mesmo
aos grandes eremitas. Como uma mãe amorosa, essa graça dignou-se a consolar seu
coração desolado, pela oração da própria Mãe de Deus. Mas por que você não me olha
nos olhos? Ouse me fitar sem medo, Deus está conosco.
Depois de ouvir isto, ergui meus olhos para seu rosto e um medo maior ainda se
apossou de mim. Imagine no meio do Sol, no mais forte esplendor de seus raios do
meio-dia, o rosto de um homem que lhe fala. Você vê o movimento dos lábios dele, a
expressão de seus olhos mudando, você ouve o som da voz dele, você sente a pressão
das mãos dele sobre seus ombros, mas ao mesmo tempo você não percebe nem as mãos
nem o corpo dele, e nem o seu, nada senão uma faiscante luz se propagando à volta, a
uma distância de muitos metros iluminando a neve que cobria a planície e caía sobre
mim e o staretz. Pode-se imaginar a situação em que eu estava?
— Aí está, amigo de Deus, aquela paz de que o Senhor falava quando dizia a Seus
discípulos: "Deixo-vos a Minha paz, não como o mundo a dá. Sou Eu que dou-a a vós.
Se vós fosseis deste mundo, este mundo vos amaria. Mas Eu vos escolhi e o mundo nos
odeia. Mas tendes bom ânimo, Eu venci o mundo" (João 14:27; 15:19; 16:33). É a esses
homens, eleitos por Deus porém, odiados pelo mundo, que Deus dá a paz que você sente
neste momento, essa paz, diz o Apóstolo, "que excede todo o entendimento" (Fil. 4:7).
O Apóstolo a chama assim porque nenhuma palavra consegue exprimir o bem-estar
espiritual que ela faz nascer nos corações dos homens onde o Senhor a implanta. Ele
próprio a chama Sua paz (João 14:27). Fruto da generosidade de Cristo e não deste
mundo, nenhuma felicidade terrestre pode facultá-la. Enviada do alto pelo próprio Deus,
ela é a Paz de Deus. O que mais você sente?
— Quando o Espírito Santo desce sobre o homem com a plenitude de Seus dons, a alma
humana fica repleta de uma alegria indiscutível, e o Espírito Santo recria em júbilo tudo
aquilo que toca. É desta alegria que o Senhor fala no Evangelho quando diz: "A mulher,
quando esta para dar à luz, sente dor, porque é chegada sua hora. Mas, depois de ter
dado à luz a criança, já não se lembra da dor, tamanha é sua alegria. Assim também vós
agora, vos tereis de sofrer neste mundo, mas quando Eu vos visitar o vosso coração se
alegrará e vossa alegria ninguém poderá tirar" (João 16:21-22).
Por maior e mais consoladora que seja, a alegria que você sente neste momento é nada
em comparação com aquela que o Senhor descreve, por intermédio de Seu Apóstolo: "A
alegria que Deus reserva àqueles que O amam está para além de tudo o que pode ser
visto, ouvido e sentido pelo coração do homem neste mundo" (ICor. 2:9). O que nos é
concedido agora não passa de um gostinho desta alegria suprema. E se desde agora nós
sentimos doçura, júbilo e bem estar, que dizer desta outra alegria que nos está reservada
no céu após termos chorado aqui embaixo? Você já chorou bastante em sua vida e está
vendo que consolação o Senhor lhe dá na alegria, desde aqui embaixo. Agora cabe a
nós, amigo de Deus, usar todas as nossas forças para subir de glória em glória e
"Constituir este homem perfeito, na força da idade, que realiza a plenitude do Cristo"
(Efe. 4. 13). "Os que esperam no Senhor renovarão as suas forças, subirão com asas
como águas; correção, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão" (Isa.
40:31). "Andarão de altura em altura e Deus lhes aparecerá em Sião" (Sal. 84:7)*. Aí é
que nossa alegria atual, pequena e breve, se manifestará em toda sua plenitude e
ninguém poderá no-la tirar, pois estaremos repletos de indescritíveis volúpias
celestes. . . Que mais está sentindo, amigo de Deus?
— Um calor extraordinário.
— Ah, não! Nada no mundo pode se comparar a este perfume. Na época em que minha
mãe ainda era viva, eu gostava de dançar, e quando ia ao baile, ela me borrifava
perfumes caros que comprava nas melhores lojas de Kazan. Mas o cheiro deles não se
comparava com estes aromas.
— Sei disso, meu amigo, tão bem quanto você, e é de propósito que a lhe pergunto. É
verdade — nenhum perfume terrestre pode se comparar ao cheiro bom que respiramos
neste momento — o cheiro bom do Espírito Santo. O que é que pode ser parecido com
isto, na terra? Você disse a pouco que fazia calor, como em um banho. Mas veja, a neve
que nos cobre não esta derretendo. O calor não está no ar, mas sim dentro de nós. É
aquele calor de que o Santo Espírito nos fez pedir em oração: "Que Teu Espírito Santo
nos aqueça!" Esse calor permitia aos eremitas, homens e mulheres, não temerem o frio
do inverno, por estarem envoltos, como por um manto forrado, por uma veste tecida
pelo Espírito Santo.
É assim que deveria ser na realidade, a graça divina habitando no mais profundo de nós,
em nosso coração. O Senhor disse: "O Reino dos céus está dentro de vós" (Luc. 17:21)
— Na Tradução de J. F. de Almeida consta . . . "entre vós" — Por Reino dos Céus, Ele
entende a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está em nós agora. O Espírito
Santo nos ilumina e nos aquece. Ele preenche o ar ambiente com perfumes variados,
alegra nossos sentidos e sacia nossos corações com uma alegria indescritível. Nosso
estado atual é semelhante àquele de que fala o Apóstolo Paulo: "O Reino de Deus não é
comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rom. 14:17). Nossa
fé não se baseia em palavras de sabedoria terrestre, mas na manifestação do poder do
Espírito. É o estado em que estamos agora e que o Senhor tinha em vista quando dizia
"Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem
que vejam chegado o reino de Deus com poder."
Veja, amigo de Deus, que alegria incomparável o Senhor se dignou a nos conceder.
Veja o que é "estar na plenitude do Espírito Santo." É o que quer dizer São Macário do
Egito quando escreve: "Estive eu mesmo na plenitude do Espírito Santo." Mesmo sendo
humildes como somos, o Senhor também a nos encheu da plenitude de Seu Espírito.
Parece-me que a partir de agora você não terá mais o que perguntar sobre como a
presença da graça do Espírito Santo se manifesta no homem.
— Não sei, Padre, se Deus me tornará digno de lembrar-me sempre dela, com tanta
nitidez quanto agora.
Difusão da Mensagem.
— Eu, ao contrário — respondeu o staretz — acho que Deus o ajudará a guardar para
sempre estas coisas na memória. Senão Ele não teria sido tão rapidamente tocado pela
humilde prece do miserável Serafim e não teria realizado seu desejo tão depressa. Ainda
mais que não é só a você que foi concedido ver a manifestação desta graça, mas ao
mundo todo por seu intermédio. Você próprio assegurado, será útil para outros.
Monge e Leigo.
Quanto a nossos estados diferentes de monge e leigo, não se preocupe. Deus procura
antes de tudo um coração cheio de fé nEle e em Seu Filho único, e em resposta à fé Ele
envia do alto a graça do Espírito Santo. O Senhor busca um coração cheio de amor por
Ele e pelo próximo — eis um trono, sobre o final Ele gosta de se sentar e onde Ele
aparece na plenitude de Sua Glória. "Dá-me, filho meu, Teu coração, e o resto eu Te
darei por acréscimo" (Pro. 23:26)*. O coração do homem é capaz de conter o Reino dos
Céus. "Buscai primeiro o reino dos Céus e Sua justiça — disse o Senhor aos Seus
discípulos — e o resto vos será acrescentado, pois Deus, vosso Pai, sabe que necessitais
de todas estas coisas" (Mat. 6:32-33).
* (N. da T).: J. F. de Almeida apresenta "Dá-me, filho meu, o teu coração, e os teus olhos
observem os meus caminhos."
O Senhor não reprova que gozemos dos bens terrestres e Ele próprio diz que, dada nossa
situação aqui embaixo, precisamos deles para dar tranquilidade às nossas existências e
tornar mais cômodo e fácil o caminho para nossa pátria celeste. E o Apóstolo Pedro
estima que não há nada melhor no mundo do que a piedade unida ao contentamento. A
Santa Igreja ora para isto nos seja dado. Apesar de que as dificuldades, os infortúnios e
as necessidades sejam inseparáveis de nossa vida na terra, o Senhor nunca quis que as
preocupações e misérias constituíssem toda a sua trama. É por isso que, pela boca do
Apóstolo, Ele nos recomenda que carreguemos os fardos uns dos outros para obedecer a
Cristo que pessoalmente nos deu o preceito de nos amarmos mutuamente.
Reconfortados por este amor, a dolorosa caminhada na estreita via que leva à nossa
pátria celeste nos será facilitada. Não desceu o Senhor do céu não para ser servido, mas
para servir e dar Sua vida em resgate de muitos? (Mat 20:28; Mc 10:45).
Faça o mesmo, amigo de Deus e, consciente da graça de que visivelmente você foi
objeto, comunique-a a todo homem que deseje a salvação.
Atividade Missionária.
"A Seara é grande" disse o Senhor, "Mas poucos os ceifeiros" (Mat. 9:37-38; Luc
10:21). Tendo recebido os dons da graça, somos chamados a trabalhar na colheita das
espigas da salvação de nossos próximos, para os enceleirar em grande número no Reino
de Deus a fim de que eles tragam seus frutos, uns a trinta, outros a sessenta, outros a
cem. Estejamos atentos para não sermos condenados junto com o servo preguiçoso que
enterrou a moeda a ele confiada, e tratemos de imitar os servos fiéis, que devolveram ao
Senhor quatro, ao invés de dois, e dez, ao invés de cinco (Mat 25:14-30; Luc 19:12-27).
Quanto à misericórdia divina, não se deve duvidar dela: veja você mesmo como as
palavras de Deus, ditas por um profeta, se realizaram para nós. "Eu não sou um Deus
longínquo" (Jer. 23:23; Na tradução de J. F. de Almeida, figura: "Sou Eu apenas Deus
de perto, e não também o Deus de longe?")
Poder da Fé.
Mal fiz, miserável, o sinal da cruz, mal desejei em meu coração que o Senhor "nos
tornasse dignos de ver Sua misericórdia, em toda sua plenitude, imediatamente Ele se
apressou em realizar o meu desejo. Não digo isso para me glorificar, nem para lhe
mostrar minha importância e deixá-lo com ciúmes, ou para que pense que é porque eu
sou monge e você é leigo, não, amigo de Deus, não. "O Senhor está junto àqueles que O
invocam. Ele não faz acepção de pessoas. O Pai ama o Filho e tudo colocou em Suas
mãos."
Contanto que amemos a Ele, nosso Pai celeste, realmente como filhos. O Senhor ouve
igualmente um monge e um homem do mundo, um simples cristão, contanto que ambos
sejam ortodoxos (tenham a verdadeira fé), amem a Deus no fundo do seu coração e
tenham uma fé "grande como uma montanha" (Mat 13:31-32; Mc 4:30-32; Luc 13:18-
19), ambos removerão montanhas (Mc 11:23). "Como pode ser que um só perseguisse
mil, e dois fizessem fugir dez mil" (Deu. 32:30). O próprio Senhor falou: "Tudo é
possível àquele que crê" (Mc 9:23). E o santo Apóstolo Paulo exclama: "Tudo posso
com Cristo que me fortalece" (Fil 4. 13). Mais maravilhosas ainda são as palavras do
Senhor a respeito dos que crêem n'Ele: "Na verdade vos digo que aquele que crê em
Mim também fará as obras que Eu faço, e as fará maiores do que estas: porque Eu vou
para meu Pai. E tudo quanto pedirdes em Meu nome eu O farei, para que o Pai seja
glorificado no Filho. Se pedirdes alguma coisa em Meu nome, eu o farei (João 14:12-
14). "E rogarei por vós a fim de que nossa alegria seja perfeita. — Na tradução de J. F.
de Almeida este trecho não constam do versículo 24. — Até agora nada pedistes em
Meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra" (João 16:24).
É assim, amigo de Deus. Tudo o que você pedir a Deus, você obterá, contanto que seu
pedido seja para a glória de Deus ou para o bem de seu próximo. Pois Deus não separa o
bem do próximo de Sua Glória. "Tudo o que fizerdes ao menor dentre vós, é a Mim que
o fareis" (Mat 10:40; Mc 9:37; Luc 9:48). Esteja certo de que o Senhor realizará seus
pedidos; contanto que eles sejam feitos para a edificação e utilidade de seu próximo.
Mas mesmo que seja para sua própria necessidade ou utilidade ou benefício que você
pede alguma coisa, não tenha dúvida que Deus lhe concederá, se houver realmente
necessidade, pois Ele ama os que O amam. Ele é bom para com todos. Sua misericórdia
igualmente se entende àqueles que não invocam Seu Nome. Mais ainda fará as vontades
dos que O temem. Ele realizará todos os seus pedidos, Ele não os recusará, por causa de
sua fé ortodoxa em Cristo Salvador, pois Ele não abandona o certo dos justos nas mãos
dos pecadores (Sal. 125:3)* e certamente fará a vontade de David Seu servo. Entretanto,
Ele poderá lhe perguntar porque foi incomodado sem necessidade e porque você
solicitou algo de que poderia facilmente se abster.
É isso, amigo de Deus, agora lhe disse tudo e mostrei na realidade tudo o que o Senhor e
Sua Santa Mãe quiseram lhe mostrar por intermédio do miserável Serafim. Vá em paz,
então. Que o Senhor e Sua Santa Mãe estejam com você agora e sempre e pelos séculos
dos séculos. Amém, Vá em paz.
Quanto ao indescritível esplendor da luz que ele irradiava, eu vi com meus próprios
olhos, e estou pronto a afirmá-lo sob juramento.
* Nota da Edição Francesa — Não raro, foi difícil estabelecer as referências acima. São Serafim,
cujo espírito estava "imerso" nas Santas Escrituras (como, segundo ele próprio, o espírito de
todo homem deveria estar), citava de memória e a tradução do eslavo que ele empregava nem
sempre corresponde exatamente à versão da Bíblia de Jerusalém!
Nota de Sérgio Nilus (Escritor a quem o manuscrito de Motovilov foi confiado 72 anos mais tarde, pela
viúva deste).
Aqui termina o manuscrito de Motovilov. Não cabe a mim divulgar e salientar a importância deste escrito
que, aliás, dispensa comentários — fala por si mesmo com uma força a que nenhum palavrorio deste
mundo poderia se igualar.
Mas precisava se ver em que estado me foram dados os papéis de Motovilov que encerravam este
tesouro! Cobertos de poeira, de penas e excrementos de pássaros, estavam misturados com faturas, diários
de contabilidade agrícola, totalmente inúteis, copias de requerimentos administrativos e cartas de
particulares, aos montes, tudo misturado, pesando no total mais de quarenta quilos. Os papéis, em
péssimo estado, estavam cobertos de uma letra tão ilegível que me apavorou. Como compreender alguma
coisa?
Tentando me orientar naquele caos, encontrei muitas dificuldades — a letra, especialmente, era para mim
um enorme obstáculo — e quase entrei em desespero. Mas de tempos em tempos, no meio da tralha toda,
brilhava, como uma faísca, uma frase cifrada pela metade: "O Padre Serafim me disse. . ." Disse o que? O
que ocultavam aqueles incompreensíveis hieróglifos? Fiquei desolado.
Uma noite, lembro-me bem, após um dia passado em um trabalho delicado e infrutífero, não aguentando
mais, exclamei: "Padre Serafim, será possível que tenha feito chegar a minhas mãos, em um fim-de-
mundo como Diveyevo, os manuscritos de seu "Pequeno Servo" (Motovilov) para que, indecifrados, eles
voltem ao esquecimento? A invocação partiu do fundo do meu coração. Na manhã seguinte, ao começar a
triagem dos papéis, caí imediatamente no manuscrito e no mesmo momento recebi a faculdade de
entender a letra de Motovilov.
E fácil imaginar minha alegria, e como me marcaram as seguintes palavras que consegui ler:
"E eu acho que Deus o ajudará a guardar para sempre estas coisas na memória. Senão Ele não teria sido
tão rapidamente tocado pela humilde prece do miserável Serafim e não teria realizado seu desejo tão
depressa. Ainda mais que não é só a você que foi concedido ver a manifestação desta graça, mas ao
mundo todo por seu intermédio."
Durante 70 longos anos este tesouro ficou enfurnado em um sótão sob uma enorme mistura de velhas
papeladas — e eis que ele viu a luz. Quando? Na véspera da canonização daquele a quem a Igreja
Ortodoxa já começa a se dirigir, dizendo:
19 de maio de 1903.
Foi igualmente este prelado, desejoso de apressar sua divulgação, que revisou as
Instruções Espirituais, como atesta uma carta escrita a seu vigário e amigo,
arquimandrita Antônio, Abade do Mosteiro da Trindade — São Sérgio.
No livro de hieromonge Sérgio (4a edição, Moscou, 1856), estas instruções estão em
número de 33. Uma biografia de santo compilada por N. Levitsky e editada em 1905,
em Moscou, pelo Mosteiro de S. Panteleimão do Monte Athos, cita 36.
Nós nos permitimos abreviar ligeiramente estes textos e, a fim de evitar repetições,
remetemos o leitor aos capítulos precedentes onde idéias idênticas já tenham sido
apresentadas. Por outro lado, em certos trechos completamos as "Instruções" por
ensinamentos do Staretz que se encontram em outros lugares, particularmente nos
capítulos XVI e XVII do livro de N. Levitsky (pp. 166-199).
Deus.
Deus é um fogo que aquece e inflama os corações e as entranhas. Se, sentimos em nosso
coração o frio que vem do demônio — pois o demônio é frio — peçamos socorro ao
Senhor e Ele virá aquecer nosso coração com um amor perfeito, não somente para com
Ele, mas também para com o próximo. E a frieza do demônio fugirá de diante de Sua
face.
Deus nos mostra Seu amor pelo gênero humano não somente quando fazemos o bem,
mas também quando O ofendemos, fazendo por merecer Sua cólera. . .
Não diga que Deus é justo, ensina Isaac (o Sírio) . . . David o chamava "justo" mas Seu
filho nos mostrou que Ele é antes bom e misericordioso. Onde está sua justiça? Nós
éramos pecadores e Cristo morreu por nós (hom. 90).
1) O amor de Deus pelo gênero humano. Sim, "Deus amou o mundo de tal maneira que
deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna" (João 3:16).
3) A salvação das almas. "Porque Deus enviou o Seu filho ao mundo, não para que
condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele" (João 3:17).
Da Fé.
Antes de tudo, é preciso crer em Deus, "pois Ele existe e é remunerador dos que O
buscam" (Heb. 11:6)*. A fé, segundo S. Antioquio, é o princípio de nossa união a Deus.
. . A fé sem obras é morta (Tia. 2:26). As obras da fé são: o amor, a paz, a
longanimidade, a misericórdia, a humildade, a tomada da cruz e a vida segundo o
Espírito. Somente uma tal fé conta. Não pode haver verdadeira fé sem obras.
*Nota: Na tradução de J. F. de Almeida, lê-se: "é necessário que aquele que se aproxima
de Deus creia que Ele existe, e que é galardoador dos que o buscam."
Da Esperança.
Todos os que esperam firmemente em Deus são elevados para Ele e iluminados pela
claridade da luz eterna.
Se o homem deixa de lado seus próprios negócios por amor de Deus e para fazer o bem,
sabendo que Deus não abandona, sua esperança é sabia e verdadeira. Mas se o homem
se ocupa ele mesmo de seus negócios e só se volta para Deus quando lhe acontece
algum infortúnio e ele vê que não pode se sair bem por seus próprios meios — tal
esperança é artificial e vã. A verdadeira esperança busca antes de tudo o Reino de Deus,
persuadida de que tudo o que é necessário à vida aqui embaixo será dado por acréscimo.
O coração não consegue ficar em paz antes de adquirir esta esperança.
Do Amor de Deus.
Aquele que chegou ao perfeito amor de Deus vive neste mundo como se não vivesse
nele. Pois ele se considera como estrangeiro àquilo que vê, esperando perfeitamente o
invisível. . . Atraído por Deus, aspira unicamente a contemplá-Lo.
É melhor para nós desprezar o que não é nosso, isto é, o que é temporário e passageiro,
e desejar o que é nosso, isto é, a incorruptibilidade e a imortalidade. Pois então seremos
dignos da visão de Deus face a face, como os Apóstolos durante a divina transfiguração
e, semelhantes aos Espíritos celestes, conheceremos a união supra-racional com Deus.
Por sermos "iguais aos anjos" e "filhos de Deus, sendo filhos de ressurreição" (Luc.
20:36).
Do Cuidado da Alma.
O corpo do homem é semelhante a uma vela. A vela deve se consumir, o homem deve
morrer. Mas a alma é imortal e nós devemos nos preocupar com nossa alma mais do que
com nosso corpo. "Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua
alma? Ou que daria o homem pelo resgate da sua alma?" (Mc 8:36; Mat. 16:26).
"Nós achamos que a alma é mais preciosa do que tudo — disse Macário, o Grande —
porque Deus não se dignou unir a nenhuma criatura senão o homem que Ele amou mais
do que toda outra criatura (Macário, o Grande, Hom. sobre a liberdade e a Inteligência,
cap. 32). Devemos então nos preocupar com nossa alma e fortificar o corpo na medida
em que ele contribua à fortificação do espírito.
— Da palavra de Deus, pois a palavra de Deus, como diz Gregório, o Teólogo, é o pão
dos anjos com que se nutrem as almas sedentas de Deus.
É preciso também munir a alma de conhecimentos a respeito da Igreja, como ela foi
preservada desde o início até os nossos dias, aquilo que ela teve que sofrer. É preciso
saber disso não na intenção de governar os homens, mas no caso de questões que
podemos ser chamados a responder. Mas, sobretudo é preciso fazê-lo para si mesmo, a
fim de adquirir a paz da alma, como diz o Salmista: "Paz àqueles que amam teus
preceitos, Senhor" ou "Grande paz aos que amam Tua lei" (Sal. 119:165).
Da Paz da Alma.
Nota da Ed. Original: Chegamos aqui ao cerne do ensinamento do Staretz que pode se resumir nestas
duas afirmações:
Tudo está subordinado à aquisição desta paz: a adesão à Igreja, a "verdadeira" esperança, a ausência das
paixões, o perdão das ofensas, a abstenção de julgamento do próximo e, sobretudo, o silêncio interior.
É notável o número de vezes que a palavra Paz aparece nestas Instruções Espirituais.
Não há nada acima da paz em Cristo, pela qual são destruídos os assaltos dos espíritos
aéreos e terrestres. "Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim
contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade que habitam os espaços celestes" (Efe.
6:12).
Um homem razoável dirige seu espírito para o interior e leva-o a descer em seu coração.
Então a graça de Deus o ilumina e ele se encontra em estado pacífico e suprapacífico:
pacífico, porque sua consciência está em paz; suprapacífico, porque dentro de si se
contempla a graça do Espírito Santo. . .
Poderíamos não nos rejubilar ao ver, com nossos olhos de carne, o sol? Maior ainda é
nossa alegria quando nosso espírito, com o olho interior, vê o Cristo de justiça. Aí
compartilhamos a alegria dos anjos. O apóstolo disse a este respeito: "Nossa cidade está
nos céus" (Fil. 3:20).
Aquele que anda em paz ajunta, como que com uma colher, os dons da graça.
Os Padres, estando em paz e na graça de Deus viviam até uma idade avançada.
Quando um homem adquire a paz, ele pode derramar sobre os outros a luz que ilumina
o espírito. . . Mas deve se lembrar das palavras do Senhor: "Hipócrita, tira primeiro a
trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o arqueiro do olho de teu irmão" (Mat. 7:5).
Nosso Senhor Jesus Cristo deixou esta paz a seus discípulos antes de Sua morte como
um tesouro inestimável, dizendo: "Deixo-vos a Minha paz, a Minha paz vos dou" (Jn
14:27). O Apostolo fala também nestes termos: "E a paz de Deus, que excede todo o
entendimento, guardará os vossos corações e pensamentos em Cristo Jesus" (Fil. 4:7). *
Se o homem não despreza os bens deste mundo, não pode ter a paz.
A paz se adquire por intermédio de tribulações. Aquele que quer agradar a Deus deve
passar por muitas provas.
Nada contribui mais à paz interior do que o silêncio e, se possível, a conversação
incessante consigo mesmo e rara com os outros.
Nós devemos então concentrar nossos pensamentos, desejos e ações na aquisição da paz
de Deus e exclamar incessantemente com a Igreja "Senhor! Dai-nos a paz!"**
Cristo Jesus.
(N. da Ed. Original) ** Durante a liturgia, a Igreja, pela voz do Padre, repete incansavelmente:
"Paz a todos!" ("A Paz esteja convosco").
Com todas as forças é preciso tentar salvaguardar a paz da alma e não se indignar
quando os outros nos ofendem. É preciso se abster de toda cólera e preservar a
inteligência e o coração de todo movimento impensado.
Para manter a paz, é preciso expulsar a melancolia e tratar de ter o espírito jubiloso. . .
Quando um homem não pode provar suas próprias necessidades, é difícil para ele
vencer o desencorajamento. Mas isso concerne as almas fracas.
Para manter a paz interior, é preciso evitar julgar os outros. É preciso entrar em si
mesmo e se perguntar: Onde estou?
É preciso evitar que nossos sentidos, especialmente a visão, nos distraiam: pois os dons
da graça só pertencem àqueles que oram e tomam cuidado com sua alma.
Da Guarda do Coração.
O coração, aquecido pelo fogo divino, ferve quando está cheio de água viva. Se esta
água é derramada no exterior, o coração se resfria e o homem fica como que gelado.
Das Tentações.
Devemos nos libertar de todo pensamento impuro, sobretudo oferecendo nossas orações
a Deus, para não misturar o fedor aos aromas.
Quando o homem recebe em seu coração algo divino, ele se rejubila; quando é algo
demoníaco, ele fica perturbado.
Da Contrição.
A contrição começa pelo Temor de Deus, diz o Mártir Bonifácio. Deste temor nasce a
atenção, mãe da paz interior e da consciência que permite à alma ver, como em uma
água pura e límpida, sua própria feiúra. . .
Durante toda nossa vida não fazemos outra coisa senão ofender a majestade de Deus.
Devemos então nos humilhar diante dEle, pedindo perdão por nossos erros.
É possível uma nova elevação se o homem cai após ter estado na graça? Sim.
Exemplo: aquele anacoreta que, ao ir buscar água na fonte, encontrou uma mulher com
quem caiu em pecado. Voltando para casa, mesmo se dando conta do erro cometido,
continuou a viver como asceta, apesar dos conselhos do maligno que tentava desviá-lo
de sua rota sob pretexto de que ele havia pecado. Deus deu a conhecer o caso a um
ancião, encarregando-o de ir louvar o jovem monge por sua vitória sobre o demônio.
Quando nos arrependemos sinceramente de nossos erros e nos voltamos para Nosso
Senhor Jesus Cristo de todo coração, Ele rejubila, e convida para a festa todos os
espíritos amigos, mostrando-lhes a dama reencontrada. . .
Não hesitemos, então, em voltarmo-nos para nosso misericordioso Senhor, sem nos
entregarmos nem à despreocupação, nem ao desespero. O desespero é a maior alegria
do demônio. É o pecado mortal de que fala a Escritura (l João 5:16).
Da Oração.
Na Igreja, é bom ficar de olhos fechados, para evitar as distrações; podemos abri-los se
sentirmos sono; é preciso então pousar o olhar sobre um dos ícones ou uma vela acesa
diante de um deles.
Quando a inteligência e o coração estão unidos em oração e a alma não é perturbada por
nada, o coração se enche de calor espiritual, e a luz do Cristo inunda de paz e de alegria
todo o homem interior.
Da Luz de Cristo.
A fim de receber no coração a luz de Cristo, é preciso, tanto quanto possível, desligar-se
de todos os objetos visíveis. Tendo antes purificado a alma pela contrição e as boas
obras, e cheios de fé em Cristo Crucificado, tendo fechado os olhos de carne, o homem
deve mergulhar o espírito no coração para chamar o nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo; então, na medida de sua assiduidade e fervor para com o Bem Amado, ele
encontra no Nome invocado consolo e doçura, o que o incita a buscar um conhecimento
mais elevado.
Quando por meio de tais exercícios o espírito se enraíza no coração, a luz de Cristo vem
brilhar no interior, iluminando a alma com sua divina claridade, como diz o profeta
Malaquias: "Mas para vós, que temeis seu Nome, o sol de justiça brilhará, que tem a
cura em seus raios" (Mal. l 3:20). * Esta luz é também a vida, segundo a palavra do
Evangelho "De todo ser Ele era a vida, e a vida era a luz dos homens" (João 1:4).
Quando o homem contempla dentro de si esta luz eterna, ele esquece tudo o que é
carnal, esquece-se a si mesmo e deseja se esconder nas profundezas da terra para não ser
privado deste bem único Deus.
* Nota: Na versão de J. F. de Almeida, lê-se, no v. 4:2:"Mas para nós que temeis o Meu nome
nascerá o sol de justiça, e salvação trará debaixo de suas asas."
Da Atenção.
Aquele que segue a via da atenção não deve se fiar unicamente a seu próprio
entendimento, mas deve se referir às Escrituras e comparar os movimentos de seu
coração, e sua vida, à vida e à atividade dos ascetas que o precederam. Assim, é mais
fácil se preservar do maligno e ver claramente a verdade.
Aquele que segue este caminho não deve dar atenção aos rumores que correm nem se
ocupa dos negócios dos outros. . . e sim, orar ao Senhor: "De meu mal secreto, purifica-
me" (Sal. 19:12).
É preciso que o homem esteja atento no começo e no fim de sua vida, sendo o meio
indiferente — com aquilo que ele tem de alegria ou tristeza.
Do Temor de Deus.
O homem que busca seguir a via da atenção interior deve ter, a tes de tudo, o temor de
Deus que é o princípio da sabedoria, lembrando-se das palavras do salmista: "Servi ao
Senhor com temor e alegrai-vos com tremor" (Sal. 2:11).
Ele deve seguir esta via com prudência e respeito pelo sagrado. . . "Maldito aquele que
fizer a obra do Senhor fraudulentamente" (Jr 48:19).
Aquele que teme Deus faz bem tudo o que faz, por amor a Ele.
Quanto ao diabo, é preciso não temê-lo; aquele que teme Deus derrotará o diabo; diante
dele, o diabo é impotente.
Há dois tipos de temor: se você não quer fazer o mal, tema a Deus e não o faça; se você
quer fazer o bem, tema a Deus e o faça.
Um homem não pode adquirir o temor de Deus antes de se livrar das preocupações
deste mundo. Liberto das preocupações, o espírito é levado pelo temor de Deus para o
amor de sua misericórdia.
Do Desapego do Mundo.
A vida ativa serve para nos purificar de nossas paixões pecadoras. . . pois, somente os
puros podem se engajar na via da contemplação. . . São Gregório Teólogo disse: "A
contemplação só não é perigosa para os perfeitamente experientes" (Hom. Sobre a
Páscoa).
É preciso abordar a vida contemplativa com temor e tremor, com um coração humilde e
contrito, após ter consultado longamente as Santas Escrituras e, de preferência sob a
direção de um staretz iniciado, e não temeriamente e com uma vontade própria
caprichosa. *
Não se deve abandonar a vida ativa mesmo após haver passado, por seu intermédio, à
vida contemplativa; pois ela é um enriquecimento para a vida contemplativa, ajudando
em sua elevação.
* Nota: (N. da Ed. original) O abandono da vontade própria e de importância capital, sobretudo
para o monge. "Se você a abandonou em uma coisa, mas manteve outra, quer dizer que você a
manteve mesmo onde acreditava tê-la abandonado" diz o Staretz Serafim.
Do Jejum.
Não se deve fazer nada em excesso, mas tratar de permitir a nosso amigo, o corpo,
permanecer fiel e concorrer para o desenvolvimento das virtudes.
É preciso ser paciente consigo mesmo e aguentar os próprios defeitos como se aguenta
os do próximo, mas sem se deixar levar pela preguiça e se esforçando constantemente
em melhorar.
Se comermos demais ou fizermos algo de condenável por fraqueza humana, não nos
indignemos, não acrescentemos um mal a outro, mas, mantendo a paz interior,
apliquemo-nos corajosamente em nos reerguermos. A virtude não é uma pêra que se
come de uma vez só.
Não é qualquer um que está apto a se sujeitar a uma regra severa e a se privar de tudo o
que pode aliviar seus males. Insensato é aquele que enfraquece voluntariamente seu
corpo, mesmo na intenção de chegar à perfeição.
Não empreenda nada que esteja além de suas forças. Senão você cai e o inimigo
zombará de você.
Alguns colheram muito durante a juventude, mas, no meio da vida, tendo sido tentados
pelos demônios (especialmente o da luxúria), não souberam resistir e perderam tudo.
Devemos atribuir todo progresso de Deus e repetir como salmista: "Não a nós, Senhor,
não a nós, mas ao Teu nome da glória" (Sal. 115:1).
Da Resistência às Tentações.
É preciso sempre desconfiar dos ataques do demônio. Como podemos esperar que ele
nos deixe em paz quando ousou atacar o próprio Mestre, Nosso Senhor Jesus Cristo? É
preciso chamar sempre por Deus e rogar-lhe humildemente para que a tentação não
esteja acima de nossas forças, e para que Ele nos livre do maligno.
Quando Deus abandona o homem a si mesmo, o diabo está pronto a reduzi-lo a pó,
como uma mó a um grão de trigo.
Para salvaguardar a paz interior, é preciso então fugir da tristeza e tratar de ter o espírito
sempre alegre, pois, segundo o Sirácida, a tristeza mata e não tem nenhuma utilidade.
"A tristeza segundo Deus opera um arrependimento para a salvação, mas a tristeza do
mundo opera a morte" (2 Cor. 7:10).
Da Doença.
É preciso tratar o próximo com doçura, tomando cuidado em não ofendê-lo de jeito
nenhum.
"Joga teu casaco sobre o pecador para cobri-lo," aconselha Isaac, o Sírio (Hom 89).
Ao se aproximar dos homens, é preciso ser puro em palavras e espírito, igual para com
todos, nunca elogiar ninguém — senão tornaremos nossa vida inútil.
Devemos amar o nosso próximo não menos do que a nós mesmos, segundo o preceito
do Senhor: "Ama a teu próximo como a ti mesmo" (Luc. 10:27), mas de tal forma que,
permanecendo nos limites da moderação, este amor não nos afaste do primeiro e mais
importante mandamento: "Quem ama o pai ou a mãe mais do que Mim não é digno de
Mim" (Mat. 10:37).
São Dimitri de Rostov se exprime bem a este respeito (Segunda parte, sermão 2):
"Constata-se em um cristão um amor imperfeito quando ele compara a criatura ao
Criador, ou tem mais olhos para ela do que para o Criador; e um amor verdadeiro
quando somente o Criador é perfeito e amado acima de qualquer criatura"!
Do Julgamento do Próximo.
É preciso não julgar, mesmo se, com nossos próprios olhos, vemos alguém pecando e
infringindo os preceitos divinos. Critique a má ação, mas não aquele que a fez. Não
cabe a nos julgar, e sim ao Juiz Supremo.
"Não julgueis, para que não sejais julgados" (Mat. 7:1), e ainda: "Quem és tu para
julgar o servo alheio? que ele fique em pé ou caia, isso é com seu patrão; mas, ele
ficará em pé, pois o Senhor tem a força para sustentá-lo" (Rom. 14:4). *
Não sabemos quanto tempo nós mesmos conseguiremos perseverar na virtude. "Eu
dizia na minha prosperidade: não vacilarei jamais. Tu, Senhor, pelo teu favor fizeste
forte a minha montanha; tu encobriste o Teu rosto, e fiquei perturbado" (Sal. 30:6-7).
Devemos considerar a nós mesmos como os piores culpados, perdoar ao próximo toda
transgressão e só odiar o demônio que o tentou. Pode nos parecer às vezes que o outro
faz o mal, enquanto que na realidade, por causa de sua boa intenção, ele faz o bem. A
porta do arrependimento está aberta para todos e não se sabe quem será o primeiro a
entrar — você que julga, ou aquele que é julgado por você.
Para não julgar, é preciso prestar atenção a si mesmo, não aceitar idéias alheias de
ninguém, e ficar morto para tudo. Julgue-se a si mesmo, e você vai parar de julgar os
outros.
* Nota:(N. da T) Na tradução de J. F. de Almeida, lê-se: "Quem és tu, que julga o servo alheio?
Para seu próprio Senhor ele está em pé ou cai; mas estará firme, porque poderoso é Deus para o
firmar."
Não se deve nunca vingar uma ofensa, qualquer que seja, mas, ao contrário, perdoar de
todo coração aquele que nos ofendeu, mesmo se nosso coração se opõe. "Se não
perdoardes aos homens, também vosso pai vos não perdoará as vossas ofensas" (Mat.
6:15), e ainda: "Amai a vossos inimigos, orai pelos que vos maltratam" (Mat. 5:44).
Se a sua honra é atacada, faça o máximo para perdoar. . . "e ao que tomar o que é teu,
não lho tornes a pedir" (Luc. 6:30).
Deus nos recomenda a inimizade unicamente para com a serpente que, desde o começo,
induziu o homem em tentação e expulsou-o do paraíso.
Pensemos em David, Jó, em todos os santos agradáveis a Deus que vieram ignorando o
ódio.
Se nós também vivemos assim, podemos esperar que a luz divina brilhe em nossos
corações, iluminando nosso caminho para a Jerusalém celeste.
Da Paciência e da Humildade.
É preciso suportar tudo, o que quer que aconteça, com paciência e até com
reconhecimento pelo amor de Deus.
O Apóstolo Tiago nos ensina: "Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em
varias tentações. . . Bem aventurado o varão que sofre a tentação; porque, quando for
provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que O amam"
(Tia. 1:2, 12).
Da Misericórdia.
Quanto a esta virtude, devemos nos conformar ao mandamento divino: "Sede, pois
misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso" (Luc. 6:36), e ainda:
"Misericórdia quero, e não sacrifício" (Mat. 9:13).
Os sábios estão atentos a estas palavras, enquanto que os outros não a escutam. Eis
porque a recompensa será diferente: "O que semeia pouco, pouco também ceifará; e o
que semeia em abundância, em abundância também ceifará" (2 Lo 9:6).
"Dê sempre — em qualquer lugar" dizia o staretz. E acrescentava: "Aquele que dá com
alegria é amado por Deus. A esmola feita assim, mesmo se for insuficiente, traz consigo
uma recompensa" (2 Lo 9:7-8).
Regra de Oração.
Ao acordar, todo cristão, em pé diante dos ícones, deve recitar a oração dominical "Pai
Nosso" três vezes, em honra da Santíssima Trindade; em seguida o canto à Virgem:
"Rejubila ó Virgem, Mãe de Deus" (na Ed. Original é equivalente à Ave Maria);
também três vezes e, finalmente, o Credo, uma vez — após orar assim, que cada cristão
trate de seus afazeres. Trabalhando, em casa, ou fora, no caminho, deve repetir
suavemente: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador" e se
não está sozinho, deve dizer interiormente: "Senhor, tem piedade" e assim até o meio
dia.
À tarde, cada cristão, ocupando-se de seus afazeres, deve dizer: "Santa Mãe de Deus,
salva-me, pecador, ou: "Senhor Jesus Cristo, pela intercessão da Tua Santa Mãe, tem
piedade de mim, pecador (ou pecadora)."
Na hora de ir dormir, cada cristão deve recitar de novo a mesma regra da manhã; depois
deve ir dormir, após ter feito o sinal da cruz.
Seguindo esta regra, dizia o Staretz, pode-se chegar ao cume da perfeição cristã, pois as
três orações que ela compreende estão na própria base do Cristianismo. A primeira foi
dada pelo próprio Senhor e serve de exemplo a todas as outras; a segunda é um canto
trazido do céu pelo Arcanjo para saudar a Virgem Maria, mãe de Deus; quanto ao
Credo, contém de forma breve todos os dogmas da fé Cristã.
Àqueles que não tinham sequer a possibilidade de recitar esta regra diante dos ícones, o
Staretz permitia recitá-lo na cama, andando, trabalhando, pois foi dito: "Todo aquele
que invocar o nome do Senhor será salvo." Quanto àqueles que têm mais tempo do que
necessário para completar esta regra, e que são instruídos, podem acrescentar outras
orações, a leitura dos cânones, dos acatistas, dos salmos, do Evangelho e das Epístolas.
Comparando esta regra àquela dada outrora pelo Staretz as monjas de Diveyevo,
percebe-se que a diferença não é grande. O "Pai Nosso" a "Ave Maria" e o Credo
formam a base. O mais difícil é comum às duas: "sustentar" a oração interior, ao longo
do dia, no espírito, unido ao coração. Ela é "a vitória invisível" "a estrela que nos guia
no caminho do Reino."
É preciso acrescentar que a regra seguida cotidianamente pelo próprio staretz não era
tão simples nem tão curta. Compreendia um grande número de orações, invocações,
tropários, kondakions, catismas* que deixamos de traduzir. Pode-se encontrá-la,
resumida, no livro de N. Levitsky (pp. 643-646), assim como em V. I. Ilyn "São Serafim
de Sarov" (em russo).
*Nota: (da Ed. Original) Tropários, Kodakions, Catismas, são hinos que fazem parte do ciclo liturgico da
Igreja Ortodoxa.
o espírito de dissipação
de domínio e de vã loquacidade
Metanóia
o espírito de temperança
de humildade
de paciência e de caridade
Metanóia
Metanóia
Amém.
(seraphim_2_p.doc, 08-30-2002)