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São Serafim

de Sarov
 

Conteúdo:

Primeira Parte — Na Sombra.

Pano de Fundo. O Deserto. O Noviço. A Herança do Hesiquiasmo. A


Doença. Monge — Diácono — Presbítero. O Eremita. "Pequeno Deserto
Longínquo." O Cosmos. As Feras. O Demônio. O Jejum. A Oração. O
Perdão das Ofensas. O Silêncio. A Paz. O Recluso.

Segunda Parte — Em Plena Luz.

Retorno no Tempo. O Imperador. O Staretz. O Resultado da Ascese. Da


Clarividência. Paternidade Maternal. Ascese e Símbolos As Mulheres. A
História de uma Gargalhada. As Crianças. Uma Outra Imagem. O
Taumaturgo. Antes de Lourdes. O Higumeno Nifonte. Diveyevo. As
Igrejas. A Regra. Milagres. A Morte. A Primeira Andorinha. Tristes
Pressentimentos. A Gloriosa Rainha do Céu.

Terceira Parte — O Espírito Santo.

O Portador de Uma Mensagem. O Objetivo da Vida Cristã. O Objetivo


da Vida Cristã Consiste na Aquisição do Espírito Santo. Ver Deus. Na
Rússia. Orgulho Intelectual — Barreira à Visão. Difusão da Mensagem.
Monge e Leigo. Nossa Conduta Cá Embaixo. Transfiguração. A Grande
Partida. Os que Ficam. Tribulações Preditas. O "Visitante Estrangeiro."
Um Pouco de Loucura. Pelagia. Parasceva. Em Plena Ação. O
Desenlace. Epílogo. A Canonização. Terríveis Perspectivas.

São Serafim e os Novos Tempos.

A Loucura da Cruz. A "Theotokos, Mãe de Deus" e a Mulher Russa.


Influência Póstuma. Alcance Mundial da Mensagem de São Serafim.

II. O Encontro Com Motovilov.


O Encontro com Motovilov. O Verdadeiro Objetivo da Vida Cristã. Em
Nome de Cristo. A Aquisição do Espírito Santo. A Parábola das Virgens.
A Oração. Quando a Oração Cede a Vez ao Espírito Santo. Comércio
Espiritual. Ver Deus. A Criação. A Árvore da Vida e o Pecado Original.
O Espírito de Deus no Antigo Testamento. O Espírito de Deus entre os
Pagãos. A Vinda de Cristo Revelada pelo Espírito Santo. Renovação do
"Fôlego de Vida" Perdido por Adão. O Pentecostes. O Batismo.
Arrependimento. O Sangue do Cordeiro Dado em Troca do Fruto da
Árvore da Vida. A Virgem Maria. Diferença entre a Ação do Espírito
Santo e a do maligno. A Graça do Espírito Santo é Luz. Presença do
Espírito Santo. A Luz Incriada. Difusão da Mensagem. Monge e Leigo.
Legitimidade dos Bens Terrestres. Atividade Missionária. Poder da Fé.

III. As Instruções Espirituais.

Deus. Razões por Que Cristo Veio a Este Mundo. Da Fé. Da Esperança.
Do Amor de Deus. Contra a Inquietude Inútil. Do Cuidado da Alma. De
Que Devemos Munir a Alma? Da Paz da Alma. Como Conservar a Paz
da Alma? Da Guarda do Coração. Das Tentações. Do Discernimento dos
Espíritos. Da Contrição. Da Oração. Da Luz de Cristo. Da Atenção. Do
Temor de Deus. Do Desapego do Mundo. Da Vida Ativa e
Contemplativa. Da Solidão e do Silêncio da Multiplicidade das Palavras
do Silêncio Interior. Das Façanhas Ascéticas. Da Resistência às
Tentações. Da Tristeza — do Tédio — do Desespero. Da Doença. Dever
e Amor para com o Próximo. Do Julgamento do Próximo. Do Perdão das
Ofensas. Da Paciência e da Humildade. Da Misericórdia. Regra de
Oração.

Primeira Parte
— Na Sombra.
 

Pano de Fundo.

No dia 19 de Julho de 1759, nasceu um menino na família do comerciante Isidoro


Mochnine, em Kursk, que recebeu ao ser batizado o nome de Prokhore. Nenhum fato
particular marcou esse nascimento. Kursk era uma cidade provinciana como muitas na
Rússia, com casas baixas ladeadas de sebes ao longo de ruas mal pavimentadas, mas
freqüentemente cobertas por belas árvores, como as de um parque.

Elizabeth, filha de Pedro, o Grande, reinava então em um país que se recuperava


lentamente dos terríveis abalos que seu pai, implacável revolucionário imperial, lhe
havia infligido no começo do século. Na corte dançava-se muito, enquanto que em
Moscou fundava-se a Academia de Ciências e a de Belas Artes. Pavilhões de caça,
lugares românticos, palácios com muros verde-oliva, pilastras brancas e cornijas
douradas — devidas à fértil imaginação do arquiteto italiano Rastrelli — brotavam da
terra sob o comando da alegre Imperatriz. Em seus momentos de arrependimento —
porque ela os tinha — a devota soberana pedia igrejas e conventos. Rastrelli introduziu
na Rússia um barroco mitigado cujos anjos dourados e bochechudos brincavam
impunemente sobre as altas paredes das iconostases, sob o olhar severo e desaprovador
dos ícones.

Essas novidades todas não atingiam a província. A classe dos comerciantes à qual
pertencia a família Mochnine continuava solidamente tradicionalista e mantinha intactos
os velhos costumes. Vestidos como nos bons tempos, corpulentos e usando barba (o que
era proibido na corte), seus membros davam à Igreja dinheiro e filhos, coisa que os
nobres, com os olhos fixos na França de Luís XV, quase não faziam mais.

Foi contudo, uma igreja, cujo plano havia sido estabelecido pelo célebre Rastrelli, que a
cidade de Kursk decidiu construir. As obras foram confiadas a Isidoro Mochnine, pai do
pequeno Prokhore, que possuía uma fábrica de tijolos e tinha a reputação de ser um
construtor de edifícios íntegro e consciencioso. Ainda jovem, morreu antes de terminar
sua obra, da qual sua viúva se encarregou.

Que sabemos desta mulher a quem Prokhore (que tinha apenas três anos por ocasião da
morte de seu pai) deverá o melhor de si? Na falta de um retrato, ela é representada como
uma destas matronas russas, ligeiramente obesa, com traços regulares, rosto sereno,
firme, porém doce, inteligente sem ostentação, trabalhadora discreta e sem pressa. Não
somente encontrava tempo de gerir seu comércio e sua casa, criar seus dois filhos,
Alexis e Prokhore, supervisionar a construção da igreja, mas também tinha prazer em
levar para casa, instruir, dotar e casar convenientemente órfãs cuja sorte nesta época era
das mais tristes.

Encontram-se ecos da ordem que reinava na casa de Ágata em certos conselhos que seu
filho espalharia posteriormente e que se referiam a varrer bem seu quarto, de manhã,
"com uma boa vassoura" assim como acender logo o samovar, "pois a água quente é boa
para a alma tanto quanto para o corpo." É de sua mãe provavelmente que ele herdou o
seu amor pelo trabalho bem feito, seu horror pela preguiça e seus olhos de um azul tão
puro.

Prokhore tinha sete anos quando pela primeira vez ouviu falar do "sobrenatural" naquela
calma existência provincial. Durante uma visita em companhia de sua mãe, à igreja em
construção, caiu do alto do andaime que rodeava o campanário e levantou-se ileso.

Aos dez anos — já ia a escola — uma doença de natureza ignorada quase o levou.
Ágata estava sem esperança de que seu filho sobrevivesse quando ele lhe contou um
belo sonho que acabara de ter: a Santa Virgem lhe aparecera para anunciar que viria
cura-lo em pessoa. Ora, alguns dias depois, um ícone de Nossa Senhora de Kursk,
considerado milagroso, foi levado em procissão pelas ruas da cidade. Quando a
procissão se aproximava da casa dos Mochnine, desabou uma tempestade acompanhada
de uma chuva torrencial. Para proteger o ícone, fizeram-no entrar no quintal. Ágata
aproveitou para trazer seu filho e o doente se curou. Curiosidades como as que se lêem
às vezes nos jornais? Pequenos "milagres" anódinos com que os fiéis são agraciados ao
menos uma vez em sua existência? Porém havia mais.

— Bem aventurada és, viúva — disse um dia à valente Ágata, quando a encontrou na
rua com seus dois filhos, um "louco em Cristo" que tinha, como muitos de seus
semelhantes a reputação de conhecer o futuro — bem aventurada és de ter um filho que
tornar-se-á um poderoso intercessor junto à Santíssima Trindade, um homem de oração
para o mundo inteiro.

Um louco em Cristo? A Rússia seria mal representada sem estes seres de olhos claros,
fala enigmática, gestos desordenados, freqüentemente simbólicos, como os dos antigos
profetas, caminhando seminus — ou totalmente nus, como Isaías — sem abrigo contra o
frio e a neve, deitados sob as sacadas das igrejas, arrastando pesadas correntes,
impondo-se terríveis penitências, escolhendo como ascese suprema o simulacro da
loucura. Para um ocidental de espírito cartesiano o próprio fato de esconder a
inteligência sob uma aparência de ridículo é prova de uma incômoda falta de equilíbrio.
No Oriente, o ponto de vista é outro. Loucos em Cristo ("Saloi") existiam em Bizâncio,
e a Rússia canonizou trinta e cinco deles. Em vida, alguns foram perseguidos e
maltratados. Desejando a Cruz, procuravam a desonra. Havia certos histéricos e
impostores entre eles, mas os verdadeiros "yourodivi" eram autênticos filhos de Deus,
aqueles pequeninos que o pai pusera no lugar dos doutores e sábios para que neles os
simples pudessem se reconhecer. E o povo russo, sempre ávido de Justiça-Verdade
(Pravda), reconhecia-se efetivamente naqueles contestadores de um Estado tirânico, de
uma igreja por demais institucionalizada, de um Cristianismo superficial e hipócrita.
Pela boca dos "yourodivi" o povo russo posicionava-se frente aos grandes deste mundo
e afrontava sem temor os príncipes cruéis. O mais célebre destes pequenos profetas —
um grande santo — morto no séc. XVI, está enterrado em Moscou, na Praça Vermelha,
em uma igreja de uma beleza multicor e singular que leva seu nome: Basílio, o Bem-
Aventurado.

Ignora-se por quais excentricidades o louco em Cristo de Kursk ganhou seu título de
"yourodivi" — seu nome nem chegou a ser conhecido — mas sabe-se que na época em
que se dirigiu à viúva Mochnine ele já gozava da veneração de seus concidadãos. Teria
ela se impressionado por sua predição? Seria seu filho uma "criança predestinada"?

O caráter de Prokhore se fortalecia. Ele pertencia a uma raça viril. A cidade de Kursk
esta situada na fronteira das estepes. Desde sempre seus habitantes haviam sido
conclamados a se bater contra invasores. O "Documento" medieval da "Tropa de Igor"
descreve-os como se segue: "agasalhados sob suas trombetas, alimentados a ponta de
lança, seus arcos retesados, suas coleiras de ferro abertas, como lobos cinzentos eles
galopam nos campos procurando para si a honra e para seu príncipe, a glória."
Embora ávido de heroísmo, não
eram os grandes feitos dos
guerreiros que entusiasmavam o
jovem Prokhore Mochnine. Ele
sonhava com outras lutas.
Combates mais perigosos o
atraíam: as façanhas ascéticas dos
santos opondo-se às forças do
demônio.

Será que Ágata se surpreendeu


quando ele pediu sua benção para
ir em companhia de cinco outros
filhos de comerciantes, em
peregrinação a Kiev para orar no
mosteiro das Grutas a fim de
conhecer a vontade de Deus sobre
seu futuro? Provavelmente não
sabia ela que este louco em Cristo,
de quem seu filho se tornara
amigo, exercia sobre ele uma
influência cada vez maior? Uma
coisa estava clara: o negócio de
família do qual se ocupava Alexis,
o primogênito dos Mochnine, não
interessava ao caçula. Kiev era
uma cidade santa, "a mãe das
cidades russas" onde em 989 o
Príncipe Vladimir batizara seu povo no Dniepr, onde um egresso do Monte Athos havia
fundado o célebre "Mosteiro das Grutas" pilar da cultura cristã em todo o país. Prokhore
encontraria aí a resposta que procurava? Esta lhe foi dada por um antigo "staretz" de
nome Dositev que aprovou seu desejo de se tornar religioso e orientou-o para um
mosteiro de que o jovem já havia ouvido falar, o "Deserto de Sarov."

"Vai sem medo" teria dito Dositev, "e permanece lá. É lá que salvarás tua alma. É lá
também que terminarás tua peregrinação terrestre. Familiariza-te com a lembrança
constante de Deus. Invoca seu Santo Nome. E o Espírito Santo virá habitar em ti e
guiará tua vida em total santidade."

Prokhore estava transbordante de alegria. Era precisamente para o Deserto de Sarov que
ele se sentia atraído. Muitos de seus concidadãos já se encontravam lá. Mas a separação
de sua mãe foi dolorosa. Ele se jogou a seus pés. Desfeita em lágrimas, ela lhe deu a
beijar os ícones familiares e pendurou em seu pescoço uma cruz de cobre em forma
octogonal sobre a qual estava representado o Senhor crucificado. Esta cruz jamais
abandonou o filho de Ágata. Até sua morte ele a levava à mostra em seu peito e pediu
que após sua morte ela fosse posta em seu caixão. Em seguida, com o bastão de viajante
à mão, em companhia de dois de seus cinco amigos com quem havia feito a peregrina
cão de Kiev, tomou seu caminho. Cerca de seiscentos quilômetros separavam Sarov de
Kursk.
 

O Deserto.

A palavra "deserto", em hebraico, significa algo ou alguém abandonado — à natureza,


às feras — uma "Terra que não é semeada" (Jer. 2:2).

Em russo, "povstynia": deserto, vem de "pusto" "pustota": o vazio. O sentido profundo


dos dois termos é idêntico. Pode-se, no deserto, ser abandonado por Deus ou abandonar
tudo para Deus. É no vazio de tudo, e particularmente de nós mesmos, que nos
aproximamos de Deus após haver repelido as tentações propostas por seu adversário.
Foi no deserto, na trilha dos profetas do Antigo Testamento, "impelido" pelo Espírito
Santo, que Cristo teve sobre Satã sua primeira vitória.

Neste sentido, o deserto não é obrigatoriamente uma extensão de areia como o Saara.
Para os russos, a floresta imensa, quase virgem que ocupava uma parte enorme de seu
território fazia-lhe as vezes. E a tradicional santidade ortodoxa florescia ali, tanto quanto
na Síria, Palestina ou Egito.

O monge ortodoxo não é missionário. Não vai pregar como um Franciscano ou


Dominicano. Para se preencher de Deus, ele se esconde. Mas, uma vez difundido o
perfume de sua virtude, seu papel torna-se espiritual, cultural e social. Um dos maiores
santos russos, Sérgio de Radonege (1314-1392), que pode ser chamado o "Moisés" de
seu povo a quem ele insuflou a coragem necessária para sacudir o jugo mongol,
conselheiro dos grandes, amigo dos pequenos, após haver começado por se enclausurar
na densidade dos bosques, terminou higumeno* do célebre Mosteiro da Santíssima
Trindade — hoje Zagorsk — cuja importância na historia da Rússia foi enorme e ainda
é considerável. São Paulo de Obrosk, no Sec. XV, conseguiu subsistir, por três anos,
sem ser detectado por viv'alma, no tronco de uma velha tília. Só os animais conheciam
seu retiro. Quando ele orava, os pássaros cantavam sobre seus ombros. Morreu aos
cento e doze anos, cercado de discípulos.

A floresta de Sarov, situada ao norte do Distrito de Tabov e ao sul de Nizhni-Novgorod,


no centro da Rússia, possuía tudo o que é requerido para servir de "deserto." "Imensa
floresta, diz uma velha crônica, com carvalhos, pinheiros e outras árvores, e nesta
floresta, diversos animais: ursos, alces, raposas, martas; e às margens dos rios Satis e
Sarovka, castores e lontras. . . "Ela era freqüentada apenas por caçadores escandinavos
da tribo Mordva. Quando os russos chegaram, perseguidos pelos tártaros, os nativos
bateram em retirada. Na confluência dos dois rios, os Tártaros construíram um campo
entrincheirado, mas, por sua vez, após a vitória de Dimitri Donskoi no campo das
Galinholas, (1380), partiram.

* (Nota da T. bras) — o higumeno — "igoúmien" função desaparecida nos mosteiros de hoje —


era um intermediário entre o staretz, pai espiritual, e o abade, cuja função era sobretudo
administrativa.

A floresta se fechou sobre si mesma, servindo de abrigo a bandidos e foras-da-lei. No


séc. XVII só um monge de nome Teodósio ousou fazer para si uma cabana no aterro do
velho campo. Assaltado por mal feitores, teve que partir. Um outro, Guerássimo, tomou
seu lugar. Foi apenas um terceiro, Isaac, que, no começo do reinado de Pedro, o Grande,
fundou um mosteiro e dotou-o de uma disciplina severa. A permissão de construir uma
igreja foi dada pelo último Patriarca de Moscou. Entusiasmados, os monges ergueram-
na em cinqüenta dias. Conta-se que, durante a construção, alegres carrilhões agitaram a
floresta. De onde vinham? Não havia um só sino, nem no novo mosteiro nem nos
arredores.

O que é mais miraculoso, talvez, ainda que mais prosaico, é que o "deserto de Sarov"
pudesse ser fundado e que pudesse se desenvolver e prosperar, em um momento da
história Russa pouco propício ao monaquismo. Pedro, o Grande, havia dirigido seu país
para o Ocidente. A herança de Bizâncio, inclusive sua cultura religiosa, devia dar lugar
a rudimentos de técnica moderna importados da Holanda. O Patriarcado foi abolido. Os
mosteiros, "gangrena do Estado" e os monges, "aqueles vagabundos" estavam fadados a
desaparecer. Foi proibido às casas religiosas receber noviços. Proscritos os estudos, o
monge em cuja célula fossem encontrados papel e tinta, estava sujeito a castigos
corporais.

Continuando a política de seu antecessor, Catarina II ordenou o fechamento de todos os


mosteiros do império. O Ukaze nunca chegou a ser completamente executado. Porém
houve perseguições religiosas que fizeram vítimas inocentes. O higumeno Isaac do
"deserto de Sarov" doce e santo velho que por sua compreensão e bondade levou de
volta à igreja muitos velhos fiéis dispersos nos bosques dos arredores, foi acusado de
atividades subversivas contra o Estado e acorrentado em São Petersburgo onde, apôs
três anos de sofrimento, morreu na prisão. Seu sucessor Ephrem passou quinze anos,
sem se queixar, na fortaleza de Orenbourg. Reabilitado, voltou a Sarov e foi reeleito
higumeno. Era um amador e fino conhecedor de música religiosa, um monge exemplar
conhecido por sua grande misericórdia para com os pobres e infelizes. Durante a fome
de 1774, ele alojou, arriscando-se a morrer de fome com seus monges, centenas de
refugiados. Para lhe suceder nomeou o padre Pakhome, natural de Kursk, sob cujo
báculo pastoral o jovem Prokhore Mochnine deveria se colocar. Apesar dos incêndios e
ataques de bandidos que sofreu diversas vezes, o mosteiro, em setenta anos de
existência, havia crescido e se embelezado. A pobre capela em madeira construída em
cinqüenta dias havia dado lugar a uma igreja de pedras brancas cujas cruzes douradas
brilhavam por sobre o muro interior, na confluência dos rios Satis e Serovka, cujos
meandros caprichosos se perdiam sob as abóbadas sombrias da floresta.

O Noviço.

Foi em uma fria noite de novembro, vinte de novembro de 1778, véspera da


apresentação da Santa Virgem no Templo, que, ao fim de uma longa estrada, Prokhore e
seus companheiros avistaram, enfim, através dos grandes pinheiros negros, os muros
brancos do mosteiro. Na igreja, cantavam-se as vésperas. Na suave penumbra, as velas
queimavam diante da face dos ícones. Prokhore gostou da severa ordenação do oficio,
da melodiosa fusão das vozes na harmonia do coro. Tudo estava bem.
No dia seguinte, dia da Apresentação no Templo, o jovem se apresentou ao higumeno.
Tinha dezenove anos e era belo: grande, arrojado, de ombros largos, tez clara,
bochechas ligeiramente salientes, nariz afilado, olhos muito azuis. Havia nele algo de
são, virginal e forte. Natural como ele da cidade Kursk, o Padre Pakhome recebeu-o
com bondade. Vindo de uma família de comerciantes, ele havia, em juventude,
conhecido os pais de Prokhore. Seduzido pela franqueza do jovem, pela clareza do seu
olhar, acolheu-o desde o começo com afeição.

Enquanto noviço, Prokhore foi primeiramente nomeado servo da cela do Padre


Administrador. Depois, foi forçado a uma série de trabalhos que nos mosteiros do
Oriente são chamados "obediências." Seguidamente foi padeiro, marceneiro, sacristão.
Como S. Sérgio, foi o ofício de carpinteiro — o do Cristo em Nazaré — que ele
preferiu. Mostrou-se tão hábil que foi apelidado "Prokhore, o Carpinteiro." Artesão de
corpo e alma, como muitos russos, fabricava com amor pequenas cruzes de madeira de
cipreste, que os peregrinos compravam de bom grado. Dotado de uma força física
incomum, também ajudava os monges a cortar e transportar os pinheiros. "O trabalho
físico e a leitura freqüente das Santas Escrituras ajudam a manter a pureza" dizia ele,
seguindo S. Isaac o Sírio, um de seus autores preferidos.

Amavam-no no mosteiro por sua animação e bom humor. "Como eu era feliz então! . . .
dirá mais tarde a uma religiosa. A alegria não é um pecado, Matushka, * ao contrário.
Ela expulsa o cansaço, e do cansaço provém o desencorajamento, e não há nada pior!

"Quando entrei no mosteiro, eu cantava no coro. Acontecia às vezes que, estando os


freis cansados, os cantos eram afetados; alguns chegavam a não cantar. E eu estava tão
alegre. Quando todos se juntavam, eu lhes dizia algo engraçado, eles esqueciam o
cansaço. Na casa de Deus, é inconveniente falar ou fazer o que quer que seja de ruim,
mas uma palavra benfazeja, engraçada, encorajadora, não é um pecado, Matushka, ela
ajuda o espírito do homem a se manter na alegria perante a face de Deus."

O futuro Padre Serafim já está todo neste pequeno sermão, reproduzido fielmente: seu
falar tão característico, propositadamente popular, gentil; seu hábito de tratar
familiarmente seus interlocutores chamando-os "minha alegria" o que em russo é menos
estranho do que em português; seu horror ao desencorajamento e ao pessimismo.

Apesar de disposições tão felizes, não se deve crer que o noviciado deste menino
transbordante de vida, que gostava de cantar, sensível à beleza, se passasse sem
choques. "Até os trinta e cinco anos, isto é, até a metade da vida terrestre, confessará ele
mais tarde, é grande o esforço que precisa ser feito para se guardar do mal. São
numerosos os que não conseguem e que se desviam do caminho reto para seguir suas
próprias inclinações.

Para perseverar, o que fazer? Uma série de conselhos dados a este postulante lança uma
certa luz sobre os anos da juventude de Prokhore, o carpinteiro. Ei-los:

Seja qual for o modo pelo qual você entrou neste mosteiro, não perca a coragem: Deus
está aqui. A vida monástica não é fácil. Na primeira decepção, é preciso não pensar em
deixar um mosteiro por outro. O noviço deve ter força de vontade.

 
* A língua russa é particularmente rica em diminutivos constantemente empregados, como
"Batiushka"-paizinho, "Matushka" — mãezinha. Em russo, são respeitosos e carinhosos. São
usados para se falar com um padre,, uma religiosa, mas pode-se também em certos casos, dizer-
se "batiushka" por "senhor" e "matushka" para "senhora." Também usa-se normalmente em
russo expressões afetuosas como "dusha moia" — minha alma; golubtchik mói" — meu
pombinho "radost moia" — minha alegria, que era a expressão favorita de Prokhore Mochnine,
conhecido mais tarde por Serafim de Sarov.

Vivendo nesta santa casa, faça o seguinte: na igreja, esteja atento, familiarize-se com os
ofícios, vésperas, completas, vigílias noturnas, matinas, leituras das horas. Durante a
liturgia, permaneça em pé, com os olhos fixos em um ícone ou uma vela. Que o fedor de
suas distrações não se misture com o incenso da Salmodia. Releia cada verso muitas
vezes, a fim de guardá-lo de memória. Se tens trabalho, deve fazê-lo. Se o chamam para
uma obediência, vá. Enquanto trabalha, repita continuamente a oração: "Senhor Jesus
Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim pecador."

Ao rezar, fique à escuta de si mesmo, isto é, levante seu espírito e una-o ao coração. No
começo, um dia ou dois, ou mais, ore com sua inteligência, pronunciando
separadamente cada palavra. Em seguida, quando o senhor houver aquecido seu coração
por Sua graça, em união com o Espírito, sua oração fluirá sem interrupção e estará sem
pré consigo, alegrando-te e alimentando-te. Quando estiveres de posse deste alimento
espiritual, isto é, o diálogo com o próprio Senhor, por que ir ás celas dos irmãos, mesmo
se eles o convidam? Em verdade lhe digo: o amor à loquacidade é também o amor pela
preguiça. Se você não compreende a si mesmo, o que pode conversar com os outros, o
que pode lhes ensinar? Cale-se o tempo todo, lembre-se sempre da presença de Deus e
de Seu nome. Não converse com ninguém, mas guarde-se de criticar os risonhos e bem-
falantes. Seja surdo e mudo.

No refeitório, não olhe o que os outros comem e não julgue, mas preste atenção a si
mesmo, alimentando sua alma pela oração. Ao meio dia coma segundo sua fome. À
noite, abstenha-se. A gula não é coisa para monges. Às quartas e sextas, se possível,
faça apenas uma refeição e o Anjo do Senhor se afeiçoará a você. É preciso, entretanto
comer alimento suficiente para que o corpo, reconfortado, seja um ajudante para o
homem no cumprimento de seu dever. De outra forma pode acontecer que, estando o
corpo debilitado, a alma se enfraqueça. O jejum não consiste somente em comer
raramente, mas em comer pouco. Não é razoável o jejuante que, tendo esperado com
impaciência a hora da refeição, entregue-se com voracidade — corporal e mental — ao
consumo do alimento. O verdadeiro jejum, aliás, não consiste somente em domesticar o
próprio corpo, mas em se privar, a fim de dar pão a quem não o tem.

Todas as noites, não durma menos de quatro horas: a décima, undécima, duodécima e
uma hora depois da meia noite. Se você se sentir fatigado, pode, depois do meio-dia,
tirar uma sesta. . . É o que tenho feito desde a juventude. Conduzindo-se assim, você
não ficará triste, mas composto e feliz. E permanecerá no mosteiro até o fim de seus
dias.

A primeira virtude do noviço deve ser a obediência, melhor remédio contra o tédio,
perigosa doença que é difícil a um principiante evitar, a menos que siga rigorosamente
as ordens dadas por seus superiores. Juntamente com a obediência, o jovem monge deve
praticar a paciência. Sem resmungar ele deve suportar vergonhas e ofensas.

"O hábito monástico: é a aceitação de ofensas e de calúnias." Um monge deve ser


semelhante a um velho chinelo, de sola gasta. Deve ser como o lençol que o mercador
bate, pisoteia, escova, lava, a fim de torná-lo branco como a neve. "Sem provações, não
há salvação. Ninguém se torna monge sem possuir a oração e a paciência, como
ninguém vai para a guerra sem levar armas."

Um perigo: as mulheres.

"Fuja como do fogo destas gralhas pintadas. Freqüentemente elas transformam um


guerreiro do rei em um escravo de Satã. As virtuosas devem ser evitadas tanto quanto as
outras. Como a cera de uma vela, mesmo apagada, não pode deixar de queimar quando
rodeada de veias que queimam, o coração do monge é sempre enfraquecido por um
contato com o sexo feminino.

Desde sua entrada no mosteiro, e até sua morte, a vida do monge é apenas uma luta
terrível contra o mundo, a carne e o diabo. Não é monge aquele que gosta de se
pavonear, recostado; não é monge aquele que em tempos de guerra cai por terra e rende-
se sem combater."

Estes são os conselhos de um homem, maduro. Mas refletem o problema dos jovens
religiosos de todos os tempos. Vindo de tempos imemoriais, uma voz parece responder:

"É monge aquele que torna firme seu coração e aspira a circunscrever o incorporal em
uma morada de carne." É S. João Clímaco, higumeno no séc. VII do mosteiro de Santa
Catarina no Sinai, que fala. Os anos não mudaram em nada os preceitos da ascese, pelo
menos na ortodoxia.

A Herança do Hesiquiasmo.

"Enquanto trabalha, repita continuamente a oração: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
Tem piedade de mim, pecador. . ." Lembre-se sempre da presença de Deus e de Seu
Santo Nome. . . Em Kiev, "o ancião" Dositeu não dissera a mesma coisa?

A lembrança constante da presença divina e a invocação do Santo Nome de Deus,


impronunciável por causa do terrível poder de que estava carregado e que era
substituído por: Yahvé, Elohim, Adonai, remonta à mais alta antiguidade bíblica.

Na oração ensinada por Jesus a seus discípulos, o primeiro pedido é: "Santificado seja o
Teu Nome." O nome de Jesus, que, desde o começo de sua pregação, os apóstolos
enfatizaram e que eles invocavam para curar os doentes, representava uma força assim
como uma fonte de salvação. É por isso que os membros do Senhedrim proibiam sua
divulgação (Ato. 4:17-18, Ato. 5:28 e 40-41). Em sua epístola aos Filipenses, São
Paulo, falando de Cristo, escreve: "pelo que Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o
Nome que estava acima de todo Nome, para que do Nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é
o Senhor, para glória de Deus Pai" (Fil. 2:9-11). Jesus glorificado é o Ungido, o
Senhor. Ao Nome de Jesus, exprimindo sua glória, pertence uma força salvadora e
vivificante, donde a propagação progressiva entre os monges, em seguida entre todos os
cristãos, da "oração de Jesus."

O nome de Jesus implica sua presença. "Entre o Nome e aquele a quem o Nome invoca
não há nem a distância de uma lâmina" disse um teólogo russo contemporâneo.

Com alguém que está presente, falamos. Falar com Deus é rezar. "Orai sem cessar," diz
São Paulo (I Tes. 5:17). Mas, por si só, o homem tem dificuldade em rezar mesmo um
pouco, mesmo raramente. Felizmente, "também o Espírito, semelhantemente, nos
assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo
Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexplicáveis" (Rom. 8:26). Não
se pode separar Jesus e o Espírito Santo.

Mas fará o Espírito sua morada em um ser com pensamentos divagantes, com a veste
suja pelo pecado? Certamente não. Para começar, é preciso se arrepender. Em seguida,
empenhar-se em vigiar o coração para defender-lhe o acesso as tentações, aos
pensamentos nocivos, e a esta louca, a imaginação, de quem o inimigo se serve para
desviar os inexperientes por meio de visões pseudo-celestes. É por isso que os conselhos
dados ao postulante estipulam: "ao rezar, escuta a ti mesmo, isto é, levanta teu espírito e
une-o ao coração" (a união da inteligência com o coração, considerado como centro, é
indispensável). "Em seguida, quando o Senhor houver aquecido teu coração por sua
graça, em união com o espírito, tua oração fluirá sem interrupção. . ." Esta forma de
oração nascida no deserto, elaborada nos mosteiros do oriente através dos séculos,
tornada uma verdadeira doutrina afirmada pela igreja, recebeu o nome de hesiquiasmo,
do grego "hesychia": paz interior, calma, tranquilidade.

Ela tem dois ápices. Um é atingido quando a oração tornada parte integrante do homem
não é mais algo que o homem diz, mas algo que é dito nele. "Quando o Espírito
estabelece sua morada no homem, este não pode mais parar de orar, pois o Espírito não
para de orar nele. . . Doravante, ele não domina a oração durante determinados períodos
de tempo, mas todo o tempo. Mesmo quando ele faz seu repouso visível, a oração está
garantida nele, pois "o silêncio do impassível é oração" diz Isaac o Sírio. "Seus
pensamentos são impulsos divinos, os movimentos do intelecto purificado são vozes
mudas que cantam em segredo esta Salmódia ao invisível." Mas o Sírio apressa-se em
acrescentar: "encontra-se dificilmente em toda geração um só homem que se tenha
aproximado deste conhecimento da glória de Deus."

O segundo ápice é inundado por uma luz que a ortodoxia qualifica de incriada. Apesar
da interdição que lhes estava feita de "meditar" sobre qualquer episódio da vida do
Cristo, de permitir a imagens de se formarem em seu espírito, os adeptos da "oração de
Jesus" beneficiaram-se por vezes de visões luminosas que não eram nem o produto de
sua imaginação, nem o efeito de uma luz metereológica simbolicamente interpretada,
mas uma teofania — uma revelação divina — tão real quanto a do Monte Thabor
prefigurando a glória do Ressuscitado, assim como a luz perene que iluminará
Jerusalém Celeste e cuja luminária será o Cordeiro (Apo. 21:23). Um grande místico do
séc. XI, "hi gumeno" do Mosteiro de São-Mamas em Constantinopla, São Simeão, a
quem a Igreja honrou com o título de "Novo Teólogo" foi o cantor inspirado desta Luz-
Espírito.
Estavam os monges de Sarov cientes da doutrina e práticas hesiquiastas? Pelos
conselhos e respostas que acabamos de citar, a resposta é afirmativa. Desde o começo
do séc. XV, S. Nil de Sora, eremita da "Thebaide do Norte" no além Volga, erudito que
falava grego fluentemente, tendo passado longo tempo no Monte Athos, deixou a seus
descendentes espirituais uma regra inspirada pelos grandes mestres da doutrina
hesiquiasta: João Clímaco, Isaac de Nínive, Simeão o Novo Teólogo. Os textos que
sobraram "constituem ao mesmo tempo um exemplo marcante de fidelidade absoluta à
tradição hesiquiasta bizantina e de uma notável simplicidade espiritual que caracterizava
a própria pessoa de Nil e que constituirá o traço marcante dos santos russos posteriores"
(Jean Meyendorff). Isto deve ser guardado. "Os santos russos, escreveu o Padre
Meyendorff, tendo menos interesse pela especulação teológica, contribuíram
frequentemente, por meio de um certo lirismo cósmico, para humanizar a mística
hesiquiasta; eles acentuaram, muito mais do que os gregos, as implicações sociais do
monaquismo eremítico."

As dificuldades, e mesmo as perseguições que a Igreja russa conheceu durante o séc.


XVIII não conseguiram, como vimos, esvaziar a alma russa de seu desejo de Deus.
Mais numerosos do que nunca, os peregrinos percorriam o império em busca desta
verdade-justiça que a vida na terra parecia recusar. E eis que alguns dentre eles se
puseram a trazer da Moldávia excelentes notícias: havia ali, nos confins da Romênia,
um monge russo, um verdadeiro "Staretz" Paissy Velitchkovsky, em redor de quem a
vida monástica, conforme as mais autenticas tradições, se havia reorganizado. Milhares
de monges haviam se reunido em seu mosteiro. Quanto ao próprio Paissy, que falava
diversas línguas, traduzia incansavelmente do grego (em um momento em que os
monges, na Rússia, estavam teoricamente privados do direito de estudar e escrever)
obras da literatura patrística, e sobretudo as obras dos santos hesiquiastas com as quais
se familiarizara durante uma estadia prolongada no Monte Athos. O único retrato que se
tem dele representa-o frágil sob as largas pregas de um manto monacal, com um rosto
suave em que se destacavam um enorme par de olhos. Dizia-se que estava
frequentemente doente. Encarquilhado sobre o leito como uma criança, mas cercado de
dicionários, ditava suas traduções a vários secretários. Sua influência na Rússia foi
enorme. Em toda a parte, no fim do séc. XVIII e início do XIX, encontram-se discípulos
seus ou discípulos destes últimos. Dositeu de Kiev, que orientou Prokhore Mochnine
para o deserto de Sarov, foi um deles. Porém, nada do que Paissy traduziu teve um
sucesso comparável à Filocalia — em grego "Amor do Belo" em russo
"Dobrotolyoubrie" "Amor do Bem" — compilação de máximas patrísticos, publicado
em 1752 em Veneza por um bispo grego que, banido, havia rompido com as autoridades
otomanas de sua diocese, Macário de Corinto (1731-1805), com a colaboração de um
monge da Santa Montanha, Nicodemos, o Hagiorita (1749-1809). Sem se preocupar
com repetições, esta coleção continha uma série de textos cujos autores eram grandes
contemporâneos hesiquiastas, a começar pelos Padres do deserto e até os restauradores
do séc. XIV. A tradução russa apareceu em São Petersburgo em 1793, no fim do reinado
de Catarina II, graças ao esforço do eminente metropolita Gabriel. Mas ve-se que, 16
anos antes de sua aparição oficial, Dositeu de Kiev já estava familiarizado com o
espírito de seu conteúdo.

 
A Doença.

Hesiquiasta consciente ou não, o zelo com que Prokhore, o Carpinteiro, se desdobrou no


deserto de Sarov quase o conduziu ao túmulo. Pensa-se que sua doença era uma
hidropissia. Ele sofreu por três anos e ela acabou por prendê-lo em seu leito. O recurso à
medicina não faz parte da tradição monástica. Não há médico no Monte Athos. Porém,
desesperado pela vida de seu preferido, o Padre Abade, que não saía mais de sua cela,
estava pronto a mandar chamar um médico na cidade, quando para surpresa geral, o
doente sarou. O que se passara? Só se soube muito depois.

A Santa Virgem, que em Kursk aparecera sob o aspecto de um ícone para salvar a
criança doente, viera, desta vez em pessoa, salvar o jovem noviço do Deserto de Sarov.
Estava acompanhada dos apóstolos Pedro e João. Virando-se para eles, pronunciou
estranhas palavras: "ele é da nossa raça" disse, apontando o moribundo. Essas coisas
não se inventam. Como teriam vindo ao espírito de um aspirante à humildade? "Ela
pousou sua mão direita sobre minha fronte, contaria ele na velhice. Em sua mão
esquerda havia um cetro. Com o cetro, ele tocou o pobre Serafim. Neste lugar, — sobre
a minha coxa direita-cavou-se um buraco. Por ali a água escorreu. E foi assim que a
Rainha do Céu salvou o humilde Serafim." Uma profunda cicatriz na coxa dava
testemunho do milagre.

Monge — Diácono — Presbítero.

Serafim. . . oito anos após sua entrada no deserto de Sarov, Prokhore, aos 27 anos de
idade, considerado digno de vestir o hábito monástico, foi recebido em 13 de agosto de
1786 na comunidade do deserto. Sem perguntar sua opinião, impuseram-lhe o nome de
Serafim, que em hebraico quer dizer: resplandescente. Breve foi ordenado diácono. Mas
antes, ele insistia em pagar uma dívida de gratidão: com a benção de seus superiores,
partiu a buscar fundos para a construção de uma pequena igreja sobre sua cela,
testemunho de seus sofrimentos, onde ele havia sido visitado e curado.

Dizem que no decorrer desta fatigante caminhada pelo país ele teria ido até Kursk, teria
abraçado sua mãe pela última vez e predito a seu irmão Alexis que iria seguí-lo de perto
para o túmulo, o que, a seu tempo, aconteceu. Mas nunca se pensou na impressão que
esta longa caminhada através da terra russa teria deixado em um jovem marcado pelo
sofrimento e, em decorrência disto, particularmente receptivo.

A Rússia era feliz então? Algum dia o foi? O longo reinado de Catarina II, brilhante no
exterior, só trouxe ao povo mais dificuldades.

O Cristo encarnava em seu sofrimento. Um poeta escreveu:

"Curvado sob o peso da cruz,


Tendo tomado o aspecto de um escravo,

Percorreste, ô Rei do Céu,

Toda nossa terra natal

Abençoando-a."

Tiutchev.

A obsessão por um reino camponês, ideal e santo, com sua "justiça da floresta"
permanecia viva na alma popular que guardava no íntimo o sonho de uma Jerusalém
russa com seu Czar branco e seu Cristo peregrino.

Poderíamos nos perguntar se o conhecimento aprofundado da vida do povo que o Padre


Serafim mostraria mais tarde não vinha, pelo menos em parte, desta lenta marcha
através de campos pobres brutalizados por cruéis injustiças, mas em companhia, talvez,
de peregrinos perpétuos, incansáveis buscadores da verdade?

Em Sarov foi ordenado diácono. Novamente, zelou com desvelo. Demasiado, pensavam
certos monges. Havia-se algum dia visto um diácono preparar-se para a liturgia
dominical passando a noite a orar na igreja imóvel até o amanhecer? Terminado o
ofício, ainda hesitava em partir. Teria ele se comprazido, como um puro espírito, em
servir continuamente o Senhor esquecendo-se de comer e beber? Enquanto o coro
cantava, acontecia-lhe de ver passarem anjos, dizia. Vestidos de branco, brilhantes
como relâmpagos, atravessavam a igreja cantando bem melhor do que os monges. É
certo, pensavam estes últimos, que os anjos tomam parte na celebração da eucaristia, é
ortodoxo. Durante a Grande Quaresma, nas liturgias dos pré-santificados, não
proclamamos: "hoje as forças celestes concelebram invisivelmente conosco?" Aquele
homem calmo, sólido, equilibrado, aquele bom operário que Prokhore, o carpinteiro,
havia sido transformava-se em um daqueles místicos de quem desconfia, como da peste,
a severa sobriedade tradicional do monasticismo oriental?

Um dia, durante a solene liturgia da quinta-feira santa, após haver abençoado a


congregação e pronunciado as palavras: "e pelos séculos dos séculos" ao invés de se
retirar, como exigia o desenrolar do ofício, o Padre Serafim ficou pregado em seu lugar,
imóvel, ausente de tudo. Compreendendo que algo insólito havia acontecido, dois
hierodiáconos pegaram-no pelo braço e levaram-no para trás da iconostase. Sua
imobilidade durou três horas. Ao voltar a si explicou a seu confessor e ao Padre
Pakhôme: "eu estava ofuscado como que por um raio de sol. Voltando os olhos para
esta luz eu vi Nosso Senhor e Deus, Jesus Cristo, com o aspecto do Filho do Homem em
sua Glória, brilhando com uma luz inefável e rodeado pelos exércitos celestes: anjos,
arcanjos, querubins e serafins. Vindo da porta oeste, andando sobre os ares, abençoou os
celebrantes e a congregação. Em seguida, entrando em seu ícone perto da porta real,
mudou de aspecto, sempre rodeado pelas ordens celestes que com seus raios
iluminavam a igreja inteira. Quanto a mim, terra e cinzas, fui objeto de uma benção
especial." Os velhos monges o escutavam atentamente. Depois, com sua sabedoria e
experiência, chamaram-lhe severamente a atenção contra as visões em geral e as
tentações do orgulho em particular.

Mas o Padre Serafim não era mais um noviço. Sabia que a humildade é o cimento que
sustenta o edifício da perfeição espiritual. Mas sabia também que uma vez engajado na
via de união a Deus, o homem não pode mais parar. "Se alguém diz: eu sou rico, estou
bem com o que consegui, não tenho mais necessidade de nada, não é cristão, e sim um
vaso de iniquidade diabólica" escreveu Macário do Egito. "Pois o prazer que se tem em
Deus é tamanho que não podemos nos saciar d'Ele. Quanto mais O saborearmos, quanto
mais o comungarmos, mais temos fome d'Ele."

O Padre Serafim entrara naquele mundo invisível a que poucos homens têm acesso. Mas
ele não falava: "Eu sou rico." Ao contrário, sua sede de contemplação só fazia crescer.
Ordenado padre, não deixava de sentir a atração pela grande solidão do verdadeiro
deserto. Será que a contemplação de um anacoreta é mais preciosa do que o sacerdócio
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque?" Eis aí um mistério.

O abade Pakhôme morreu. Sua doença havia retido o Padre Serafim no mosteiro. Uma
vez desaparecido o ancião a quem tratara como um filho, ele pediu a seu sucessor, o
Padre Isaías, a permissão de se retirar para a floresta e deixou o mosteiro munido de
uma dispensa oficial na devida forma. A data de sua partida é conhecida: vinte de
novembro de 1794, véspera da apresentação no Templo da Santa Virgem, exatamente
dezesseis anos após sua entrada. Ele tinha trinta e cinco anos, etapa importante, segundo
suas próprias palavras, na vida de um homem.

O Eremita.

Há uma carta escrita a um amigo pelo Staretz Paissy Velitchkovsky a respeito da vida
eremítica onde ele diz: "Deves saber, caríssimo amigo, que o Espírito Santo dividiu a
vida monástica em três categorias: a vida eremítica; a vida em companhia de dois ou
três irmãos em um skit; e a vida cenobítica. A vida eremítica deve ser compreendida
como uma existência longe dos homens, no deserto. O eremita entrega-se somente a
Deus no que concerne à saúde de sua alma, o alimento, a vestimenta e toda necessidade
terrestre. Ele só espera nEle em todos os combates da alma e do corpo, pois somente Ele
é sua ajuda e esperança neste mundo. Mas essa existência não é possível senão para os
espiritualmente maduros, os inteiramente pacificados. Quanto aos inexperientes que se
engajam nisto inconsequentemente, que estejam atentos para não cair na sonolência,
desatenção ou perplexidade — ninguém estará lá para ajudá-los."

O Padre Serafim fez a experiência. "Os que vivem em mosteiros, disse, lutam contra os
inimigos do gênero humano como contra pombas; os anacoretas — como contra leões e
leopardos."

Mas quem são estes "inimigos do gênero humano"? Contra quem esta luta no vazio? O
homem do século XX sabe que seu destino, em grande parte, depende dela?

Na opinião dos antigos, o Universo era gerado por espíritos que governavam os astros e
moravam "nos céus" e "nos ares." Eles coincidiam em parte com que S. Paulo chama
"os elementos do mundo" (Gal. 4:3). Infiéis a Deus, eles quiseram e conseguiram
escravizar o homem no pecado. Mas Cristo veio livrar a humanidade de sua escravidão,
arrancá-la do império das trevas. "Nascido antes de todas as criaturas, é nEle que foram
criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, visíveis e invisíveis, sejam troncos,
sejam soberanas, quer principados, quer potestades, tudo foi criado por meio dEle e para
Ele. . . Por que aprouve a Deus que nele residisse toda a Plenitude e que, havendo feito a
paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas,
quer sobre a terra, quer nos céus" (Col. 1:15-20).

Para São Paulo, a encarnação coroada pela ressurreição colocou a natureza humana do
Cristo à frente não só da raça humana mas ainda de todo o Universo criado, interessado
na salvação como o fora no erro. Esta reconciliação universal engloba todos os espíritos
celestes assim como todos os homens. Ela não significa a salvação individual de todos,
mas sim a salvação coletiva do mundo por meio de seu retorno à ordem e à paz perfeita
na submissão a Deus.

Porém, enquanto esperamos a vitória final, o dia terrível do Advento Triunfal do


Senhor, "quando Ele integrar o reino a Deus e Pai para que Deus seja tudo em todos
(ICor. 15:21-28), temos que lutar.

O pecado do homem foi uma maldição para a terra. Cabe a ele trabalhar para sua
redenção. "Pois a ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de
Deus" diz São Paulo nesta admirável passagem da Epístola aos Romanos, tantas vezes
citadas (Rom. 8:19-23), "na esperança de que a própria criação será redimida do
cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Por que sabemos
que a criação inteira geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas
também nos que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo,
aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo."

Eis aí, então, trabalho para um místico, para um anacoreta. A salvação do mundo
depende disto. Retornando a si mesmo, ele se fechará na "cela" interior de seu coração,
para encontrar lá, "mais profundo do que o pecado" o começo de uma ascensão durante
a qual o Universo lhe aparecerá cada vez mais unido, cada vez mais coerente,
impregnado por forças espirituais, formando um só todo nas mãos de Deus.

"Pequeno Deserto Longínquo."

A floresta que serviu de "deserto" ao Padre Serafim era imensa e sombria. Pinheiros se
erguiam como mastros de navios. Alguns tinham muitos metros de circunferência. Uma
modesta "isba" situada sobre uma margem escarpada do rio Sarovka, a cerca de seis
quilómetros do mosteiro, servia-lhe de retiro. Um ícone em um canto, um fogareiro em
outro, um pedaço de tronco à guisa de cadeira — era tudo. Uma cama? — inútil. Ele
batizou o conjunto de "Monte Athos."

Um eremita, para se preservar do tédio, precisa de um emprego de seu tempo dos mais
rígidos. O dia de Padre Serafim começava à meia noite. Ele seguia a regra de São
Pakhôme o Grande, usada pelos Padres do Deserto. Para começar, ele recitava o ofício,
matinas e laudes. As nove horas, era a vez das tercias, sextas e nonas. Ao fim da tarde,
ele cantava as vésperas e completas. Ao cair da noite, recitava as orações que precedem
o sono, acompanhadas de numerosas prosternações, como os monges orientais
costumam fazer. No meio tempo, o que quer que fizesse, a oração do coração
ininterrupta ritmava suas atividades. Em seu desejo imenso de tudo referir a Jesus, havia
dado aos arredores nomes bíblicos. Em "Nazaré" ele cantava os hinos acatistas à
Virgem; recitava sexta e nona no "Gólgota"; lia o evangelho da Transfiguração no
"Monte Thabor" e entoava em Belém o "Glória a Deus no mais alto dos Céus."

Entretanto a humilde e casta natureza russa quase não se parecia com a Longínqua
Palestina. No verão, a suavidade do céu descia sobre os troncos cor-de-rosa das
coníferas; os troncos prateados das bétulas miravam-se na palidez dos riachos de curvas
sinuosas e suaves. Diversas flores do campo alegravam as clareiras. A floresta cheirava
a resina quente, a musgo, a cogumelos; ouvia-se o sussurro do vôo de inumeráveis
insetos dançando ao sol. À noite, escutava-se ao longe o coaxar das rãs, o grito das
garças nos pântanos e, cobrindo tudo, triunfando sobre as trevas, o dilacerante concerto
dos rouxinóis.

O Padre Serafim cultivava uma horta. Como adubo, utilizava o musgo úmido que, com
o torso nu, ia buscar nos brejos, oferecendo "a carne rebelde" às picadas dos pernilongos
e mosquitos.

No inverno, a floresta se revestia de um manto de arminho, ficava com um aspecto


severo e real sob o peso da neve, os galhos das árvores se inclinavam como cortesãos à
passagem de um soberano. Nos cerrados, ouviam-se os leves passos dos lobos. Com o
rosto atingido pelo vento constante, o Padre Serafim, a grandes golpes de machado,
cortava lenha.

E vinha a primavera com sua brisa tépida, trazendo o aroma da neve que derrete, da
seiva que corre. A primavera — a ressurreição -A Páscoa. Abandonando seu retiro, o
Padre Serafim passava a primeira semana da Grande Quaresma no mosteiro, privando-
se completamente de alimento, repetindo com seus irmãos a oração penitencial do S.
Ephrem, o Sírio.

"A oração e o jejum, a solidão e a abstinência formam o alicerce que leva a alma ao
reino de Deus" dizia o habitante do pequeno deserto longínquo. Quanto à leitura, ela
continuava sendo uma das ocupações favoritas deste homem do ar livre. O evangelho
que ele carregava em um saco nas costas acompanhava-o por toda parte. Cada dia, ele
lia alguns capítulos, "alimentando" assim sua alma. Pois a "alma deve ser nutrida pela
palavra de Deus." "É preciso se habituar a que o espírito esteja imerso na lei de Deus"
ensinará ele. De fato, sua conversa frequentemente será apenas uma série de paráfrases
de textos bíblicos livremente aplicados às situações dadas.

"O homem precisa das Escrituras porque não está ainda possuído pelo Espírito que
afasta os erros. Porém quando o Espírito se houver apoderado do homem, seus preceitos
se enraizarão nele, em lugar da lei das escrituras. Ele será misteriosamente guiado pelo
Espírito e não terá necessidade de nenhuma ajuda sensível. Enquanto o coração aprende
por intermédio de coisas materiais, o aprendizado é seguido por erro e esquecimento.
Mas quando o ensinamento vem do Espírito, a memória se conserva intacta." Doutrina
ousada — Ortodoxa? — que o eremita de Sarov nunca realizou inteiramente, já que até
sua morte ele continuou as leituras diárias da Bíblia mas que ele compartilhava com o
"enfant terrible" da Igreja, São Simeão, o novo Teólogo. "Aquele que tem por
interlocutor o Inspirador dos que escreveram os livros divinos (o Espírito Santo), que é
iniciado por Ele nos arcanos dos mistérios secretos, é então para os outros um livro
inspirado de Deus" escrevia o Higumeno de S. Mamas.

A solidão de um eremita chama e facilita a chegada do Espírito. "Na descida do


Espírito, dirá Serafim de Sarov, convém estar à escuta — absolutamente silencioso. Da
mesma forma que a leitura se torna supérflua uma vez que o Espírito tenha se apoderado
do homem, a oração, na sua vinda, não precisa mais de palavras."

Havia ele chegado ao estado descrito por Isaac, o Sírio quando "o Silêncio do
impassível é oração"?

Desejoso de saudar o Padre Serafim, os Padres Marx e Alexandre, solitários como ele,
encontravam-no às vezes em sua horta, a enxada largada a seus pés, o olhar perdido no
céu. Não ouvia nem o zumbido das abelhas a sua volta, nem a chegada dos visitantes.
Compreendendo que seu espírito havia "emigrado em Deus" eles partiam lentamente.
Mas frequentemente visitantes inoportunos menos discretos teimavam em ir ver o
jovem anacoreta e entre eles — para seu grande desprazer — mulheres. Já no séc. IV,
cameleiros egípcios alugavam montarias para curiosos ávidos de dar uma olhada no
modo de vida dos Padres do Deserto. Basta-se proclamar eremita para não ficar mais só.
Irritado, pediu a seus superiores a permissão de obstruir com galhos a trilha que levava a
seu retiro, e a obteve.

O Cosmos.

Os Padres afirmam que a Bíblia é a chave do "Liber Mundi." A misericórdia divina,


disse Santo Agostinho, deu aos homens a Bíblia, "este outro mundo" para lhes permitir
compreender novamente o sentido do mundo, "este primeiro livro."

Impõe-se a correspondência, como da alma ao corpo, entre a Escritura e o mundo:


aquele que possui a inteligência espiritual da primeira, receberá, no Espírito, a
contemplação do verdadeiro cosmos. É por isso que o Padre Serafim considerava útil ler
atentamente, na solidão, toda a Bíblia? Este tipo de exercício trazia, segundo ele, a
sabedoria como recompensa.

A oração hesiquiasta que o eremita de Sarov praticava incansavelmente torna-se, ela


também, não deve esquecer, "uma chave que abre o mundo, um instrumento de
oferenda secreta; uma aplicação do seIo divino sobre tudo o que existe. A inovação do
nome de Jesus é um método de transfiguração do Universo." Aquele que ora sem parar
adquire o conhecimento da linguagem da criação. Ele ouve o louvor das criaturas e
compreende como é possível conservar-se junto delas.

As Feras.
"À meia noite, conta uma testemunha ocular, o Padre Joseph — ursos, lobos, lebres e
raposas assim como lagartos e répteis de toda espécie, rodeavam o retiro. Tendo
terminado suas orações segundo a regra de S. Pakhôme, o asceta saía de sua cela e
punha-se a alimentá-los." Igualmente testemunha, o Padre Alexandre, intrigado,
perguntara uma vez como o pouco pão seco que havia em seu saco seria suficiente para
o Padre Serafim satisfazer tantos animais. "Sempre há suficiente" foi a resposta
tranquila. Um urso gordo, em particular, gozava da intimidade do santo homem. Relatos
detalhados de seu encontro, à primeira vista pouco tranquilo, com este habitante dos
bosques, foram deixados pelo Padre Alexandre, como também por outras pessoas. O
que os impressionava sobremaneira era a alegria que o Padre Serafim irradiava então.
Sorrindo, ele dava uma ordem ao urso e o animal voltava, andando sobre as patas
traseiras, trazendo um favo de mel que o anacoreta oferecia amavelmente a seus
visitantes. Entre as representações póstumas de Serafim de Sarov, as mais populares
tornaram-se aquelas em que ele era visto sentado sobre um pinheiro, dando um pedaço
de pão a um urso*.

"O que é um coração caridoso? Pergunta-se S. Isaac o Sírio. É um coração que se


inflama de caridade pela criação inteira, pelos homens, pelos pássaros, pelas feras, pelos
demônios e por todas as cria turas.

Aquele que tem este coração não poderá ver ou se lembrar de uma criatura sem que seus
olhos se encham de lágrimas por causa da compaixão imensa que invade seu coração. E
o coração suaviza-se e não pode mais suportar ver ou escutar um sofrimento qualquer,
mesmo uma pena mínima infligida a uma criatura. É por isso que tal homem não para
de orar também pelos animais, pelos inimigos da verdade, pelos que lhe fazem mal a
fim de que eles sejam conservados e purificados. Ele ora até pelos répteis, movido por
uma piedade que é despertada no coração dos que se assimilam a Deus."

Na trilha de um Macário do Egito, de um São Francisco de Assis, de um Sérgio de


Radonege, Serafim de Sarov tornava real este magnífico texto.

* Em memória de S. Serafim, a caça ao urso era proibida na floresta de Sarov até a revolução.
Nunca houve incidente algum. Na Ilha de Patmos, na Grécia, um eremita morto em 1917 vivia
em uma gruta em companhia de várias cobras, e mais tarde, já velho, alimentava diante de sua
cela uma gorda serpente que todo dia, ao meio dia, vinha beber a ração de leite que o santo lhe
servia em um pires.

O Demônio.

Mas a natureza não é sempre clemente. São longas as noites de inverno quando sopra
um vento glacial, os galhos dos velhos pinheiros gemem e os lobos uivam, em bandos.
O demônio procura abalar o coração do asceta pelo terror e angústia. O demônio? Mas
ele não existe, dirá com um muxôxo, um homem do séc. XX, mesmo sendo cristão. Não
é esta a opinião, baseada na experiência, dos eremitas e santos. A um jovem que,
perante ele, levantava dúvidas quanto à existência e o poder do maligno, Serafim de
Sarov respondia, brincalhão: "o que lhes ensinam nas Universidades? Claro que ele
existe!" E a um indiscreto que perguntava se ele vira diabos, ele retorquia brevemente:
"eles são abjetos."

Como seus ancestrais espirituais no Egito e na Síria, como o próprio Cristo no deserto,
Serafim de Sarov, na floresta, foi abordado e tentado pelo demônio. Que armas usar
contra ele? O Cristo disse: "esta casta não pode sair senão por meio de oração e jejum"
(Mc. 9:29).

O Jejum.

O Padre Serafim dava grande importância ao jejum "Nosso Senhor Jesus Cristo, antes
de começar seu ministério de salvação do gênero humano, dizia ele, fortificou-se por
meio de um jejum prolongado. E todos os ascetas, ao se colocar ao serviço do Senhor,
não abordavam a via crucificante senão após ter, primeiro, jejuado. Eles mediam seu
progresso nesta via de acordo com o progresso que faziam no jejum. Ele mesmo depois
de se tornar eremita, o que comia? Um pouco de pão trazido do mosteiro — cuja maior
parte ia para as feras — algumas batatas, cebolas, beterrabas que colhia de sua horta.
Com o tempo, decidiu que podia prescindir do pão. Depois, parou de cultivar seus
legumes."

De que se alimentava? De uma certa erva chamada egopódio. "Eu a colhia e a colocava
em uma panela; acrescentava um pouco d'água e punha no fogo — fazia uma bela
sopinha. Eu a secava e me alimentava deIa no inverno, e os fiéis perguntavam-se o que
eu estaria comendo! E eu, concluía marotamente o Padre, eu comia egopódio. Mas não
dizia nada a ninguém!"

Quais são os resultados de semelhante regime? "Jejuando assim, o corpo do praticante


torna-se diáfano e leve, a vida interior aperfeiçoa-se e se manifesta por meio de visões
maravilhosas, as sensações exteriores são como que abolidas e a inteligência,
abandonando a terra, se eleva para o céu e mergulha inteira na contemplação do mundo
espiritual."

A Oração.

Então ele jejuava. Quanto à oração, seria para fazer face ao demônio que este homem
que já orava sem cessar empreendeu uma façanha que aproximou-o dos ermitões de
outrora, dos quais Simeão, o ermitão no séc. V, foi o mais célebre? Durante mil dias e
mil noites, em pé ou ajoelhado sobre uma grossa pedra chata, ou em uma caverna
cavada sob seu isba, Serafim de Sarov exclamou, como o publicano do Evangelho:"
Senhor Jesus tem piedade de mim pecador." Ninguém saberá jamais a que imagens
terríveis, a que sensações tão sutis quanto atrozes respondia este grito de alerta. Mas
Cristo estava lá, "Quem nos separará do amor do Cristo?" Exclama São Paulo. "Será
tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? . . .
Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados,
nem coisas do presente, nem do porvir, nem dos poderes, nem alturas, nem
profundidades, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que
está em Cristo Jesus Nosso Senhor" (Rom. 8:35-39).

Quando, à beira da morte, Serafim de Sarov mandou um noviço procurar a pedra sobre
a qual ele tinha ficado tanto tempo em pé, e as pessoas maravilhavam-se com sua
façanha, ele respondeu: "Simeão, o ermitão ficou quarenta e sete anos em pé sobre uma
coluna. Em comparação a ele, o que eu fiz," "Sentia a ajuda da graça?" — "certamente.
As forças humanas seriam insuficientes." E acrescentava, fazendo eco à ardente
declaração de amor de São Paulo: "Quando o coração esta cheio de ternura adoradora,
Deus está aqui."

O Perdão das Ofensas.

Estava o demônio definitivamente vencido? Um incidente que ocorreu pouco depois


representava um último gesto de vingança da parte dele? Os contemporâneos, em todo
caso, interpretaram-no neste sentido.

Em 12 de setembro de 1804, o Padre Serafim estava rachando lenha na floresta quando


três homens se aproximaram dele e, grosseiramente, disseram que queriam dinheiro.
Como ele replicava que não tinha: "Mas as pessoas vêm te ver. Deve te trazer algum"
— "Eu não pego nada de ninguém" disse o eremita. Então um dos três se jogou sobre
ele por trás, mas ao invés de derrubá-lo ele próprio caiu. O padre Serafim, sabe-se, era
dotado de uma força física pouco comum. Veio-lhe a idéia de se defender: seu machado
estava à mão. Mas logo a lembrança da Paixão de Cristo o impediu. Ele deixou cair o
machado e, cruzando os braços sobre o peito: "façam o que vieram fazer" disse.
Apanhando a ferramenta, um dos homens o atingiu na testa. O Padre Serafim desabou,
inconsciente. Então, sem parar de atingi-lo com socos, pontapés, pauladas, os bandidos
arrastaram-no até seu isba, o amarando com a intenção de jogá-lo no rio, mas supondo-o
morto, abandonaram-no para se precipitar na busca do tesouro escondido. Desmontaram
o fogareiro, cavaram o solo — nada. Em um canto, acharam duas ou três batatas e só.
Um ícone da Virgem olhava-os do alto da parede. Tomados de um pânico súbito, eles
fugiram.

Mas o Padre Serafim não estava morto. Voltando a si, conseguiu se desfazer de suas
amarras. Felizmente um monge passou por ali e correu para prevenir o abade. Coberto
de sangue, lama, poeira, ninguém acreditava que ele pudesse sobreviver. Por desencargo
de consciência, mandaram buscar médicos. Diagnosticaram uma fratura no crânio, um
pulmão perfurado, costelas quebradas, sem falar dos vários ferimentos e, desamparados
diante de tantos males, porem fiéis aos métodos da época, declararam que era preciso
fazer uma sangria. O abade Isaías se opôs à idéia. Seu bom senso dizia que o infeliz já
havia perdido sangue suficiente. Cabia ao próprio Padre Serafim tomar uma decisão.

Os médicos discutiam gravemente em sua célula, usando nomes latinos. Quanto ao


ferido, ele suavemente adormeceu. Neste cochilo, ele viu entrar, como havia feito
outrora, quando de sua doença, acompanhada pelos apóstolos Pedro e João,
resplandescente de glória e revestida de seu manto de rainha, a Santíssima Virgem
Maria. Ela aproximou-se do moribundo e, virando-se para os médicos: "para que vossos
esforços?" — disse. Então, fitando o asceta ferido, repetiu as misteriosas palavras já
pronunciadas a seu respeito: "ele é de nossa raça." Ele abriu os olhos — ela
desaparecera.

Em um estado de feliz excitação que durou cerca de quatro horas, o Padre Serafim
recusou a assistência dos médicos e depois, mais calmo, levantou-se. Para assombro
geral deu alguns passos na cela e, peIa primeira vez em oito dias, aceitou um pouco de
alimento: um bocadinho de chucrute e pão.

Sua saúde, desde então, fez notáveis progressos. Cinco meses mais tarde ele, pedia a
benção do abade para reintegrar seu "Pequeno Deserto longínquo." Mas o Padre Isaías
hesitava. O eremita não era mais o homem de porte atlético que era conhecido antes do
atentado, mas, às portas do cinquentenário, um ancião curvado andando com difi —
culdade, com a ajuda de um machado ou bengala. Foi assim que ficou gravado na
memória de seus contemporâneos: "um velhinho encarquilhado, todo branco, todo seco,
vestido com um casacão branco."

Neste meio tempo, os culpados haviam sido encontrados — três camponeses de uma
aldeia vizinha, Kremenok. O Padre Serafim opôs-se enerticamente à ideia de inflingir-
lhes o menor castigo. Porém um destes incêndios terríveis que fazem arder os isbas das
aldeias russas devastou Kremenok. As casas dos malfeitores foram o alimento das
chamas. "O céu os puniu" diziam todos. Interpretando assim seu infortúnio, os pobres
diabos acorreram, arrependidos, para se jogar aos pés do santo homem que eles quase
assassinaram.

O perdão às ofensas sempre foi, para um fiel russo, a pedra de toque de um Cristianismo
autêntico. Pouco depois do batismo do país pelo Príncipe Vladimir, seus dois filhos,
Boris e Gleb, deixaram-se assassinar, após a morte de seu pai (1905), pelos emissários
de um irmão mais velho temeroso de sua influência. Eles eram jovens cheios de vida.
Mas, ao invés de derramar sangue em uma luta fratricida, como cordeiros que se levam
ao matadouro, eles não ofereceram nenhuma resistência. O povo russo recém-
convertido ao cristianismo compreendeu sua atitude e pediu sua canonização. Os
Bizantinos ficaram atônitos. Aqueles jovens príncipes não eram confessores, nem
doutores, nem mártires propriamente ditos. Eles eram "strastorerpzi" — "os que
sofreram a paixão" — responderam os russos. Seu heroísmo, pode-se talvez dizer, ao
inverso, sem ostentação, particularmente apreciado por seus compatriotas, inimigos de
gestos largos e atitudes teatrais, colocou-os repentinamente entre os santos mais
amados. Pode-se vê-los em ícones, lado a lado, montando fogosos cavalos cor de noite,
cor de aurora, enquanto que, do alto do céu, a mão do Cristo os abençoa. Por intermédio
destes inocentes, o Cristo sofredor, paciente e doce fez, desde o começo, Sua entrada na
igreja russa para não mais sair. Perseguida, ela não maldisse seus inimigos. Um de
nossos contemporâneos, Sylvain de Athos, morto em estado de perfeição espiritual na
península da Virgem (+ 1938), escrevia: "Você pergunta como poderia eu amar o
inimigo que persegue nossa igreja? Respondo: sua pobre alma não conheceu a Deus,
não compreendeu o que significa: Ele nos ama de um amor infinito, Ele deseja, Ele
espera que todos os homens encontrem a salvação. O Senhor é amor e Ele deu sobre a
terra o Espírito Santo que ensina a alma a amar os inimigos e lhe dá a força de rezar
para que também eles sejam salvos."

O gesto de Serafim de Sarov foi frequentemente citado como um exemplo, e o exemplo


foi seguido. O perdão as ofensas rompe a cadeia infernal da pena de Talião, das
vinganças sangrentas. "Basta perdoar aos que nos ofenderam e a alma fica em júbilo
como se um nó, que nenhum esforço conseguia desatar, se rompesse" escreveu, em seus
pensamentos improvisados, André Siniavsky, condenado, em nossos dias, a sete anos de
trabalhos forçados em um campo de concentração.

O Silêncio.

De volta ao "pequeno deserto longínquo" como era chamado seu retiro devido à
distância que o separava do mosteiro, o eremita se dedicou a uma nova forma de ascese:
ele entrou em silêncio. Tendo começado sua vida de anacoreta após a morte de seu
primeiro superior, o Padre Pakhome, ele encerrou-se em mutismo completo após o
desaparecimento de seu sucessor, o Padre Isaías. Estes dois anciãos, "colunas de fogo
subindo da terra ao céu" como ele os chamava, haviam acolhido, guiado, compreendido
o monge fora de série que Prokhore Mochnine se tornara. Com a nova geração, os laços
foram desfeitos. Propuseram-lhe o posto de abade — ele recusou. O administrador
Nifon te foi eleito em seu lugar. Espiritualmente um estrangeiro.

"Prefira a ociosidade do silêncio à atividade de alimentar famintos" escreveu Isaac, o


Sírio. Afirmação muito chocante para nosso século ativista e ocupado. Ela o será menos
se nos dermos conta de que a linguagem ascética possui dois termos diferentes para
designar o silêncio: um quer dizer simplesmente ausência de palavras, o outro indica o
vazio absoluto que o homem faz em si para se preencher de Deus. É deste último
silêncio que falava o Sírio. É deste silêncio que o eremita de Sarov desejava se
preencher. "O silêncio é um mistério do mundo que há de vir; as palavras são
instrumentos deste mundo" afirmava o Sírio. "O Silêncio absoluto é uma cruz sobre a
qual o homem se crucifica com todas suas paixões e concupiscências, "acrescentou
Serafim de Sarov.

Ninguém saberá jamais como ele viveu o mistério deste silêncio. Ele se cortara
completamente do mundo. Quando lhe acontecia de encontrar alguém na floresta ele
caía de joelhos, o rosto no chão, e permanecia nesta posição até que o passante se
afastasse. Uma vez por semana, no domingo, um monge trazia-lhe um pouco de
alimento. Antes de entrar, ele pronunciava a oração de costume. Tendo respondido
interiormente: Amém, o silencioso abria a porta e parava na soleira, com os braços
cruzados sobre o peito e os olhos baixos. O monge, após uma curta oração e uma
metanóia, colocava o alimento que trouxera sobre um prato perto do qual, por sua vez, o
eremita havia deposto um pequeno pedaço de pão, ou um pouco de chucrute para
mostrar o que era preciso trazer no domingo seguinte. O monge, tendo novamente
orado, se inclinava diante do Padre Serafim e deixava o retiro sem ter ouvido o som de
sua voz. Ascética pantomina que durou dois anos.

A Paz.

Qual era, segundo o Padre Serafim, o fruto desta nova ascese? A paz. A paz de Cristo
que ultrapassa todo entendimento. Paz mais preciosa do que todas as alegrias do mundo,
para a aquisição da qual longos anos de trabalho não são demais. "Não há nada acima da
paz do Cristo, dirá Serafim de Sarov. Eu te suplico, minha alegria, adquire o espírito de
paz. O homem com este espírito não é perturbado por nada. É como que surdo e mudo,
como morto quando se abatem sobre ele tristezas, calúnias e perseguições que todo
cristão que quer seguir Cristo deve obrigatoriamente vivenciar e atravessar. Porque é
por meio de muitos males que devemos entrar no Reino dos céus. É assim que os justos
entraram neste Reino em comparação com o qual toda a glória do mundo não é nada.
Todas as volúpias deste mundo não são nem mesmo uma sombra da felicidade
reservada nos céus aos que amam a Deus. Lá está a alegria eterna, o triunfo e a festa." E
ele acrescentava alguma coisa que, de repente, reconcilia a nós, os utilitários, com
aquilo que teríamos tendência a condenar como mística ridícula, supérflua, inumana.

"Adquire a paz interior e milhares,

ao redor de ti, encontrarão a salvação."

Ah, cá estamos. Enfim. Eis algo que justifica e explica tantos anos de dura ascese, de
dolorosas ascensões. "Milhares, ao redor de ti, encontrarão a salvação" encontrarão já
na Terra aquela paz que nenhum escritório de beneficiência, nenhuma Clínica
psiquiátrica pode dar, Paz que somente Cristo possui e que Ele transmite por meio de
seus servidores; aquela Paz que milhares de infelizes, ávidos de justiças e carinho
paternal, virão procurar.

O silencioso já estava no ponto de expandir esta Paz? Ainda não completamente.

Mas os monges se escandalizavam. Por que, perguntavam-se, o Padre Serafim não


vinha mais comungar, como antes, na liturgia de domingo? Tinha ele a presunção de
querer fazê-los crer que anjos, como conta-se na vida de São Pafúncio, levavam-lhe no
deserto a santa comunhão? Sabia-se que feridas varicosas tinham-se aberto em suas per
— nas por causa de longas jornadas em pé. O trajeto semanal até a Igreja tornava-se
alem de suas forças? O novo superior reuniu os fiéis e decidiu-se enviar um ultimato ao
eremita: participar da eucaristia todos os domingos e todos os dias de festa ou, se seu
estado de saúde não permitisse, voltar a viver no mosteiro. A primeira vez que o monge,
ao trazer o alimento, transmitiu o recado, o Padre Serafim o escutou e o deixou partir
sem uma palavra. No domingo seguinte a proposta foi renovada. Após uma semana
passada em oração, a decisão do eremita foi tomada; abençoou o mensageiro e, sem
dizer palavra, se guiu-o. Era dia oito de maio de 1810. A floresta cantava a primavera.
Ao longo do caminho, o lírio dos vales começava a florir. Apoiando-se em sua bengala,
arrastando dolorosamente suas pernas doentes, o Padre Serafim ia ao encontro da mais
difícil de todas as suas asceses.

O Recluso.

"A obediência, para o monge, é mais importante do que o jejum e a oração." O Padre
Serafim o havia dito, e agia conformemente. Por obediência, este homem, com mais de
cinquenta anos, experiente asceta, abandonava seu retiro florestal onde durante
dezesseis anos ele se comprazerá em louvar seu Senhor e seu Deus. O período de
silêncio que o Espírito lhe impunha não havia contudo terminado. Como perseverar em
um mosteiro em plena atividade, ruidoso, cheio de visitantes e peregrinos? Pediu ao
abade a benção para se enclausurar em sua antiga cela e receber ali os sacramentos.

Esta cela era uma pequena peça de teto baixo, mal iluminada por duas janelas estreitas
dando sobre um barranco. O interior lembrava por sua pobreza o do pequeno deserto
longínquo: em um canto, um ícone da Virgem com velador sempre iluminado. Um
tronco à guisa de cadeira; um aquecedor — que não era usado nunca — e em frente ao
aquecedor vazio, algumas achas de lenha. Na entrada que partilhava com um vizinho, o
Padre Serafim guardava um caixão em carvalho bruto que ele mesmo talhara no tronco
de uma arvore grossa. Seu vizinho, Frei Paulo, homem simples de coração puro, trazia-
lhe, uma vez por dia, seu alimento. Como no deserto, recitava uma prece diante da porta
fechada. Porém ao abri-la, o recluso não lhe mostrava nem mesmo seu rosto. Com a
cabeça coberta por um pano, colocava-se de joelhos, pegava o prato e levava-o para
dentro. Tendo terminado de comer, recolocava o prato defronte a porta, e seu rosto
continuava invisível. Seu cardápio era sempre o mesmo: um pouco de farinha de aveia
seca e um pouco de chucrute.

Cristo fizera-se obediente até a morte. Por obediência, Serafim de Sarov trocara o
majestoso silêncio da floresta pelos barulhos de uma casa atarefada; o ar balsâmico das
resinas, o colorido dos crepúsculos sobre a elegância dos grandes pinheiros contra a
poeirenta penumbra de um cubículo de teto baixo. Dezesseis anos permaneceu trancado.

O que fazia ele? Mais do que nunca, mergulhava na leitura da Bíblia. Durante a semana,
lia o Novo Testamento inteiro. Às vezes, ele comentava as leituras em voz alta. Os
monges vinham escutar na porta e obtinham grande proveito espiritual. Ele tinha
também visões. Uma delas levou-o, como S. Paulo, às "moradas celestes." Juntamente
com seu corpo ou fora dele, ele não sabia.

Cinco anos se passaram assim. Um dia, sem sair de sua cela, o recluso abriu sua porta.
Quem queria vê-lo podia entrar. Sempre mudo, ele se ocupava de suas obrigações
cotidianas. Mais cinco anos e ele começou a responder perguntas, dar conselhos. No
começo, somente os monges o visitavam. Foram logo seguidos por leigos. A própria Vir
— gem havia dado ao recluso a ordem de recebê-los. O fluxo não parava mais. Mas ele
não deixava nunca seu reduto escuro.

A falta de ar e de exercício lhe causava insuportáveis dores de cabeça. Ele saia à noite,
às escondidas. Foi visto assim uma ou duas vezes, perto do cemitério, transportando
algo pesado e murmurando a oração de Jesus. "Sou eu, sou eu, o pobre Serafim. . . Cala-
te, minha alegria!" dizia. Sentindo suas forças diminuírem, pediu a Deus a permissão de
terminar sua reclusão. E a permissão veio. Em 25 de novembro, dia em que se
comemoravam os santos Clemente de Roma e Pedro de Alexandria, a Virgem Maria,
enquanto o Padre Serafim dormia, apareceu-lhe em companhia deles e o autorizou a
voltar a seu retiro. Tendo obtido a benção do Higumeno, o recluso, após dezesseis anos
de aprisionamento voluntário, saiu abertamente em pleno dia e dirigiu-se à floresta.

 
 

Segunda Parte
— Em Plena Luz.
 

Retorno no Tempo.

"Vem tanta gente ver o Padre Serafim" dizia, não sem um certo mau humor, o
higumeno Nifonte, "que não conseguimos fechar as portas do mosteiro antes da meia-
noite."

A partir do momento em que, novamente livre, Serafim de Sarov dividiu seu tempo
entre a floresta e sua cela monástica, ele deixou, efetivamente, de pertencer a si mesmo.
Era às multidões que ele pertencia daí por diante. Tinha sessenta e seis anos. Havia
passado os dezesseis primeiros anos de sua vida religiosa no mosteiro. O homem
maduro — a partir dos trinta e cinco anos — escondera-se na floresta, escolhera se
enclausurar durante 16 anos em sua cela monástica. Quase meio século de preparação
para um ministério que devia durar oito anos. Havia ele vivido este meio século fora do
tempo? Nada indica, mas poucas informações que se tem a seu respeito, a menor
influência dos acontecimentos contemporâneos na formação espiritual de Serafim de
Sarov. A história, entretanto, neste interim, seguia seu curso.

Ele recém havia se retirado para a floresta quando terminava, em meio à inquietude, o
brilhante reinado de Catarina. Atemorizada com as primeiras medidas da Marseillaise, a
Imperatriz, para obter da nobreza reacionária o perdão por sua aproximação epistolar
com Voltaire e Diderot e sua leitura de "O Espírito das Leis" de Montesquieu, prendeu
definitivamente os camponeses à terra, transformando a servidão de outrora em
verdadeira escravidão. O reinado, felizmente curto, de seu filho Paulo, cabe-de-esquadra
prussiano que via jacobinos em toda parte e semeava pânico ao seu redor, terminou em
um assassinato trágico (1801). Sucedendo-lhe aos 24 anos, Alexandre I, neto adorado da
grande Catarina, foi aclamado como libertador. Educado por um preceptor suíço,
discípulo de Rousseau, belo, elegante, cortês, o novo monarca encheu de esperanças os
corações da jovem nobreza livre-pensadora. Seus admiradores chamavam-lhe "nosso
Anjo" os desconfiados — a "esfinge charmosa." Completamente envolvido na política
européia, ora se desentendia, ora se reconciliava com Napoleão.

Serafim de Sarov havia entrado no silêncio quando, em 1812, Moscou ardeu e a Grande
Armada foi engolida pela neve. Finalmente vencedor, o Anjo revelou-se um engodo.
Sonhando com uma Europa unida antes do tempo, ecumênica antes da hora, ele próprio
enganado por Metternich e a Santa Aliança, foi buscar a ortodoxia junto a um
arquimandrita pouco confiável, Fotius, a mística junto a uma madame Kruedener e caiu,
finalmente desiludido, na influência de um verdadeiro monstro que ele considerava fiel:
o sádico e reacionário general Arakcheev.
O fim deste soberano ambíguo, deste Janus de duas caras, permanece um mistério que a
história não consegue elucidar. Será que ele morreu — jovem ainda — como quer a
versão oficial, na cidadezinha de Tagamog, na costa de Azov, cujo clima convinha, ao
que parece, à saúde vacilante da Imperatriz? Ou, como afirmam alguns e como quer a
espiritualidade russa, será que ele colocou em um caixão, no lugar do seu, o corpo de
um soldado recém falecido, e foi-se, peregrino sem dinheiro e sem passaporte, pelas
estradas de seu imenso império, para acabar na Sibéria onde viveu longos anos,
conhecido pelo nome de "Staretz Feodor Kouzmitch"? Por mais inverossímil que isto
possa parecer a um ocidental (imagine só um Louis-Philippe carregando um alforje de
peregrino mendigante!), é bem possível que a segunda versão seja a verdadeira.

O Imperador.

Foi em 1825, ano em que Serafim de Sarov terminava sua reclusão. Um monge que,
mais tarde, iria contar a história a um oficial da marinha iniciado em religião no Deserto
de Sarov, reparou um dia que o Padre Serafim limpava e varria sua cela com um
cuidado incomum. Ao cair da tarde, uma "troïka" parou em frente à escadaria. Vindo a
seu encontro, o staretz curvou-se até o chão, saudando o oficial que desceu. Em seguida,
ambos se retiravam para a cela do Padre e lá ficaram trancados durante cerca de três
horas. Era noite quando o desconhecido saiu para retomar seu lugar na carruagem. O
staretz disse, do alto da escada à guisa de adeus, estas misteriosas palavras: "Lembra-te,
Senhor, do que te disse, e cumpre-o." O monge, intrigado, teria se escondido e teria
ouvido.

O que dá um certo peso a este relato é a ausência do Imperador, durante três dias, da
cidade de Nizhni-Novgorod, distante de 60 kilometros de Sarov, onde, na época, ele
ficava. O emprego do tempo imperial não fala nada destes dois dias. Alexandre gostava
de agir as ocultas. Era assim que frequentemente visitava — alma atormentada —
monges reputados por sua vida de oração. Por intermédio dos nobres próximos a ele —
proprietários de terra dos arredores é possível que tenha ouvido falar do eremita. O
trajeto de Nizhni Novgorod ao Deserto de Sarov, devido ao estado deplorável das estra
— das, exigia pelo menos dois dias. Teria o "humilde" Serafim, de posse da paz de
Cristo, oferecido seus conselhos e dado sua benção ao soberano, dono da sexta parte do
globo que, do alto de sua glória, teria visto o abismo de todas as vaidades? Não se pode
afirmar, nem negar*. A família imperial entrou, mais tarde, em contato com Feodor
Kouzmitch que viveu na Sibéria até uma idade bastante avançada, porém desencorajou
todas as especulações a seu respeito.

* Maurice Paléologue, embaixador da França em L. Petersburgo, publicou em Paris, após a


revolução de 1917, um livro cujo objetivo é de provar que o staretz Feodor Kouzmitch e o
Imperador Alexandre eram a mesma pessoa.

O Staretz.
"Staretz" — doravante, assim era chamado o eremita de Sarov. Literalmente, "staretz"
quer dizer "ancião" "yerontas" em grego. Tomado no sentido monástico, um pai
espiritual. São Paulo já reclamava para si esta paternidade quando escrevia aos
Coríntios: "Pois eu vos gerei pelo Cristo Jesus" (l Cor. 4:15) e aos Gálatas: "Meus
filhos, por quem de novo sofro as dores do parto" (Gal. 4:19). Nos mosteiros orientais,
os "anciãos" guiavam noviços. Grandes santos foram formados por "startzi." Simeão o
Novo Teólogo proclamava dever tudo a seu staretz, Simeão o Piedoso. Mas na Rússia, o
"starchestvo" — o ministério do Staretz — novamente posto cm vigor por Paissy
Velitchkovsky no fim do séc. XVIII, tornou-se, pode-se dizer, uma verdadeira
instituição que teve um papel considerável na história do país. Serafim de Sarov foi o
primeiro, o maior, destes homens de Deus. Após sua morte, o carismo do "Starchestvos"
sob cuja forma "a santidade dos tempos passados voltou à vida na santidade moderna de
uma forma tão tradicional e ao mesmo tempo tão surpreendente por sua novidade"
passou para o "Deserto" de Optino onde, tornada hereditária, manifestou-se em várias
gerações de "Startzi" que se sucederam até a Revolução. Como se sabe, Tolstoi e
Dostoievsky foram a Optino buscar a sabedoria. E convertido por sua mulher, o filósofo
Kireyvsky escrevia: "Todos os livros, todas as obras do espírito não valem, a meu ver, o
exemplo de um santo staretz."

O exemplo, sim. Pois é sobretudo pelo exemplo que pregavam os eleitos do Espírito.
Eles próprios deviam ter feito suas provas e se mostrado dignos de seus dons. Um guia
inexperiente é perigoso. É um destes cegos de quem fala o Evangelho que cai num
buraco junto com aquele que pretendia levar ao bom caminho. "O Senhor não abençoa
aqueles que se contentam em ensinar, mas antes aqueles que pela prática anterior dos
mandamentos mereceram ver e contemplaram em si mesmos a luz resplandecente e
cintilante do Espírito e que, nesta visão, neste conhecimento e influxo, conheceram pelo
Espírito aquilo de que devem falar e que devem ensinar aos outros" escreveu S. Simeão
o Novo Teólogo."

Com sua habitual bondade, bem russa, Serafim de Sarov confirmava as palavras do
grande Bizantino: "Sei que ele é muito hábil em inventar sermões" dizia ele de um
teólogo a quem ia ser apresentado. Porém, ensinar é tão fácil quanto jogar pedras do alto
de nosso campanário. Quanto a executar o que ensinamos, é tão difícil quanto levar
pedras para o alto do campanário. Esta é a diferença entre o ensinamento e a prática."

Uma tirada talvez discutível, mas não desprovida de verdade, conta que existe um
peregrino adormecido em cada russo, e que cada russo está pronto a percorrer centenas
de kilômetros para encontrar um "staretz" autêntico. A reputação do staretz Serafim
crescia dia após dia; multidões — não raro vários milhares de pessoas de uma vez —
invadiam o Deserto de Sarov. O que viam elas lá?

Um velhinho, "todo branco, encarquilhado, sequinho" de olhos azuis e com um sorriso


"incompreensivelmente radioso." Sua acolhida, para todos, era a mesma: "Bom dia,
minha alegria!" ou ainda "Cristo ressuscitou!" — saudação pascal, cara a seus
compatriotas.

Decididamente otimista: "Não sigamos o caminho do desencorajamento, proclamava


ele, batendo alegremente com o pé no chão. Cristo venceu tudo. Ele ressuscitou Adão.
Ele restaurou Eva em sua dignidade. Ele matou a morte!"
Contudo, às vezes: "Que infortúnio vejo chegar a mim! que infortúnio!" exclamava ao
distinguir alguém na assembléia. E, antes que o aflito tivesse tempo de lhe dizer
qualquer coisa: "Eu sei, eu sei!" repetia. E, abraçando-o, chorava com ele.

O Resultado da Ascese.

A coroação das explorações ascéticas é o amor.

Amadurecido em perfeito silêncio, o recluso intercede pelo mundo inteiro em sua prece.
"Porém aquele, disse Isaac o Sírio, que entra em relação com os homens e ignora suas
misérias, crendo ser mais fiel assim às austeridades de sua regra, não é misericordioso, e
sim cruel. . . Quem não visita um doente não verá a luz. Quem desvia sua face de um
aflito, verá seu dia tornar-se em trevas. E os filhos daquele que não ouve a voz do
sofrimento irão, cegos, às apalpadelas, procurar um refúgio. . . pois a cada existência
sua hora, seu lugar e sua particularidade."

Houve um tempo em que o Padre Serafim obstruía com troncos de árvores o caminho
do Pequeno Deserto Longínquo, recusava-se a falar com seus semelhantes e escondia
sua face perante eles. Agora sua hora era chegada.

— Admitamos, dizia ele, que eu feche a porta de minha cela. Aqueles que virão,
esperando uma palavra reconfortante, implorar-me-ão, em nome de Deus, de abrir. Não
tendo recebido resposta, irão tristonhos para casa. Que álibi poderei apresentar a Deus
no dia de Seu terrível julgamento?

Sua paciência era inesgotável. Ele escutava cada um com atenção e doçura, mas não
abria indistintamente perante todos os tesouros de seus carismas.

— Não se deve, dizia ele, abrir sem necessidade, seu coração a outros. Entre mil haverá
um único, talvez, capaz de entrar em seu mistério. Com um homem psíquico, deve-se
falar em coisas humanas. Mas com aquele que tem a inteligência aberta ao sobrenatural,
deve-se falar de coisas celestes.

Da Clarividência.

"Eu sei" dizia o staretz. Mas como ele sabia? Um de seus amigos, o Padre Antônio,
higumeno do mosteiro de Vissokogorsk, um frequentador assíduo de Sarov, um dia foi
testemunha de uma conversa entre o santo homem e um comerciante de Vladimir que
via pela primeira vez, mas cuja alma era como se fosse um livro aberto. O Padre
Antonio lhe perguntou em seguida como ele conseguia penetrar nas profundezas mais
íntimas de cada consciência sem fazer perguntas, sem esperar confidências.

A resposta do staretz abre-nos os olhos. "Ele vinha até mim, respondia, falando do
comerciante, como os outros, como você, vendo em mim um servo de Deus; e eu,
indigno Serafim, me considero um pobre servo de Deus, e o que Deus ordena a seu
servo, eu transmito. O primeiro pensamento que me ocorre, suponho que é Deus que o
manda, e falo sem saber o que se passa na alma de meu interlocutor, mas crendo que é a
vontade de Deus e que é para seu bem. Às vezes, me fiando em minha própria razão, eu
respondia, achando que era fácil. Nesse caso, produziam-se erros. Como o ferro se
entrega à bigorna, eu entrego minha vontade a Deus. Ajo como Ele quer. Não tenho
vontade própria." Porém o Padre Antonio replicou que o staretz via a alma de um
homem, como um rosto no espelho, por causa da pureza de seu espírito. O Padre
Serafim pôs a mão direita sobre a boca do higumeno. "Não, minha alegria, não se deve
falar assim. O coração humano é aberto unicamente a Deus. Se o homem se aproxima,
vê como o coração do outro é profundo" (Sal. 64:7) O staretz não ia do homem a Deus,
mas do Deus ao homem. Não fazia psicanálise, mas punha-se à escuta do Espírito.

"Ele advinha" diziam os camponeses. Um deles correu uma bela manhã pedir a ajuda do
staretz em um assunto para ele vital: haviam-lhe roubado o cavalo, e sem cavalo ele não
poderia trabalhar nem alimentar sua família. "O Padre Serafim, conta uma testemunha
ocular, pegou em suas mãos a cabeça do camponês e aproximou-a da sua. "Envolve-se
em silêncio, disse-lhe, vai a X (designou um vilarejo vizinho). Antes de entrar neste
vilarejo, vira à direita. Percorre, por trás, quatro pátios de fazendas. Veras então um
portão. Empurra-o, pega teu cavalo e leva-o sem dizer nada." O que foi feito.

O staretz era aquilo que chamamos, hoje em dia, "social"? Nas raras instruções
espirituais deixadas por escrito, ele nos da estas linhas significativas: "Ao se aproximar
dos homens, é preciso ser puro em palavras e espírito, igual para com todos (grifo
nosso), nunca elogiar ninguém — senão, tornaremos nossa vida inútil." Estava inteirado
das condições miseráveis da vida camponesa, o que não fazia dele um revolucionário.
Tanto quanto São Paulo, ele não pregava a abolição da escravatura, mas chamava ao
coração e à consciência de cada um. Ao tocar com o dedo as cruzes que ornavam o peito
de certas altas dignidades, lembrava-lhes que foi sobre uma cruz que o Senhor morrera e
que, conseqüentemente, as cruzes que eles ostentavam, ao invés de ser objeto de
orgulho, deviam ao contrario inspirar-lhes uma conduta digna de um cristão. A um
funcionário importante e rabugento que se recusava a receber durante muito tempo,
tendo-lhe finalmente aberto a porta, perguntou: "vosso pessoal não age para com os que
vêm vos ver como eu agi para convosco? "O Patrão não está em casa" dizem eles; ou "O
Patrão não tem tempo." Entristecendo assim, vosso próximo, atraís sobre vós a cólera
divina." Ouviu-se um orgulhoso general, vindo a ele por curiosidade, chorar como uma
criança em sua cela. "Atravessei toda a Europa com os exércitos russos, explicou ele
mais tarde, e nunca encontrei nada parecido: toda minha vida estava aberta perante ele,
até os mínimos detalhes, ignorados por todos." Por outro lado, o staretz amou o grande
Senhor que era o príncipe Golitzine, chegado incógnito a Sarov. Ao se separar dele,
instou-lhe que prestasse uma atenção especial no último versículo do Credo: "Espero a
ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir."

Paternidade Maternal.

Entre os visitantes que ele recebia, havia naturalmente muitos monges e clérigos. Um
deles, aquele higumeno de Vissokogorsk, Antonio, que havia feito ao staretz perguntas
sobre sua clarividência, acorreu um dia para contar-lhe a angústia que o sufocava.
Crendo que sua morte estava próxima, ele vinha se despedindo de todos os que o
cercavam, em seu mosteiro. "Você não esta entendendo bem, minha alegria" disse-lhe
afetuosamente o staretz. Você deixará o mosteiro, mas não morrerá. Você será colocado
à frente de um grande Mosteiro." A predição não demorou a se realizar. O Padre
Antonio foi designado pelo Metropolita Filareto de Moscou para representá-lo como
vigário naquela abadia, venerável entre rodas, a Trindade-São-Sérgio. As
recomendações que lhe fez o staretz, prevendo esta nomeação, podem e devem ser
comparadas às que outrora ele fez a um noviço, a respeito da vida religiosa (ver na la
parte). Vistas em conjunto, elas formam como que um par onde o comportamento do
superior e o dos inferiores se harmonizam, completando-se.

"Seja para teus monges antes uma mãe do que um pai, dizia ele a Antonio*. Todo
superior deve ser — e permanecer — para suas ovelhas como uma mãe sensata. Uma
mãe amorosa não vive para si, mas para suas crianças. Ela suporta com amor as
enfermidades dos doentes; ela purifica os que estão sujos, lava-os suavemente, com
calma; veste-os com roupas limpas e novas; calça-os, aquece-os, nutre-os; consola-os e
ocupa-se em ambienta-los de forma a nunca ouvir de sua parte a menor queixa. Tais
crianças são muito ligadas à mãe. Assim cada superior deve viver não para si, mas para
suas ovelhas. Deve ser indulgente para com suas fraquezas; suportar com amor suas
enfermidades; cobrir as feridas do pecado com emplastros de misericórdia; erguer com
delicadeza aqueles que caem; purificar tranqüilamente aqueles que se sujaram por um
vício qualquer, impondo-lhes uma penitência suplementar de oração e jejum; vesti-los
de virtude pelo ensinamento e o exemplo; ocupar-se deles constantemente e salvaguar
— dar sua paz interior de forma a nunca ouvir deles choro ou lamento. Então eles, por
sua vez, farão o possível para facultar ao superior a tranquilidade e a paz."

* As recomendações feitas por S. Francisco de Assis aos Superiores de suas fundações são
curiosamente semelhantes. Ele usa também o termo "mãe."

Ascese e Símbolos

Assim rodeado, procurado, venerado, o staretz relaxava sua ascese pessoal? "É difícil
para o homem viver a glória sem prejuízos para sua alma, lia ele em seu autor preferido,
Isaac o Sírio (Homilia I). Isto é difícil não somente aos apaixonados e aos que estão
lutando contra suas paixões, mas igualmente aos que venceram suas paixões, santos.
Ainda que lhes esteja dada a vitória sobre o pecado, a faculdade de mudar permanece. A
possibilidade de retorno ao pecado não lhes é retirada. . ." A inclinação ao orgulho,
observa Macário o Grande, reside nas almas mais purificadas.

Serafim de Sarov continuava a dormir sobre sacos de pedra, com uma tora como
travesseiro, ou encostado na parede, com a cabeça entre os joelhos. Comia, como antes,
uma vez por dia um pouco de chucrute e um bocadinho de aveia seca, vestia-se com um
velho casacão branco e calçava "lapte" feitos de casca de bétula. Sua cela ainda era
aquele pardieiro atravancado de garrafas de vinho de missa e de sacos de pão seco que
ele distribuía em pequenos pedaços a seus visitantes. Outras garrafas continham óleo
para as lamparinas.

A um discípulo que lhe perguntara por que ele acendia tantas velas e lamparinas em
frente a seus ícones, o staretz respondia: "Várias pessoas me trazem óleo e velas
pedindo-me para rezar por elas. Menciono seus nomes ao recitar minha regra. Mas
como eles são numerosos, não poderia menciona-los cada vez que a regra exige — não
teria tempo de terminar a leitura da regra, se o fizesse. Então acendo uma vela para cada
um em sacrifício a Deus, às vezes uma vela grossa para muitos, e também lamparinas, e
onde a regra exige que os mencione, eu digo: "Senhor, lembra-te de todas estas pessoas,
teus servos, por cujas almas eu, indigno Serafim, queimo estas velas e lamparinas."

O Padre Serafim dava grande importância a este procedimento que remontava a Moisés
segundo ele. Não havia Deus falado com Moisés nestes termos: "Moisés, Moisés, diz a
teu irmão Arão que acenda perante Mim lamparinas de dia e à noite: isto me é agradável
e um sacrifício que me agrada." Em vão procurar-se-ia na Bíblia um texto exato
correspondente! É um exemplo de uma destas paráfrases bíblicas que o Padre Serafim
usava frequentemente, inspiradas, no caso, do Êxodo, 40:25 e do Levítico 24:2-4.

Ele gostava de comparar a vida humana a uma vela. "Ao fitarmos uma vela acesa —
sobretudo na igreja — pensemos sempre no começo, no desenrolar e no fim de nossa
vida, assim como se derrete uma vela acesa perante a face de Deus, nossa vida diminui a
cada instante, aproximando-se de seu termo. Este pensamento nos ajudará a não nos
dispersar na igreja, a rezar com mais fervor, e a fazer o possível para que nossa vida seja
semelhante a uma vela fabricada com cera pura, queimando e se apagando sem fedor."

O símbolo tem a propriedade de se infiltrar incógnito na consciência humana. Dando o


exemplo, apesar de um incontestável dom da palavra, uma bela memória e uma
erudição patrística alimentada por constantes leituras, o staretz frequentemente se servia
de símbolos para fazer as verdades cristãs penetrarem nas almas de seus visitantes. O
fogo. . . Deus é um fogo devorador. A luz. . . Deus é luz. A cera — ela não é virginal? O
óleo simboliza o Espírito Santo, unção batismal e real, força do atleta, medicamento,
fonte de calor que expulsa a frieza dos corações endurecidos.

As Mulheres.

Nesta cela tão frequentemente descrita, cujo ar, apesar do atravancamento, permanecia
curiosamente puro, ele recebia todo mundo, inclusive muitas mulheres. Não havia ele
um dia dito que era preciso desconfiar, como da peste, "destas gralhas pintadas"? Ao
envelhecer, cheio de força espiritual como estava, sua atitude para com elas havia
mudado. Foi o primeiro dentre os santos russos a se ocupar de sua sorte, prever o papel
que, no futuro, lhes estava destinado.

"Nunca esquecerei, conta uma delas, como, tendo orado comigo perante o ícone da Mãe
de Deus, ele pousou suas mãos quentes em minha cabeça e eu senti de repente uma
força vivificante se espalhar pelo meu corpo inteiro. Levantei meus olhos para o Padre e
vi que ele chorava. Uma de suas lágrimas caiu sobre minha testa. Chorava ele por mim?
Não ousei lhe perguntar. . .
Chorava ele pela sorte de tantas mulheres escravas de senhores desumanos, de maridos
cuja brutalidade mortificava suas almas e corpos, órfãs sem dote e sem apoio de quem
outrora se ocupava sua mãe, Ágata Mochnine de memória eterna? E mais que provável.

Ao falar com casais, o staretz não entrava em detalhes de sua vida conjugal.
Contentava-se em recomendar aos cônjuges a fidelidade recíproca e o amor que
asseguram à família a estabilidade e a paz. Insistia na hospitalidade e na esmola. "Não
negligencieis a hospitalidade pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos,"
disse S. Paulo (Ite. 13:2-3). Quanto à esmola, é alegremente que deve ser dada: "Deus
ama a quem dá com um coração alegre." Assim o staretz parafraseava as palavras do
Apóstolo (2 Cor. 9:7).

Era grande o respeito deste monge pela família. Se um homem vinha se queixar de sua
mãe alcoólatra, imediatamente tapava sua boca com a mão, para impedi-lo de falar e
para mostrar que os vícios dos pais não desobrigam as crianças de honrá-los, como
manda a Bíblia.

Podia-se aprender muito com os gestos simbólicos e as breves palavras do eremita de


Sarov.

Entretanto, as "gralhas pintadas" existiam. Entre os numerosos relatos descrevendo este


estranho fenômeno que era no séc. XIX, este staretz, Padre do Deserto e um tanto louco
em Cristo, há algumas que valem reportagens modernas, como este extrato de um jornal
escrito por um jovem nobre, I.M. Neverov, adolescente na época, que dá uma idéia
divertida do encontro do homem de Deus com uma destas mulheres mundanas alérgicas
ao Espírito.

A História de uma Gargalhada.

"Ao chegarmos no sábado para as vésperas, soubemos que o Padre Serafim estava no
mosteiro e que iria, como de hábito, comungar na manhã seguinte. Finda a liturgia,
fomos, em fila, para a cela do staretz onde ele se pôs a oferecer a seus visitantes, como
de costume, minúsculos pedaços de pão bento que retirava de uma taça cheia de vinho e
que oferecia em uma colher de estanho. Uma jovem senhora, Madame Z, parecia muito
espantada com esta regalia insólita e quando o Padre Serafim aproximou-se dela e lhe
colocou a colher perto da boca, não quis aceitar e, várias vezes, virou a cabeça. O bom
staretz pensando talvez que ela hesitava diante da largura da colher, disse-lhe
ingenuamente: "Use o dedo, minha bela senhora. . . "querendo dizer empurre o
conteúdo da colher para sua boca com o dedo. Ouvindo este conselho, a dama pôs-se a
rir, e eu também, em seguida, caí na gargalhada. O venerável staretz afastou-se
desconcertado, e a dama deixou a cela. Quanto a mim, como minha gargalhada
continuava solta, apesar dos esforços de minha mãe para freá-la, fui posto para fora e
recebi um duro sermão por minha conduta inconveniente. Fui privado de lanchar e
jantar, e minha mãe declarou que não me perdoaria se eu não obtivesse o perdão do
Padre Serafim, a quem ela me mandou ver.

"Aproximando-me da porta de sua cela, encontrei-a fechada e, segundo o costume,


pronunciei as palavras da prece: "Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de
nós" o que equivale, em linguagem monástica, a pedir a permissão de entrar. Uma voz
respondeu: "Amém" — quer dizer "entre" — e a porta se abriu.

Qual não foi minha surpresa quando vi, no meio da cela, um caixão e, sentado no
caixão, o venerável staretz com um livro na mão. Saudou-me com bondade.

— Bom dia, meu amigo, bom dia. O que o traz aqui?

— Minha mãe me manda lhe pedir perdão porque agora mesmo zombei do senhor.

— Sua mãe o manda? Está bem, agradeça-lhe de minha parte, meu amigo, agradeça-lhe
por interceder por um velhinho. Rogarei por ela. Agradeça-lhe!

Estas palavras foram ditas com bondade, mais uma ligeira entonação peculiar sobre a
frase "Sua mãe o manda" teve para mim o efeito de uma reprimenda. Sentindo-me em
falta e desejando obter o perdão do staretz a qualquer preço, tomei a liberdade de dizer:

— Não, não foi minha mãe que me mandou. Vim por vontade própria.

— Veio por vontade própria, meu amigo, eu lhe agradeço, lhe agradeço. Deus te
abençoe.

Ele me chamou com um gesto, me abençoou e acrescentou: "O arrependimento tira o


pecado, mas aí nem mesmo havia pecado. Que Cristo esteja contigo, meu amigo."

"Em seguida, perguntou-me se eu lia o Evangelho. Respondi que não. Naquela época,
quem lia o Evangelho, senão o diácono na igreja? O staretz convidou-me a sentar perto
dele. Abriu o livro que tinha na mão — que era justamente um Evangelho — e começou
a ler o capítulo 7 de S. Mateus: "Não julgueis para que não sejais julgados; pois com o
critério com que julgardes, sereis julgados." Ele leu o capítulo inteiro, sem comentários,
sem fazer a menor referência à minha conduta. Porém, escutando-o, compreendi
profundamente meu erro, e esta leitura deixou em mim uma impressão tão forte que as
palavras evangélicas ficaram marcadas para sempre em minha memória. Tendo
adquirido um Evangelho, li diversas vezes aquele capítulo de S. Mateus, e durante
muito tempo pude recitá-lo quase todo de cor.

Após terminar sua leitura, Padre Serafim me abençoou mais uma vez e, antes de me
deixar partir, aconselhou-me a ler o Evangelho sempre que possível, o que, tendo
gravado suas palavras no coração, passei a fazer regularmente.

As Crianças.

Se nos adultos a adesão às convenções mundanas, (como hoje em dia, o uso de


aperitivos, coquetéis e tabaco), atrofia o sentido espiritual, as crianças, ao contrário,
como os animais, detectam sem nenhuma dificuldade a atmosfera paradisíaca em que o
homem de Deus está envolvido.
Um outro "instantâneo" escrito por Nádia Aksakov, permite-nos participar de uma visita
que sua família fez a Sarov. Esta visita gravou-se para sempre na memória da
menininha que então ela era.

"Como sempre, após a liturgia, os peregrinos vindos ao Deserto para ver o starez
acorreram à sua cela. Porém a porta fechada não se abriu. Fatigado pelo contato com os
homens, ás vezes o Padre Serafim escapava para tomar fôlego em sua querida floresta."

— Ele deve ter escapado pela janela ao ouvir o barulho de suas carruagens no pátio,
disse um velho monge. Para vê-lo, é preciso procurá-lo no meio da mata.

— Não têm muita chance de encontrá-lo, disse o higumeno do mosteiro ao ver o bando
de visitantes partirem. Ele se deitará na grama. A menos que responda ao chamado das
crianças. Mandem que corram na frente.

A floresta, conta Nádia Aksakov, tornava-se cada vez mais espessa. Mal víamos a
claridade sob a abóbada dos imensos abetos. Tínhamos uma sensação de mal estar
naquela floresta obscura. Felizmente, um raio de sol brilhou entre os galhos
pontiagudos. Tomando coragem, lançamo-nos na direção desta luz. Uma clareira verde,
inundada pelo sol, abriu-se á nossa frente. Lá, ao pé de um abeto que se destacava, um
velhinho encarquilhado, curvado até o chão, cortava rapidamente com seu machado
(sic!) altas hastes de mato. Ouvindo o barulho, ele se ergueu, espichou o pescoço na
direção do mosteiro e, como uma lebre assustada, lançou-se na floresta; porém, logo
ofegante, parou, olhou receosamente para trás e, deitando na relva, tornou-se invisível.

— Padre Serafim! Padre Serafim!

Éramos uns vinte a chamá-lo assim. Ao som de nossas vozes infantis, ele não conseguiu
ficar escondido. Sua cabeça branca apareceu por sobre a relva. Com o dedo sobre os
lábios, parecia nos pedir para não denunciar sua presença à gente grande.

Afastando a relva para nos dar passagem, sentou-se e nos fez sinal de nos aproximarmos
e nos chamou com um gesto. A pequena Lisa — quase um bebê — foi a primeira a se
lançar em seus braços, apoiando sua bochecha macia no ombro enrugado do ancião.

— Que tesouros! que tesouros! — murmurava ele apertando cada um de nós contra seu
peito magro.

Confiantes, felizes, nós o abraçávamos. Mas o jovem pastor Sioma deu meia-volta e
correu para o mosteiro gritando: "Por aqui, por aqui! o Pe. Serafim está aqui!"

Tivemos vergonha. Nossos chamados e abraços nos pareceram uma traição.

Voltando para o mosteiro, a pequena Lisa, que fora a primeira a ser abraçada pelo Pe.
Serafim, aproximou-se de sua irmã e, tomando-lhe a mão, disse: "O Pe. Serafim
somente finge ser velho, disse ela. Na verdade, ele é criança como nós, não é, Nádia?"

Com efeito, nunca em toda sua vida, escreveu, Nádia Aksakov, ela encontrou um olhar
de uma pureza tão infantil como o do Padre Serafim, e nunca viu um sorriso semelhante
ao seu. "Assim sorri um recém-nascido quando, como dizem as velhas babás, brinca
com os anjos durante o sono."

Uma Outra Imagem.

Espírito de infância? Loucura em Cristo? Será que isto era tudo o que os peregrinos de
Sarov viam quando acorriam ao deserto, curiosos ou cheios de fervor? A mesma Nádia
Aksakov, em suas memórias, nos dá uma imagem diferente do homem de Deus.

Foi após a liturgia. . O Pe. Serafim estava saindo da Igreja.

"Ele estava vestido com o hábito monástico tradicional (uma grande capa preta) e trazia
as insígnias de seu presbiterado — a estola (epitrachilion) e os punhos (que os padres
ortodoxos prendem nos punhos para celebrar). A alegria de um homem que havia
participado da refeição eucarística irradiava de seu rosto de testa alta e traços
expressivos. O brilho da inteligência resplandecia em seus grandes olhos azuis. Descia
das escadas lentamente, mancando um pouco e, apesar de sua enfermidade e a corcunda
que tinha no ombro, parecia ser — e era realmente — de uma beleza majestosa."

Depois de comungar, o Pe. Serafim passou entre as apertadas filas de peregrinos, com
os olhos baixos, sem se dirigir a ninguém. Desta vez, contra seu costume, parou.

Jamais esquecerei, escreve Nádia, seu olhar inspirado, seu rosto transfigurado e o som
de sua voz quando se dirigiu à multidão. Falava da Santa Cruz e de seu significado para
o cristão. Suas palavras sonoras, simples, eloqüentes, fluíam sem esforço e penetravam
nas almas. Falava com autoridade, à maneira do Cristo, seu Senhor e Mestre, e não
"como os escribas e os fariseus."

Às vezes, os visitantes chegavam a ir até o Pequeno Deserto Longínquo na esperança de


encontrar o staretz. Estava ele lá fora? Sim, de pé diante de um ícone da Mãe de Deus
fixado no tronco de um grande abeto, fazendo lentamente vários sinais da cruz, como os
russos costumam fazer, parecia absorto em sua oração ininterrupta. Então os joelhos se
dobravam involuntariamente. Em silêncio, todos oravam. O Anjo da Paz sobrevoava a
clareira.

O Taumaturgo.

O Pe. Serafim discernia uns espíritos dos outros, predizia o futuro, mantinha relações
telepáticas com eremitas que viviam a milhares de kilometros de distância, respondia às
cartas sem nunca abri-las. Tinha o dom de levitação e de bilocação, e eis que o dom de
fazer milagres e de curar enfermos lhe foi concedido. Isso foi para ele motivo de
alegria?

"Os verdadeiros santos não somente não desejam fazer milagres, como também recusam
o dom quando este lhes é conferido. Não é só perante os homens que eles não querem
este dom, mas no fundo de seu coração. Se alguns aceitavam este dom, era por
necessidade. . . outros por ordem do Espírito Santo atuando neles, nunca por acaso, sem
necessidade."

O primeiro agraciado chamava-se Michel Manturov. Proprietário de terras na


cidadezinha de Nutch na província de Nizhni-Novgorod, jovem, alegre, dono de um
belo físico, a vida lhe sorria quando uma doença estranha o acometeu. Ele perdeu o uso
das pernas; pedaços de ossos caíam de seus pés. Desenganado por tratamentos médicos
ineficazes, fez-se transportar a Sarov e, com lágrimas nos olhos, suplicou ao staretz que
lhe curasse.

— Você acredita em Deus? perguntou três vezes o santo homem. "Se acredita, minha
alegria, tudo é possível àquele que crê."

Tendo obtido uma resposta afirmativa, entrou em sua cela e voltou trazendo um pouco
de óleo proveniente da lamparina que queimava diante do ícone da Virgem. Com este
óleo, friccionou os pés e as pernas do doente, repetindo: "Pela graça recebida de Deus, é
o primeiro que curo." Em seguida enfiou nos pés de Manturov meias de pano, trouxe de
sua cela uma boa quantidade de pequenos pedaços de pão seco, com os quais encheu os
bolsos da sobrecasaca do jovem, e disse-lhe que voltasse a pé para a estalagem.

Manturov não estava seguro. Havia muito tempo que perdera o uso das pernas. Porém,
tendo posto os pés no chão, sentiu que tinha força para ficar de pé. Não cabendo em si
de contente, prostrou-se diante do staretz Serafim. Este ergueu-o e, severamente, disse-
lhe que devia agradecer a Deus, não a ele.

Feliz, Manturov voltou para casa, onde sua jovem mulher alemã, que desposara durante
seu serviço militar nas Províncias Bálticas. Mas ao fim de um certo tempo pôs-se a
refletir. Agradecer a Deus? Como? Voltou a Sarov e fez a pergunta ao staretz Serafim.
O velho fitou-o com um amor infinito. Porém, a resposta que deu deixou Manturov
consternado.

— Veja, minha alegria, disse ele jovialmente, você dará tudo o que possui a Deus e se
tornará um mendigo por vontade própria.

Seria essa "a terrível doçura do Evangelho"? Michel pensou em sua mulher, acostumada
com uma vida fácil, amante do luxo. . . O preço exigido pela cura não seria alto demais?

— Não tenha medo, acrescentou o staretz. O Senhor não o abandonará jamais nem nesta
vida, nem na outra. Ore. Reflita. E venha me ver novamente.

Ao contrário do homem rico do Evangelho Michel Manturov aceitou.

Antes de Lourdes.

Com a propagação da notícia da cura do jovem proprietário, afluíram doentes a Sarov,


tanto mais que a própria Virgem parecia abençoar e encorajar esta nova atividade de seu
eleito. No dia em que ele deixou sua prisão voluntária para voltar para a floresta, Ela lhe
apareceu no caminho acompanhada de São João, bateu no solo com seu cetro e "uma
fonte de águas claras jorrou." A água desta fonte teria mais poder de cura do que a da
piscina de Betsaida, disse Ela.

Em Jerusalém, as curas só se produziam após a descida de um Anjo, enquanto que em


Sarov os doentes seriam curados durante o ano todo. O Padre Serafim cercou a fonte
com um muro e fez ali um poço. Mais tarde, sobre este poço foi construída uma capela,
e canalizou-se a água para dois pavilhões diferentes, um para os homens e outro para as
mulheres. A semelhança com Lourdes (onde a Virgem apareceu vinte e três anos
depois) é marcante. A água de Sarov tinha todas as propriedades da de Lourdes, mas era
ainda mais fria, com uma temperatura não superior a 4 graus. Entretanto, como em
Lourdes, nunca foi registrado nenhum caso de congelamento e os banhistas, ao saírem,
diziam sentir um bem-estar extraordinário.

O Higumeno Nifonte.

"Ninguém é profeta em seu país" diz a Bíblia. Quanto mais gente o Pe. Serafim recebia,
quanto mais milagres fazia, mais os monges do Deserto de Sarov olhavam-no com
suspeita e animosidade. O Padre Abade, sobretudo, desaprovava este velhinho
inconformista cuja presença transtornava o ritmo normal da vida monástica. Há um
"instantâneo" — de autoria do Pe. Antônio, higumeno do mosteiro de Vissokogorsk,
visitante assíduo do Deserto — que é revelador.

"Cheguei uma vez a Sarov, conta ele, para visitar o higumeno Nifonte que, segundo
diziam, estava seriamente doente. Para meu grande espanto, encontrei-o em perfeito
estado de saúde. Vendo minha surpresa, ele me contou o seguinte: "O Pe. Serafim veio
me ver e trouxe com ele um pedaço de pão preto que me deu dizendo: "Você está
doente, Padre. Pois bem, ordene que lhe preparem um caldo de peixe e tome-o,
comendo este pão; isso lhe dará forças e, com a ajuda de Deus, será curado! — "Que
está dizendo, staretz! Há um bom tempo que não como nada e não posso comer nada, e
os médicos me proibiram pão preto." — "Seus médicos não lêem os salmos. E nos
salmos está escrito, o pão fortifica o coração do homem. Então, coma um pouco deste
pão." Ele insistia tanto que eu não pude recusar. Os monges pegaram peixe e fizeram
um caldo. Pus-me a bebê-lo comendo o pão que o Padre Serafim trouxera, e ele me
controlava para que eu comesse tudo. Quando terminei, ele disse: "Assim é que é bom.
Agora, com a ajuda de Deus, você recobrará a saúde." Assim que ele partiu, senti uma
grande vontade de dormir, eu que há tanto tempo não conseguia pegar no sono.
Adormeci profundamente e despertei empapado de suor. A doença desaparecera. E
agora, vou muito bem, "

"Que você pensa disso, Padre Antônio, concluiu o higumeno de Sarov, será que nosso
Padre Serafim é realmente um taumaturgo?"

Diveyevo.

Porém nada do que o staretz fez ou disse exasperou os monges do deserto de Sarov
tanto quanto a fundação de um convento de mulheres. Entretanto, ele não agia por conta
própria, e sim cumpria ordens. "Em Diveyovo, dirá ele, não dei um passo, não preguei
um prego contra a vontade da Mãe de Deus, a Santíssima Virgem Maria."

Tudo começou quando ele ainda era diácono. Uma vez, ao ir para o enterro de um rico
benfeitor do mosteiro, o Padre Pakhôme, superior de Sarov na época, acompanhado do
hierodiácono Serafim, parou em Diveyevo para saber notícias de uma enferma, a
piedosa viúva Ágata Melgunov que, durante muitos anos, vivera neste pobre lugarejo do
qual se tornara benfeitora. Para seus habitantes, construíra uma igreja e, no fim de sua
vida, com a benção do higumeno de Sarov, fundara ali uma pequena comunidade.

Sentindo que o fim estava próximo, Ágata pediu a extrema unção e entregou ao
Superior do Deserto três pequenos sacos — um cheio de ouro, outro de prata, o o
terceiro com moedas de cobre — tudo o que restava de sua fortuna, outrora
considerável, pois antes de se entregar a Deus ela havia sido uma nobre dama, viúva do
rico coronel Melgunov. Ao lhe confiar suas pequenas economias, a moribunda suplicou
ao Pe. Pakhôme que nunca abandonasse suas "órfãs" as irmãs de sua jovem
comunidade.

"Minha Mãe — teria respondido o ancião — não quero mais nada, senão fazer a sua
vontade. . . Mas sou idoso e só Deus sabe quanto tempo de vida me resta. Enquanto que
o hierodiácono Serafim, que aqui está, é jovem e vivera o bastante para ver sua
comunidade crescer e se desenvolver. É a ele que deve confiá-la. A própria Santa
Virgem o instruirá e lhe mostrara o que deve fazer." Profecia que levou tempo para se
cumprir.

Passando por Diveyevo dois dias depois, os Padres encontraram a santa monja em seu
caixão e concelebraram uma missa de requiem. Era dia 13 de junho de 1789 e chovia a
cântaros. Porém, após o enterro, ao invés de compartilhar uma refeição com as
mulheres, o jovem hierodiácono Serafim, ainda misógino, partiu sob a chuva torrencial
para atravessar a pé os doze kilômetros que separavam Diveyevo de Sarov.

Ágata e suas órfãs . . . essas palavras encontraram eco no coração do filho de sua xará, a
comerciante de Kursk? Em todo caso, aparentemente sem se preocupar com as monjas
de Diveyevo, ele se retirou para a floresta, enclausurou-se, e passaram-se os anos.

Porém eis que um dia — em 1823, quando após uma longa reclusão ele abriu aos
visitantes a porta de sua cela — o Pe. Serafim, aos 64 anos de idade, mandou buscar
Michel Manturov que ele recém havia curado e a quem aconselhara fazer voto de
pobreza. Michel vendera todos os seus bens e, tendo deixado de lado todo o dinheiro,
como desejava o staretz, instalava-se, em companhia de sua mulher alemã, em uma
casinha que comprou em Diveyevo, suportando pacientemente as zombarias de seus
amigos e o mau humor de sua esposa.

Quando o jovem se apresentou, o staretz pegou uma pequena estaca, fez o sinal da cruz,
beijou a estaca e pediu que Manturov fizesse o mesmo. Em seguida, cumprimentou-o,
curvando-se até o chão e disse: "Vá, batiushka, a Diveyevo.

Chegando lá, coloque-se de frente à janela da nave da igreja de Nossa Senhora de Kazan
(construída pela Mãe Ágata). Em seguida, você dará X passos (o número exato foi
esquecido), e se encontrará em uma trilha; de lá, contará X passos e chegará a uma
lavoura; mais X passos e chegará a um prado. La, no centro — bem no centro — você
plantará esta estaca. É isso, batiushka, que eu peço que você faça."

Manturov partiu e, chegado a Diveyevo, ficou surpreso de encontrar tudo exatamente


como o staretz havia indicado. Plantou a estaca e voltou a Sarov onde o Padre Serafim o
recebeu exultando de alegria.

Passou-se um ano. Como o staretz não falava mais da pequena estaca, Michel Manturov
concluiu que ele a esquecera. Porém um belo dia o Padre Serafim o chamou novamente
e, desta vez, confiou-lhe quatro pequenas estacas.

— Veja, Batiushka. Vá de novo a Diveyevo e lá, em volta da pequena estaca plantada


no ano passado, fixe, a uma distância sempre igual, estas quatro estacas. E para maior
segurança — a fim de que a localização fique bem marcada — junte um punhado de
seixos e cerque cada estaca com alguns deles."

Quando Manturov voltou, o staretz, sem uma palavra, curvou-se até o chão. E,
novamente, a extraordinária irradiação de seu rosto impressionou o jovem.

O que significava esta estranha pantomíma? Como podia o Pe. Serafim, que não havia
posta os pés em Diveyevo desde o enterro da Madre Ágata em 1789, conhecer, 34 anos
depois, a distância exata entre as lavouras e os prados atrás da Igreja? Em todo caso, foi
neste momento que tudo começou.

Uma nova comunidade nasceu. A "Comunidade do Moinho" (chamada assim por causa
do moinho que alimentava as órfãs, construído no lugar marcado pelas estacas) deveria
ser nitidamente diferente da antiga comunidade da Madre Ágata. Somente virgens
poderiam fazer parte dela, e a própria Virgem Maria seria a Superiora.

Não se sabe precisamente em que momento Ela deu as ordens ao Pe. Serafim. Mas uma
vez plantadas as estacas — em uma terra que ainda não lhes pertencia — ele pôs mãos à
obra. O Padre Abade Nifonte fê-lo pagar a madeira que ele pegava na floresta de Sarov
para a construção do moinho, e enviou inspetores a Diveyevo. "O Pe. Serafim nos afana
tudo" dizia. Porém o moinho — graças à ajuda de um camponês devoto — foi
construído o pôs-se a moer. Sete irmãs viveram ali, dormindo sobre pedras de moinho
até o frio de outubro quando ficaram prontas as primeiras celas.

Quem eram estas irmãs? Jovens aldeãs escolhidas pelo Pe. Serafim com a aprovação da
Celeste Superiora. Se sua escolha Lhe desagradava, ele mandava a postulante para a
Madre Xênia, mulherzinha seca, rude e iletrada, mas de um espírito indomável, que
dirigia a comunidade da Madre Ágata.

— Pedi às senhoritas que viessem — elas não quiseram, dirá o Padre Serafim.

"Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sabias; e Deus
escolheu as coisas fortes deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as
coisas vis deste mundo e as desprezíveis" (l Cor l:27-28). Eis o que a Virgem Maria,
"humilde serva" escolhia com um objetivo que só seria conhecido anos mais tarde.
As recrutas do Padre Serafim não eram todas entusiastas. A penúria em que a
comunidade seria obrigada a viver amendrontava seu bom senso camponês. Em que
aventura o staretz se lançava?

— Não, Batiushka, não! Não quero, não posso! gritava a bela Xênia Putkov, filha de
ricos latifundiários; noiva de um jovem que amava, à qual o staretz pedia que tomasse
os véus. Mas ele replicava: Escute, minha alegria. Vou lhe contar um segredo.

Por enquanto, não o revele a ninguém: Foi a Própria Mãe de Deus que escolheu a
localização desta comunidade. Tudo o que Ela quiser nos dar, nós teremos: um moinho,
em seguida uma igreja. Veja, minha alegria, teremos tudo, terras para nós. . .

Mas por enquanto não havia nada e estas promessas pareciam inverossímeis ao senso
prático da rica camponesa.

— Você diz que me ama e não quer acreditar em mim — insistia o staretz.

"E — contava, em sua velhice, a bela Xênia, futura Madre Capitolina — ele aparecia de
repente irresistivelmente sedutor, todo luminoso."

Ainda assim, uma jovem veio — Helena Manturov, irmã de Michel. Menina mimada de
grandes olhos negros — bela, viva, charmosa — noiva aos 17 anos, tendo rompido sem
motivo seu noivado, ela teve, ao voltar do enterro de seu pai, uma visão terrível que a
orientou para a vida religiosa. Pareceu-lhe ver um enorme dragão negro avançar para
ela, cuspindo fogo. É verdade que ela estava sob a influência de seu primeiro contato
com a morte, ardendo em febre. Não obstante, ela levou a visão a sério, abandonou a
vida mundana, mergulhou em leituras edificantes e tudo o que queria era a tomada de
véu e a vida monástica. Porém o Pe. Serafim, que ela foi consultar, recebeu-a bonachão.

— Ih, Matiushka, que história é essa? Entrar no convento — que idéia! Você tem que se
casar, minha alegria!

Helena chorou; rogou à Santa Virgem, e seu desejo de entrar no convento só aumentou.
Depois de pô-la longamente à prova, o staretz finalmente a mandou para Diveyevo e
nomeou-a a "superior terrestre" de sua virginal comunidade.

Neste mesmo ano, um novo pároco foi nomeado na paróquia de Diveyevo: o Pe. Basílio
Sadovsky, de somente 25 anos de idade. O staretz amou este jovem padre de coração
puro e fez dele, apesar de sua juventude, o confessor de suas "órfãs."

As Igrejas.

Agora só faltava uma igreja para a Comunidade do Moinho. Novamente, o staretz


chamou Michel Manturov. "Minha alegria — disse ele — nossa pobre comunidadezinha
não tem igreja. As irmãs são obrigadas a frequentar a igreja paroquial onde se celebram
casamentos e batismos. Isto não está certo, pois elas são donzelas. A Rainha dos Céus
deseja que elas tenham uma igreja para elas. Então, minha alegria, vamos construir para
minhas órfãs uma igreja em honra da Natividade do Filho da Virgem."
— Com sua benção, Batiushka — respondeu alegremente Michel, sempre pronto a
executar as vontades de seu amado staretz. Ele ficou feliz de saber que o dinheiro que
havia deixado de lado após a venda de seus bens serviria à construção de uma casa de
Deus. Muitas pessoas já haviam proposto ao Padre Serafim ajudá-lo a construir uma
igreja em Diveyevo — ele havia sempre recusado.

— Lembre-se de uma vez por todas — dizia ele à bela Xênia que veio lhe falar de uma
oferta — que não é qualquer dinheiro que é agradável ao Senhor e a Sua Santa Mãe.
Nem tudo o que querem me dar entrará em meu convento, Matiushka. Existem alguns
quem a doação em si seria o bastante. Simplesmente a aceitariam. Porém, a Rainha do
Céu não aceita tudo o que lhe oferecem. Há dinheiro e dinheiro. Não raro ele é fruto da
violência, de lágrimas e de sangue. Não temos o que fazer com este dinheiro. Não
devemos aceitá-lo.

Este ponto de vista era idêntico ao dos loucos em Cristo que recusavam a esmola
oferecida por certos ricaços para aceitar a ajuda fraternal dos pobres de coração puro.

A Igreja ficou pronta em 1829 e foi sagrada, como queria expressamente o staretz, no
dia 6 de agosto, festa da Transfiguração do Senhor. Uma cripta dedicada à Santa Mãe de
Deus foi anexada e sagrada no ano seguinte, no dia 8 de setembro, festa da Natividade
da Virgem.

Mas poderia-se perguntar — por que tantas igrejas? Elas não são centros, não
geográficos porém cósmicos, de um universo destinado a ser eucarístico? Partindo da
igreja, a benção do óleo, do pão, do vinho e do trigo sacraliza os elementos de toda a
superfície da Terra.

— A terra sob nossos pés é santa — dizia o staretz. Todos os que nela vivem serão
salvos. Vocês sabem que o inimigo havia se instalado aqui e nas imediações. Porém o
misericordioso Senhor me permitiu expulsar aquele bando de satanás.

Os lugarejos de Diveyevo e Vestianovo tinham, com efeito, má reputação por causa da


presença de uma população operária miserável, empregada em minas de ferro das
redondezas, e tristemente conhecida por suas bebedeiras, brigas e crimes.

Com a chegada da Madre Ágata, a fundação dos conventos e a construção das igrejas, o
clima mudou, como mudou, após o batismo da Rússia, na cidade pagã de Kiev, como
mudou, na França, na aldeia de Ars quando ali chegou um santo pároco, como continua
a mudar em todo lugar onde a graça ganha terreno nas consciências e corações. Tudo o
que se passa no homem tem um significado universal. Será que ele se dá conta desta
temível responsabilidade.

O fervor cristão sempre multiplicou as igrejas. Os mornos as negligenciam. O ateísmo


militante se empenha em destrui-las. Em seu poema em prosa "Caminhada ao longo do
rio Oka" um escritor russo contemporâneo constata dolorosamente o desaparecimento
das igrejas. Os raros campanários que ainda estão erguidos nos campos no interior não
passam de edifícios transformados em granjas, nos quais os caminhões Kolkhosianos
entram de marcha-à-ré. Ao invés do som dos sinos chamando para a oração vespertina,
ele ouviu, ao se aproximar, a voz do caminhoneiro gritando para o colega que carregava
os sacos lá dentro: "Rápido, Victor! Vê se te vira! Vam'bora! Vamos dançar e ir ao
cinema esta noite!"

O Padre Serafim amava muito suas igrejas. "O que há de mais beIo, mais doce, mais
elevado do que uma Igreja? Onde nos alegraria-mos em espírito mais do que na Igreja,
na presença de nosso Senhor e Deus? Não há obediência mais importante do que a que
realizamos na igreja. Se com um pequeno esfregão apenas limparmos a poeira da Casa
de Deus, não ficaremos sem recompensa."

Depois que Helena Manturov pronunciou seus votos nas mãos do hieromonge Hilário
de Sarov, o staretz a nomeou sacristã com a bela Xênia Putkov como adjunta. Na
presença de seu pároco, o Padre Basílio, deu-lhes instruções precisas a respeito dos
ofícios e das normas do mosteiro. Dois monges de Sarov iriam ajudar o Pe. Basílio a
ensinar as irmãs as rubricas e o canto litúrgico. Sem nunca ir a Diveyevo, o staretz, de
longe, supervisionava tudo e queria que tudo fosse impecável. Fazia Questão que uma
vela ardesse constantemente, dia e noite, diante do ícone do Salvador na igreja da
Natividade, e que uma lamparina ficasse eternamente acesa embaixo, na cripta, diante
do ícone da Mãe do Verbo. Ele apreciava muito o simbolismo destas luzinhas que ele
dizia serem agradáveis a Deus e que fazia remontar a Moisés.

"Enquanto ele viveu — contava a bela Xênia — nós não sabíamos o que era comprar
velas. Traziam-lhe muitas e ele, nosso Batiushka, guardava tudo para Diveyevo.
Quando nós íamos vê-lo — sobretudo nos últimos tempos, antes de sua morte — ele só
falava de suas igrejas: "Vocês têm tudo o que preciam, Matushka? Não lhes falta nada?"
"Não, Batiushka" — "Graças a Deus, minha alegria, agradeçamos ao Senhor!"
murmurava ele fazendo rapidamente o sinal da cruz."

Entretanto, apesar da solicitude do santo ancião, nem sempre deixava de faltar algo: a
jovem comunidade era pobre, e as irmãs não ousavam importunar o staretz.

Um dia, tencionando colocar óleo na lamparina cuja chama perpétua iluminava o ícone
da Santa Virgem, a irmã Xênia constatou que a garrafa estava vazia. Aproximando-se
após a liturgia ela viu que, por falta de óleo, a lamparina estava apagada. O que fazer?
Não havia óleo nem dinheiro na comunidade. A dúvida invadiu o espírito da jovem. Se
durante a vida de seu batiushka suas diretrizes não podiam ser respeitadas, como seria
após sua morte? Tristemente dirigia-se à saída quando escutou um leve crepitar e,
voltando-se, viu que a lamparina, cheia de óleo, acendera novamente por si só. Feliz,
novamente serena, correu para contar o prodígio a Helena Manturov quando, perto da
porta, um camponês a chamou: "A senhora é a sacristã?" — "Sim, por que?" — "O Pe.
Serafim lhe recomenda que mantenha uma chama perpétuamente acesa diante do ícone
da Mãe de Deus. Assim, veja, trago 300 rublos. É para o óleo. E para que inscrevam
meus pais no necrológio e mencionem seus nomes em suas preces."

"Oh, Batiushka, pensou Xênia, agradecendo ao camponês, como se pode duvidar de


suas palavras?"

A Regra.
A regra com que a Soberana do Céu havia dotado a jovem comunidade era das mais
simples: seus fundamentos eram a oração de Jesus e a obediência. Três "Pai-Nosso" e
três "Ave-Maria" e a recitação do Credo, de manhã, `a tarde e `a noite, eram suficientes
à pratica cotidiana destas camponesas que, para ter o que comer, continuavam a
trabalhar no campo, acompanhando todavia — e isto era o mais difícil — suas
atividades cotidianas da oração do coração ininterrupta. Hesiquiasta convicto, o Pe.
Serafim não hesitara em fazer deste diálogo íntimo com o Senhor a própria base do
novo edifício. Entretanto, a leitura ininterrupta dos salmos na Igreja, por 12 irmãs
especialmente designadas para esta tarefa, era obrigatória, assim como o canto da
"Paraklisis" — um ofício à Virgem — nos domingos antes da liturgia.

Quanto à obediência, o Pe. Serafim se aplicava de todas as maneiras em tornar macia e


maleável a vontade de suas ovelhas. O fato delas serem todas virgens tornava as coisas
mais fáceis, segundo ele. "As viúvas — observava ele não sem um certo mau humor —
tendem a viver de recordações. "Como ele era bom, o defunto!" dizem, perturbando
assim a imaginação das donzelas. Ou, ao contrário, se a vida conjugal havia sido infeliz,
elas denigrem, por suas recriminações, a glória de um estado abençoado por Deus." Ele
observara também que a mulher, no casamento, adquire frequentemente uma vontade
própria difícil de ser quebrada na vida monástica. "Prefiro lidar com 8 moças do que
com uma só mulher!" afirmava.

As diversas obediências que ele impunha as irmãs da Comunidade do Moinho


frequentemente chegavam as raias do absurdo. Assim, mal chegavam a Diveyevo,
vindas de Sarov onde haviam trabalhado o dia inteiro, ele as fazia voltar ao "Deserto"
obrigando-as a percorrer 24 km a pé, sem ter tido tempo de descansar ou comer. Às
vezes, andando a noite toda, chegavam de madrugada à cela do staretz cuja porta estava
fechada. O melhor hierodiácono de Sarov, Nathanael, vivia ao lado. "Ele as faz
congelar, o velho!" dizia ele às jovens. "Entrem aqui para se aquecer um pouco."
Algumas entravam. O staretz ficou vermelho de raiva. "Eu as proíbo de ir lá!" gritou
ele. "Que espécie de hierodiácono ele é? Não é hierodiácono de Sarov!" Estranhamente,
Natanael se pôs a beber e foi expulso da comunidade do Deserto. Porém acontecia
também que jovens monjas rebeldes ao jugo, decidiam deixar a Comunidade do
Moinho. Sempre misteriosamente chamadas no momento exato em que se preparavam
para partir, vinham se jogar aos pés do Padre a quem não precisavam confessar sua
tentação — ele sabia.

Milagres.

À obediência cega — ato de fé — correspondia o milagre. Assim, durante a devastadora


epidemia de cólera de 1830, o staretz, previu que ninguém cairia doente, nem no
convento nem no exterior, com a condição que não saísse sem benção. A vida cotidiana
das irmãs era povoada por pequenos milagres que elas acabavam considerando como
parte de sua existência sob a conduta de seu Batiushka. Quer se tratasse de um cavalo,
carregado demais, incapaz de subir uma ladeira; de uma colheita de batatas, do moinho
que, em um dia de muito vento, girava perigosamente — o milagre intervinha sempre.

Enviadas pelo staretz, algumas irmãs colhiam frutinhas na floresta. Um guarda florestal
a cavalo quis enxotá-las e ergueu sobre elas seu chicote. Porém o chicote caiu-lhe das
mãos e ele não conseguiu reencontrá-lo. Ele até ficou chateado, coitado, pois o chicote
não lhe pertencia. Quando as irmãs contaram o incidente ao staretz, ele se pôs a rir. "Ele
pode procurar à vontade disse. O chicote esta é debaixo da terra."

O pequeno milagre quase cotidiano estava destinado a reforçar uma fé desprovida de


qualquer base intelectual? A maioria das religiosas camponesas de Diveyevo não
haviam sequer frequentado a escola.

"O Padre me falou muito sobre a vida eterna" — lê-se frequentemente em declarações
feitas por algumas delas, inscritas na crônica de Diveyevo. Mas elas eram incapazes de
dizer em que consistia este ensinamento. Por outro lado, lembravam-se muito bem do
dia em que viram seu Batiushka andar em um prado por cima da relva; do dia em que
uma futura irmã, instantaneamente curada de uma paralisia nas pernas, pôs-se a enfeixar
feno com elas; ou ainda do dia em que, após trabalhar exaustivamente, o staretz lhes
havia servido, em sua cela florestal, uma suculenta refeição sem carne preparada não se
sabe como nem com o quê, enquanto que ele próprio comia uma velha casca de pão que
elas haviam encontrado suspensa na ponta de um barbante em seu retiro.

O clima paradisíaco que cercava o homem de Deus, ao qual os animais haviam sido
sensíveis, triunfava sobre os determinismos e as limitações da matéria? "Cristo
ressuscitou,!" clamava o staretz. Nele, um mundo transfigurado surgia à luz do Espírito.
Para ele, não havia portas fechadas. O milagre florescia, sinal do retorno ao Paraíso.
Mas, podemos nos perguntar ao lermos na Crônica de Diveyevo relatos dos
contemporâneos do staretz tão simples, mas tão palpitantes de vida — Manturov, o
Padre Basilio, as próprias irmãs — porque esta prodigalidade descabida, inútil, esta
avalanche de maravilhas derramada sobre rudes aldeãs de uma província qualquer no
centro da Rússia? Por que este interesse, excepcional, que a Virgem tinha na fundação e
desenvolvimento da Comunidade do Moinho? A luz dos acontecimentos que se
desenrolaram em seguida, torna-se claro que uma visão profética do futuro era
subjacente a tudo o que se passava em Diveyevo. Monjas semelhantes às que, em
Diveyevo, andavam, por obediência, 24 km em jejum, terão, cem anos mais tarde, a
força de vontade necessária para jejuar, durante a Quaresma, nos campos de
concentração em regime de fome; preferirão ficar de pé um dia inteiro, imóveis na água
gélida da neve derretida, do que trabalhar no dia da Páscoa, suscitando através de
heróicos testemunhos a curiosidade e a admiração dos descrentes.

A Igreja russa tem poucos santos canonizados. A História russa, por outro lado, conhece
poucas — ou nenhuma — cortesãs. A santidade da Rússia está espalhada entre suas
mulheres. Em diversos níveis, elas são portadoras de seu ideal. Um bom exemplo é
dado por um retrato de mulher esboçado por Leon Tolstoi. Trata-se de sua tia que lhe
serviu de mãe quando ele ficou órfão.

"O que mais me impressionava e influenciava nela era sua surpreendente bondade para
com todos, sem exceção. Tento inutilmente me lembrar de pelo menos uma vez que ela
houvesse se irritado, dito uma palavra dura, emitido um julgamento. Em trinta anos de
vida não consigo me lembrar que ela o tenha feito sequer uma vez! Ela nunca ensinava
por palavras como se devia viver, nunca fazia "sermões. "Todo seu trabalho espiritual
era no interior, e no exterior só se viam seus atos — nem mesmo seus atos, mas sua
vida, calma, doce, resignada, amorosa, não de um amor inquieto, voltado para si mesma,
mas de um amor pacífico e como que secreto. Ela trabalhava em uma obra de amor
interiorizada, e por isso a pressa lhe era impossível. E estes dois dons — a paz e o amor
— faziam-na atraente e o convívio com ela encantador. Era alegre o ambiente de amor
que a cercava — de amor pelos presentes e ausentes, pelos vivos e pelos mortos, pelos
homens e também pelos animais."

A paz. O amor. A resignação. A alegria. Este retrato não lembra Serafim de Sarov?
Uma mulher como a tia de Tolstoi foi modelada por uma espiritualidade idêntica à sua.

O instinto maternal é muito desenvolvido na mulher russa — mesmo para com o


homem que ela ama. Ela tende a se compadecer de suas fraquezas, mais do que lançar
mão de seus encantos, para conquistar sua força. Ao falar, em "A Mulher e a Salvação
do Mundo" da mulher em geral, é particularmente na mulher russa que o teólogo
contemporâneo Evdokimov deve ter pensado. "Ela tem o carisma maternal de dar à luz
o Cristo nas almas dos homens. A ela cabe a tarefa de reerguer o zelo masculino que cai
tão frequentemente — e cada vez mais — na profanação dos mistérios e na perda dos
valores espirituais. Nas condições atuais de vida, a santidade esta mais arraigada na
mulher do que no homem. Toda mulher tem uma intimidade inata, quase uma
cumplicidade com a tradição, a continuação da vida." É nesta faculdade feminina de
"guardar estas coisas no coração" (Luc 2:51) que a Virgem apostava ao tomar o título de
Superiora da Comunidade do Moinho. Ela previa — e fazia com que seu eleito Serafim
previsse, ele próprio, que para salvaguardar a fé em um pais devastado pelas
perseguições e ameaçado de descristianização, eram necessários não os corações
sobrecarregados por um excesso de ciência humana, mas corações partidos — como o
Seu ao pé da Cruz — por um paroxismo de sofrimento.

A Morte.

Neste refúgio de promessas divinas, o Gólgota já projetava sua sombra. A Rússia estava
em guerra com a Polônia.

Indo ao encontro do exército, o general Kuprianov parou em Sarov, conheceu Michel


Manturov e, encantado com sua personalidade aberta e amável, impressionado pelo
senso prático e desinteresse com que se ocupava dos negócios do staretz, pensou que ele
seria um intendente ideal para gerir seus domínios enquanto ele lutava no Oeste. O
staretz, por outros motivos, foi da mesma opinião.

— Querem te levar, minha alegria — disse ele a seu fiel "Mishenka"(diminutivo


afetuoso de Michel) — que fazer? Você me prestou um bom serviço. Vá agora prestar
serviço em outro lugar. Os camponeses do general são pobres, abandonados, sua vida é
dura. Não se deve abandoná-los. Ocupe-se deles, minha alegria. Seja bom para eles.
Trate-os com delicadeza. Eles o amarão, o escutarão, voltarão para Cristo. É
principalmente por isto que o envio. Leve sua mulher com você. E voltando-se para Ana
Manturov:

— Seja para ele uma mulher sábia. Esse nosso Mishenka é "muito estourado." Não
permita que ele se descontrole, é preciso que ele a escute.
Ela estava contente de partir. A eterna penúria em que o casal vivia era-lhe dolorosa. No
começo — mesmo não o abandonando — ela o criticava constantemente. Mas, como
ela própria conta em suas memórias, ele não fazia mais do que suspirar. A perspectiva
de ganhar um pouco de dinheiro lhe sorria.

Nos domínios do general, o casal encontrou desorganização, camponeses vagando como


ovelhas sem pastor. Muitos deles, em desespero, haviam entrado em seitas de velhos
crentes. Ao colocar em ordem os negócios do general, Michel adquiriu sua confiança.
Muitos deles voltaram à Igreja, especialmente após uma epidemia de febre maligna
durante a qual vários doentes foram curados pelas orações do Padre Serafim e pelo
conselho que ele deu a Manturov de fazê-los comer pedacinhos de pão preto, sem outros
remédios. A região era pantanosa. A malária proliferava em estado endêmico. Ao fim de
dois anos, também Michel caiu doente e escreveu à sua irmã, rogando-lhe que pedisse a
ajuda do staretz. Acompanhada da bela Xênia, ela foi a Sarov.

— Você sempre me obedeceu — disse-lhe o ancião. Pois bem, minha alegria, eu queria
lhe dar uma obediência.

— Sou toda ouvidos, Batiushka.

— Veja você, minha alegria, teu irmão Michel está muito doente. Ele está para morrer.
Porém eu ainda preciso dele para o convento, para as órfãs. Então, a obediência de que
quero a encarregar é a seguinte: morra em seu lugar.

— Com a sua benção, Batiushka — respondeu Helena, muito calma.

Ele reteve-a por muito tempo, falando-lhe da vida eterna. Ela escutava sem dizer uma
palavra.

— Batiushka! — gritou de repente. Tenho medo da morte!

A esta família excepcional, o staretz pedia coisas extraordinárias: ao irmão — o


sacrifício da fortuna; à irmã — o sacrifício da vida. No convento, ela tinha uma rotina
ascética, comendo apenas batatas assadas no forno e bolachas que pegava de uma bolsa
suspensa na entrada de sua cela. "Como? Já não tem mais?" espantava-se a irmã
cozinheira. "Acabei de encher a bolsa." — "Não fique zangada respondia delicadamente
Helena — desculpe-me. É meu fraco — eu adoro essas bolachas!" Ela dormia sobre
uma pedra coberta por um tapete esgarçado e dava tudo o que tinha, sempre às
escondidas. Era amada por sua grande bondade. Não raro, na igreja, ao passar por uma
irmã necessitada ou uma peregrina indigente, ela lhe punha algum dinheiro na mão
murmurando: "Tome, Matushka, pediram-me para lhe passar isso. . ."

De um temperamento frágil, emotivo, nervoso, sujeita a visões diabólicas, Helena


sempre tivera medo da morte. Pressentia com pavor a desaparição próxima do staretz e
dizia que não queria sobreviver a ele. Pedindo-lhe que morresse antes dele, ele satisfazia
seu desejo? Alguns diziam que Helena, tuberculosa, estava condenada de qualquer
forma e que o staretz sabia disso. Durante muito tempo, ela mantivera em sua cela e
cuidara com amor de sua antiga dama de companhia, Uistínia, que jamais consentira em
se separar dela. Ora, Uistínia era tísica. Alguns dias antes de sua morte, ela teria dito a
sua antiga patroa: "Vi em sonho um belo jardim. E uma voz me disse: Este jardim é teu
e de Helena Vassilievna (nome e patrônimo, em Russo: Helena, filha de Vassily). Logo
ela virá se juntar a ti."

Mesmo levando em conta tudo isso, o staretz tinha direito de apressar sua morte? Ele
tinha o dom de curar. Não poderia curar a jovem se ela estava doente, e também seu
irmão Michel?

Ao grito desesperado de Helena. "Batiushka, tenho medo de morrer!" ele respondeu


delicadamente: "Ter medo não é para nós, minha alegria. Para você e para mim, será a
felicidade."

Ela se despediu mas, mal passou a soleira da porta, caiu desmaiada. O staretz deitou-a
no caixão que guardava na entrada (coisa que não deve tê-la tranquilizado quando a
pobrezinha recobrou a consciência), aspergiu-lhe água benta, deu-lhe de beber.

Ao voltar para Diveyevo, Helena se acamou. "Não me levantarei mais" disse.


Impressionável como era, não é de surpreender que o choque que acabara de levar tenha
precipitado seu falecimento. Partiu de uma forma bela, munida dos sacramentos da
igreja, envolvida em visões celestes. Era véspera de Pentecostes. Contava-se que no dia
seguinte, enquanto se cantava, na liturgia, o Hino dos Querubins, Helena Vassilievna, à
vista de toda a assistência, teria sorrido três vezes, com o rosto radioso, em seu caixão
exposto.

— Por que chorar? Como vocês são tolas ao chorar, minhas alegrias — dizia o staretz à
bela Xênia e as irmãs inconsoláveis com a perda de sua "superiora terrestre" — Vocês
deveriam tê-la visto pegar impulso e voar para o Reino de Deus: ela agora é dama de
honra da Rainha do Céu. . .

A Primeira Andorinha.

Entretanto, houve uma morte que o ancião lamentou. No momento em que recrutava
postulantes para sua nova fundação, a irmã Parasceva veio lhe ver em companhia de sua
caçula que, no dizer da primogenita, havia lhe seguido "como um cãozinho." Apesar de
sua pouca idade — tinha apenas 13 anos — ela insistia em querer entrar no convento.
Reservada, silenciosa, ela impressionou o staretz por apresentar algo de severamente
angélico em sua beleza juvenil. Sem sequer lhe dar tempo de voltar para casa, mandou-a
para Diveyevo. Enquanto aquela maravilhosa adolescente viveu, foi sua preferida. Ele
tinha por ela um carinho todo especial. Somente a ela falava de suas visões, confiando-
lhe segredos a respeito do futuro.

— O indigno Serafim poderia enriquecê-las se quisesse — dizia. Mas isto não lhes
serviria de nada. A abundância, para vocês, não aumentara; a escassez não diminuirá.
Nos últimos tempos, vocês conhecerão a abundância, mas então será o fim.

Sentado em um tronco, traçava o plano do convento*, como ele seria depois de sua
morte, com sua muralha de pedra, diversas igrejas, um campanário, novos alojamentos,
um refeitório, uma hospedaria. "E as terras?" perguntavam as irmãs — "Elas serão
nossas.
 

* Um destes planos estava conservado em Diveyevo antes da Revolução.

O Czar virá com toda sua família. O grande sino soará. Beng! Beng! (o staretz imitava o
som do sino). Em pleno verão, serão cantados hinos pascais. Mas esta alegria durará
pouco."

O rosto do ancião tornava-se sombrio. Abaixava a cabeça e lágrimas rolavam por suas
bochechas.

— A vida será curta então — suspirava. Os Anjos mal terão tempo de recolher as almas.

Dizia mais outras coisas — incompreensíveis — que a jovem Maria tentou transmitir
para as irmãs antes de morrer. Tratava-se de coisas que flutuavam, vagavam no mar,
que voavam no ar — grandes partidas. "Preparem sacos e lapti-(sapatos de casca de
bétula) — precisarão deles. Preparem o máximo que puderem: um par nos pés, outro na
cintura — nunca se sabe. . ." Quem poderia imaginar que, cem anos mais tarde,
aconteceria o êxodo e a dispersão dos Russos?

Ela própria partiu bem antes da hora — aos 19 anos de idade. Durante toda sua curta
vida, havia sido a imagem da obediência. Um dia, quando sua irmã Parasceva lhe falava
de um certo monge de Sarov, perguntou ingenuamente: "Como são os monges?
Parecem-se todos com Batiushka?"

— Você vai sempre a Sarov e nunca viu um monge?

— Não, nunca. Quando vou a Sarov, não vejo nada, não ouço nada. Batiushka me falou
para nunca olhar os monges. Então coloco meu xale sobre os olhos de forma a ver
somente o caminho de meus pés."

O staretz conheceu em espírito a hora da morte da doce criança que ele amava. Pôs-se a
chorar e disse a seu vizinho de cela, frei Paulo: "Maria deixou este mundo, Paulo.
Tenho saudades dela. Tenho tantas saudades que, como você esta vendo, não paro de
chorar."

Enviou círios em profusão para queimar em seu enterro, ordenou que a vestissem com
"a maior pompa." Entre seus dedos, enrolaram um rosário de couro, presente do staretz,
e ao redor de sua cabeça, amarraram o belo xale azul de franjas que ele lhe dera para os
dias em que ia comungar. A velha criança de olhos límpidos que o Padre Serafim era,
sentia-se aparentada em espírito à camponesinha, primeira andorinha de seu convento,
que partiu para a primavera sem fim do Reino. "No outro mundo, suspirava ele, ela será
sub-prioresa da Comunidade do Moinho e minha noiva na eternidade."

O que sabia ele da morte?

Uma vez, conseguiu fazê-la recuar. Era meia-noite quando um habitante do vilarejo
vizinho, Vorotilov, se jogou aos pés do staretz de Sarov, implorando-lhe que salvasse
sua mulher moribunda. "Ela deve morrer" respondeu ele. Mas de joelhos, soluçando,
Vorotilov suplicou ao homem de Deus que rezasse por sua esposa. O staretz fechou os
olhos. Ao fim de algum tempo, abriu-os, brilhando de felicidade. "Muito bem, minha
alegria, disse, erguendo Vorotilov, volta para casa. O Senhor concede a vida à tua
mulher." Voltando para casa, Vorotilov soube que uma melhora decisiva se produzira
no momento em que, em Sarov, o staretz havia orado pela enferma.

Grande é o poder do homem. Do homem teleguiado pelo Espírito. Jesus proclamara:


"Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim também fará as obras
que Eu faço, e as fará maiores do que estas" (João 14:12). Serafim de Sarov já fazia
suas incursões neste "outro mundo" onde se vê diferente, onde se julga de outra forma,
onde existe alegria enquanto aqui embaixo há choro, e onde desaparecem, para os
mortais comuns, as almas dos defuntos. Ele orava muito pelos mortos. Às vezes,
segundo suas próprias palavras, chegava a arrancar do furor dos demônios as almas que
eles impedem de subir para as esferas celestes. (Santa Tereza D' Avila tinha o mesmo
poder).

Tristes Pressentimentos.

Sua própria morte se aproximava. Ele sabia disto. As multidões, cada vez maiores, que
invadiam o Deserto e perseguiam-no na floresta, fatigavam-no. Era também dolorosa a
animosidade do higumeno Nifonte e da maioria dos monges em relação a sua obra
preferida — o convento de Diveyevo. Mas pior do que tudo era a atitude insincera e
melosa daquele que se revelaria como inimigo numero l da amada fundação.

Pequeno burguês da cidade de Tambov, Ivan Tikhomontch Tolstosheyev, noviço de


Sarov, dotado para a pintura, possuidor de uma bela voz, não era desprovido nem de
qualidades nem de charme. Chamavam-no "o pintor." O staretz havia se enganado,
daquela vez" Haveria ele feito do jovem seu confidente? As memórias que mais tarde
este publicou seriam um indício de que sim. Finalmente lúcido, o Padre Serafim teria se
retraído em seguida, deixando o coração de Ivan tomado por uma espécie de amor-ódio?
Inteligente e ambicioso, ele decidiu fazer carreira apresentando-se após a morte do
staretz como seu discípulo preferido e seu sucessor em Diveyevo.

"Quando eu ia a Sarov" lê-se nos depoimentos de Michel Manturov, feitos após a morte
do staretz e anexados à Crônica de Diveyevo, "eu não via nada de errado em Ivan
Tikhonov. Mesmo achando-o pouco simpático, entrava na casa dele se me convidava
para tomar um chá. Um dia, Batiushka me perguntou de onde eu vinha. Eu disse: "Eu
estava tomando chá em casa do pintor de Tambov" respondi. "Ah, minha alegria, não
vai lá, não! Vai te fazer mal. Ele não te convida com o coração puro, mas para espionar.
Desde então, suspendi minhas visitas. E extraordinário como Batiushka sabia tudo de
antemão e como nos protegia de todo mal."

As irmãs também eram prevenidas:

— Minha Alegria — dizia à Madre Eudóxia — eu as coloquei no mundo


espiritualmente e não as abandonarei. O Padre Ivan quer que depois de minha morte
vocês lhe sejam dadas. Não, eu não as darei a ele! Seu coração e o de seus seguidores
serão frios para com vocês. Ele diz: "Você está velho, Batiushka, me dê suas meninas"
mas pede com o coração frio. Você lhe dirá, Matushka, em meu nome, que vocês não
são da conta dele." O que ela fez na hora certa.

"O coração frio" repetia o staretz, angustiado. Ivan Tikhonov teria o coração frio. Por
que o staretz tinha tamanho medo da frieza do falso discípulo? Porque o demônio é frio,
ele que é o pai da mentira.

A irmã Ana conta que um dia ela se encontrava perto da fonte milagrosa em companhia
do Padre que, apoiado na rampa, inclinava-se sobre a agua. "Veja, Matiushka. . . . —
disse ele de repente. Vi a agua ficar turva, agitada e, apavorada, perguntei: "O que isto
quer dizer? Neste exato momento eu vi Ivan Tikhonov descendo a ladeira. Batiushka
apontou para ele. "É ele que vai perturbar tudo. Ele perturbou a mim, o mísero Serafim,
e também a fonte, e perturbará todo o mundo."

A Gloriosa Rainha do Céu.

Nas horas difíceis que precederam sua morte, quando o staretz sofria ao pensar nos
estragos que aquele homem falso e sem escrúpulos iria causar no feudo de sua
Soberana, a Rainha do Céu vinha reconfortar aquele que Ela chamava de "Liubimitche
Moï" — expressão popular carinhosa introduzível — alguma coisa entre "meu amado" e
"meu preferido."

"Uma vez" conta o Padre Basílio Sadovsky em suas memórias, "três dias depois da festa
da Assunção da Santa Virgem, fui ver o Padre Serafim e encontrei-o só em sua cela.
Recebeu-me muito bem e me falou da vida dos santos que agradam a Deus, dignos de
diversas graças, de visões maravilhosas, e até de visitas da Rainha do Céu em pessoa.
Depois de me falar longamente sobre isto desta maneira, ele me perguntou: "Você tem
um lenço, Batiushka?" Respondi que sim. — "Dê-me." Eu lhe dei. Ele desdobrou-o e,
tirando de um potinho, aos punhados, biscoitinhos brancos diferentes de tudo que eu já
tinha visto, pôs-se a encher meu lenço. "Eu também fui visitado por uma rainha" dizia,
"eis o que resta de sua passagem." Enquanto dizia isto, seu rosto estava tão feliz, tão
radioso, que é impossível descrever. Ele mesmo deu um nó bem apertado no lenço. "Vá
para casa, Batiushka, come destes biscoitos, dê deles para tua "amiga" (é assim que ele
sempre chamava minha mulher); depois vá à comunidade e põe três biscoitos na boca de
cada uma de tuas filhas espirituais."

"Eu ainda era jovem" continua o Padre Basílio. "Não compreendi que a Rainha dos
Céus o havia visitado. Pensei simplesmente que uma rainha terrestre havia vindo ver-lhe
incógnita, e não ousei perguntar-lhe qual. Somente mais tarde é que o homem de Deus
me explicou de quem se tratava. "A Rainha do Céu — Ela mesma, a Rainha do Céu,
Batiushka, visitou o pobre Serafim. Que alegria para nós, Batiushka! A Rainha do Céu
cobriu o pobre Serafim com Sua graça inefável. "Liubimitche Moï — meu preferido —
dignou-se a dizer a bendita Soberana, pede-me o que quiseres." Está ouvindo
Batiushka? Que dádiva!" Ao dizer estas palavras, o homem de Deus, transbordante de
alegria, tornava-se todo luminoso. "E o pobre, o miserável Serafim rogou à Mae de
Deus por suas órfãs, pedindo-lhe que todas fossem salvas. E a Mãe de Deus prometeu
ao pobre Serafim esta alegria inefável. . ."
Um ano e nove meses antes de sua morte, o staretz teve a felicidade de receber uma
ultima vez — a décima segunda — a Visitante Celeste. Foi na madrugada de 25 de
março de 1831, dia da Anunciação. (O Santo pároco de Ars, seu contemporâneo, a viu
também 12 vezes).

A Madre Eudóxia foi testemunha desta visão, como outrora o Monge Michel, no
Mosteiro da Santíssima Trindade, fora testemunha da última aparição da Toda Pura a
São Sérgio.

Após orar, o staretz disse à religiosa: "Não tenha medo. Aproxime-se de mim."

No mesmo momento, ouviu-se um barulho semelhante ao do vento na floresta. Uma luz


celeste jorrou. Cânticos ressoaram. A cela encheu-se de perfumes.

O staretz caiu de joelhos, e com os braços erguidos ao Céu, exclamou: "Ó Virgem
Bendita e Puríssima Soberana, Mãe de Deus!"

Dois anjos apareceram, trazendo palmas.

Então Ela entrou, precedida pelo Precursor e por São João Evangelista que Ela tomara
por filho ao pé da Cruz e que sempre A acompanhava. Doze virgens a seguiam, com os
cabelos de ouro caídos sobre os ombros resplandescentes de pedras preciosas. Incapaz
de suportar a visão, a religiosa caiu por terra e perdeu a consciência. Foi a própria
Virgem que a pegou pela mão e a ergueu.

Madre Eudóxia viu então que o staretz não estava mais ajoelhado diante de sua
Soberana Celeste, porém de pé, conversando com Ela de igual para igual, na maior
simplicidade. Quanto à Rainha do Céu, falava-lhe familiarmente, como a um parente
próximo.

A conversa durou muito tempo, mas a Madre Eudóxia só ouviu as últimas palavras:

"Meu Preferido — Liubimitche Moi" — disse a Toda Pura — em breve você estará
conosco."

E a deslumbrante visão desapareceu.

Uma tal intimidade com a Theotokos pode parecer estranha, até mesmo chocante, ao
ponto de prejudicar o testemunho da Madre Eudóxia. Entretanto, um homem como São
Simeão o Novo Teólogo afirma a possibilidade de um tal contato: "Aquele que se
enriqueceu com a riqueza celeste, quero dizer, com a presença e a permanência daquele
que disse: "Eu e meu Pai viremos e faremos nele nossa morada", este sabe, do
conhecimento da alma, a grandeza da graça que recebeu e a beleza do tesouro que
carrega no castelo do coração. Como um amigo conversando com outro, posta-se perto
de Deus, entregando tudo na presença d’Aquele que habita na luz inacessível. Feliz do
que crê nisto: Três vezes feliz aquele que se esforça, pela prática e pelos santos
combates, em adquirir o conhecimento daquilo que dissemos: é um anjo, para não dizer
mais, aquele que pela contemplação e pelo conhecimento conseguiu chegar à elevação
deste estado. Ele está perto de Deus, filho de Deus".
 

Terceira Parte
— O Espírito Santo.
 

O Portador de Uma Mensagem.

Tornara-se Serafim de Sarov um daqueles homens, únicos em uma geração — segundo


Isaac o Sírio — que, levados pela oração perpétua, fruto do Espírito Santo, atingem o
auge da espiritualidade cristã? "Homem celeste e anjo terrestre" eleito da Virgem, antes
de deixar a terra, restava-lhe uma mensagem a difundir? Sim.

O escolhido para seu porta-voz não era monge nem clérigo, como Michel Manturov, um
jovem fidalgo dos arredores, um grave enfermo. Filho único, tendo perdido seu pai
cedo, Nicolau Motovilov fez estudos universitários, viveu como se vive no mundo,
pecou e sofreu. Atingido por uma doença incurável na época — provavelmente uma
esclerose — consultou em vão, como ele próprio dizia, alopatas, homeopatas e
renomados cirurgiões tanto na Rússia quanto no exterior. Desesperado, pediu que o
levassem a Sarov para pedir as orações do célebre Staretz Serafim.

"Cheguei no deserto de Sarov no dia 5 de setembro de 1831 — escreveu em suas


memórias. E, nos dias 7 e 8 de setembro — dia da Natividade da Santa Virgem — tive a
felicidade de ter dois encontros com o Padre Serafim, antes e depois do jantar, na sua
cela, mas não fui curado. No dia seguinte, dia 9 de setembro, levaram-me para seu
"Deserto Próximo" perto da fonte, ou seja, Isbá construída pelo Staretz perto da Fonte
Milagrosa e do Mosteiro. Estava conversando com uma multidão de pessoas que o
cercavam. Quatro de meus homens me levavam nos braços, o quinto sustentava a minha
cabeça. Eles me depuseram perto de um grande e grosso abeto que ainda se encontra à
margem do rio Sarovka, no prado onde o staretz habitualmente faz seus feixes. À minha
súplica de me curar, ele respondeu: "Não sou médico. É a um médico que as pessoas
devem se dirigir quando querem se curar de uma doença qualquer."

O infeliz confessou seus fracassos junto ao corpo médico e disse que a graça de Deus,
por intermédio das orações do Staretz, era sua única esperança.

"Ele me fez uma pergunta — continua Motovilov. Você crê em Nosso Senhor Jesus
Cristo, que Ele é Deus — Homem, e em Sua Santíssima Mãe, que ela é sempre
Virgem?"

Eu respondi: Creio.

— E você crê — perguntou ele ainda — que o Senhor que, antigamente, por uma única
palavra, um único gesto, curava imediatamente as doenças dos homens, pode, tão
facilmente quanto antes, vir em socorro daqueles que lhe rogam? E que a intercessão de
sua Santíssima Mãe é ainda toda-poderosa, e que em virtude desta intercessão, Nosso
Senhor Jesus Cristo pode imediatamente, e por uma única palavra, lhe devolver a
saúde?

Respondi que em verdade, de todo meu coração de toda a minha alma, eu acreditava.
Senão não teria vindo.

— Se você crê, disse ele à guisa de conclusão, já esta curado.

— Como curado? perguntei. Se meus amigos e o Senhor mesmo me carregam no colo?

— Não, disse ele, você está completamente curado, todo seu corpo agora é são.

"Ele ordenou a meus amigos que se afastassem e, pegando-me pelo ombro, me colocou
de pé."

— Fique direitinho, ponha seus pés no chão, assim. Não tenha medo, você está
totalmente curado!

Depois ele acrescentou, fitando-me alegremente: Veja como você se mantêm bem!

— Claro que me mantenho bem, pois é o senhor que me mantém — respondi.

Mas ele, retirando suas mãos:

— Agora eu não o mantenho mais, e você permanece de pé sem a minha ajuda. Então
vá sem medo. Deus o curou. Vá! Ande!

Ele me pegou pela mão e, empurrando-me as costas ligeiramente, me fez dar alguns
passos sobre a grama e o terreno acidentado perto do abeto, repetindo: veja, meu amigo,
veja como você está andando bem!

— Sim, porque é você que tem a bondade de me conduzir.

— Não (ele tirou sua mão), o Senhor o curou completamente. Sua Santa Mãe lhe pediu.
Você pode agora andar sem mim. Vá! E me empurrava para que eu avançasse.

— Eu vou cair e me machucar . . .

— Não, você não vai cair, você não vai se machucar, e, sim, você andará com passo
seguro.

"Sentindo-me repleto de uma força nova, pus-me a andar, mas ele me parou."

— Basta. Agora você está persuadido que o Senhor realmente o curou, de verdade?
Veja que milagre Ele fez para com você. Ele perdoou os seus pecados e retirou suas
iniqüidades. Então creia Nele, espere em Sua bondade, ame-O com todo seu coração e
agradeça à Rainha dos Céus por Seu benefício. Entretanto, enfraquecido por três anos
de sofrimento, não ande demais de uma vez só e zele por sua saúde como por um dom
precioso de Deus.

"Deus perdoou seus pecados e retirou suas iniqüidades" disse o staretz. No homem
psicossomático, na maior parte do tempo os pecados e os males físicos andam juntos.
Ao curar o paralítico, Jesus perguntou aos fariseus: "Que é mais fácil? dizer: Os teus
pecados te são perdoados; ou dizer: levanta-Te, e anda?" (Luc 5:23). Uma coisa é
necessária: a fé. O staretz fazia insistentemente a mesma pergunta a Manturov e a
Motovilov: "Você crê?" Realizado o milagre, o Senhor constatava: "Tua fé te salvou."

A alma de Motovilov estava, pois, doente, assim como seu corpo. Como o Padre
Serafim sabia disto? Sem dúvida o jovem havia se aberto com ele durante a conversa da
véspera, mas havia mais. Um staretz tem o dom de ver um homem como ele é na
realidade, e não como ele crê ser ou como tem a pretensão de se apresentar. "Nossas
virtudes visíveis, porém irreais nos impedem de lutar contra nossos pecados invisíveis
porém reais" dizia o Metropolita Filareto de Moscou. Um confessor superficial e
apressado se contenta, por desencargo de consciência, em absolver esta imagem
estereotipada e falaciosa que seu penitente lhe apresenta, enquanto que, em virtude de
um dom especial, um staretz vê cada ser tal como Deus o vê e procura ajudá-lo a se
libertar de seus entraves ocultos.

Complicado, passional, generoso e instável, Nicolau Motovilov não tinha nem a alegria
cândida, nem a simplicidade pura de um Michel Manturov.

Foi ele, contudo, que o staretz escolheu. Curado e cheio de gratidão, vinha sempre ver
seu benfeitor e foi durante uma dessas visitas, no fim do mês de novembro de 1831,
cerca de um ano antes da morte do staretz, que aconteceu a agora célebre conversa sobre
o objetivo da vida Cristã que o homem de Deus endereçava "ao mundo inteiro" e que
Motovilov devia transmitir.

O Objetivo da Vida Cristã.

"Era quinta-feira, escreveu Motovilov. O céu estava nublado. A terra estava coberta de
neve e flocos espessos continuavam a cair, quando o Padre Serafim começou nossa
conversa em uma clareira, perto de seu "Pequeno Retiro" diante do rio Sarovka que
corria no pé da colina. Ele me fez sentar sobre o tronco de uma árvore que acabara de
abater e ele mesmo se acocorou em frente a mim.

— O Senhor me revelou, disse o grande staretz, que desde pequeno você quer saber
qual é o objetivo da vida cristã, e que diversas vezes interrogou a este respeito
personagens até mesmo da mais alta hierarquia da Igreja.

Com efeito, aos 12 anos, Motovilov havia sido atormentado por inquietudes deste
gênero. Entretanto, não falara delas ao Padre Serafim. A resposta que ele recebeu diferiu
sensivelmente das ouvidas até então.

 
O Objetivo da Vida Cristã Consiste na Aquisição do Espírito Santo.

A aquisição do Espírito Santo? Mas quem é exatamente o Espírito Santo?

A terceira pessoa da Santíssima Trindade. Não uma força impessoal e impalpável. Uma
pessoa a quem a Igreja dirige suas preces. O Espírito anuncia o Messias, fala pelos
profetas, inspira as Escrituras. Ele repousa sobre Cristo até o fim de Seu Ministério
terrestre. Ressuscitado, Cristo dá o Espírito à Igreja. "Onde está o Espírito, lá está a
Igreja" dirá S. Irineu de Lyon. No ocidente esta Pessoa que não tem nome próprio foi
esquecida a tal ponto que o Concílio Vaticano II chegou a chamá-la "este grande
desconhecido." "Aquele de quem não sabemos como falar e onde as palavras são
vazias."

O Oriente nunca deixou de aprofundar Seu mistério. Os doutores da Igreja tentaram


definir Seu papel, os hesiquiastas o chamaram para tornar fecunda a oração do coração;
a Igreja O invocou durante cada eucaristia, no momento da Epiclese. Mas qual cristão
do séc. XIX concedia-lhe um lugar especial em seu dia-a-dia?

— Como assim, "aquisição"? perguntou Motovilov, perplexo. Não entendo:

Era realmente difícil de entender. Como pode alguém adquirir apropriar-se — a terceira
Pessoa da Santíssima Trindade, e que benefício o homem tiraria disto?

O Staretz explica:*

O Espírito Santo é doador de graças tanto quanto é um Dom. É neste sentido que
podemos "adquiri-lo" enchendo-nos de Sua graça, fazendo-O habitar em nós, tornando-
nos "templos do Espírito Santo" (Efe 2:22; 2 Cor 6:16). Toda virtude praticada em
Nome de Cristo nos traz a graça do Espírito Santo. A oração mais do que tudo. . .

Porém Motovilov se impacienta. "Padre" diz ele, "o Senhor sempre fala da aquisição da
graça do Espírito Santo como objetivo da vida cristã. Como se pode reconhecê-la? As
boas ações são visíveis. Mas como pode o Espírito Santo ser visto? Como posso saber
se, sim ou não, Ele está comigo?"

* cf. a tradução integral da conversa. Aqui encontra-se somente um resumo.

Ver Deus.

A grande pergunta está feita. O homem pode ou não pode ver Deus? Segundo
Aristóteles, todo conhecimento tem origem na experiência dos sentidos. Segundo os
neoplatônicos, como Deus está para além da experiência sensível, o conhecimento
místico pode apenas ser simbolicamente real.

As questões relativas ao Espírito Santo e à graça constituíam, a partir do séc. IX, o


ponto central em torno do qual gravitava o pensamento teológico inseparável da
espiritualidade. No fim do séc. X e começo do XI, o Abade do Mosteiro de São Mamas
em Constantinopla, Simeão dito "Novo Teólogo" mereceu totalmente este título, atraído
como era pelo mistério do Espírito Santo habitando em nós e se manifestando, nos
degraus superiores da vida espiritual, como luz.

Qual é a natureza desta luz divina? É uma percepção sensível ou intelectual?

"Deus é luz — diz são Simeão — e Ele transmite Sua claridade aos que se unem a Ele,
na medida de sua purificação. . . Ó Milagre! O homem se une a Deus espiritual e
corporalmente, porque sua alma não se separa do espírito, nem o corpo se separa da
alma. Deus fica em união com o homem inteiro."

"Aquele que é Deus por natureza conversa com aqueles que Ele fez deuses pela graça,
como um amigo conversa com seus amigos, frente a frente. . . O Espírito Santo torna-se
neles tudo o que as Escrituras dizem a respeito do Reino de Deus."

"Não estamos falando de algo que ignoramos, afirma Simeão — mas damos testemunho
daquilo que conhecemos. Deus é luz e aqueles que Ele torna digno de vê-Lo, vêem-No
como Luz, aqueles que O receberam, receberam-No como Luz. Pois a luz de Sua glória
precede Sua face e é impossível que Ele apareça a não ser na luz."

Mas tarde, no séc. XIV, a polemica questão da possibilidade de uma união real com
Deus, do acesso a Sua natureza inacessível, provocou novamente debates teológicos
passionais em Bizâncio. São Gregório Palamas (1296-1359), porta-voz dos monges
atonitas e arcebispo de Tessalônica, defendeu, perante concílios por vezes
tempestuosos, o ponto de vista hesiquiasta que não deixava nenhuma dúvida sobre a
realidade da luz incriada.

Não entraremos aqui nos detalhes de uma doutrina que remonta aos primeiros séculos
da Igreja, e que faz parte de sua tradição oriental, professada pelos Padres Gregos.
Gregório Palamas teve o mérito de calcá-la sobre um fundo dogmático, formulando-a
definitivamente. Para ele, é preciso distinguir entre Deus Sua essência — totalmente
incognoscível e inacessível — e suas energias, transbordamentos da natureza divina,
fluindo eternamente da essência una da Trindade, e aos quais o homem pode ter acesso.
Os Padres davam a estas energias o nome de "raios de divindade." Palamas as chamava
"divindade" simplesmente, "luz incriada" ou "graça."

É a "luz inacessível onde Deus habita" segundo S. Paulo (l Tim 6:16).

É a gloria em que Deus aparecia aos justos do Antigo Testamento.

É a luz eterna de que a humanidade do Cristo estava imbuída e que tornou Sua
divindade visível aos Apóstolos quando da Transfiguração.

É a graça incriada e divinizante, presságio da Ressurreição, compartilhada pelos Santos


da Igreja que vivem em união com Deus.

Enfim, é o Reino dos Céus onde os justos resplandecerão como o sol (Mat 13:43).

Na Rússia.
Os santos russos tiveram esta experiência?

Contemporâneo de Gregório Palamas, São Sérgio de Radonege (1314-1392) foi visto


pelos monges Isaac o Taciturno e Macário, concelebrando uma liturgia com um frei e
um terceiro celebrante cintilante de luz. Finda a liturgia, perguntaram quem era. "Se
Deus nos revelou — respondeu o santo — não posso esconder de vós. Aquele que vocês
viram é um Anjo do Senhor, e não somente hoje, mas sempre, eu, indigno deste jeito,
concelebro com ele."

Uma outra vez Simão o eclesiarca viu, durante a liturgia, um fogo se propagar ao redor
do altar e, no momento da Comunhão, entrar no cálice de que o santo bebeu.

Mas voltemos à floresta de Sarov onde, sob a neve que caía suavemente do céu
cinzento, o Staretz Serafim, no séc. XIX, conversava sobre estes mistérios com um
jovem leigo, Motovilov.

Sob a ótica do que acabamos de dizer, será mais fácil seguir sua conversa e apreciar, sob
sua aparente simplicidade, a estrita conformidade das palavras do staretz à tradição
ortodoxa.

Orgulho Intelectual — Barreira à Visão.

À pergunta de Motovilov: "Como pode o Espírito Santo ser visto? Como posso saber se
Ele está comigo? O staretz respondeu:

— Na época em que vivemos, chegamos a uma fé tão morna, a uma tamanha


insensibilidade no que toca à comunhão com Deus, que nos afastamos quase
completamente da verdadeira vida cristã. . . Sob o pretexto de instrução, ciência, nos
engajamos em tamanha escuridão de ignorância que achamos inconcebível tudo aquilo
de que os antigos tinham uma noção bastante clara a ponto de poder falar entre si das
manifestações de Deus aos homens como algo conhecido de todos e nem um pouco
estranho.

Quinhentos anos antes, no começo da Renascença, Gregório Palamas já formulava os


mesmos pensamentos: "Alguns homens desprezam o objetivo proposto aos cristãos"
ironizava ele, sob o pretexto de que é demasiado modesto: os bens inenarráveis que lhes
foram prometidos no mundo que há de vir! Tomando apenas a ciência experimental por
conhecimento, introduziram-na na Igreja daqueles que praticam a sabedoria de Cristo.
Aqueles que não têm conhecimento científico, declaram, são ignorantes e seres
imperfeitos. . ."

Desenvolvendo-se em um mundo secularizado e materialista, estas idéias fizeram


escola. "Há muitas maneiras de ter falta de fé" pensa um Teólogo russo anônimo cujos
escritos recentemente atravessaram a cortina de ferro. "A pior é ter uma fé razoável e
racional. Certamente não se nega que a fé possa ser defendida com a ajuda da razão,
mas para isso é preciso que a inteligência, em estado de graça, se nutra "das profundezas
da vida divina." Mal esta fonte seca, começa o racionalismo religioso. O que
corresponde às palavras de São Paulo: "E se alguém cuida saber alguma coisa, ainda
não sabe como convém saber. Mas, se alguém ama Deus, esse é conhecido Dele" (l Cor
8:2).

— Mas, Padre — insistia Motovilov — como posso reconhecer em mim a presença da


graça do Espírito Santo?

— Já lhe disse que é muito simples. Que quer mais?

— Ainda quero entender melhor.

"Então, escreveu Motovilov, o Padre Serafim me pegou pelos ombros e disse:

— Nós dois estamos na plenitude do Espírito Santo. Por que você não olha para mim?

— Não consigo, Padre. Raios jorram de seus olhos. Seu rosto tornou-se mais luminoso
do que o sol.

— Não tenha medo. Você tornou-se tão luminoso quanto eu. Você também está agora
na plenitude do Espírito Santo, senão não conseguiria me ver. . . Por que você não me
olha nos olhos? Ouse olhar para mim sem medo. Deus está conosco.

Olhei para ele, e um medo maior ainda me dominou. Imagine um homem falando, e seu
rosto no meio de um Sol de meio-dia. Você vê o movimento de seus lábios, a expressão
de seus olhos mudando; você ouve o som da voz dele, você sente a pressão das mãos
dele sobre os seus ombros, mas ao mesmo tempo você não percebe nem as mãos dele,
nem o corpo dele, nem o seu próprio, nada além de uma cintilante luz se espalhando por
tudo em volta, a uma distância de muitos metros, iluminando a neve que cobria a
planície e caía suavemente sobre o staretz e sobre mim mesmo. Como descrever o que
eu sentia então?

— O que está sentindo? perguntou o staretz.

O diálogo que se segue é extraordinário. Motovilov está feliz. Sua alma repleta de
silêncio, está cheia de paz e alegria. Seu corpo, apesar do frio, se envolve em um
agradável calor. Ele aspira um delicioso perfume. O staretz comenta longamente todos
estes estados.

— É assim que as coisas devem ser — terminou dizendo — a graça divina habitando no
mais profundo de nós, em nossos corações. "O Reino dos céus está dentro de vós"
ensina o Senhor. Pelo Reino dos Céus, Ele entende a graça do Espírito Santo. . . É o
estado no qual estamos atualmente que o Salvador tinha em vista quando prometeu a
Seus discípulos: "Em verdade, vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não
provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder" (Mac 9:1).

E o que vêem eles? A Transfiguração na luz Tabórica.

— Parece-me que agora você não vai mais me interrogar, amigo de Deus, sobre a forma
como se manifesta no homem a presença da graça do Espírito Santo. Você se lembrará
desta manifestação, não é?
 

Difusão da Mensagem.

— Eu só não sei, Padre, se Deus me tornará digno de sempre ter esta graça em minha
memória com tanta nitidez quanto agora.

— Pois eu — respondeu o staretz — creio que Deus o ajudará a guardar para sempre
essas coisas em sua memória, senão Ele não teria sido tocado imediatamente pela minha
humilde oração, não teria realizado tão rapidamente o desejo do miserável Serafim.
Ainda mais que não foi só a você que Ele deu a manifestação desta graça, mas ao
mundo inteiro por Seu intermédio.

Só se pode admirar a tranquila segurança com que, do fundo do bosque em que sua vida
de eremita transcorrera, o staretz profetizava a difusão mundial de uma mensagem
confiada a um jovem leigo pouco preparado para se lembrar do seu conteúdo. Mas
"quando o ensinamento vem do Espírito, a memória se conserva intacta" dizia o Padre.
Sem Sua ajuda, é evidente que Motovilov jamais conseguiria reconstituir uma conversa
cheia de doutrina, Teologia e citações bíblicas.

Monge e Leigo.

"Quanto aos nossos diferentes estados de monge e leigo, não se preocupe" diz o ancião.
Seu jovem interlocutor é um leigo. Ele mesmo é um monge. Não tem importância,
afirma o staretz: a fé, o amor é que contam. Ele, tampouco, é um teólogo propriamente
dito. O que ele é? Um hesiquiasta que se tornou todo oração. E quem quer que saiba
orar é teólogo, diz a sabedoria ortodoxa.

"É preciso ter a sabedoria patrística pelo interior. A intuição pode ser mais importante
do que a erudição. Somente ela ressuscita e vivifica os velhos textos, transformando-os
em testemunhos. Esta intuição é justamente a graça do Espírito Santo."

O Padre Serafim possuía esta intuição nascida da graça no mais alto grau, ao ponto, de
ilustrar suas palavras por um testemunho visual e vivo.

Conhecidas pelos perfeitos, as realidades do mundo futuro, vislumbradas daqui de


baixo, estão ao alcance de todos os cristãos, estando incluídas na graça batismal, ensina
Simão o Novo Teólogo. Contudo, esta graça, para ser eficaz, não deve somente ser
recebida no sacramento, mas "adquirida com muita dificuldade e trabalho."

"A virtude — dizia o Padre Serafim — não é uma pera que se come de uma vez só."

Tanto quanto a obediência, ele pregava a paciência. "A subida para o Reino exige
paciência e generosidade. Pois não é fácil vencer o apego às vaidades deste mundo."

"É apenas após haver suportado múltiplas tentações, involuntárias com a ajuda da
oração que um homem se torna humilde, seguro e vivido."
"A paciência — dizia ele por fim — é a aplicação da alma ao trabalho."

Nossa Conduta Cá Embaixo.

Sendo o coração do homem capaz de conter o Reino dos Céus, é preciso que antes de
tudo ele busque este Reino, o que não quer dizer que todo gozo terrestre lhe seja
proibido.

— A necessidade, as dificuldades e o infortúnio fazem parte da nossa existência, mas


não devem constituir toda a sua trama. É por isso que, pela boca do Apóstolo, o Senhor
recomenda que carreguemos os fardos uns dos outros. Ele mesmo nos dá o mandamento
de nos amarmos mutuamente, afim de que, reconfortados por esse amor, a dolorosa
marcha para a pátria celeste nos pareça mais fácil. . . Tudo o que pedirem ao Senhor
será obtido, contanto que seja para a glória de Deus e pelo bem do próximo. Pois Deus
não separa o bem do próximo de Sua glória. "Tudo o que fizerdes ao menor dentre vós,
é a Mim que o fareis."

E o staretz termina com um pensamento original:

— Quando a solicitar bem pessoais, tenham o cuidado de rezar somente por coisas de
que se tenha necessidade urgente. Talvez vocês sejam atendidos, mas ser-lhes-á
perguntado por que quiseram obter algo de que poderiam facilmente prescindir.

— Pois é, amigo de Deus. Agora já lhe disse tudo. Mostrei-lhe com toda realidade
aquilo que o Senhor e Sua Santa Mãe quiseram, por meu humilde intermédio, lhe
revelar. . .

— Amém. Vá em paz.

"Vi com meus próprios olhos — concluiu Motovilov — os raios da luz inefável cuja
fonte era o Santo, e estou pronto a afirmar tudo sob juramento."

Transfiguração.

Aquilo que um bizantino refinado, Simeão o Novo Teólogo, havia ensinado, contado
em seus escritos e sermões belos como poemas, o "miserável" Serafim havia
humildemente demonstrado em um cenário do interior a um jovem atônito e de lenta
compreensão. Longe do Sinai, da Palestina e da Grécia, a luz "incriada" havia se
manifestado em uma floresta austera e triste, em um dia gelado de novembro. O céu
estava baixo e nevava. Nada se compara à doçura macia de um dia de neve na Rússia.
Como com o profeta Elias, Deus não veio nem no furacão, nem na tempestade. Para o
staretz Serafim, Ele veio na paz da neve que cai.

Ao jovem sentado diante dele no tronco cortado de uma árvore, o ancião dá o estranho
título de "Vossa Teofilia" — Amigo de Deus. Pois todos os que buscam Deus com o
coração sincero são Seus amigos. Motovilov representa estes buscadores. Universitário
influenciado pelo Ocidente, temperamento passional, alma inquieta, ele já é
contemporâneo dos estudantes revoltados, dos enfermos — tão frequentes no séc. XX,
de quem um psiquiatra pôde dizer: "Cerca de um terço dos pacientes não são vítimas de
uma neurose clínica determinada, mas sofrem do fato de sua vida ser desprovida de
sentido e de conteúdo."

A um Motovilov à procura deste sentido, o staretz responde: o Espírito Santo.

Sinônimo do Reino de Deus, Ele nos leva para lá. Definitivamente, quem é Ele, senão o
Agente de nossa deificação? Pois, a exemplo de São Irineu, os Padres da Igreja nunca
deixaram de afirmar que"Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus."
Inebriante perspectiva! Antídoto do qual um mundo secularizado e cheio de incertezas
precisará desesperadamente um mundo século mais tarde.

A "Pequena transfiguração" do staretz Serafim teve por testemunha apenas Motovilov


porque sua divulgação seria inoportuna, na época, fora da floresta de Sarov? A Rússia
não estava pronta, o mundo exterior menos ainda.

Enquanto esperava, ajudado pelo Espírito Santo, Motovilov guardou seu diálogo com o
staretz em suas Memórias que, antes de morrer, 40 anos mais tarde, confiou a sua
mulher. Sentindo por sua vez a chegada do fim, ela retirou o caderno do sótão onde ele
jazia, para confiá-lo a um escritor de passagem que publicou o diálogo sobre o Espírito
Santo no "Jornal de Moscou" com o título: "Como o Espírito de Deus se manifestou em
São Serafim durante sua conversa sobre o sentido da vida cristã."

Ele podia dizer "São Serafim" já que a canonização do staretz ocorreu no próprio ano de
1903, 70 anos após sua morte, 72 anos após a conversa perto do "Pequeno Deserto
Próximo" na floresta.

A Grande Partida.

Como muitos santos, o Padre Serafim conhecia com antecedência a hora de sua morte e
se preparava para ela. "Quando vocês voltarem a Sarov, encontrarão minha porta
definitivamente fechada" dizia ele a certas pessoas. A outras, ele mandava bilhetes.
"Eles mesmos não me verão mais." A seu vizinho de cela, o irmão Paulo ele
anunciava:"Breve será o fim." Na simplicidade de seu coração, o bom frei Paulo se
perguntava se era do fim do mundo que o staretz falava.

"Mïnha vida está diminuindo — dizia ele — Meu corpo não presta para nada, mas meu
espírito, é como se ele tivesse nascido ontem!" E, enquanto ele dizia estas palavras, seu
rosto resplandecia com aquela luz radiosa com que ele era frequentemente visto.

A principal preocupação do ancião era o futuro de Diveyevo que ele previa turvo e
tempestuoso.

"Agora nada lhes falta — dizia ele às irmãs — mas quando eu não existir mais, vocês
terão muitos, muitos males. O que fazer — isto é o que lhes cabe! Vocês terão que ter
paciência. Orem constantemente. Agradeçam a Deus por tudo. Estejam sempre alegres.
Não deixem o espírito de desencorajamento as invadir. Orem por seus benfeitores. Não
lhes agradeçam em palavras. Agradecendo-lhes diretamente, vocês os privariam da
recompensa a que eles têm direito. Depois que eu partir, venham em minha tumba.
Quando vocês tiverem tempo. O mais frequente possível. Tudo o que tiverem no
coração, todas as dificuldades, com o rosto por terra, contem-me, como a um vivente. E
eu lhes escutarei, e expulsarei sua tristeza. Pois para vocês, estarei sempre vivo."

"Eu as confio a Deus e à sua Santa Mãe. Não temam a nada. Depois de muitas
tribulações, a ordem voltará ao convento com a décima segunda superiora cujo nome
será "Maria."

Ao Padre Basílio, pároco de Diveyevo e confessor das monjas, ele renovava suas
instruções de mansidão, "ordenando-me — escreveu o Padre Basílio — que fosse tão
tolerante quanto possível no confessionário, o que eu sempre fiz, apesar das críticas."
Esta tolerância, baseada na esperança ilimitada na bondade divina, era um dos traços
marcantes da espiritualidade do Padre Serafim. Os pecadores e os "infelizes" para ele
eram um só.

O dia 19 de janeiro de 1833 era um domingo. O staretz veio à Igreja para cuja
construção ele havia angariado fundos em sua juventude, venerou os ícones, acendeu
velas perante eles — o que era contrário a seus hábitos — e comungou na liturgia.
Terminado o ofício, despediu-se dos irmãos ali presentes, abraçou-os, abençoou-os e
saiu da Igreja pela porta do Norte. Sua fadiga e fraqueza corporal eram visíveis, mas seu
comportamento era como de hábito, tranqüilo e alegre.

Durante o dia, recebeu muita gente. A uma irmã de Diveyevo ele deu 200 rublos para
comprar pão em uma aldeia vizinha, pois a provisão da comunidade estava esgotada. A
uma outra ele disse: "Ah, Matushka, que ano novo vocês terão! A terra se encherá de
suspiros e de lágrimas."

Mas ninguém queria acreditar que ele ia morrer.

Entretanto, o frei Paulo reparou que durante o dia, o staretz saiu da sua cela 3 vezes para
ir aos arredores da igreja da Assunção da Virgem, no lugar que havia designado como o
de sua futura sepultura, e ali ficou muito tempo meditativo, olhando a terra.

Tarde da noite, frei Paulo o ouviu cantar. Era época de Natal, mas da cela do Padre
Serafim subiam hinos pascais. "Tendo visto a ressurreição de Cristo. . . "; "resplandece,
resplandece, ó Nova Jerusalém. . . ." "Ó Cristo, nossa Páscoa toda santa. . . "; "Cristo
ressuscitou dos mortos, pela morte Ele venceu a morte. . ."

De manhã, perto das seis horas, na hora de ir para o ofício, frei Paulo sentiu cheiro de
fumaça na entrada. Ele sempre alertava o Padre Serafim da possibilidade de um
incêndio quando ele partia para a floresta, deixando sua cela cheia de velas acesas. O
staretz respondia que não havia perigo — somente sua morte seria anunciada por um
princípio de incêndio.

Naquele momento frei Paulo não pensou nisso. Dizendo a oração como de hábito, bateu
à porta, mas não obteve resposta. Do lado de fora, vislumbrava-se, na penumbra, os
monges entrando na Igreja. Frei Paulo gritou: "Meus Padres e irmãos! Sinto cheiro de
fumaça — e não sei o que está queimando. O staretz deve ter partido para o "deserto."

Um jovem noviço, Anikita, acorreu e, com um violento golpe, fez o trinco da porta
saltar. Viram-se na cela pedaços de tela, assim como livros jogados sobre um banco
consumindo-se lentamente, inflamado por uma vela caída de um castiçal. Fora isso, não
havia nenhuma luz. Perguntando-se se o staretz havia cochilado após uma noite passada
em oração, os monges, indecisos, acotovelavam-se na porta.

Na igreja, nesse meio tempo, a liturgia da aurora prosseguia. Após a Epiclese cantava-se
"Verdadeiramente é digno e justo que Te bendigamos, ó bem Aventurada Mãe de Deus"
quando um jovem entrou precipitadamente e advertiu os monges do que estava
acontecendo. Muitos deles saíram correndo para a cela do staretz.

Movendo-se às apalpadelas na escuridão, frei Paulo e o noviço Anikita haviam se


aproximado do Padre Serafim. Trouxeram uma vela à sua luz trêmula, viram o homem
de Deus ajoelhado diante do ícone da Virgem de Ternura — "A Alegria das Alegrias"
como ele a chamava, com a cabeça nua, vestido com seu eterno casacão branco, e o
Evangelho que costumava ler diante de si. Suas mãos estavam cruzadas sobre o peito,
sobre o crucifixo de couro, benção materna que não o deixava nunca. Seu rosto estava
pacífico e sereno. Dormia? Suavemente, tentaram acordá-lo. Porém seus olhos não se
abriram. Ajoelhado diante de Sua Celeste Soberana, o staretz Serafim adormecera para
sempre.

Os que Ficam.

Enquanto que em Diveyevo o convento explodia em gemidos e lamentos, em Sarov


todos se preparavam para o enterro do grande monge cuja presença, por 50 anos,
santificara o "Deserto."

Durante 8 dias o corpo ficou exposto, descoberto, na catedral da Assunção da Virgem.


Milhares de pessoas, vindas de perto e de longe, comprimiam-se para dizer adeus a seu
amado "Batiushka." No dia do enterro a multidão era tão densa que as velas do caixão
apagavam-se por falta de ar. O higumeno Nifonte oficiava. Não houve homilia. As
palavras do staretz, ainda vivas na memória de todos, faziam-lhe as vezes.

O que era o staretz para estas multidões? Um taumaturgo, um vidente, um exorcista, um


adivinho? Um verdadeiro pai. Com tudo o que a paternidade traz de sabedoria, força, de
estabilidade e Ternura viril. Alguém a quem se podia dizer tudo na certeza de jamais ser
rejeitado ou incompreendido. Ao contato com ele, homens maltratados pela vida
ganhavam esperança, descobriram-se melhores. Os pecadores se transformavam em
filhos pródigos.

As pessoas choram por terem ofendido um ser amado, ao passo que não lamentam ter
transgredido os mandamentos de um déspota. Na ótica do staretz, Deus era amor.
Unicamente. As pessoas se esquecem demais disso. Ao invés de atormentar os
pecadores e ameaçá-los, o Padre Serafim falava da misericórdia divina. "Se
enchêssemos um oceano de lágrimas de arrependimento — dizia — não chegaríamos a
satisfazer o Senhor que nos dá gratuitamente Sua carne e Seu sangue em alimento e
bebida a fim de nos lavar de nossas sujeiras, nos purificar, nos vivificar, nos
ressuscitar."

A paz do homem de Deus era transmitida a seus interlocutores. "Aquele que anda na
paz, junta, como com uma colher, os dons da graça" dizia ele. A seu redor, o paraíso se
reconstituía. Ouvia-se dizer que os animais selvagens o serviam e que ele oferecia a
seus visitantes, fora da estação, frutos "celestes" de sabor exótico. Milhares de infelizes
vindos a Sarov viam ao fim de sua penosa estrada terrestre entreabrir-se o portal
luminoso do Reino dos Céus.

"Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai
sobre vós o Meu jugo. . . que Sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso
para vossas almas. Porque o Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve" (Mat. 11:28-30).

O staretz amava particularmente e repetia com freqüência estas palavras de Cristo.

Este tipo de cristianismo, pensa Berdiaev, para o qual o impulso para Deus, a graça, os
dons carismáticos contam mais do que a disciplina eclesiástica e os preceitos da moral
juridicamente formulados, poderia levantar no ocidente suspeitas a respeito de sua
"eficácia." De todas as formas de cristianismo, contudo, esta é a mais próxima das
origens evangélicas. Um staretz é um guia perfeito para um cristianismo deste tipo.

Nicolau Motovilov, que estava na cidade de Voronejo, foi advertido da morte de seu
benfeitor pelo bispo do lugar, um santo homem a quem o staretz apareceu às 2:00 horas
da madrugada para avisar que havia deixado a terra. Sem esperar outras confirmações, o
prelado celebrou no mesmo dia uma missa de requiem. Quanto a Motovilov, pegou a
estrada imediatamente. Sendo considerável a distância entre Voronejo e Sarov, não
chegou a tempo para o último adeus. Seu desespero era tamanho que o higumeno
Nifonte, para consolá-lo, deu-lhe o livro dos Evangelhos que o staretz lia todo dia e cuja
cobertura havia sido ligeiramente chamuscada pelo fogo, como também uma cruzinha
em madeira de cipreste que o próprio Padre Serafim fabricara e emoldurara em prata
provinda de uma moeda antiga que sua mãe havia lhe dado quando de sua peregrinação
a Kiev.

"Quanto à grande cruz octogonal de couro, benção materna, e o ícone da Mãe de Deus,
"Alegria das Alegrias" diante da qual, ajoelhado, ele morreu — disse o higumeno — eu
os enviei à Comunidade de Diveyevo."

Tribulações Preditas.

Em 1833, ano da morte do Padre Serafim, as monjas de Diveyevo formavam duas


comunidades separadas, uma chamada "Comunidade de Kazan" fundada pela Madre
Ágata, e outra "Comunidade do Moinho" fundada pelo staretz a pedido da Virgem
Maria. Cento e treze mulheres, viúvas, e moças, de todas as idades, viviam nas 17
casinhas da Comunidade de Kazan, enquanto que 120 monjas, todas virgens, ocupavam
as 19 celas construídas em um terreno doado à Comunidade do Moinho por uma
benfeitora. Cada comunidade tinha a sua regra. A de Kazan seguia obstinadamente a
regra rigorosa e dura dos monges do deserto de Sarov, enquanto que a Comunidade do
Moinho vivia, sobretudo da oração de Jesus, como queria o staretz.

Nas duas igrejas — a da Natividade do Cristo e a da Natividade de Sua Santa Mãe — as


lamparinas ficavam acesas diante dos ícones e a leitura dos Salmos prosseguia
ininterrupta noite e dia.

Era grande a pobreza das irmãs. Mal alimentadas, com frequente carência de primeiras
necessidades, trabalhando duro, elas se sentiam, entretanto, sustentadas pela oração
diante do ícone da "Alegria das Alegrias" e pelo amor que tinham umas pelas outras. O
bom Padre Basílio Sadovsky as reconfortava com frequentes visitas. Tanto quanto
possível, elas iam a Sarov, à tumba de seu amado "Batiushka" para lhe confiar, como
ele permitira, suas dores e tristezas. À noite, trabalhando à luz enfumaçada de uma
"lutchina"(fino pedaço de madeira que era aceso para iluminar); elas repassavam na
memória as lembranças do tempo feliz quando ele estava neste mundo, rememorando
seus milagres, sua alegria, suas palavras afetuosas. Cada uma tinha uma coisa para
contar.

Cinco superioras se sucederam na paz e na tranqüilidade.

O "Visitante Estrangeiro."

O Senhor teve Judas; Francisco de Assis, Elias de Cortone; Serafim de Sarov e Ivan
Tikhomov. Cada vez mais ele se pôs a visitar sua prima, monja da Comunidade de
Kazan, cujas irmãs haviam sido menos próximas do staretz Serafim do que as da
comunidade mais recente. Persuasivo, com boa lábia, tendo uma certa instrução,
sabendo pintar ícones e cantar na Igreja, ele se impunha às mulheres simples e terminou
por conseguir simpatizantes entre elas. Na Comunidade do Moinho, ao contrário, a
resistência a seus avanços foi imediata e unânime. As irmãs lhe disseram na cara que o
Padre Serafim as proibira de conviver com ele. Furioso, ele teria exclamado: "Juro não
descansar enquanto não apagar da terra até a lembrança da Comunidade do Moinho! Eu
me transformarei em serpente, mas conseguirei entrar!"

O orgulho foi a perdição de Lúcifer. Foi a perdição de Ivan Tikhonov, canonarca de


Sarov. Em seu desejo frustrado de se fazer passar por sucessor espiritual do staretz
Serafim, o "pintor de Tambov" passou totalmente dos limites. Como os monges de
Sarov reprovavam unanimemente sua conduta, ele deixou o "Deserto" entrou em outro
mosteiro, obteve a ordenação sacerdotal sob o nome de Josafat, e escreveu uma vida do
staretz Serafim que fez sucesso em São Petersburgo e lhe valeu ser apresentado à
Imperatriz. Tendo dali por diante acesso à Corte, acreditou poder tudo.

Poderia se dizer que seu propósito era destruir sistematicamente tudo o que o homem de
Deus havia desejado e realizado. O staretz queria conservar a separação das duas
comunidades? O Padre Josafat obteve sua fusão. A comunidade de Kazan perdia sua
regra, a do Padre Serafim não era mais composta de virgens. O staretz era louco por
suas igrejas? O Padre Josafat as fechou, apagou as lamparinas, interrompeu a leitura dos
Salmos, retirou o moinho, demoliu as celas. O staretz sonhava em construir, sobre um
terreno que adquirira a preço de ouro, uma igreja-catedral. A realização deste projeto
devia ser impedida. Michel Manturov detinha os papéis legalizando a compra do
terreno. Como ele se recusava em se desfazer deles — o staretz lhe proibira
expressamente — o Padre Josafat caluniou Michel aos olhos do general Kuprianov.
Sem pagar a indenização que devia a seu intendente, o irascível militar, ao voltar da
Polônia, expulsou-o das terras que em sua ausência ele havia gerido tão bem. A pé,
morrendo de fome, Michel e Ana — mendigos voluntários! — voltaram a Diveyevo
onde, para que pudessem construir um isba, o Padre Basílio lhes deu os 70 rublos que
havia sofridamente economizado para sua velhice.

"Durante 29 anos — lê-se na Crônica de Diveyevo — a comunidade sofreu com a


intromissão e a tutela de Ivan Tikhonov. Seguiu-se uma luta incessante, durante longos
anos, entre as irmãs da comunidade que, tornadas órfãs, defendiam os preceitos de seu
fundador e pai, e o inimigo do gênero humano, Ivan Tikhonov, que entre pessoas pouco
instruídas e espiritualmente cegas encontrara adeptos. É preciso ser totalmente
desprovido de sentido sobrenatural para não ver nos acontecimentos de Diveyevo este
tipo de combate."

A ingênua crônica tem razão. O combate que o staretz, durante toda sua vida, havia
mantido contra o demônio, prosseguia após sua morte. "Vocês não viverão até o
Anticristo, mas vocês atravessarão os tempos do Anticristo" dizia ele a suas "órfãs."
Poder-se-ia até supor, sem muita inverossemelhança, que os tempos agitados de
Diveyevo prefiguravam os tempos agitados e trágicos que a Rússia logo havia de passar.
Tudo leva a crer que o staretz entendia assim, Diveyevo, feudo da virgem, sendo
ameaçado pelas forças da escuridão como a própria terra russa.

O "Visitante Estrangeiro" Ivan Tikhonov, de "coração frio, "marchava nesse meio


tempo de vitória em vitória. Durante as festas da coroação do Imperador Alexandre II,
ele decidiu pedir, por intermédio de uma dama de honra da Imperatriz, a autorização
para transformar a comunidade mista de Diveyevo em um convento regular, com a
intenção mal disfarçada de tomar a direção.

Era chegada a hora do último ato do drama.

Depois de um longo período de interregno, uma nova superiora acabava de ser eleita
pela comunidade. Vinda de uma família de nobreza agrária, Isabel Oushakov era
inteligente, equilibrada e de caráter firme. Durante muitos anos ela havia ocupado em
Diveyevo o ingrato cargo de administradora e conhecia bem a situação em que se
encontrava o convento. O dinheiro que o Padre Josafat coletava em S. Petersburgo por
intermédio das irmãs que ele mandava aprender pintura na capital, desaparecia sem
nunca chegar a seu destino. As despesas loucas a que se entregava o "visitante
estrangeiro" acabavam com o orçamento. Não somente não havia dinheiro, mas também
havia dívidas. Até pão não raro faltava. Com muita paciência, Isabel encarou essa
situação difícil. Calma, ordenada, doce com as irmãs, logo ela obteve o amor e o
respeito de todo mundo. Em Diveyevo, começava-se a respirar quando um rumor
inquietante chegou à infeliz comunidade: o novo bispo de Nizhni-Novgorod, que diziam
ser favorável a Josafat, viria breve a Diveyevo receber os votos da Superiora por
ocasião da transformação da antiga comunidade mista em convento regular, decretada
pelo Santo Sínodo.
Era maio, pouco depois da Páscoa. Monsenhor chegou durante uma noite tempestuosa.
De manhã, antes mesmo de ir à Igreja, ele convocou Isabel Ushakov.

— Tenho uma requisição a lhe apresentar — disse ele.

— Estamos acostumadas a ordens. O que deseja?

— A senhora deve deixar o convento e ir, como superiora, para o de Davidovo.

Atônita, Isabel se calou.

— Por que não diz nada?

— Não compreendo, Monsenhor.

— Digo que deve deixar Diveyevo e ir para o convento de Davidovo. Ele está
desorganizado. A senhora o porá em ordem.

— Impossível — respondeu suavemente Isabel.

Monsenhor se aborreceu. A guerra estava declarada. Foi conduzida pelas "loucas em


Cristo."

Um Pouco de Loucura.

"Oxalá me suportásseis um pouco na minha loucura" suspirava S. Paulo (2 Cor 11:1).


Havia "loucura em Cristo" em Serafim de Sarov? Indignados, os tradicionalistas
gritariam: Não! Seu "Batiushka Serafim" monge exemplar, filho submisso da Igreja! Ele
era tudo isso. Porém, como os loucos em Cristo, ele desdenhava o conforto mais
elementar, comia verdura e se entregava, às vezes, a divertidas e inofensivas
excentricidades que exasperavam seus confrades monásticos.

Entretanto, seu ponto de vista sobre a loucura em Cristo era dos mais severos. "Aqueles
que tomam para si a loucura em Cristo sem um chamado particular de Deus — dizia ele
com indignação — correm direto para a perdição. Entre os "yurodivi" que andam,
simulando loucura, de uma aldeia para outra, é difícil encontrar um só que não seja
induzido a tentação pelo demônio sem sucumbir. Nossos Padres não permitiam que
ninguém se fizesse de "yurodivi." No meu tempo, somente um quis tentar, durante o
ofício, pôr-se a miar como um gato. Imediatamente o Padre Pakhome ordenou que o
fizessem sair, primeiro da igreja, em seguida dos limites do mosteiro. Existem 3
caminhos que não se devem seguir sem ser chamado de uma forma particular: o da
direção de um mosteiro; o da reclusão; e o da loucura em Cristo."

Vê-se então que definitivamente era em alta conta que São Serafim tinha estes
"fanáticos" por Deus. Ele próprio um profeta, serviu-se destes pequenos profetas para
que, após sua desaparição, eles pudessem agir em seu lugar.
Como os do Antigo Testamento, estes últimos deviam chocar a imaginação popular com
costumes pouco comuns. Sabe-se que Isaías andou totalmente nu durante 3 anos,
Jeremias levava uma carga nos ombros para predizer a captividade de Israel, Ezequiel
teve de fazer um buraco em sua casa e sair por ali, levando sua bagagem, para mostrar
aos habitantes de Jerusalém o que os esperava, "porque por sinal te pus à casa de Israel"
disse Deus (Isa 20:3-4; Jer 27; Eze 12:1-7). O casamento infeliz de Oséas não passava
de uma metáfora do casamento do Senhor com seu povo infeliz.

As misteriosas palavras dos "yurodivi" suas ações simbólicas e seu dom de prever o
futuro aparentavam-nos aos profetas. Não somente eles deviam "significar" a vontade
de Deus, mas eles próprios deviam se transformar em símbolos. Como seus confrades
bíblicos, eles tinham às vezes o dom de evocar o futuro por metáforas, por mímica. Sob
uma aparência propositalmente repugnante, escondiam os dons do Espírito que somente
a claridade de seus olhos e a extraordinária limpidez do seu olhar revelavam.

Pelagia.

No momento da visita do Monsenhor Nectário a Diveyevo, o convento abrigava uma


louca em Cristo chamada Pelagia. Bonita, inteligente, vinda de uma família de ricos
mercadores, ela havia sido dada em casamento, cedo e contra sua vontade, a um
comerciante de Arzamas que conseguiu não ser desencorajado pelas excentricidades de
sua noiva rebelde. Acompanhada pelo marido, visitou Sarov. O Padre Serafim recebeu-a
em particular e ficou tanto tempo trancado com ela que o marido até se aborreceu. Para
seu grande espanto, ao reconduzir a jovem, o staretz a presenteou com um rosário,
abençoou-a e a saudou até o chão. Era a seu futuro de mártir voluntária que o homem de
Deus rendia homenagem.

As loucas esquisitices a que Pelagia se entregava, os escândalos que provocava na


pequena aldeia, acabaram exasperando seu bom marido comerciante que, apesar de
tudo, a amava. Sem saber o que fazer, ele a enchia de pancadas, acorrentava-a para
impedi-la de sair, mas ela rompia as amarras e, com os ferros nos punhos, corria, `a
noite, pelas ruas, semi despida, pelo frio, sob a neve. Certa vez o sacristão a tomou por
um fantasma e tocou o sino. Era demais. A culpada foi chicoteada publicamente. Em
carne viva, ela não disse um ai. Cristo não havia sido chicoteado pelos soldados
romanos?

Enfim, expulsa pelo marido e por sua própria mãe, ela acabou em Diveyevo. O staretz já
estava morto. No começo as irmãs não foram carinhosas para com ela. Cheia de lama,
sujava a casa, pois passava a maior parte de seu tempo em um buraco que havia no
quintal, como um cachorro. Chorava muito. Quando lhe perguntavam por quê,
respondia que chorava pela Rússia. O staretz também não tinha derramado lágrimas
antecipadas por sua desafortunada pátria?

Pouco a pouco, as irmãs se acostumaram com a estranha companheira. Confiada aos


cuidados de uma monja que, não se sabe por que, ela apelidara de "Benedito" Pelagia se
instalou em sua cela, entre três portas, sobre um pedaço de feltro, perto do aquecedor.
Deixava as unhas crescerem como garras de passarinho, não comia quase nada e não se
deitava para dormir. A noite, "Benedito" a ouvia conversar com visitantes invisíveis.
Uma vez, reconheceu claramente a voz do Padre Serafim.

A clarividência concedida aos verdadeiros loucos em Cristo pelo Espírito Santo breve
tornou Pelagia celebre. Muita gente vinha lhe pedir conselhos. Ouvindo falar daquela
mulher, Monsenhor Nectário demonstrou ter vontade de vê-la.

Na cela de "Benedito" Pelagia estava sentada em um tamborete, enrolada em si mesma.


Monsenhor pegou um tamborete e se sentou ao lado.

"Que devo fazer, serva de Deus, que devo fazer?", disse ele.

A resistência da comunidade de Diveyevo, que a pedido do Padre Josafat, sobre o seu


projeto de lhe dar uma nova superiora, o havia perturbado.

A "louca" pousou sobre ele um olhar severo e profundo, com seus olhos límpidos.

— É em vão, Monsenhor, que você se dá a esse trabalho — respondeu ela em um tom


firme. — Não vai ser de mão beijada.

Confiando levemente a barba apoiada contra a cruz sacerdotal, o Monselhor


murmurava: "Não sei o que fazer. . ."

De repente, inquietante, apavorante, Pelagia ergueu-se e pôs-se a "guerrear." Ela


golpeava o ar como que para destruir inimigos invisíveis, quebrava o que lhe caía na
mão. "Benedito" mal teve de tirar Monsenhor da cela.

Parasceva.

Em outra ala do edifício, a velha Parasceva, irmã da pequena Maria, (preferida do


staretz, chegada ao convento aos 13 anos e morta poucos anos depois), estava, também,
entregue a uma loucura profética.

Ajudando-a um dia a descer de uma carroça, o staretz lhe dissera: "Você está melhor
colocada do que eu. No fim da vida você será louca em Cristo. Quando ver a fonte
borbulhar com impurezas, saberá que a hora é chegada. Não tenha medo — diga a
verdade. Em seguida, você morrerá." Ora, indo a Sarov para rezar junto ao túmulo do
staretz, alguns dias antes da chegada do bispo, Parasceva foi à fonte buscar água.
Sempre límpida, a fonte, de repente, se turvou. Como que projetados por uma força
invisível, areia e pedregulhos subiam do fundo para a superfície. Atordoada, a velha
religiosa olhou em volta para compreender a causa deste fenômeno insólito; foi quando
viu a irmã Lukia, adepta fervorosa do Padre Josafat, descer para a fonte. Compreendeu
tudo. O Staretz Serafim havia discernido, um dia, na água turva, a aproximação daquele
que ainda não passava do noviço Ivan Tikhonov, hoje Padre Josafat, e que, depois, se
revelara como inimigo mais terrível da comunidade. O momento de "cuspir a verdade"
tinha chegado, então!

Parasceva se lembrou das palavras do Padre Serafim: "Em seguida, você morrerá."
— Adeus, Elias — disse ela a um frei de Sarov vindo à fonte. Não te verei mais.

— Que está dizendo, Matushka? Por que falar de morte? Mas ela, muito calma, insistia:

— Você não me verá mais, Elias. Adeus!

E agora, enquanto Pelagia "guerreava em sua cela", Parasceva, tendo "cuspido a


verdade" ao bispo, quebrava, vestida de uma pele de carneiro virada ao avesso, os
vidros da sua*.

* "Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas
interiormente são lobos devoradores. Por seus frutos os conhecereis" (Mat 7:15-16).

Em Plena Ação.

Histeria de mulheres exasperadas? Não era assim que se interpretava no convento. Os


gestos, aparentemente ridículos, dos loucos em Cristo, tornam-se compreensíveis se
quisermos crer que é contra os espíritos das trevas que eles partem em guerra, por terem
a faculdade, desde cá embaixo, de ver tanto demônios quanto anjos. Basílio, o Bem
Aventurado, era formoso por jogar pedras nos muros das igrejas, em que se agarravam
os demônios repelidos pela liturgia, ao passo que beijava a soleira dos maus lugares
onde choravam os anjos-da-guarda daqueles que se encontravam no interior. A tentativa
do "visitante estrangeiro" Padre Josafat, de colocar no lugar da madre anterior, sua
discípula, irmã Lukia, para, por seu intermédio, governar a comunidade, só se explicava
por um assalto do maligno contra o feudo da Virgem. E, representantes do staretz, as
"loucas" reagiam.

Tudo ia de mal a pior. Monsenhor declarou que no dia seguinte após a liturgia a sorte de
Diveyevo seria tirada. "Se a sorte cair sobre irmã Lukia, aquelas que se recusarem a
aceitá-la como superiora serão expulsas."

Como era de se esperar, a sorte caiu sobre Lukia. Um murmúrio se produziu na


assistência. Ouviram-se suspiros. Uma mulher caiu desmaiada. Cochichava-se que os
três bilhetes apresentados ao bispo continham todos o mesmo nome. Era por isso que
ele se apressara em colocar os dois restantes ao bolso.

Tinha ele a consciência tranquila? É de se crer que não. Na manhã do dia seguinte, ao
voltar à igreja, ele viu a "bem-aventurada" Pelagia sentada na beira da estrada rolando
ovos de Páscoa, jogo comum entre as crianças na Rússia. Poderia se dizer que ele
tentava se assegurar do que acabara de fazer.

Ele parou seu carro e desceu.

— Veja, Serva de Deus, uma prósfora, (pão de oferenda litúrgica), da liturgia que acabo
de celebrar.
Ela se virou.

"Ele devia ter compreendido e partido — contava "Benedito". Mas não. Aproximou-se
pelo outro lado e, novamente, estendeu a prósfora.

Erguendo-se de repente, esbelta e magra, ameaçadora e terrível:

— Com que está se metendo? — urrou a louca, acertando no bispo uma magistral
bofetada.

Ele estendeu a outra face:

— Segundo o Evangelho, bate na outra!

— Uma te basta — respondeu desdenhosamente Pelagia e, sentando-se, pôs-se


novamente a rolar os ovos de Páscoa, como se nada tivesse acontecido.

Imagine-se a confusão que o caso criou.

— Vão te botar na prisão, vão te trancar em um hospício-diziam a Pelagia.

— Nunca fui, nunca irei — respondia ela, calmamente.

Com efeito, o caso não teve, para a "bem aventurada" nenhuma consequência. De volta
ao episcopado de Nizhni-Novgorod, Monsenhor Nectário várias vezes lhe mandou a
benção, pedindo-lhe suas preces. Pensava ele no salmo onde se diz: "Que o justo me
bata, é caridade, que ele me censure" (Sal 140:5) Uma vez fez até chegar um presente a
ela, por intermédio de um peregrino.

Quanto à "bem aventurada" Parasceva, viveu somente nove dias após a partida do bispo.
Assistida pelo Padre Basílio, munida dos últimos sacramentos, ela extinguiu-se
docemente, como lhe predirá o staretz. Ao saber de sua morte, Monsenhor Nectário
ficou pensativo. "Era uma grande serva de Deus!" suspirou.

A liberdade dos filhos de Deus vencia a Instituição.

O Desenlace.

O staretz não era, como havia demonstrado várias vezes, um filho amoroso e obediente
da Igreja? Como muitos santos, contudo — Simeão o Novo Teólogo no Oriente, S.
Francisco de Assis no Ocidente ele conheceu este doloroso conflito entre um profeta e
os padres cuja cegueira provisória impede de aceitar a visão. Os acontecimentos de
Diveyevo, a guerra, pelo staretz bendito, das loucas em Cristo, não devem ser
interpretados como gestos de insubordinação, mas como um meio de luta contra os
espíritos das trevas. Foi, aliás, pela intervenção da mais alta autoridade da Igreja que a
verdade finalmente triunfou.
Antes de morrer, o Padre Serafim havia nomeado Motovilov "Defensor das órfãs." Ele
vinha muito à Diveyevo, e acabou desposando uma jovem sobrinha da irmã Parasceva,
criada no convento. Acompanhado peIa mulher e duas filhas, ia de Simbirsk a Moscou
quando um leve acidente de carro obrigou-o a parar em Diveyevo onde ele tinha uma
casa. Ciente do que se passava, foi testemunha de eleição forçada de uma nova
superiora e, sem perda de tempo, decidiu agir.

Seu plano era de pôr o Metropolita Filaret de Moscou — alta e venerável personalidade
que teve um papel importante na renovação da Igreja Russa — ao par do caso. Mas o
prelado havia partido para o Mosteiro da Trindade São Sérgio (onde, desde 1770, os
Metropolitas de Moscou eram oficialmente abades), receber a família Imperial que
estava sendo esperada.

Ora, o vigário do Metropolita, morador permanente, era então aquele arquimandrita


Antônio vindo uma vez a Sarov perguntar ao Padre Serafim se devia se preparar para a
morte e a quem o homem de Deus respondera que ao invés de morrer ele seria nomeado
ao importante posto de superior de um mosteiro venerável entre todos. Antes de se
despedir dele, o staretz, com lágrimas nos olhos, havia lhe dito: "Não abandone as
minhas órfãs!"Na época, o Padre Antônio não havia compreendido.

Mas ele compreendeu, quando Motovilov, que apressadamente fora para o Mosteiro,
apresentou-lhe seu pedido. Escolhendo um momento propício, falou com o Metropolita
Filaret, seu superior e amigo que, por sua vez, pôs o Imperador ao par.

— Sempre tive dúvidas quanto a esse Padre Josafat quando a Imperatriz me falava dele
— disse o Soberano.

Um inquérito foi aberto. Bem conduzido, com objetividade, inteligência e tato, sob a
supervisão do próprio Metropolita, teve por resultado a reabilitação de Isabel Ushakov
— a quem o Padre Josafat tentava caluniar — e sua confirmação como superiora do
convento Serafim — Diveyevo, designação da comunidade daí por diante. Ela recebeu o
hábito e pronunciou os votos sob o nome de Maria. "A ordem será restabelecida com a
12a superiora, predissera o staretz, cujo nome será Maria".

Padre Josafat, que teve algumas condutas excusas reveladas pelo inquérito, foi posto em
observação e obrigado a assinar uma declaração com a promessa de nunca mais se
intrometer nos negócios de Diveyevo. Mais tarde, ele chegou a ser nomeado hígumeno
de um mosteiro e tomou o "megalo esquema" sob o nome de. . . Serafim, O amor
vencera o ódio?

Mil religiosas — como a Rainha dos Céus havia predito ao staretz — logo se
aglutinaram em torno da Madre Maria que, com uma mão firme e doce, estabilizou o
barco vacilante que havia sido chamada a dirigir. O 25o jubileu da amada superiora foi
alegremente festejado em Diveyevo em 1887. Ao lado da Madre estava, durante as
cerimônias, a outrora bela e recalcitrante Xênia, agora Madre Capitolina, aos 83 anos de
idade.

"Quando as 12 primeiras irmãs da comunidade tiverem deixado este mundo, dissera o


staretz ao Padre Basílio em sua despedida, você também partirá, o 13o. Tua mulher te
precederá em 2 anos." Esta predição se realizou como todas as outras. Deixando
saudades, o humilde e fiel servidor de Deus, Padre Basílio, nascido em 1800, foi juntar-
se a seus antepassados 80 anos mais tarde.

— Faça com que o enterrem à direita da Igreja da Natividade, dissera-lhe o staretz.


Michenka (diminutivo de Michel) estará deitado à esquerda. E eu serei posto no meio.
Assim, ficaremos todos juntos.

Manturov foi efetivamente colocado, para dormir seu último sono, à esquerda da igreja
que havia construído de seu próprio bolso. Fadado à abnegação, não chegou a ver o
triunfo da justiça em Diveyevo.

Ele partiu em um momento em que parecia certa a vitória do "Visitante Estrangeiro" nos
sacrilégios visados a que ele se opunha com todas as suas forças.

Apesar de seu otimismo, o pobre Michel estava a ponto de perder a coragem quando viu
em sonho seu Batiushka dizendo: "Venha, vamos orar juntos!" Concluiu que sua hora
estava próxima, pediu ao genro do Padre Sadovsky que celebrasse uma liturgia na Igreja
da Natividade, comungou e, voltando para casa, disse à sua mulher: "Apresse o jantar.
Senão você vai se lamentar — será tarde demais. . ." Depois saiu ao jardim para dar
framboesas ao genro do Padre Sadovsky, sentiu-se um pouco cansado, sentou-se em um
banco — e rendeu a alma. Sua partida foi tão tranquila que sua mulher veio chamá-lo
para jantar e pensou que ele estivesse dormindo. Tinha apenas 60 anos.

Era talvez o discípulo mais perfeito do staretz, buscando acima de tudo o Reino de Deus
e confiando em receber o resto por acréscimo. Leigo casado, não encarnava na época o
que hoje em dia se chama "monaquismo interiorizado"? De uma bondade enorme,
coração aberto, tinha um bom físico, um rosto alegre e simpático, de grandes olhos
claros. Convertida à ortodoxia, Ana, sua fiel esposa alemã, terminou seus dias em
Diveyevo onde, em segredo, tomou o véu.

Quanto à promessa feita pelo staretz de um dia repousar entre seus dois amigos, Padre
Basílio e Michel, muitos se espantavam. Ele não estava enterrado em Sarov? Por que
seria levado para Diveyevo? Alguém fez a pergunta à Madre Maria. Ela pareceu pensar.
Depois de um momento de silêncio, disse: "Frequentemente as relíquias ficam muito
tempo escondidas." Estranha resposta, hoje em dia melhor compreendida, pois ignora-se
o paradeiro dos restos do Padre Serafim.

Quanto a Nicolau Motovilov, o "humilde servidor" do staretz, como gostava de ser


chamado, ele deixou o mundo em 14 de julho de 1879, com 71 anos de idade. No fim de
sua vida, o lado espiritual de sua natureza complicada e ardente passou definitivamente
a frente do que havia nele de terrestre e mundano. Vendo em todo lugar do mundo o
espírito do anticristo, sentindo-se um viajante estrangeiro cá embaixo, cada vez mais
empreendia peregrinações longínquas, e nos lugares santos mais afastados da imensa
Rússia sua alta silhueta coroada de cabelos brancos era conhecida. O peregrino perpétuo
se parece com o louco em Cristo. "Você é tão louco quanto eu, Nikolka" dizia-lhe com
intimidade afetuosa a "bem aventurada" Pelagia.

Um mês antes de sua morte, Motovilov teve um sonho que contou à sua mulher. A
Rainha do Céu apareceu-lhe em sonho e prometeu-lhe de breve levá-lo em peregrinação
a uma região desconhecida onde Ela lhe apresentaria a muitos santos de quem ele nunca
tinha ouvido falar. Depois deste sonho as forças começaram a abandoná-lo. Morreu
tranquilamente em sua propriedade de Simbirsk, mas foi enterrado em Diveyevo.

Sua mulher voltou a viver no convento onde havia passado a infância e juventude.
Antes de morrer, como dissemos, confiou o caderno de memórias de seu marido a um
escritor de passagem, Sérgio Nilus.

Foi então que pela primeira vez ouviu-se falar da extraordinária conversa coroada de luz
que o staretz havia recomendado a Nicolau Motovilov que divulgasse. Teria sido
incompreendida na 2a metade do séc. XIX, porém adquire, no séc. XX, uma amplitude
do significado inesperado, não somente para a Rússia, mas, como o staretz havia
previsto, para o "mundo inteiro."

Epílogo.

Ninguém na Rússia duvidava da santidade de Serafim de Sarov. Já se havia perdido a


conta dos milagres que o Senhor operava através de seu servo. Nos arquivos do
higumeno do "Deserto" encontravam-se centenas de cartas, não raro acompanhadas de
donativos de dinheiro, agradecendo pelas graças e curas obtidas por intermédio do
staretz. Em Diveyevo, antes da Revolução de 1917, ainda não se havia conseguido
classificar todos os testemunhos escritos.

Em número cada vez maior, peregrinos chegavam a Sarov. Muitos viam o homem de
Deus em sonho. A outros ele aparecia, principalmente as crianças. Às vezes ele se
encontrava na casa de Manturov, como atestava sua viúva.

Bem antes da canonização oficial, a vox populi beatificara este homem calçado de casca
de bétula, ancião de traços severos e finos, com os olhos de um azul límpido, dizendo
aos que vinham a seu encontro: "Bom dia, minha alegria!" e acrescentando: "Cristo
Ressuscitou!"

Agora que ele encontrara na eternidade a Virgem Maria, primeira criatura divinizada
que dizia que ele também era "de sua raça" seu poder parecia maior do que nunca. "Se
eu obtiver graça, diante de Deus — prometia antes de deixar a Terra — orarei por todos
prostrado diante do Trono do Altíssimo."

A eficácia de sua oração estava acima de qualquer dúvida.

Sessenta anos após sua morte, o Santo Sínodo encarregou uma comissão especial de
pesquisas sobre os milagres e as curas atribuídas ao Padre Serafim. Dez anos mais tarde,
em 1902, o Imperador Nicolau II exprimiu o desejo de ver o Santo Sínodo levar a cabo
a instrução da canonização. Em janeiro de 1903, "persuadido da autenticidade dos
milagres atribuídos as orações do staretz Serafim e dando graças a Deus glorificado em
seus santos" o Sínodo submetia sua decisão ao Imperador de todas as Rússias. Ela foi
publicada no número 5 do Jornal Eclesiástico publicado em 19 de fevereiro de 1903
com a recomendação de ser lida em todas as Igrejas do Império no domingo seguinte à
publicação do Jornal.
 

A Canonização.

Alegremente, a Rússia começou os preparativos para a festa nacional que seria a


canonização de seu amado staretz Serafim.

A data foi fixada em 19 de julho, dia do aniversário de nascimento do novo santo.


Esperava-se em Sarov não dezenas, mas centenas de milhares de peregrinos, o que
colocava problemas de alojamento e manutenção. Ao longo das estradas e nas clareiras
foram construídas barraquinhas de madeira que não demoraram em se transformar em
pequenas aldeias provisórias com padarias, armazéns, vendas de bebidas populares não
alcoólicas, quiosques onde se vendiam biografias do santo, ícones representando-o, de
referência, em frente a seu retiro dando pão a um urso, livros de oração, revistas
religiosas, assim como Evangelhos e Saltérios. O clérigo dos arredores (30 hieromonges
de mosteiros vizinhos, 30 padres da diocese de Tambov) foram mobilizados para prover
as necessidades espirituais dos fiéis. Altas personalidades eclesiásticas haviam sido
convidadas a tomar parte nas procissões e a fazer as homilias, algumas muito apreciadas
pelo auditório. "Obrigada! Muito obrigada, Batiushka!" gritava-se na multidão.

Nas raras estradas arenosas, peregrinos caminhavam sob o sol ardente de julho, alguns
em grupos, cantando hinos, outros solitários, curvados sob o peso de sua mochila,
apoiando-se sobre o bastão de viagem. Carroças transportavam inválidos e doentes. Os
mais afortunados chegavam de trem, descendo em Nizhni-Novgorod, porém a maioria
percorria à pé os 60 km que a separava de Sarov.

A atmosfera era de sobriedade e oração. A maioria dos peregrinos jejuava


rigorosamente, apesar do cansaço, esperando o dia em que confessariam e comungariam
nos Santos Mistérios.

Porém eis que entre os grandes abetos surgiam os muros brancos do mosteiro, suas
igrejas de cúpulas brilhantes e cruzes douradas. A fadiga se transformava em alegria.
Homens e mulheres se persignavam, caíam de joelhos, invocavam São Serafim. Quem
poderia imaginar, 126 anos antes, que um modesto adolescente, chegado àqueles muros
em uma fria noite de novembro, um dia atrairia para si multidões vindas dos 4 cantos da
imensa Rússia?

O tempo estava esplêndido. As festividades se desenrolavam na maior alegria. Na


madrugada de 17 de julho, as monjas de Diveyevo, carregando em triunfo o ícone da
Virgem "Alegria das Alegrias" acompanhada de outros ícones e de estandartes de
procissão brilhando no sol, dirigiram-se para Sarov onde, na saída do bosque, eram
esperadas pelos monges do "Deserto" saídos em procissão desde a "porta santa." Após
um Te Deum cantado em comum, religiosos e religiosas se dirigiram juntos, entre duas
compactas filas de peregrinos, para o mosteiro onde outros peregrinos os esperavam,
agrupados nas colinas. A vista devia ser inesquecível. Havia algo de infinitamente feliz
naquela onda humana, sob um céu resplandescente de luz, subindo para os muros
brancos da venerável muralha, sob o sol de verão que flamejava, nas cristas de suas
ondas, uma flâmula dourada, o precioso revestimento de um ícone. Reunidos na alegria,
Sarov e Diveyevo, homens e mulheres, louvavam a seu santo.
À tarde, os sinos puseram-se a soar, anunciando a chegada do cortejo imperial. Sentados
em um carro aberto, o Imperador e a Imperatriz foram saudados por "hurras" frenéticos.
Ele era jovem; ela, encantadora. Foi um delírio. Em outras carruagens, seguiam os
membros da família imperial.

"O grande sino tocara: Bum! Bum! (o staretz imitava o som do sino), o Czar virá com
toda sua família. . ." A promessa do santo homem se realizava.

Na manhã seguinte, assim que a liturgia da aurora começou, entraram, na igreja já cheia,
sós e sem escolta, o Imperador e a Imperatriz. Vinham pedir a graça de ter um herdeiro?
Como simples peregrinos, misturados com o povo, aproximaram-se dos sacramentos. A
multidão chorava de alegria.

Autocrata de todas as Russias, homem profunda e sinceramente religioso, Nicolau II


sonhava em acabar com o fosso que a brutal política ocidentalizante de Pedro o Grande
havia cavado entre poder e povo. Ele queria, ainda que permanecendo autocrata (pois
não era o ungido do Senhor?), tornar-se novamente o pai daquela Rússia, ortodoxa e
camponesa, de que tentava se aproximar, idealizando-a. Naqueles dias de fervorosa
oração em comum, o milagre parecia possível.

O belo dia de verão chegava ao fim. Aproximava-se o momento solene das festividades:
a transferência, em procissão, das relíquias do novo santo da igreja Zocime-Sabati para
a igreja-catedral da Assunção da Virgem, onde elas deviam ser abertas à veneração da
multidão.

Os Russos herdaram de Bizâncio o amor pelas esplêndidas cerimônias religiosas. No


"Deserto" de Sarov viu-se, naquela noite, um suntuoso desfilar de fausto eclesiástico em
honra do "pobre" do "miserável" do "humilde" Serafim. À frente do cortejo, o
Metropolita, três bispos, doze arquimandritas, doze padres e hieromonges avançavam
lentamente, vestidos em ornamentos dourados, presente do Imperador, sobre os quais
haviam sido bordados, em fio de prata, Serafins com seis asas. Carregado sobre um
andor por cima das cabeças inclinadas da multidão ajoelhada, o caixão, coberto por um
pano de veludo grená, parecia planar nos ares. A noite era tão suave que a chama das
velas dos peregrinos quase nem tremulava.

Toda a Santa Rússia estava lá, com seu Czar, reunida em torno de seu amado
"Batiushka" tão próximo do coração de cada um, tão representativo de seu misterioso
país.

O ofício terminou à meia-noite. Depois o clero, a família real, e enfim os fiéis foram
venerar as relíquias. Seu desfilar durou toda a noite.

Neste meio tempo, fora das muralhas do mosteiro, ao longo dos rios Satis e Sarovka,
haviam se acendido fogos. Sem poder entrar, a imensa maioria dos peregrinos havia
orado do lado de fora, ao ar livre. Ninguém pensava em dormir. Haviam se formado
grupos, cantando sob as estrelas: "Glória a Deus no mais alto dos Céus" hinos à Virgem,
o novo tropário composto em honra do Santo. Passava da meia noite e os cânticos
continuavam quando explodiram, de repente, jubilosos, os hinos de Páscoa: "Dia da
Ressurreição" "Que Deus ressuscite" "Cristo ressuscitou dos mortos, pela morte Ele
venceu a morte, aos que estavam no túmulo Cristo deu a vida."
"Em pleno verão, a Páscoa será cantada" o staretz profetizara varias vezes. Mas seu
rosto logo se anuviava. Lágrimas corriam por suas bochechas. "Esta alegria durará
pouco" dizia.

Naquelas horas de apoteose, naqueles dias de união entre o povo, o czar e a Igreja

quem poderia acreditar?

Terríveis Perspectivas.

Entretanto, um aviso bem ao estilo do staretz foi dado quando, após deixar Sarov e o
interminável desfilar de peregrinos que ainda devia durar vários dias, a família imperial
parou em Diveyevo. Lá ela encontrou uma louca em Cristo chamada Pasha de Sarov.
Filha de servos, expulsa por seus senhores por causa de uma calúnia, foi nas grutas e
cavernas da floresta de Sarov que ela encontrou refúgio. Após alguns anos, veio à tona o
dom da clarividência que os sofrimentos lhe valeram, e ela passou a ser visitada. Foi
atacada por bandidos como um dia São Serafim o fora, deixando-a semi-morta, numa
poça de sangue. Ela nunca se restabeleceu completamente. "Ah, mamãe — gemia ela,
falando sozinha — que dor!" E mostrava sua cabeça ou sua costela. (Alguns de nossos
comtemporâneos a conheceram. Ela morreu em 1917, com mais de cem anos).

Após a morte de Pelagia que partiu envolta em uma aura de santidade e que fora
apelidada de "o serafim de Serafim" Pasha veio para Diveyevo onde Madre Maria a
acolheu alegremente. Foi com prazer que aquela mulher que, por tanto tempo, vivera
como um animal, instalou-se em uma cela limpinha e vestiu-se de cores vivas. Quando
lhe foi anunciada a visita do Imperador, para surpresa geral, ela tirou as roupas limpas e
— mau agouro — cobriu-se com velhos trapos. Tinha o hábito de servir chá a seus
visitantes. Aos que seriam atingidos por alguma desgraça, ela colocava muito açúcar na
xícara, "para consolar." Colocou tanto açúcar na xícara do Imperador que o chá
transbordou. O soberano pediu para ficar a sós com ela. Quando saiu da cela, a corte
ficou impressionada com a palidez e a tristeza de seu rosto. Ele jamais revelou a
ninguém o que a "louca de Sarov" acabara de lhe dizer.

O Grão-Duque Sérgio, cunhado da Imperatriz, era do cortejo. Logo que eles partiram,
Pasha suspirou: "não conseguia olhar para ele. Via seu cérebro espalhado sobre uma
calçada. Pouco tempo depois, o Grão-Duque caía, vítima de um atentado terrorista.

Um ano depois, nasceu o herdeiro tão esperado — mas ele era hemofílico.

Em 1904, a guerra com o Japão causava ao colosso russo a dolorosa vergonha de uma
derrota.

Os primeiros rumores revolucionários se fizeram ouvir, em 1905, com revoltas


sangrentas, brutalmente reprimidas.

A primeira guerra mundial explodiu em 1914, seguida da Revolução em 1917.


Apenas 15 anos após as festividades de Sarov o Czar era assassinado com toda a sua
família, futuramente canonizada pela sua morte, como mártires.

O balanço das guerras — as duas guerras mundiais e a guerra civil que dilacerou a
Rússia — com seu desfile de horrores, epidemias, perseguições, fomes, sofrimentos —
é calculado pelo imponente número de 40 milhões. Alguns levam-no até 60 milhões.
Exageradas ou não, estas estimativas são aterrorizantes. O staretz tinha razão ao dizer:
"A vida será curta então. Os anjos mal terão tempo de recolher as almas."

Entre os peregrinos vindos a Sarov, quantos, com o passar do tempo, tornar-se-ão


renegados, vítimas, mártires?

Ao voltar, por assim dizer corporalmente, entre os seus naqueles luminosos dias de
julho, parece que o staretz se colocava deliberadamente no limite do que havia sido e do
que estava por vir, aproximando-se ainda mais, na véspera de dias trágicos e
imprevisíveis, do povo russo pelo qual ele prometera orar, prostrado diante do Trono do
Altíssimo.

São Serafim e os Novos Tempos.


 

A Loucura da Cruz.

Cheio de uma angústia profética, o staretz previa claramente os terríveis dias que se
seguiram? Não haveria nisto nada de inverossímil. Tudo o que ele havia previsto sempre
se realizou. E poderíamos nos perguntar, como já o fizemos, se nos problemas de
Diveyevo que temia tanto, o homem de Deus não via metaforicamente o futuro de seu
bem-amado país e da Igreja russa, e na pessoa do "visitante estrangeiro" um precursor
do Anti-Cristo. Lobo em pele de cordeiro, haverão muitos como ele em uma Igreja às
vezes órfã. (cf. Mat 7:15-16).

Mas o Espírito Santo inspira o discernimento dos espíritos e não abandona a Igreja.
Muitos se espantam do incrível faro que os cristãos russos provavam possuir, ao
distinguir nos tempos mais difíceis os verdadeiros dos falsos pastores. "Da para
reconhecê-los pelos olhos. . ." como se reconhecem pelos olhos os verdadeiros loucos
em Cristo.

Sobre eles, desgrenhados, piolhentos, afamados, semi-nus, o Anti-Cristo não terá vez.
Não poderá tentá-los nem pelas promessas de um paraíso terrestre, nem pelas
maravilhas da técnica e da ciência. Qual é o ícone deles? A imagem do Cristo vestido
com uma túnica escarlate, escarnecido pelos soldados, O Rei da Glória poderia se
apresentar mais abjeto e ridículo?

Escolher semelhante via é se revestir de Cristo.


"Mas nos pregamos o Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para
os gregos" (l Cor 1:23-24), "porque a palavra da cruz é loucura" (l Cor l, 18ss).

E é realmente, neste país infelizmente numeroso, onde o ateísmo é de lei, onde os


crentes são vistos como anti-sociais, e internados como loucos. Mesmo nos países ditos
cristãos, não são taxados de loucos os que remam contra a corrente, recusando-se a se
conformar aos usos e costumes de "todo mundo" as exigências da "vida moderna",
fustigada pela pressa, escravizada pela técnica?

É preciso heroísmo — e muito — para ser louco em Cristo. E se São Serafim o era até
certo ponto, o povo não fazia senão amá-lo mais ainda. Porque o heroísmo russo não
tem plumas; não teria sido por causa desta simplicidade que o homem de olhos claros da
floresta se tornou o eleito Daquela que se dizia "Humilde Serva" e que, deificada, foi
coroada Rainha dos Céus?

A "Theotokos, Mãe de Deus" e a Mulher Russa.

Não era Ela, a Celeste soberana, que dava a Seu eleito, diretrizes a respeito do convento
de Diveyevo, do qual escolheu ser Abadessa? Por que inclinava-se Ela com tanto amor
sobre aquele canteiro de jovens camponesas analfabetas?

Isto já foi perguntado, mas hoje a resposta com certeza é sabida. E, por sua importância,
merece que nos detenhamos nela.

Em um país que 50 anos de regime ateu, perseguições e sofrimentos não conseguiram


descristianizar, quem permanece fiel à fé ancestral? Quem guarda e perpetua a tradição
em uma Igreja privada de livros? Quem fala de Cristo às crianças doutrinadas pelo
marxismo? — A mulher.

A obediência do staretz à Rainha dos Céus traz seus frutos. Outros startzi —
especialmente os do "Deserto de Optina" na segunda parte do séc. XIX, também
prepararam a mulher russa para seu papel de guardiã da fé. Serafim de Sarov pode ser
considerado como seu precursor. O interesse que estes homens tinham pelas mulheres
parecia escândalo só na época. Mas o trabalho destes instrumentos do Espírito Santo
não foi em vão. É preciso ter estado nas igrejas russas ainda abertas a culto, é preciso ter
visto aqueles rostos de mulheres, duros, fechados, severos — como é severo, nos
retratos que se têm dele, o rosto de São Serafim — ter sentido a qualidade e a força
desta prece, tão diferente da prece negligente e distraída dos cristãos "que-não-
sofreram-a-paixão."

"Seus ícones são tão severos!, dizem sempre os ocidentais. Sim. Mas, por trás desta
severidade — que ternura!"

Dizem também, desdenhosamente: "São velhas, estas mulheres." Nem todas. E mesmo
se fossem, Deus não é Mestre em fazer brotar rebentos verdejantes de um tronco seco?
O que diz a Bíblia? Sara, mãe do povo eleito, era velha. Velha também era Ana, mãe da
Virgem. Velha Isabel, mãe do Precursor. E a profetisa Ana que, cheia do Espírito Santo,
proclamava a divindade de Jesus quando da apresentação no templo, não tinha 84 anos
de idade?

Como as irmãs de Diveyevo, essas mulheres mantêm acesas uma lamparinazinha de


chama perpétua diante do ícone da Mãe de Deus. Esta chama é precária, esta luz é
minúscula. O staretz vela para que ela não se apague. Basta uma fagulha para provocar
um incêndio.

Influência Póstuma.

Desde a Revolução, a Igreja Russa, mais do que nunca, precisou do Espírito Santo,
Consolador a quem por antecipação Serafim pedia ajuda.

"Quando, pois, vos conduzirem para vos entregarem, não estejais solícitos de antemão
pelo que haveis de dizer; mas, o que vos foi da do naquela hora, isto falai; porque não
sois vós os que falais, mas o Espírito Santo" (Mc. 13:11)

É esse mesmo Espírito que dará aos mártires a alegria do perdão das ofensas, cujo sabor
o eremita do "Deserto Longínquo" conhecia.

Embora o staretz não tenha tido discípulos diretos enquanto vivo, todos os homens de
Deus que viveram desde então podem ser considerados como seus continuadores,
pertencendo a mesma tradição, comungando o mesmo Espírito: João de Cronstadt,
Siluano de Athos, o genial Paulo Florensky morto em um campo de concentração perto
do círculo polar, assim como também aquele humilde padre de uma paroquia moscovita,
Alexis Metchev, viuvo precoce, pai e avô, que, doente, vivia em plena revolução em um
constante turbilhão de gente, dispensando a todos sua sabedoria e amor, e que era
comparado a São Serafim.

Inovador cuja bravura passava desapercebida, por estar escondido em seu "Deserto", o
staretz de Sarov recomendava a comunhão freqüente, a promoção dos leigos à mesma
dignidade dos monges e, sobretudo, o uso constante da "oração de Jesus" que, naquele
tempo, estava apenas começando a penetrar nas camadas populares. Ousou até colocar
esta oração na base da regra que deu ao convento que fundara.

Desde então, toda a Rússia se deixou impregnar fortemente pelo espírito do staretz. Um
padre vindo da U.R.S.S. dizia recentemente em Genebra a um pastor anglicano que no
confessionário, escutando seus penitentes, parecia-lhe várias vezes ouvir o próprio São
Serafim. Ele queria dizer que era no espírito do staretz que aqueles homens e mulheres
se confessavam; suas atitudes em relação à vida e à morte, o pecado, a redenção e a
Igreja, eram inspirados na dele.

Alcance Mundial da Mensagem de São Serafim.

Mas não é só isso. Como o staretz previa, sua mensagem devia atravessar fronteiras. Era
destinada ao mundo inteiro.
A um mundo que sofre.

De que sofre o mundo? Em primeiro lugar, da perda da fé.

"Eis que vêem dias, diz o Senhor Jeová, em que enviarei fome sobre a terra, não fome
de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor. E irão vagabundos de
um mar até outro mar, e do norte até ao oriente; Correrão por toda a parte, buscando a
palavra do Senhor, e não a acharão" (Amós, 8:11-12).

  Não a acharão porque é com orgulho, usando a inteligência humana, que eles buscarão.
Buscarão sem pedir a ajuda do Espírito Santo.

Por este sopro de orgulho luciferino os cristãos, como todos os outros, são derrotados.
Perdem-se nos labirintos daquela fé "razoável e racional" inimiga do Espírito. Voltando
às heresias de outrora, tornam-se semelhantes àqueles "cães que voltam a seu próprio
vômito" como diz São Pedro (2 Ped. 2:22). Afundando em um poço de desespero,
jovens "loucos em anticristo" bêbados de ódío, drogados, vomitam todas as impurezas
de seu ser e acham isso lindo de morrer. Quanto ao homem respeitável e sensato, põe
suas esperanças na técnica. Útil como ferramenta, ela se torna terrível como ídolo.

O Homem tem medo.

Para onde vai? O que será dele?

Robô ou Deus?

Mas o Espírito Santo, Verdade, Amor e Vida, sopra onde quer.

"Sem Ele — dizia em Upsal em 1968, o Metropolita de Lattaquié, Inácio Hazim —


Deus esta longe, Cristo fica no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja uma simples
organização, a autoridade uma dominação, a missão uma propaganda, o culto uma
evocação e o agir cristão, uma moral de escravos. Mas n’Ele e em uma indissociável
sinergia o cosmos é erguido e geme no peito do Reino. . . Cristo ressuscitado está aqui e
o Evangelho significa a missão trinitária, a autoridade é um serviço libertador, a missão
é um Pentecostes, a liturgia é memorial e antecipação, o agir humano é deificado*. . ."

É Ele que São Serafim foi chamado a manifestar no mundo: O "Desconhecido" de


antes, o "Incompreendido" — o inatingível vivificante, Otimista divino, criador do
novo-em-folha, capaz de abrir caminhos nos impasses e trazer esperança aos
desesperados.

Mas o homem "da rua" pode realmente adquiri-lo?

Há tantos caminhos para Deus como há homens sobre a terra. A peregrinação para o
Reino é aberta para todos. O Espírito está em cada homem criado por Deus.
— Batiushka — perguntou um dia um noviço ao starez Serafim-por que nós não
levamos uma vida semelhante à dos antigos?

— Porque nos falta decisão para fazê-lo-respondeu ele. Se estivéssemos firmemente


decididos a imitá-los, viveríamos como nossos Pais, pois a graça que Deus da àqueles
que buscam-No de coração não muda: "Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e
eternamente" (Heb. 13:8) .

Estes buscadores sempre existirão. Tanto na Rússia quanto "no mundo inteiro."

O Espírito está agindo. A vida continua.

Instituto São Sérgio, Paris/Patmos (Grécia).

* O Metropolita de Lattaquié, Inácio Hazim, a quem fora confiada a tarefa de abrir os trabalhos
da Assembléia do Conselho Ecumênico por uma exposição sobre o tema que devia orienta-los:
"Eis que faço novas todas as coisas" (Apo. 21:5), foi formado pelo Instituto São Sérgio, em
Paris. Pioneiro do Movimento da Juventude do Patriarcado de Antioquia, ele se enraíza em um
Cristianismo de expressão semítica, próximo das fontes bíblicas. (Olivier Clement. Diálogos
com o Patriarca Athenágoras, p. 495).

II. O Encontro Com Motovilov.


 

Nota da Tradução Brasileira.

Até aqui, ao deparar com citações bíblicas, simplesmente transcrevi a versão de João Ferreira
de Almeida do versículo citado.

Entretanto, nesta segunda parte do texto, que foi escrita em russo, a palavra passa ao próprio
Padre Serafim e suas citações nem sempre correspondem exatamente às palavras da versão
portuguesa. Colocou-se então uma dificuldade, sentida também pela tradutora francesa, como
é salientado na última nota desta parte. O texto original é em russo; o Padre Serafim utilizava
uma versão eslavônica, e a tradução francesa lançou mão da Bíblia de Jerusalém.

Consciente do perigo de traduções sobre traduções e, especialmente, de traduções de livros


sagrados — onde toda e qualquer palavra é carregada de significado — mas, ao mesmo
tempo, procurando uma solução para não trair o Espírito Santo, "imerso" nas Escrituras, traduzi
a maioria das citações direto do francês. Porém, quando considerei a diferença significativa,
remeti ao texto português em notas de pé de pagina. Quando o texto era muito similar à versão
de J. F. de Almeida, limitei-me a copiar esta última.

Assim, peço desculpas por eventuais erros e recomendo que a leitura das duas próximas
partes seja feita com a Sagrada Escritura à mão, dada a abundância de citações.

O Encontro com Motovilov.


Era quinta-feira. O céu estava cinzento. A terra estava coberta de neve e espessos flocos
continuavam a rodopiar quando o Padre Serafim começou nossa conversação em uma
clareira, perto de seu "Pequeno Retiro" diante do rio Sarovka que corria ao pé da colina.

Ele me fez sentar sobre o tronco de uma árvore que acabara de abater e acocorou-se à
minha frente.

— O Senhor me revelou — disse o grande staretz — que desde a infância você queria
saber qual era o objetivo da vida cristã e que o perguntou muitas vezes, até mesmo a
altos personagens da hierarquia da Igreja.

Devo dizer que desde aos 12 anos esta idéia me perseguia e que efetivamente fizera a
pergunta a diversas personalidades eleciásticas, sem jamais receber uma resposta
satisfatória. O staretz ignorava isto.

— Mas ninguém — continuou o Padre Serafim — lhe disse nada preciso.


Aconselharam-lhe ir à Igreja, orar, viver segundo os mandamentos de Deus, fazer o bem
— tal era o objetivo da vida cristã, diziam. Alguns até chegaram a desaprovar sua
curiosidade, achando-a inoportuna e ímpia. Mas eles estavam errados. Quanto a mim,
miserável Serafim, eu lhe explicarei agora em que consiste realmente este objetivo.

O Verdadeiro Objetivo da Vida Cristã.

A oração, o jejum, as vigílias e outras atividades cristãs, por melhores que possam
parecer em si mesmas, não constituem o objetivo da vida cristã, mesmo ajudando a
chegar a ele. O verdadeiro objetivo da vida cristã consiste na aquisição do Espírito
Santo. Quanto à oração, o jejum, as vigílias, a esmola e toda boa ação feita em nome de
Cristo, elas não passam de meios para a aquisição do Espírito Santo.

Em Nome de Cristo.

Reparem que somente uma boa ação praticada em nome de Cristo nos proporciona os
frutos do Espírito Santo. Tudo que não é feito em Seu nome, mesmo o bem, não nos
proporciona nenhuma recompensa no mundo que há de vir, e tampouco nos dá nesta
vida a graça divina. É por isso que o Senhor Jesus Cristo dizia: "quem Comigo não
ajuntar espalha" (Luc. 11:23).

Entretanto devemos chamar uma boa ação de "ajuntamento" ou colheita, pois mesmo se
ela não é feita em Nome de Cristo, continua sendo boa. A Escritura diz: "Mas que lhe é
agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e obra o que é justo" (Atos 10:35). O
centurião Cornélio, que temia a Deus e agia segundo a justiça, enquanto orava foi
visitado por um anjo do Senhor que lhe disse: Envia homens a Jope, na casa de Simão o
curtidor e encontrarás lá um certo Pedro que te fará ouvir as palavras da vida eterna
pelas quais serás salvo, tu e toda a tua casa" (Atos 10).
Vemos então que o Senhor lança mão de Seus meios divinos para permitir que um
homem assim não seja privado da recompensa que lhe é devida. Mas para obtê-la é
preciso que desde aqui embaixo ele comece por acreditar em Nosso Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus descido a Terra para salvar os pecadores, e adquirir a graça do Espírito
Santo que introduz em nossos corações o Reino de Deus e nos abre o caminho da
beatitude do mundo que há de vir. É até aí que vai a satisfação que dão a Deus as boas
ações que não são feitas em nome de Cristo. O Senhor nos dá os meios de remata-las.
Ao homem cabe aproveitar ou não. É por isso que o Senhor disse aos Judeus: "Se
fosseis cegos, não teríeis pecados; mas como agora dizeis: vemos, por isso o vosso
pecado permanece" (João 9:41). Quando um homem como Cornélio cuja obra não foi
feita em Nome de Cristo, mas foi agradável a Deus, passa a crer em seu Filho, esta obra
lhe é contado como feita em Nome de Cristo, por causa de sua fé Nele (Ite 11:6). Caso
contrário, o homem não tem direito de reclamar que o bem realizado não lhe foi
proveitoso. Isso nunca acontece quando uma boa ação foi feita em Nome de Cristo, pois
o bem realizado em Seu Nome traz não somente uma coroa de glória no mundo que há
de vir, mas desde aqui em baixo enche o homem da graça do Espírito Santo, como foi
dito: "Não lhe dá Deus o Espírito por medida. O Pai ama o Filho, e todas as coisas
entregou nas Suas mãos" (João 3:34-35).

A Aquisição do Espírito Santo.

Assim, é na aquisição deste Espírito de Deus que consiste o verdadeiro objetivo de


nossa vida cristã, enquanto que a oração, a vigília, o jejum, a esmola e as outras ações
virtuosas feitas em Nome de Cristo são apenas meios de adquiri-Lo.

— Como assim, aquisição? — perguntei ao Padre Serafim — Não entendo.

— Aquisição é a mesma coisa do que obtenção. Você sabe o que é adquirir dinheiro?
Com o Espírito Santo, é igual. Para as pessoas em geral, o objetivo da vida consiste na
aquisição de dinheiro — o ganho. Os nobres, além de tudo, desejam obter honras,
marcas de distinção e outras recompensas concedidas por serviços feitos ao Estado. A
aquisição do Espírito Santo também é um capital, porém um capital eterno, dispensador
de graças; muito semelhante aos capitais temporais, e que se obtêm pelos mesmos
procedimentos. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus — Homem, compara nossa vida a um
mercado e nossa atividade na terra a um comércio. Recomenda a nós todos: "Negociai
até que Eu venha; economizando o tempo, porquanto os dias são maus" (Luc. 19:12-13;
Efe. 5:15-16), o que quer dizer: Apressem-se em obter os bens celestes negociando
mercadorias terrestres. Essas mercadorias terrestres são exatamente as ações virtuosas
feitas em Nome de Cristo e que nos trazem a graça do Espírito Santo.

A Parábola das Virgens.

Na parábola das Virgens Prudentes e das Virgens Loucas (Mat 25:1-13), quando estas
últimas ficam sem óleo disseram-lhe: "Ide aos que o vendem e comprai-o para vós."
Mas, ao voltarem, encontraram a porta do quarto nupcial fechada e não puderam entrar.
Alguns acham que a falta de óleo nas Virgens Loucas simboliza a insuficiência de ações
virtuosas feitas no decorrer de suas vidas. Essa interpretação não é inteiramente certa.
Como poderia haver falta de ações virtuosas se elas eram chamadas virgens, ainda que
loucas? A virgindade é uma alta virtude, um estado quase angélico, podendo substituir
todas as outras virtudes. Eu, miserável, acho que faltava-lhes justamente o Espírito
Santo de Deus. Mesmo praticando virtudes, estas virgens, espiritualmente ignorantes,
acreditavam que a vida cristã consistia nestas práticas. Agimos de forma virtuosa,
fizemos obras de piedade, pensavam elas, sem se preocupar se, sim ou não, haviam
recebido a graça do Espírito Santo. Deste gênero de vida, baseado unicamente na prática
das virtudes morais, sem um exame minucioso para saber se elas nos trazem — e em
que quantidade — a graça do Espírito de Deus, foi dito nos livros patrísticos: "Há
caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte" (Pro.
14:12).

Falando destas virgens, Antônio o Grande diz, em suas Epístolas aos Monges: "Muitos
monges e virgens ignoram completamente a diferença que existe entre as três vontades
que agem dentro do homem."

A primeira é a vontade de Deus, perfeita e salvífica; a segunda nossa vontade própria,


humana, que, em si, não é nem nefasta nem salvífica; enquanto que a terceira —
diabólica — é completamente nefasta. É esta terceira vontade inimiga que obriga o
homem ora a não praticar a virtude, ora a praticá-la por vaidade, ou unicamente pelo
"bem" e não pelo Cristo. A segunda, nossa vontade própria, nos incita a satisfazer
nossos maus instintos ou, como a do inimigo, nos ensina a fazer o "bem" pelo bem, sem
se preocupar com a graça que pode ser adquirida. Quanto à primeira vontade, a de Deus,
salvífica, ela consiste em nos ensinar a fazer o bem unicamente com o objetivo de
adquirir o Espírito Santo, tesouro eterno, inesgotável, a que na dado mundo é digno de
se igualar.

É justamente a graça do Espírito Santo, simbolizada pelo óleo, que faltava às Virgens
Loucas. Elas são chamadas "loucas" porque não se preocupavam com o fruto
indispensável da virtude que a graça do Espírito Santo, sem o qual ninguém pode ser
salvo, pois "toda alma é vivificada pelo Espírito Santo para que seja iluminada pelo
sagrado mistério da Unidade Trinitária" (Antífona antes do Evangelho das matinas). O
próprio Espírito Santo vem habitar em nossas almas, e esta residência em nós do Todo-
Poderoso, a coexistência em nós de sua Unidade Trinitária com nosso espírito só nos é
dada à condição de trabalharmos por todos os meios a nosso alcance, na obtenção deste
Santo Espírito que prepara em nós um lugar digno deste encontro, segundo a imutável
palavra de Deus: "E viremos para ele, e faremos nele morada; e serei seu Deus e ele
será Meu povo" (Apo. 3:20; João 14:23). É isso, o óleo que as Virgens Prudentes
tinham em suas lâmpadas, óleo capaz de queimar durante muito tempo, alto e claro,
permitindo-as esperar a chegada, à meia-noite, do esposo, e a entrada, com Ele, no
quarto nupcial da felicidade eterna.

Quanto as Virgens Loucas, vendo que corriam o risco da lâmpada apagar, foram ao
mercado, mas não tiveram tempo de voltar antes da porta fechar. O mercado — é a
nossa vida. A porta do quarto nupcial, fechada, e interditando o acesso ao Esposo — é a
nossa morte humana; as virgens — prudentes e loucas — são as almas cristãs. O óleo
simboliza não as nossas ações, mas a graça pela qual o Espírito Santo enche nosso ser,
transformando isto naquilo; o corruptível em incorruptível, a morte psíquica em vida
espiritual, as trevas em luz, o estábulo onde, como animais, nossas paixões estão
acorrentadas, em Templo de Deus, em câmara nupcial onde encontramos nosso Senhor,
Criador e Salvador, Esposo de nossas almas. É grande a compaixão que Deus tem por
nosso infortúnio, quero dizer, por nossa negligência em relação à Sua solicitude. Ele diz
"Eis que estou à porta, e bato" (Apo. 3:20), entendendo-se por "porta" a corrente de
nossa vida ainda não estancada pela morte.

A Oração.

Ah, como eu gostaria, amigo de Deus, que nesta vida você estivesse sempre no Espírito
Santo. "Eu vos julgarei no estado em que vos encontrar," diz o Senhor (Mat. 13:33-37;
Luc. 19:12 em diante). Que grande infortúnio se Ele nos encontrar sobrecarregados
pelas preocupações e males terrestres, pois quem pode suportar Sua cólera e resistir-
Lhe? É por isso que foi dito: "Vigiai e orai para que não entreis em tentação" (Mat.
26:41), em outras palavras, para não ser privado do Espírito de Deus, pois as vigílias e
orações nos dão Sua graça.

É verdade que toda boa ação feita em Nome de Cristo confere a graça do Espírito Santo,
mas a oração mais do que tudo, por estar sempre à nossa disposição. Você poderia, por
exemplo, ter vontade de ir à igreja, mas a igreja é longe, ou o ofício já acabou; poderia
querer dar esmolas, mas você não vê um pobre por perto, ou não tem dinheiro; você
poderia querer permanecer virgem, mas não tem força suficiente para isso, por causa de
sua constituição ou das armadilhas do inimigo a que a fraqueza de sua carne não lhe
permite resistir; você poderia querer talvez encontrar uma outra boa ação para fazer em
Nome de Cristo, mas não tem força, ou a ocasião não se apresenta. Quanto à oração,
nada disso a afeta: Todos têm sempre a possibilidade de orar, ricos e pobres, famosos e
comuns, fortes e fracos, são e enfermos, virtuosos e pecadores.

Pode-se julgar o poder da oração, mesmo pecadora, sendo de um coração sincero, pelo
seguinte exemplo trazido pela Santa Tradição: por pedido de uma infeliz mãe que
acabara de perder seu único filho, uma cortesã que ela encontrou no caminho,
mobilizada pelo desespero maternal, ousou gritar ao Senhor, mesmo orando ainda suja
por seu pecado: "Não por mim, horrível pecadora, mas pelas lágrimas desta mãe que
chora seu filho crendo firmemente em Tua misericórdia e em Tua Onipotência,
ressuscita-o, Senhor!" E o Senhor o ressuscitou.

Tal é o poder da oração, amigo de Deus. Mais do que qualquer coisa, ela nos dá a graça
do Espírito de Deus e, mais do que tudo ela está sempre a nosso alcance. Bem
aventurados seremos quando o Senhor nos encontrar vigilantes, na plenitude dos dons
de seu Espírito Santo. Podemos então esperar ser arrebatados às nuvens ao encontro de
Nosso Senhor vindo pelos ares revestido de poder e de glória, julgar os vivos e os
mortos e dar a cada um seu quinhão.

Quando a Oração Cede a Vez ao Espírito Santo.

Você acha, amigo de Deus, que é uma grande felicidade poder conversar com o
miserável Serafim, por estar persuadido de que ele não é desprovido de graça. Que
diríamos, então, de uma conversa com o próprio Deus, fonte inesgotável de graças
celestes e terrestres? É pela oração que nos tornamos dignos de conversar com Ele,
nosso vivificante e misericordioso Salvador. Mas, ainda assim, só se deve orar até o
momento em que o Espírito Santo desce sobre nós e nos concede, em certa medida
conhecida apenas por Ele, Sua graça celeste. Visitado por Ele, é preciso parar de orar.

Com efeito, para que serve implorar-lhe: "Vem e habita em nós, purifica-nos de toda
impureza e salva as nossas almas, Tu que és bom"(Tropário ortodoxo recitado no
começo dos ofícios), quando Ele já veio, em resposta às nossas humildes e amorosas
solicitações, templo de nossas almas sedentas por sua vinda? Explico isto com um
exemplo. Suponhamos que você tenha me convidado à sua casa, que eu tenha vindo
conversar com você, mas que, apesar da minha presença, você não pare de repetir:
"Você gostaria de vir à minha casa?, eu certamente pensaria: "O que ele tem? Perdeu a
cabeça. Estou na casa dele, e ele continua me convidando." A mesma coisa é válida a
respeito do Espírito Santo. É por isso que foi dito: (segundo o texto francês) "Afastai-
vos, e sabei que Eu sou Deus; serei entre as nações, serei exaltado sobre a Terra" (Sal.
46:10). O que significa: aparecerei e continuarei a aparecer a cada crente e conversarei
com ele, como conversava com Adão no paraíso, com Abraão e Jacob e meus outros
servidores. Moisés, já e seus semelhantes. Muitos acreditam que este "afastamento"
deve ser interpretado como referindo-se aos negócios deste mundo, o que quer dizer que
ao se falar com Deus na oração é preciso se afastar de tudo o que é terrestre.
Certamente. Mas eu, por Deus, direi-lhes que apesar de que seja necessário, durante a
oração, afastar-se disto, também é preciso, quando o Senhor Deus, o Espírito Santo nos
visita e vem em nós na plenitude de Sua indescritível bondade, afastar-se da oração,
suprimir a própria oração.

A alma orando fala e profere palavras. Porém, na descida do Espírito Santo convém
estar absolutamente silencioso, a fim de que a alma possa ouvir claramente e
compreender bem os anúncios da vida eterna que Ele Se digna a trazer. A alma e o
espírito devem se encontrar em estado de completa sobriedade e o corpo em estado de
castidade e pureza. É assim que as coisas se passaram no Monte Horeb quando Moisés
ordenou aos israelitas que se abstivessem de mulheres três dias antes da descida de Deus
sobre o Sinai, pois Deus é "um fogo consumidor" (Heb. 12:29), e nada de impuro, física
ou espiritualmente, pode entrar em contato com Ele.

Comércio Espiritual.

— Mas como praticar, Padre, em Nome de Cristo, outras virtudes que permitiriam a
aquisição do Espírito Santo? O Senhor só fala da oração.

— Obtenha a graça do Espírito Santo negociando todas as virtudes possíveis em Nome


de Cristo, faça comércio espiritualmente, negocie as que lhe trazem mais benefícios. O
capital, fruto das bem aventuradas rendas da misericórdia divina, deve ser investido na
caderneta de poupança eterna de Deus de porcentagens imateriais, não somente de 4% e
6%, mas de 100% e até mais. Por exemplo, as orações e vigílias lhe trazem muitas
graças? Vigiem e orem. O jejum traz mais? — Jejuai. A caridade traz mais ainda? Faça
caridade. Considere assim cada boa ação feita em Nome de Cristo.
Vou lhe falar de mim, miserável Serafim. Nasci em uma família de comerciantes da
cidade de Kursk. Antes de minha entrada no mosteiro, eu e meu irmão negociávamos
diversas mercadorias, especialmente aquelas que nos traziam mais lucro. Faça o mesmo.
Assim como no comércio o objetivo é conseguir o máximo possível de lucro, também
na vida cristã o objetivo deve ser não somente de orar e fazer o bem, mas de obter o
maior número possível de graças. Apesar de o Apóstolo dizer: "Orai sem cessar" (I Tes.
5:17), ele acrescenta: "toda via eu antes quero falar cinco palavras na minha própria
inteligência do que 10 000 palavras em língua desconhecida" (l Cor. 14:19). E o Senhor
nos previne: "Nem todos o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de Meu Pai" (Mat. 7:21), em outras palavras, aquele que faz a
obra do Senhor com zelo (Jer. 48:10). E qual é esta obra, senão "Crer em Deus e
Naquele que Ele enviou" (João 6:29)? Se refletirmos corretamente sobre os
mandamentos do Cristo e dos Apóstolos, vemos que nossas atividades cristãs não
devem consistir unicamente em acumular boas ações, que não são senão meios de
chegar ao fim — mas tirar delas o maior lucro, quero dizer, obter os dons abundantes do
Espírito Santo.

Como eu gostaria, amigo de Deus, que você encontrasse esta fonte inesgotável de graça
e que você se interrogasse sem cessar: "O Espírito Santo está comigo? Se Ele está
comigo, bendito seja Deus, não preciso me preocupar — mesmo se o juízo final for
amanhã, estou pronto a comparecer. Porque foi dito: "Eu vos julgarei no estado em que
vos encontrar." Se, ao contrário, não temos mais a certeza de estar no Espírito Santo, é
preciso descobrir por que Ele nos abandonou e buscá-Lo sem parar, até achá-Lo
novamente, Ele e Sua graça. É preciso perseguir os inimigos que nos impedem de ir até
Ele até seu completo aniquilamento. O profeta David disse: "Persegui os meus inimigos
e os alcancei: não voltei senão depois de os ter consumido. Atravessei-os, de sorte que
não se puderam levantar; caíram debaixo dos meus pés" (Sal. 18:38-39).

Pois é, é bem assim. Faça comércio espiritual com a virtude. Distribua os dons da graça
a quem os pede, inspirando-se no seguinte exemplo: uma vela acesa, mesmo queimando
com um fogo terrestre, acende, sem por isso perder seu brilho, outras velas que
iluminarão outros lugares. Se esta é a propriedade do fogo terrestre, que dizer do fogo
da graça do Espírito Santo? A riqueza terrestre, distribuída, diminui. Quanto à riqueza
celeste da graça, ela não faz senão aumentar naquele que a propaga. Assim o próprio
Senhor diz à Samaritana: "Qualquer que beber desta água tornará a ter sede, mas
aquele que beber da água que Eu lhe der nunca terá sede, porque a água que Eu lhe
der se fará nele uma fonte d' água que salte para a vida eterna" (João 4:14).

Ver Deus.

— Padre, disse-lhe eu, o senhor sempre fala na aquisição da graça do Espírito Santo
como objetivo da vida cristã. Mas como posso reconhecê-la? As boas ações são visíveis.
Mas o Espírito Santo pode ser visto? Como posso saber se, sim ou não, Ele está em
mim?

— Na época em que vivemos — respondeu o staretz — chegamos a uma fé tão morna, a


tamanha insensibilidade no que diz respeito à comunhão com Deus, que nos afastamos
quase que totalmente da verdadeira vida cristã. Certas passagens das Escrituras nos
parecem estranhas hoje, por exemplo, quando o Espírito Santo, pela boca de Moisés,
diz: "Adão via Deus passeando no Paraíso" (Gen. 3:8) ou quando temos que o Apóstolo
Paulo foi impedido pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia, mas que o
Espírito o acompanhou quando foi a Macedonia (Ac. 16:6-9). Em muitas outras
passagens da Santa Escritura, várias vezes, fala-se da aparição de Deus aos homens.

Então alguns dizem: "Estes trechos são incompreensíveis. Pode-se admitir que homens
possam ver Deus de uma forma tão concreta?" Esta incompreensão vem do fato de que,
sob pretexto de instrução, de ciência, nós nos comprometemos com tamanha escuridão
de ignorância que achamos inconcebível tudo aquilo de que os anciões tinham uma
noção bastante clara, a ponto de poder falar entre si das manifestações de Deus aos
homens como de coisas conhecidas por todos e nem um pouco estranhas. Assim Jó,
quando seus amigos o censuravam por blasfemar contra Deus, respondia: "Como
poderia fazer isso quando sinto o sopro do Todo Poderoso nas minhas narinas?" (Jó.
27:3). Em outras palavras, como posso blasfemar quando o Espírito Santo está comigo?
Se eu blasfemasse, o Espírito Santo me abandonaria, mas sinto Sua respiração em
minhas narinas. Abraão e Jacó conversaram com Deus. Jacob até lutou com Ele. Moisés
viu Deus, e todo o povo com ele, quando ele recebeu as Tábuas da Lei no Sinai. Uma
coluna de nuvem de fogo — a graça visível do Espírito Santo — servia de guia ao povo
hebreu no deserto. Os homens viam Deus e Seu Espírito não em sonho ou em êxtase —
frutos de uma imaginação doentia — mas em realidade.

Por termos nos tornado desatentos, compreendemos as palavras da Escritura de forma


contrária à que se deveria. E tudo isso porque, ao invés de procurar a graça, nos a
impedimos, pelo orgulho intelectual, de vir habitar em nossas almas e nos iluminar,
como são iluminados aqueles que buscam a verdade com todo coração.

A Criação.

Muitos, por exemplo, interpretam as palavras da Bíblia: "E formou o Senhor Deus o
homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida" (Gen. 2:7), como
querendo dizer que até então não havia em Adão nem alma nem espírito humano, mas
somente uma carne criada do pó da terra. Esta interpretação não é exata, pois o Senhor
Deus criou Adão do pó da Terra no estado de que fala o Apóstolo Paulo quando afirma:
"e todo o nosso espírito, e alma, e corpo, sejam perfeitos na vinda do Senhor Jesus
Cristo."

Todas estas três partes de nosso ser foram criadas do pó da terra. Adão não foi criado
morto, mas criatura animal ativa, semelhante às outras criaturas que viviam sobre a terra
e animadas por Deus. Mas eis algo importante. Se Deus não houvesse depois soprado na
face de Adão o fôlego de vida, isto é, a graça do Espírito Santo procedente do Pai e
repousando sobre o Filho e enviando a este mundo por causa dele, sendo perfeito e
superior às outras criaturas, Adão teria ficado privado do Espírito divinizante e seria
semelhante a todas as criaturas que têm carne, alma e espírito conforme sua espécie,
mas privadas, no interior, do Espírito Santo que torna semelhante a Deus. A partir do
momento em que Deus lhe deu o sopro de vida, Adão se tornou, segundo Moisés, "uma
alma vivente" quer dizer, em tudo semelhante a Deus, eternamente imortal. Adão fora
criado invulnerável. Nenhum elemento tinha poder sobre ele. A água não podia afogá-
lo, o fogo não podia queimá-lo, a terra não podia engoli-lo e o ar não poderia fazer mal.
Tudo lhe era submetido como ao preferido de Deus, como ao proprietário e rei das
criaturas. Ele era a própria perfeição, a coroa das obras de Deus, e era admirado como
tal. O fôlego da vida que Adão recebeu do Criador encheu-o de sabedoria ao ponto de,
jamais ter havido, e provavelmente jamais vir a nascer, um homem tão cheio de
conhecimento e de sabedoria quanto ele. Quando Deus lhe ordenou que desse nomes a
todas as criaturas, ele as nomeou segundo as qualidades, as forças e as propriedades
conferidas por Deus a cada uma.

Este dom da graça divina supranatural, vinda do fôlego de vida que recebera, permitia a
Adão ver Deus passeando no paraíso e compreender suas palavras, assim como a
conversa dos santos Anjos e a língua de todas as criaturas, pássaros, répteis que vivem
sobre a terra, tudo o que nos é dissimulado, a nós pecadores, desde a queda, mas que,
antes da queda, era totalmente claro para Adão.

A mesma sabedoria, a mesma força e o mesmo poder, assim como qualquer outra
qualidade boa e santa, haviam sido conferidas por Deus a Eva no momento da criação,
não do pó da terra, mas de uma costela do Adão no Éden das delícias, no paraíso
manifestado no meio da terra.

A Árvore da Vida e o Pecado Original.

Para que Adão e Eva sempre pudessem manter em si suas propriedades imortais,
perfeitas e divinas, vindas do sopro da vida, Deus plantou no meio do paraíso a árvore
da vida, em cujos frutos toda a substância e a plenitude dos dons de seu divino fôlego.
Se Adão e Eva não houvessem pecado, teriam podido, eles e seus descendentes,
comendo os frutos daquela árvore, manter em si a força vivificante da graça divina,
assim como uma plenitude imortal, eternamente renovada, das forças corporais,
psíquicas e espirituais, um não-envelhecimento perpétuo, um estado de beatitude que
nossa imaginação atual mal consegue conceber.

Porém, tendo provado do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, antes da


hora e contrariamente aos mandamentos de Deus, conheceram a diferença entre o bem e
o mal e tornaram-se vítimas dos desastres que se abateram sobre eles após infringirem o
mandamento divino. Perderam o precioso dom da graça do Espírito Santo e até a vinda
à terra de Jesus Cristo, Deus-Homem "O Espírito Santo não estava no mundo, por
ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 3:39).

O Espírito de Deus no Antigo Testamento.

Isto não quer dizer que o Espírito Santo tenha abandonado completamente o mundo,
porém sua presença não era tão manifesta como era em Adão ou como é em nós cristãos
ortodoxos, mas permanecia exterior, e os homens bem sabiam. Assim por exemplo,
muitos segredos a respeito da futura redenção da humanidade foram revelados a Adão e
Eva após a queda. Apesar do seu crime, Caim pôde ouvir a voz divina proferindo
reprimendas. Noé conversou com Deus. Abraão viu Deus e Sua Luz e se rejubilou. A
graça do Espírito Santo manifestava-se exteriormente em todos os profetas
veterotestamentários e nos santos de Israel. Os judeus tinham até escolas especiais para
aprender a discernir os sinais das aparições de Deus ou dos anjos e a diferenciar as
ações do Espírito Santo dos acontecimentos da vida cotidiana, privada da graça.
Simeão, Joaquim e Ana, e vários outros servidores de Deus eram frequentemente
gratificados por manifestações divinas. Eles ouviam vozes, recebiam revelações
confirmadas em seguida por acontecimentos miraculosos, porém verídicos.

O Espírito de Deus entre os Pagãos.

O Espírito de Deus manifestava-se igualmente, embora com uma força menor, entre os
pagãos que não conheciam o verdadeiro Deus, mas entre os quais Ele também
encontrava adeptos. As virgens profetisas, por exemplo, as sibilas, mantinham a
virgindade para um Deus Desconhecido — mas ainda assim um Deus — que se
estimavam ser o Criador do Universo, o Todo-Poderoso que governava o mundo. Os
filósofos pagãos, errando nas trevas da ignorância de Deus, porém em busca da verdade,
podiam, por causa desta busca agradável ao Criador, receber, até certo ponto o Espírito
Santo. Está dito: "As nações que ignoram Deus agem segundo a lei natural e fazem o
que lhe agrada" (Rom. 2:14). A verdade é tão agradável a Deus que Ele mesmo
proclama por meio de Seu Espírito: "A justiça" irradia da Terra e a verdade se inclina
dos céus (Sal. 85:11).*

É assim que o conhecimento de Deus se conservou no povo eleito, amado de Deus, da


mesma forma que entre os pagãos que ignoravam Deus, desde a queda de Adão e até a
Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

* (N. da T) — Na tradução de J. F. de Almeida figura: Rom. 2. 14 — Porque, quando os gentios


que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos
são lei. Sal. 85. 11 — A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus.

A Vinda de Cristo Revelada pelo Espírito Santo.

Sem este conhecimento sempre conservado claramente no gênero humano, como


poderiam os homens saber ao certo se Ele viera, Ele que, segundo a promessa feita a
Adão e Eva, devia nascer de uma Virgem destinada a esmagar a cabeça da serpente?

Mas eis que São Simeão — a quem foi revelado, à idade de 65 anos, o mistério da
concepção e do nascimento virginal de Cristo proclamou em voz alta no Templo que
tinha certeza, no Espírito Santo, de ver diante de si o Cristo, Salvador do Mundo, cujo
nascimento, da Puríssima Virgem Maria, havia lhe sido predito 300 anos antes por um
anjo **. E também Sant'Anna, a profetisa, filha de Fanuel, que desde a viuvez, durante
80 anos serviu o Templo, mulher cheia de graça e sabedoria, anunciou que ali estava o
Messias, o verdadeiro Cristo, Deus e homem, o Rei de Israel vindo salvar Adão e todo o
gênero humano.

** (N. da Ed. original) O texto é aqui provindo de uma tradição apócrifa, segundo a qual o
ancião Simeão teria vivido até os 385 anos.

Renovação do "Fôlego de Vida" Perdido por Adão.

Quando Nosso Senhor Jesus Cristo completou Sua obra de salvação, ressuscitado dos
mortos, Ele soprou sobre os Apóstolos, renovando o sopro de vida de que Adão usufruía
e lhes devolvendo a mesma graça que Adão havia perdido. Mas isto não é tudo. Ele lhes
disse: "Digo-vos a verdade, que vos convêm que vá; porque, se Eu não for, o
Consolador não virá a vós; mas, se Eu for, enviar-vo-Lo-ei; e quando Ele vier, Ele vos
guiará em toda a verdade; vós e todos os que crerem em vosso ensinamento e Ele vos
fará lembrar tudo quanto vos tenho dito" (João 16:7-26). É a graça que Ele já prometia.
"Graça sobre graça."

O Pentecostes.

E eis que no dia de Pentecostes, Ele lhes enviou solenemente o Espírito Santo em um
sopro de tempestade, sob o aspecto de línguas de fogo que pousaram sobre cada um
deles e encheram-nos da força fulgurante da graça divina, orvalho vivificante e alegria
para as almas daqueles que comungam com Seu poder e Seus efeitos.

O Batismo.

Esta graça fulgurante do Espírito Santo é conferida a todos nós fiéis de Cristo, no
sacramento do batismo. Ela é selada pelo crisma — unção feita com os santos óleos
sobre os principais membros de nosso corpo indicados pela Santa Igreja, depositária
eterna desta graça. Dizemos: "O selo do dom do Espírito Santo" Ora, sobre o que
colocamos nossos selos senão sobre os recipientes cujo conteúdo é particularmente
precioso? E o que há de mais precioso e demais sagrado no mundo do que os dons do
Espírito Santo enviados do Alto durante o sacramento do batismo?

Esta graça batismal é tão grande, tão importante, tão vivificante para o homem que
mesmo se ele se torna um herege ela não lhe é retirada até a morte, isto é, até o fim de
sua prova temporal fixada pela Providência, a fim de lhe dar uma chance de se reerguer.

Se não pecássemos, seríamos sempre servidores de Deus santos e imaculados, estranhos


a toda impureza do corpo e do espírito. A infelicidade é que, avançando em idade nós
não crescemos em sabedoria e graça como o fazia Nosso Senhor Jesus Cristo (La 2:52),
mas, ao contrário, nos depravamos cada vez mais e, privados do Espírito Santo,
tornamo-nos grandes abomináveis pecadores.

Arrependimento.

Quando um homem, trazido de volta à vida pela sabedoria divina sempre em busca de
nossa salvação, decide se voltar para Deus para escapar da perdição, deve seguir a via
do arrependimento, praticar as virtudes contrárias aos pecados cometidos, e agindo em
Nome de Cristo, esforçar-se por adquirir o Espírito Santo que, dentro de nós, prepara o
Reino Celeste.

Não foi à toa que o Verbo disse: "O Reino de Deus está dentro de vós.* Entra-se nele
pela violência do esforço" (Luc 17:21). Se, apesar dos laços do pecado que os mantêm
cativos, impedindo-os, por renovadas iniqüidades, de voltar-se para o Salvador em
perfeita contrição, os homens se esforçarem por romper estes laços, eles chegarão
finalmente perante a Face de Deus mais brancos do que a neve, purificados por Sua
graça.

"Vinde, diz o Senhor, e ainda que vossos pecados sejam como a escarlata, eles se
tornarão brancos como a neve" (Isa. 1:18). O Vidente do Apocalipse, o Apóstolo São
João Teólogo, viu tais homens vestidos de branco, justificados, com palmas nas mãos
em sinal de vitória e entoando Aleluia. Era incomparável a beleza deste canto. O Anjo
do Senhor disse falando deles: "Estes são os que vieram da ** grande tribulação, e
levaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro" (Apo. 7:14).

* (N. da T). — No francês figura "dentro de vós" ("au dedans de vous") . Na tradução de J. F. de
Almeida, entretanto, temos "entre vos."

** (N. da T). -em J. F. A., figura . . . de grande tribulação. . .

O Sangue do Cordeiro Dado em Troca do Fruto da Árvore da Vida.

"Lavado" pelo sofrimento, "perfeitamente limpo" ao comungar nos santos mistérios da


Carne e do sangue do Cordeiro imaculado, Cristo voluntariamente imolado antes dos
séculos para a salvação do mundo e ainda hoje imolado, fracionado, jamais consumido a
fim de nos fazer participar na vida eterna e nos permitir justificar-nos no Juízo Final.
Mistério dado em troca — para além de todo entendimento — daquele fruto da árvore
da Vida com que o inimigo da humanidade, Lúcifer caído do céu, queria enganar o
gênero humano.

 
A Virgem Maria.

Apesar do fato de satan ter seduzido Eva, arrastando Adão em seguida, Deus não
somente nos deu um Redentor que pela Morte venceu a Morte, mas também na pessoa
de Maria, a Mãe de Deus, Maria sempre Virgem, que esmagou em Si mesma e em todo
o gênero humano a cabeça da serpente, Ele nos forneceu uma advogada incansável ante
Seu Filho e nosso Deus, uma medianeira invencível pelos pecadores mais endurecidos.
E por causa disso que Ela é chamada "O Flagelo dos demônios" pois é impossível que
um demônio faça um homem perecer enquanto o próprio homem não parar de recorrer à
ajuda da Theotokos.

Diferença entre a Ação do Espírito Santo e a do maligno.

Devo ainda, eu, miserável Serafim, explicar-lhe, amigo de Deus, em que consiste a
diferença entre a ação do Espírito Santo tomando posse misteriosamente dos corações
daqueles que crêem em Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e a ação tenebrosa do
pecado que vem a nós como um ladrão, instigado pelo demônio.

O Espírito Santo nos traz à memória as palavras de Cristo e trabalha em sintonia com
Ele, guiando nossos passos, solene e alegremente, no caminho da paz. Enquanto que as
ações do espírito diabólico, oposto ao Cristo, nos incitam à revolta e nos tornam
escravos da luxúria, da vaidade e do orgulho.

"Em verdade, em verdade vos digo, aquele que crê em Mim não morrerá jamais" (João
6:47). Aquele que por sua fé em Cristo está de posse do Espírito Santo, mesmo tendo
cometido por fraqueza humana um pecado qualquer, causando a morte de sua alma, não
morrerá para sempre, mas será ressuscitado pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
que tomou para Si os pecados do mundo e que dá gratuitamente graça após graça.

É falando desta graça manifestada ao mundo inteiro e a nosso gênero humano pelo Deus
Homem que o Evangelho diz: "De todo ser Ele era a vida, e a vida era a luz dos
homens," e acrescenta: "e a luz resplandece nas trevas, e as trevas não O
compreenderam" (João l:4-5). O que quer dizer, que a graça do Espírito Santo recebida
no batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, apesar das quedas
pecaminosas, apesar das trevas que envolvem nossa alma, continua a resplandecer em
nosso coração com sua eterna luz divina por causa dos inestimáveis méritos de Cristo.
Diante de um pecador endurecido, esta luz de Cristo diz ao Pai: "Abba, pai, que Tua
cólera não se acenda contra este endurecimento." E, em seguida, quando o pecador se
volta ao arrependimento, ela apagará completamente os traços dos crimes cometidos,
revestindo o antigo pecador de uma veste de incorruptibilidade tecida pela graça deste
Espírito Santo de cuja aquisição lhe falo o tempo todo.

A Graça do Espírito Santo é Luz.


Ainda é preciso que lhe diga, para que você possa compreender melhor o que se deve
entender por graça divina, como se pode reconhecê-la como ela se manifesta aos
homens que ela ilumina: a Graça do Espírito Santo é Luz.

Toda a Santa Escritura fala disso. David, o ancestral do Deus Homem, disse: "Lâmpada
para os meus pés é Tua palavra, e luz para o meu caminho" (Sal. 119:105). Quer dizer, a
graça do Espírito Santo que a lei revela sob forma de mandamentos divinos é minha
luminária e minha luz, e se não fosse esta graça do Espírito Santo "que com tanta
dificuldade me esforço por adquirir, buscando sete vezes por dia sua verdade" (Sal.
119:164)*, como no meio de numerosas preocupações inerentes a minha posição real
poderia eu encontrar em mim uma só faísca de luz para me clarear no caminho da vida
obscurecida pelo ódio de meus inimigos?

Com efeito, o Senhor mostrou várias vezes, na presença de numerosas testemunhas, a


ação da graça do Espírito Santo sobre os homens que Ele havia clareado e ensinado por
meio de grandiosas manifestações. Lembrem-se de Moisés após seu encontro com Deus
no Monte Sinai (Exo. 34:30-35). Os homens não podiam sequer fitá-lo, de tanto que seu
rosto brilhava com uma luz extraordinária. Ele foi até obrigado de se apresentar ao povo
com o rosto coberto por um véu. Lembre-se da Transfiguração do Senhor no Tabor. "E
transfigurou-se diante deles, e Seus vestidos se tornaram brancos como a neve. . . e seus
discípulos cheios de medo caíram sobre seus rostos." Quando Moisés e Elias
apareceram revestidos pela mesma luz "uma nuvem luminosa os cobriu para que eles
não ficassem cegos" (Mat. 17:1-8; Mac. 9:2-8; Luc. 9:28-37). É assim que a graça do
Espírito Santo de Deus aparece em uma luz inefável àqueles a quem Deus manifesta
Sua ação.

* (N. da T) — O versículo citado é "Sete vezes no dia Te louvo pelos juízos da tua justiça."

Presença do Espírito Santo.

— Como, então, perguntei ao Padre Serafim, posso reconhecer em mim a presença da


graça do Espírito Santo?

— É muito simples — respondeu ele. Deus disse: "Tudo é simples para aquele que
adquire a Sabedoria" (Pro. 14:6)*. Nosso infortúnio é que não a procuramos, esta
Sabedoria divina que, não sendo deste mundo, não é presunçosa. Cheia de amor por
Deus e pelo próximo, ela modela o homem para sua salvação. É falando desta Sabedoria
que o Senhor disse: "Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade" (ITim. 2:4). A seus Apóstolos que careciam desta Sabedoria, Ele disse: "Como
lhes falta Sabedoria! Não lestes as Escrituras?" (Luc. 24:25-27). E o Evangelho diz que
Ele "lhes abriu a inteligência para que eles pudessem compreender as Escrituras."
Tendo adquirido esta Sabedoria, os Apóstolos sabiam sempre se, sim ou não, o Espírito
de Deus estava com eles e, cheios deste Espírito, afirmavam que sua obra era santa e
agradável a Deus. É por isso que, em suas Epístolas, eles podiam escrever: "pareceu
bem ao Espírito Santo e a nós" (Ato. 15:28), e era apenas por estarem persuadidos de
Sua presença sensível que eles enviavam suas mensagens. Então, amigos de Deus, esta
vendo como é simples?

Respondi:

— Ainda assim, não compreendo como posso ficar absolutamente seguro de me


encontrar no Espírito Santo. Como posso eu mesmo desvendar em mim Sua
Manifestação?

O Padre Serafim respondeu:

— Já lhe disse que é muito simples e lhe expliquei com detalhes como os homens se
encontravam no Espírito Santo e como era preciso compreender Sua manifestação em
nós. . . que lhe falta ainda?

— Ainda me falta compreender realmente bem.

* (N. daT). — Em J. F. A.: "Para o prudente, o conhecimento é fácil."

A Luz Incriada.

Então o Padre Serafim me pegou pelos ombros e, apertando-os fortemente, disse:

— Estamos ambos, você e eu, na plenitude do Espírito Santo. Por que você não olha
para mim?

— Não consigo, Padre, olhar para o senhor. Raios jorram de seus olhos. Seu rosto
tornou-se mais luminoso do que o Sol. Meus olhos estão ardendo. . .

O Padre Serafim disse:

— Não tenha medo, amigo de Deus. Você ficou tão luminoso quanto eu. Você também
esta agora na plenitude do Espírito Santo, senão não conseguiria me ver.

Inclinando a cabeça em minha direção, disse-me ao pé do ouvido:

— Agradeça ao Senhor por nos ter concedido esta graça indescritível. Você viu — eu
nem mesmo fiz o Sinal da Cruz. Em meu coração, em pensamento somente, eu orei:
"Senhor, torna-o digno de ver claramente, com os olhos da carne, a descida do Espírito
Santo, como a Teus servidores eleitos quando Te dignaste aparecer-lhes na
magnificência da Tua glória!" E imediatamente Deus atendeu a humilde prece do
miserável Serafim. Como deixar de Lhe agradecer por este dom extraordinário que Ele
concede a nós dois? Não é sempre que Deus manifesta assim Sua graça, nem mesmo
aos grandes eremitas. Como uma mãe amorosa, essa graça dignou-se a consolar seu
coração desolado, pela oração da própria Mãe de Deus. Mas por que você não me olha
nos olhos? Ouse me fitar sem medo, Deus está conosco.
Depois de ouvir isto, ergui meus olhos para seu rosto e um medo maior ainda se
apossou de mim. Imagine no meio do Sol, no mais forte esplendor de seus raios do
meio-dia, o rosto de um homem que lhe fala. Você vê o movimento dos lábios dele, a
expressão de seus olhos mudando, você ouve o som da voz dele, você sente a pressão
das mãos dele sobre seus ombros, mas ao mesmo tempo você não percebe nem as mãos
nem o corpo dele, e nem o seu, nada senão uma faiscante luz se propagando à volta, a
uma distância de muitos metros iluminando a neve que cobria a planície e caía sobre
mim e o staretz. Pode-se imaginar a situação em que eu estava?

— O que você sente agora? — respondeu o Padre Serafim.

— Sinto-me extraordinariamente bem.

— Como, "bem"? O que você quer dizer com "bem"?

— Minha alma está repleta de um silêncio e uma paz inexprimíveis.

— Aí está, amigo de Deus, aquela paz de que o Senhor falava quando dizia a Seus
discípulos: "Deixo-vos a Minha paz, não como o mundo a dá. Sou Eu que dou-a a vós.
Se vós fosseis deste mundo, este mundo vos amaria. Mas Eu vos escolhi e o mundo nos
odeia. Mas tendes bom ânimo, Eu venci o mundo" (João 14:27; 15:19; 16:33). É a esses
homens, eleitos por Deus porém, odiados pelo mundo, que Deus dá a paz que você sente
neste momento, essa paz, diz o Apóstolo, "que excede todo o entendimento" (Fil. 4:7).
O Apóstolo a chama assim porque nenhuma palavra consegue exprimir o bem-estar
espiritual que ela faz nascer nos corações dos homens onde o Senhor a implanta. Ele
próprio a chama Sua paz (João 14:27). Fruto da generosidade de Cristo e não deste
mundo, nenhuma felicidade terrestre pode facultá-la. Enviada do alto pelo próprio Deus,
ela é a Paz de Deus. O que mais você sente?

— Uma doçura extraordinária.

— É a doçura de que falam as Escrituras. "Eles tomarão a bebida de Tua casa e tu os


saciará com a torrente das Tuas delícias" (Sal. 36:8). Ela transborda de nosso coração,
corre em nossas veias, propicia uma Sensação de delícia inexprimível. . . O que mais
você sente?

— Uma alegria extraordinária em meu coração.

— Quando o Espírito Santo desce sobre o homem com a plenitude de Seus dons, a alma
humana fica repleta de uma alegria indiscutível, e o Espírito Santo recria em júbilo tudo
aquilo que toca. É desta alegria que o Senhor fala no Evangelho quando diz: "A mulher,
quando esta para dar à luz, sente dor, porque é chegada sua hora. Mas, depois de ter
dado à luz a criança, já não se lembra da dor, tamanha é sua alegria. Assim também vós
agora, vos tereis de sofrer neste mundo, mas quando Eu vos visitar o vosso coração se
alegrará e vossa alegria ninguém poderá tirar" (João 16:21-22).

Por maior e mais consoladora que seja, a alegria que você sente neste momento é nada
em comparação com aquela que o Senhor descreve, por intermédio de Seu Apóstolo: "A
alegria que Deus reserva àqueles que O amam está para além de tudo o que pode ser
visto, ouvido e sentido pelo coração do homem neste mundo" (ICor. 2:9). O que nos é
concedido agora não passa de um gostinho desta alegria suprema. E se desde agora nós
sentimos doçura, júbilo e bem estar, que dizer desta outra alegria que nos está reservada
no céu após termos chorado aqui embaixo? Você já chorou bastante em sua vida e está
vendo que consolação o Senhor lhe dá na alegria, desde aqui embaixo. Agora cabe a
nós, amigo de Deus, usar todas as nossas forças para subir de glória em glória e
"Constituir este homem perfeito, na força da idade, que realiza a plenitude do Cristo"
(Efe. 4. 13). "Os que esperam no Senhor renovarão as suas forças, subirão com asas
como águas; correção, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão" (Isa.
40:31). "Andarão de altura em altura e Deus lhes aparecerá em Sião" (Sal. 84:7)*. Aí é
que nossa alegria atual, pequena e breve, se manifestará em toda sua plenitude e
ninguém poderá no-la tirar, pois estaremos repletos de indescritíveis volúpias
celestes. . . Que mais está sentindo, amigo de Deus?

— Um calor extraordinário.

— Como, um calor? Não estamos na floresta, em pleno inverno? Há neve em nossos


pés e sobre todo nosso corpo, e ela não para de cair. . . Que calor é esse?

— É um calor parecido com um banho de vapor.

— E o cheiro é como o de um banho?

— Ah, não! Nada no mundo pode se comparar a este perfume. Na época em que minha
mãe ainda era viva, eu gostava de dançar, e quando ia ao baile, ela me borrifava
perfumes caros que comprava nas melhores lojas de Kazan. Mas o cheiro deles não se
comparava com estes aromas.

O Padre Serafim sorriu.

* (N. daT). — A tradução de J. F. de Almeida apresenta, no Sal. 84:7:"Vão indo de força em


força; cada um deles em Sião aparece perante Deus."

— Sei disso, meu amigo, tão bem quanto você, e é de propósito que a lhe pergunto. É
verdade — nenhum perfume terrestre pode se comparar ao cheiro bom que respiramos
neste momento — o cheiro bom do Espírito Santo. O que é que pode ser parecido com
isto, na terra? Você disse a pouco que fazia calor, como em um banho. Mas veja, a neve
que nos cobre não esta derretendo. O calor não está no ar, mas sim dentro de nós. É
aquele calor de que o Santo Espírito nos fez pedir em oração: "Que Teu Espírito Santo
nos aqueça!" Esse calor permitia aos eremitas, homens e mulheres, não temerem o frio
do inverno, por estarem envoltos, como por um manto forrado, por uma veste tecida
pelo Espírito Santo.

É assim que deveria ser na realidade, a graça divina habitando no mais profundo de nós,
em nosso coração. O Senhor disse: "O Reino dos céus está dentro de vós" (Luc. 17:21)
— Na Tradução de J. F. de Almeida consta . . . "entre vós" — Por Reino dos Céus, Ele
entende a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está em nós agora. O Espírito
Santo nos ilumina e nos aquece. Ele preenche o ar ambiente com perfumes variados,
alegra nossos sentidos e sacia nossos corações com uma alegria indescritível. Nosso
estado atual é semelhante àquele de que fala o Apóstolo Paulo: "O Reino de Deus não é
comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rom. 14:17). Nossa
fé não se baseia em palavras de sabedoria terrestre, mas na manifestação do poder do
Espírito. É o estado em que estamos agora e que o Senhor tinha em vista quando dizia
"Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem
que vejam chegado o reino de Deus com poder."

Veja, amigo de Deus, que alegria incomparável o Senhor se dignou a nos conceder.
Veja o que é "estar na plenitude do Espírito Santo." É o que quer dizer São Macário do
Egito quando escreve: "Estive eu mesmo na plenitude do Espírito Santo." Mesmo sendo
humildes como somos, o Senhor também a nos encheu da plenitude de Seu Espírito.
Parece-me que a partir de agora você não terá mais o que perguntar sobre como a
presença da graça do Espírito Santo se manifesta no homem.

Esta manifestação ficará para sempre gravada em sua memória?

— Não sei, Padre, se Deus me tornará digno de lembrar-me sempre dela, com tanta
nitidez quanto agora.

Difusão da Mensagem.

— Eu, ao contrário — respondeu o staretz — acho que Deus o ajudará a guardar para
sempre estas coisas na memória. Senão Ele não teria sido tão rapidamente tocado pela
humilde prece do miserável Serafim e não teria realizado seu desejo tão depressa. Ainda
mais que não é só a você que foi concedido ver a manifestação desta graça, mas ao
mundo todo por seu intermédio. Você próprio assegurado, será útil para outros.

Monge e Leigo.

Quanto a nossos estados diferentes de monge e leigo, não se preocupe. Deus procura
antes de tudo um coração cheio de fé nEle e em Seu Filho único, e em resposta à fé Ele
envia do alto a graça do Espírito Santo. O Senhor busca um coração cheio de amor por
Ele e pelo próximo — eis um trono, sobre o final Ele gosta de se sentar e onde Ele
aparece na plenitude de Sua Glória. "Dá-me, filho meu, Teu coração, e o resto eu Te
darei por acréscimo" (Pro. 23:26)*. O coração do homem é capaz de conter o Reino dos
Céus. "Buscai primeiro o reino dos Céus e Sua justiça — disse o Senhor aos Seus
discípulos — e o resto vos será acrescentado, pois Deus, vosso Pai, sabe que necessitais
de todas estas coisas" (Mat. 6:32-33).

* (N. da T).: J. F. de Almeida apresenta "Dá-me, filho meu, o teu coração, e os teus olhos
observem os meus caminhos."
 

Legitimidade dos Bens Terrestres.

O Senhor não reprova que gozemos dos bens terrestres e Ele próprio diz que, dada nossa
situação aqui embaixo, precisamos deles para dar tranquilidade às nossas existências e
tornar mais cômodo e fácil o caminho para nossa pátria celeste. E o Apóstolo Pedro
estima que não há nada melhor no mundo do que a piedade unida ao contentamento. A
Santa Igreja ora para isto nos seja dado. Apesar de que as dificuldades, os infortúnios e
as necessidades sejam inseparáveis de nossa vida na terra, o Senhor nunca quis que as
preocupações e misérias constituíssem toda a sua trama. É por isso que, pela boca do
Apóstolo, Ele nos recomenda que carreguemos os fardos uns dos outros para obedecer a
Cristo que pessoalmente nos deu o preceito de nos amarmos mutuamente.
Reconfortados por este amor, a dolorosa caminhada na estreita via que leva à nossa
pátria celeste nos será facilitada. Não desceu o Senhor do céu não para ser servido, mas
para servir e dar Sua vida em resgate de muitos? (Mat 20:28; Mc 10:45).

Faça o mesmo, amigo de Deus e, consciente da graça de que visivelmente você foi
objeto, comunique-a a todo homem que deseje a salvação.

Atividade Missionária.

"A Seara é grande" disse o Senhor, "Mas poucos os ceifeiros" (Mat. 9:37-38; Luc
10:21). Tendo recebido os dons da graça, somos chamados a trabalhar na colheita das
espigas da salvação de nossos próximos, para os enceleirar em grande número no Reino
de Deus a fim de que eles tragam seus frutos, uns a trinta, outros a sessenta, outros a
cem. Estejamos atentos para não sermos condenados junto com o servo preguiçoso que
enterrou a moeda a ele confiada, e tratemos de imitar os servos fiéis, que devolveram ao
Senhor quatro, ao invés de dois, e dez, ao invés de cinco (Mat 25:14-30; Luc 19:12-27).
Quanto à misericórdia divina, não se deve duvidar dela: veja você mesmo como as
palavras de Deus, ditas por um profeta, se realizaram para nós. "Eu não sou um Deus
longínquo" (Jer. 23:23; Na tradução de J. F. de Almeida, figura: "Sou Eu apenas Deus
de perto, e não também o Deus de longe?")

Poder da Fé.

Mal fiz, miserável, o sinal da cruz, mal desejei em meu coração que o Senhor "nos
tornasse dignos de ver Sua misericórdia, em toda sua plenitude, imediatamente Ele se
apressou em realizar o meu desejo. Não digo isso para me glorificar, nem para lhe
mostrar minha importância e deixá-lo com ciúmes, ou para que pense que é porque eu
sou monge e você é leigo, não, amigo de Deus, não. "O Senhor está junto àqueles que O
invocam. Ele não faz acepção de pessoas. O Pai ama o Filho e tudo colocou em Suas
mãos."
Contanto que amemos a Ele, nosso Pai celeste, realmente como filhos. O Senhor ouve
igualmente um monge e um homem do mundo, um simples cristão, contanto que ambos
sejam ortodoxos (tenham a verdadeira fé), amem a Deus no fundo do seu coração e
tenham uma fé "grande como uma montanha" (Mat 13:31-32; Mc 4:30-32; Luc 13:18-
19), ambos removerão montanhas (Mc 11:23). "Como pode ser que um só perseguisse
mil, e dois fizessem fugir dez mil" (Deu. 32:30). O próprio Senhor falou: "Tudo é
possível àquele que crê" (Mc 9:23). E o santo Apóstolo Paulo exclama: "Tudo posso
com Cristo que me fortalece" (Fil 4. 13). Mais maravilhosas ainda são as palavras do
Senhor a respeito dos que crêem n'Ele: "Na verdade vos digo que aquele que crê em
Mim também fará as obras que Eu faço, e as fará maiores do que estas: porque Eu vou
para meu Pai. E tudo quanto pedirdes em Meu nome eu O farei, para que o Pai seja
glorificado no Filho. Se pedirdes alguma coisa em Meu nome, eu o farei (João 14:12-
14). "E rogarei por vós a fim de que nossa alegria seja perfeita. — Na tradução de J. F.
de Almeida este trecho não constam do versículo 24. — Até agora nada pedistes em
Meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra" (João 16:24).

É assim, amigo de Deus. Tudo o que você pedir a Deus, você obterá, contanto que seu
pedido seja para a glória de Deus ou para o bem de seu próximo. Pois Deus não separa o
bem do próximo de Sua Glória. "Tudo o que fizerdes ao menor dentre vós, é a Mim que
o fareis" (Mat 10:40; Mc 9:37; Luc 9:48). Esteja certo de que o Senhor realizará seus
pedidos; contanto que eles sejam feitos para a edificação e utilidade de seu próximo.
Mas mesmo que seja para sua própria necessidade ou utilidade ou benefício que você
pede alguma coisa, não tenha dúvida que Deus lhe concederá, se houver realmente
necessidade, pois Ele ama os que O amam. Ele é bom para com todos. Sua misericórdia
igualmente se entende àqueles que não invocam Seu Nome. Mais ainda fará as vontades
dos que O temem. Ele realizará todos os seus pedidos, Ele não os recusará, por causa de
sua fé ortodoxa em Cristo Salvador, pois Ele não abandona o certo dos justos nas mãos
dos pecadores (Sal. 125:3)* e certamente fará a vontade de David Seu servo. Entretanto,
Ele poderá lhe perguntar porque foi incomodado sem necessidade e porque você
solicitou algo de que poderia facilmente se abster.

É isso, amigo de Deus, agora lhe disse tudo e mostrei na realidade tudo o que o Senhor e
Sua Santa Mãe quiseram lhe mostrar por intermédio do miserável Serafim. Vá em paz,
então. Que o Senhor e Sua Santa Mãe estejam com você agora e sempre e pelos séculos
dos séculos. Amém, Vá em paz.

Durante todo o encontro, desde o momento em que o rosto do Padre Serafim se


iluminou, a visão de luz continuou, e sua postura, do começo ao fim deste relato,
permaneceu a mesma.

Quanto ao indescritível esplendor da luz que ele irradiava, eu vi com meus próprios
olhos, e estou pronto a afirmá-lo sob juramento.

* Nota da Edição Francesa — Não raro, foi difícil estabelecer as referências acima. São Serafim,
cujo espírito estava "imerso" nas Santas Escrituras (como, segundo ele próprio, o espírito de
todo homem deveria estar), citava de memória e a tradução do eslavo que ele empregava nem
sempre corresponde exatamente à versão da Bíblia de Jerusalém!

 
Nota de Sérgio Nilus (Escritor a quem o manuscrito de Motovilov foi confiado 72 anos mais tarde, pela
viúva deste).

Aqui termina o manuscrito de Motovilov. Não cabe a mim divulgar e salientar a importância deste escrito
que, aliás, dispensa comentários — fala por si mesmo com uma força a que nenhum palavrorio deste
mundo poderia se igualar.

Mas precisava se ver em que estado me foram dados os papéis de Motovilov que encerravam este
tesouro! Cobertos de poeira, de penas e excrementos de pássaros, estavam misturados com faturas, diários
de contabilidade agrícola, totalmente inúteis, copias de requerimentos administrativos e cartas de
particulares, aos montes, tudo misturado, pesando no total mais de quarenta quilos. Os papéis, em
péssimo estado, estavam cobertos de uma letra tão ilegível que me apavorou. Como compreender alguma
coisa?

Tentando me orientar naquele caos, encontrei muitas dificuldades — a letra, especialmente, era para mim
um enorme obstáculo — e quase entrei em desespero. Mas de tempos em tempos, no meio da tralha toda,
brilhava, como uma faísca, uma frase cifrada pela metade: "O Padre Serafim me disse. . ." Disse o que? O
que ocultavam aqueles incompreensíveis hieróglifos? Fiquei desolado.

Uma noite, lembro-me bem, após um dia passado em um trabalho delicado e infrutífero, não aguentando
mais, exclamei: "Padre Serafim, será possível que tenha feito chegar a minhas mãos, em um fim-de-
mundo como Diveyevo, os manuscritos de seu "Pequeno Servo" (Motovilov) para que, indecifrados, eles
voltem ao esquecimento? A invocação partiu do fundo do meu coração. Na manhã seguinte, ao começar a
triagem dos papéis, caí imediatamente no manuscrito e no mesmo momento recebi a faculdade de
entender a letra de Motovilov.

E fácil imaginar minha alegria, e como me marcaram as seguintes palavras que consegui ler:

"E eu acho que Deus o ajudará a guardar para sempre estas coisas na memória. Senão Ele não teria sido
tão rapidamente tocado pela humilde prece do miserável Serafim e não teria realizado seu desejo tão
depressa. Ainda mais que não é só a você que foi concedido ver a manifestação desta graça, mas ao
mundo todo por seu intermédio."

Durante 70 longos anos este tesouro ficou enfurnado em um sótão sob uma enorme mistura de velhas
papeladas — e eis que ele viu a luz. Quando? Na véspera da canonização daquele a quem a Igreja
Ortodoxa já começa a se dirigir, dizendo:

"Padre Serafim, rogue a Deus por nós!"

19 de maio de 1903.

III. As Instruções Espirituais.


Símbolo vivo, o staretz não escreveu quase nada. Entretanto, restaram-nos dele
algumas Instruções Espirituais. A princípio incluídas em uma biografia manuscrita
redigida em 1837 por um hieromonge de Sarov, Sérgio, elas só foram impressas dois
anos depois, como apêndice a um opúsculo intitulado: "Um breve esboço da vida de um
Staretz do Deserto de Sarov, Marcos, Monge e Anacoreta" (Tratava-se de um dos dois
eremitas, contemporâneos do Padre Serafim que viveram na floresta de Sarov naquela
mesma época). Quanto à biografia do santo propriamente dita, foi apenas em 1841, oito
anos após sua morte, que ela recebeu o Imprimatur do Santo Sínodo, após numerosas
providências tomadas pelo Metropolita Filaret, de Moscou.

Foi igualmente este prelado, desejoso de apressar sua divulgação, que revisou as
Instruções Espirituais, como atesta uma carta escrita a seu vigário e amigo,
arquimandrita Antônio, Abade do Mosteiro da Trindade — São Sérgio.

"Envio-lhe, Padre Vigário, as Instruções Espirituais do Padre Serafim revisadas por


mim. Permiti-me mudar e completar certas expressões, em parte para que fiquem
gramaticalmente mais corretas, e também para evitar que pensamentos expressos de
forma pouco clara ou pouco comum sejam mal interpretados. Veja e diga se é lícito crer
que não deformei em nada os pensamentos do Staretz."

Infelizmente, como o original se perdeu, é impossível fazer a comparação hoje em dia.


É pena. Entretanto, o grande Metropolita estava bem intencionado. O santo Sínodo
provavelmente não teria dado o Imprimatur às instruções tais como haviam sido
redigidas por Batiushka Serafim.

No livro de hieromonge Sérgio (4a edição, Moscou, 1856), estas instruções estão em
número de 33. Uma biografia de santo compilada por N. Levitsky e editada em 1905,
em Moscou, pelo Mosteiro de S. Panteleimão do Monte Athos, cita 36.

Nós nos permitimos abreviar ligeiramente estes textos e, a fim de evitar repetições,
remetemos o leitor aos capítulos precedentes onde idéias idênticas já tenham sido
apresentadas. Por outro lado, em certos trechos completamos as "Instruções" por
ensinamentos do Staretz que se encontram em outros lugares, particularmente nos
capítulos XVI e XVII do livro de N. Levitsky (pp. 166-199).

Pelo elevado número de citações, vemos que o espírito do Staretz efetivamente


"nadava" (segundo uma expressão que lhe agradava) nas Santas Escrituras.

Deus.

Deus é um fogo que aquece e inflama os corações e as entranhas. Se, sentimos em nosso
coração o frio que vem do demônio — pois o demônio é frio — peçamos socorro ao
Senhor e Ele virá aquecer nosso coração com um amor perfeito, não somente para com
Ele, mas também para com o próximo. E a frieza do demônio fugirá de diante de Sua
face.

Onde está Deus, não há nenhum mal. . .

Deus nos mostra Seu amor pelo gênero humano não somente quando fazemos o bem,
mas também quando O ofendemos, fazendo por merecer Sua cólera. . .
Não diga que Deus é justo, ensina Isaac (o Sírio) . . . David o chamava "justo" mas Seu
filho nos mostrou que Ele é antes bom e misericordioso. Onde está sua justiça? Nós
éramos pecadores e Cristo morreu por nós (hom. 90).

Razões por Que Cristo Veio a Este Mundo.

1) O amor de Deus pelo gênero humano. Sim, "Deus amou o mundo de tal maneira que
deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna" (João 3:16).

2) O restabelecimento no homem decaído da imagem divina e da semelhança a esta


imagem, como canta a Igreja (Primeiro Cânone de Natal, canto 1).

3) A salvação das almas. "Porque Deus enviou o Seu filho ao mundo, não para que
condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele" (João 3:17).

Da Fé.

Antes de tudo, é preciso crer em Deus, "pois Ele existe e é remunerador dos que O
buscam" (Heb. 11:6)*. A fé, segundo S. Antioquio, é o princípio de nossa união a Deus.
. . A fé sem obras é morta (Tia. 2:26). As obras da fé são: o amor, a paz, a
longanimidade, a misericórdia, a humildade, a tomada da cruz e a vida segundo o
Espírito. Somente uma tal fé conta. Não pode haver verdadeira fé sem obras.

*Nota: Na tradução de J. F. de Almeida, lê-se: "é necessário que aquele que se aproxima
de Deus creia que Ele existe, e que é galardoador dos que o buscam."

Da Esperança.

Todos os que esperam firmemente em Deus são elevados para Ele e iluminados pela
claridade da luz eterna.

Se o homem deixa de lado seus próprios negócios por amor de Deus e para fazer o bem,
sabendo que Deus não abandona, sua esperança é sabia e verdadeira. Mas se o homem
se ocupa ele mesmo de seus negócios e só se volta para Deus quando lhe acontece
algum infortúnio e ele vê que não pode se sair bem por seus próprios meios — tal
esperança é artificial e vã. A verdadeira esperança busca antes de tudo o Reino de Deus,
persuadida de que tudo o que é necessário à vida aqui embaixo será dado por acréscimo.
O coração não consegue ficar em paz antes de adquirir esta esperança.

Do Amor de Deus.
Aquele que chegou ao perfeito amor de Deus vive neste mundo como se não vivesse
nele. Pois ele se considera como estrangeiro àquilo que vê, esperando perfeitamente o
invisível. . . Atraído por Deus, aspira unicamente a contemplá-Lo.

Contra a Inquietude Inútil.

É típico do homem pusilânime e de pouca fé ocupar-se demais dos negócios deste


mundo. . . Se não levarmos a Deus os bens de que gozamos neste mundo, como
podemos esperar d'Ele os bens prometidos no outro? Antes busquemos "O Reino de
Deus e sua santidade, e todo o resto será acrescentado" (Mat. 6:33).

É melhor para nós desprezar o que não é nosso, isto é, o que é temporário e passageiro,
e desejar o que é nosso, isto é, a incorruptibilidade e a imortalidade. Pois então seremos
dignos da visão de Deus face a face, como os Apóstolos durante a divina transfiguração
e, semelhantes aos Espíritos celestes, conheceremos a união supra-racional com Deus.
Por sermos "iguais aos anjos" e "filhos de Deus, sendo filhos de ressurreição" (Luc.
20:36).

Do Cuidado da Alma.

O corpo do homem é semelhante a uma vela. A vela deve se consumir, o homem deve
morrer. Mas a alma é imortal e nós devemos nos preocupar com nossa alma mais do que
com nosso corpo. "Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua
alma? Ou que daria o homem pelo resgate da sua alma?" (Mc 8:36; Mat. 16:26).

"Nós achamos que a alma é mais preciosa do que tudo — disse Macário, o Grande —
porque Deus não se dignou unir a nenhuma criatura senão o homem que Ele amou mais
do que toda outra criatura (Macário, o Grande, Hom. sobre a liberdade e a Inteligência,
cap. 32). Devemos então nos preocupar com nossa alma e fortificar o corpo na medida
em que ele contribua à fortificação do espírito.

De Que Devemos Munir a Alma?

— Da palavra de Deus, pois a palavra de Deus, como diz Gregório, o Teólogo, é o pão
dos anjos com que se nutrem as almas sedentas de Deus.

É preciso também munir a alma de conhecimentos a respeito da Igreja, como ela foi
preservada desde o início até os nossos dias, aquilo que ela teve que sofrer. É preciso
saber disso não na intenção de governar os homens, mas no caso de questões que
podemos ser chamados a responder. Mas, sobretudo é preciso fazê-lo para si mesmo, a
fim de adquirir a paz da alma, como diz o Salmista: "Paz àqueles que amam teus
preceitos, Senhor" ou "Grande paz aos que amam Tua lei" (Sal. 119:165).

 
Da Paz da Alma.

Nota da Ed. Original: Chegamos aqui ao cerne do ensinamento do Staretz que pode se resumir nestas
duas afirmações:

1) O objetivo da vida Cristã é adquirir o Espírito Santo.

2) Adquire a paz interior e milhares de almas encontrarão a salvação junto de ti.

Tudo está subordinado à aquisição desta paz: a adesão à Igreja, a "verdadeira" esperança, a ausência das
paixões, o perdão das ofensas, a abstenção de julgamento do próximo e, sobretudo, o silêncio interior.

É notável o número de vezes que a palavra Paz aparece nestas Instruções Espirituais.

Não há nada acima da paz em Cristo, pela qual são destruídos os assaltos dos espíritos
aéreos e terrestres. "Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim
contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade que habitam os espaços celestes" (Efe.
6:12).

Um homem razoável dirige seu espírito para o interior e leva-o a descer em seu coração.
Então a graça de Deus o ilumina e ele se encontra em estado pacífico e suprapacífico:
pacífico, porque sua consciência está em paz; suprapacífico, porque dentro de si se
contempla a graça do Espírito Santo. . .

Poderíamos não nos rejubilar ao ver, com nossos olhos de carne, o sol? Maior ainda é
nossa alegria quando nosso espírito, com o olho interior, vê o Cristo de justiça. Aí
compartilhamos a alegria dos anjos. O apóstolo disse a este respeito: "Nossa cidade está
nos céus" (Fil. 3:20).

Aquele que anda em paz ajunta, como que com uma colher, os dons da graça.

Os Padres, estando em paz e na graça de Deus viviam até uma idade avançada.

Quando um homem adquire a paz, ele pode derramar sobre os outros a luz que ilumina
o espírito. . . Mas deve se lembrar das palavras do Senhor: "Hipócrita, tira primeiro a
trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o arqueiro do olho de teu irmão" (Mat. 7:5).

Nosso Senhor Jesus Cristo deixou esta paz a seus discípulos antes de Sua morte como
um tesouro inestimável, dizendo: "Deixo-vos a Minha paz, a Minha paz vos dou" (Jn
14:27). O Apostolo fala também nestes termos: "E a paz de Deus, que excede todo o
entendimento, guardará os vossos corações e pensamentos em Cristo Jesus" (Fil. 4:7). *

Se o homem não despreza os bens deste mundo, não pode ter a paz.

A paz se adquire por intermédio de tribulações. Aquele que quer agradar a Deus deve
passar por muitas provas.
Nada contribui mais à paz interior do que o silêncio e, se possível, a conversação
incessante consigo mesmo e rara com os outros.

Nós devemos então concentrar nossos pensamentos, desejos e ações na aquisição da paz
de Deus e exclamar incessantemente com a Igreja "Senhor! Dai-nos a paz!"**

Notas: (N. da T) * Na tradução de J. F. de Almeida, lê-se. ". . e os vossos sentimentos em

Cristo Jesus.

(N. da Ed. Original) ** Durante a liturgia, a Igreja, pela voz do Padre, repete incansavelmente:
"Paz a todos!" ("A Paz esteja convosco").

Como Conservar a Paz da Alma?

Com todas as forças é preciso tentar salvaguardar a paz da alma e não se indignar
quando os outros nos ofendem. É preciso se abster de toda cólera e preservar a
inteligência e o coração de todo movimento impensado.

Um exemplo de moderação nos foi dado por Gregório, o Taumaturgo. Abordado em


uma praça pública por uma mulher da vida que exigia o preço do adultério que ele teria
cometido com ela, ao invés de se aborrecer, disse tranquilamente a seu amigo: Dê a ela
o que pede. Tendo pego o dinheiro, a mulher foi derrubada por um demônio. Mas o
Santo expulsou o demônio pela oração (vida de S. Gregório).

Se é impossível não se indignar, é preciso ao menos frear a língua. . .

Para manter a paz, é preciso expulsar a melancolia e tratar de ter o espírito jubiloso. . .

Quando um homem não pode provar suas próprias necessidades, é difícil para ele
vencer o desencorajamento. Mas isso concerne as almas fracas.

Para manter a paz interior, é preciso evitar julgar os outros. É preciso entrar em si
mesmo e se perguntar: Onde estou?

É preciso evitar que nossos sentidos, especialmente a visão, nos distraiam: pois os dons
da graça só pertencem àqueles que oram e tomam cuidado com sua alma.

Da Guarda do Coração.

Devemos cuidar de preservar nosso coração de pensamentos e impressões indecentes.


"Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as
saídas da vida (Pro. 4:23). Assim, nasce no coração a pureza." "Bem aventurados os
puros de coração, pois eles verão a Deus" (Mat. 5:8).
Não devemos difundir inutilmente no exterior aquilo que entrou de bom no coração:
pois aquilo que foi colhido somente pode estar abrigado dos inimigos visíveis e
invisíveis se nós o guardamos no fundo do coração, como um tesouro.

O coração, aquecido pelo fogo divino, ferve quando está cheio de água viva. Se esta
água é derramada no exterior, o coração se resfria e o homem fica como que gelado.

Das Tentações.

Devemos nos libertar de todo pensamento impuro, sobretudo oferecendo nossas orações
a Deus, para não misturar o fedor aos aromas.

Devemos rejeitar imediatamente os pensamentos tentadores. . . prestando atenção


principalmente à gula, à avareza e à vaidade. . .

Se nos opusermos ao que o demônio nos sopra ao ouvido, fazemos bem.

O demônio só pode influenciar os apaixonados. Não pode se aproximar senão do


exterior daqueles que se purificaram de suas paixões. Pode o homem evitar, desde a
juventude, ser perturbado por tentações carnais? Deve orar ao Senhor para que se
apague desde o princípio a faísca do vício. . .

Do Discernimento dos Espíritos.

Quando o homem recebe em seu coração algo divino, ele se rejubila; quando é algo
demoníaco, ele fica perturbado.

Da Contrição.

Aquele que quer a salvação deve dispor o coração à contrição e ao arrependimento:


"Meu sacrifício é um espírito quebrantado, a um coração quebrantado e contrito não
desprezarás" (Sal. 51:17).

Com o espírito contrito, o homem pode tranquilamente atravessar as emboscadas do


demônio cuja maior atribuição é perturbar seu espírito e semear o joio, segundo as
palavras evangélicas: "Senhor, não semeaste Tu no Teu campo boa semente? Por que
tem então joio?" (Mat. l3:27-28). Mas se o homem conserva um coração humilde e
pensamentos pacíficos, todos os ataques do demônio ficam sem efeito.

A contrição começa pelo Temor de Deus, diz o Mártir Bonifácio. Deste temor nasce a
atenção, mãe da paz interior e da consciência que permite à alma ver, como em uma
água pura e límpida, sua própria feiúra. . .
Durante toda nossa vida não fazemos outra coisa senão ofender a majestade de Deus.
Devemos então nos humilhar diante dEle, pedindo perdão por nossos erros.

É possível uma nova elevação se o homem cai após ter estado na graça? Sim.

Exemplo: aquele anacoreta que, ao ir buscar água na fonte, encontrou uma mulher com
quem caiu em pecado. Voltando para casa, mesmo se dando conta do erro cometido,
continuou a viver como asceta, apesar dos conselhos do maligno que tentava desviá-lo
de sua rota sob pretexto de que ele havia pecado. Deus deu a conhecer o caso a um
ancião, encarregando-o de ir louvar o jovem monge por sua vitória sobre o demônio.

Quando nos arrependemos sinceramente de nossos erros e nos voltamos para Nosso
Senhor Jesus Cristo de todo coração, Ele rejubila, e convida para a festa todos os
espíritos amigos, mostrando-lhes a dama reencontrada. . .

Não hesitemos, então, em voltarmo-nos para nosso misericordioso Senhor, sem nos
entregarmos nem à despreocupação, nem ao desespero. O desespero é a maior alegria
do demônio. É o pecado mortal de que fala a Escritura (l João 5:16).

A contrição consiste, entre outras, em não cair novamente no mesmo pecado.

Da Oração.

Aqueles que decidiram verdadeiramente servir a Deus devem se aplicar em guardar


constantemente sua lembrança no coração e orar incessantemente a Jesus Cristo,
repetindo interiormente: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Tem piedade de mim,
pecador. . .

Agindo assim, e guardando-se das distrações, mantendo a consciência em paz, podemos


nos aproximar de Deus e nos unir a Ele. Pois, diz S. Isaac o Sírio, fora a oração
ininterrupta, não há outro meio de se aproximar de Deus (Hom 69).

Na Igreja, é bom ficar de olhos fechados, para evitar as distrações; podemos abri-los se
sentirmos sono; é preciso então pousar o olhar sobre um dos ícones ou uma vela acesa
diante de um deles.

Se durante a oração nosso espírito se dissipa, é preciso se humilhar diante de Deus e


pedir perdão. . . pois, como diz S. Macário, "o inimigo não aspira senão a desviar nosso
pensamento de Deus, de Seu temor e de Seu amor" (Hom 2, cap. XV).

Quando a inteligência e o coração estão unidos em oração e a alma não é perturbada por
nada, o coração se enche de calor espiritual, e a luz do Cristo inunda de paz e de alegria
todo o homem interior.

Da Luz de Cristo.
A fim de receber no coração a luz de Cristo, é preciso, tanto quanto possível, desligar-se
de todos os objetos visíveis. Tendo antes purificado a alma pela contrição e as boas
obras, e cheios de fé em Cristo Crucificado, tendo fechado os olhos de carne, o homem
deve mergulhar o espírito no coração para chamar o nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo; então, na medida de sua assiduidade e fervor para com o Bem Amado, ele
encontra no Nome invocado consolo e doçura, o que o incita a buscar um conhecimento
mais elevado.

Quando por meio de tais exercícios o espírito se enraíza no coração, a luz de Cristo vem
brilhar no interior, iluminando a alma com sua divina claridade, como diz o profeta
Malaquias: "Mas para vós, que temeis seu Nome, o sol de justiça brilhará, que tem a
cura em seus raios" (Mal. l 3:20). * Esta luz é também a vida, segundo a palavra do
Evangelho "De todo ser Ele era a vida, e a vida era a luz dos homens" (João 1:4).

Quando o homem contempla dentro de si esta luz eterna, ele esquece tudo o que é
carnal, esquece-se a si mesmo e deseja se esconder nas profundezas da terra para não ser
privado deste bem único Deus.

* Nota: Na versão de J. F. de Almeida, lê-se, no v. 4:2:"Mas para nós que temeis o Meu nome
nascerá o sol de justiça, e salvação trará debaixo de suas asas."

Da Atenção.

Aquele que segue a via da atenção não deve se fiar unicamente a seu próprio
entendimento, mas deve se referir às Escrituras e comparar os movimentos de seu
coração, e sua vida, à vida e à atividade dos ascetas que o precederam. Assim, é mais
fácil se preservar do maligno e ver claramente a verdade.

O espírito de um homem atento é comparável a uma sentinela velando pela Jerusalém


interior. A sua atenção não escapa nem "o diabo (que) anda em derredor, bramando
como leão, buscando a quem possa tragar" (l Ped. 5:8), nem aqueles que "põem as
flechas na corda, para com elas atirarem, a ocultas, aos retos de coração (Sal. 11:2). Ele
segue o ensinamento do Apóstolo Paulo, que disse "Portanto tomai toda a armadura de
Deus, para que possais resistir no dia mau" (Efe. 6:13).

Aquele que segue este caminho não deve dar atenção aos rumores que correm nem se
ocupa dos negócios dos outros. . . e sim, orar ao Senhor: "De meu mal secreto, purifica-
me" (Sal. 19:12).

"Entre em si mesmo — dizia o staretz, parafraseando S. Isaac o Sírio — e veja que


paixões se enfraqueceram em você, quais se calam, em consequência da cura de sua
alma; quais foram aniquiladas e o largaram completamente, veja se uma carne firme e
viva começa a crescer sobre a fenda de sua alma — essa carne firme é a paz interior.
Veja também que paixões sobraram ainda — corporais ou espirituais? E como reage sua
inteligência? Ela entra em guerra com estas paixões ou finge que não as vê? E novas
paixões não se formaram? Estando assim, atento, você pode conhecer a medida da
saúde da sua alma."

É preciso que o homem esteja atento no começo e no fim de sua vida, sendo o meio
indiferente — com aquilo que ele tem de alegria ou tristeza.

Do Temor de Deus.

O homem que busca seguir a via da atenção interior deve ter, a tes de tudo, o temor de
Deus que é o princípio da sabedoria, lembrando-se das palavras do salmista: "Servi ao
Senhor com temor e alegrai-vos com tremor" (Sal. 2:11).

Ele deve seguir esta via com prudência e respeito pelo sagrado. . . "Maldito aquele que
fizer a obra do Senhor fraudulentamente" (Jr 48:19).

Aquele que teme Deus faz bem tudo o que faz, por amor a Ele.

Quanto ao diabo, é preciso não temê-lo; aquele que teme Deus derrotará o diabo; diante
dele, o diabo é impotente.

Há dois tipos de temor: se você não quer fazer o mal, tema a Deus e não o faça; se você
quer fazer o bem, tema a Deus e o faça.

Um homem não pode adquirir o temor de Deus antes de se livrar das preocupações
deste mundo. Liberto das preocupações, o espírito é levado pelo temor de Deus para o
amor de sua misericórdia.

Do Desapego do Mundo.

O temor de Deus se adquire quando o homem, tendo se desviado do mundo e de tudo o


que está no mundo, concentra seus pensamentos e sentimentos na lei divina e mergulha
por inteiro na contemplação de Deus e na busca da beatitude prometida aos santos. . .

Da Vida Ativa e Contemplativa.

O homem, corpo e alma, é chamado a seguir uma via dupla — a da ação e da


contemplação.

A via ativa compreende: o jejum, a abstinência, as vigílias, as genuflexões, a oração —


"Mas estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a
encontrem" (Mat. 7:14).

A via contemplativa consiste na elevação do espírito para Deus, a atenção interior, a


oração pura e, por meio destes exercícios, a contemplação das coisas espirituais.
Aquele que aspira à vida contemplativa deve começar pela vida ativa. . . pois é
impossível ter acesso à vida contemplativa sem passar pela vida ativa.

A vida ativa serve para nos purificar de nossas paixões pecadoras. . . pois, somente os
puros podem se engajar na via da contemplação. . . São Gregório Teólogo disse: "A
contemplação só não é perigosa para os perfeitamente experientes" (Hom. Sobre a
Páscoa).

É preciso abordar a vida contemplativa com temor e tremor, com um coração humilde e
contrito, após ter consultado longamente as Santas Escrituras e, de preferência sob a
direção de um staretz iniciado, e não temeriamente e com uma vontade própria
caprichosa. *

Não se deve abandonar a vida ativa mesmo após haver passado, por seu intermédio, à
vida contemplativa; pois ela é um enriquecimento para a vida contemplativa, ajudando
em sua elevação.

* Nota: (N. da Ed. original) O abandono da vontade própria e de importância capital, sobretudo
para o monge. "Se você a abandonou em uma coisa, mas manteve outra, quer dizer que você a
manteve mesmo onde acreditava tê-la abandonado" diz o Staretz Serafim.

Da Solidão e do Silêncio da Multiplicidade das Palavras do Silêncio


Interior.

cf. Primeira Parte

Do Jejum.

cf. Primeira Parte

Das Façanhas Ascéticas.

Não se deve fazer nada em excesso, mas tratar de permitir a nosso amigo, o corpo,
permanecer fiel e concorrer para o desenvolvimento das virtudes.

O caminho do meio é o melhor. . . Ao espírito deve-se dar o que é espiritual, ao corpo


— o necessário. Não se deve tampouco recusar à vida social aquilo que ela exige de nós
legitimamente. "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mat. 22:21).
A um jovem noviço que vinha lhe pedir a permissão de usar cilício e correntes, o Staretz
respondia rindo: "O que você quer que eu diga? Se um bebê viesse me pedir isso, o que
lhe responderia? Um homem que bebe e come segundo sua fome, que dorme à vontade,
que não consegue aguentar a menor reprimenda da parte do seu superior sem cair no
desencorajamento, está maduro para carregar corrente e um cilício?"

É preciso ser paciente consigo mesmo e aguentar os próprios defeitos como se aguenta
os do próximo, mas sem se deixar levar pela preguiça e se esforçando constantemente
em melhorar.

Se comermos demais ou fizermos algo de condenável por fraqueza humana, não nos
indignemos, não acrescentemos um mal a outro, mas, mantendo a paz interior,
apliquemo-nos corajosamente em nos reerguermos. A virtude não é uma pêra que se
come de uma vez só.

Não é qualquer um que está apto a se sujeitar a uma regra severa e a se privar de tudo o
que pode aliviar seus males. Insensato é aquele que enfraquece voluntariamente seu
corpo, mesmo na intenção de chegar à perfeição.

Não empreenda nada que esteja além de suas forças. Senão você cai e o inimigo
zombará de você.

Alguns colheram muito durante a juventude, mas, no meio da vida, tendo sido tentados
pelos demônios (especialmente o da luxúria), não souberam resistir e perderam tudo.

Cada um deve estar atento para medir suas próprias capacidades.

Devemos atribuir todo progresso de Deus e repetir como salmista: "Não a nós, Senhor,
não a nós, mas ao Teu nome da glória" (Sal. 115:1).

Da Resistência às Tentações.

É preciso sempre desconfiar dos ataques do demônio. Como podemos esperar que ele
nos deixe em paz quando ousou atacar o próprio Mestre, Nosso Senhor Jesus Cristo? É
preciso chamar sempre por Deus e rogar-lhe humildemente para que a tentação não
esteja acima de nossas forças, e para que Ele nos livre do maligno.

Quando Deus abandona o homem a si mesmo, o diabo está pronto a reduzi-lo a pó,
como uma mó a um grão de trigo.

Da Tristeza — do Tédio — do Desespero.

No monge, ao espírito de tristeza junta-se o do tédio. "Este tédio — observaram os


padres — domina o monge por volta de meio dia e coloca-o em tal estado de inquietude
que ele não consegue suportar nem seu recanto, nem os irmãos que o cercam; provoca-
lhe a falta de gosto pela leitura e a vontade de bocejar e comer. Uma vez de barriga
cheia, o demônio do tédio inspira ao monge o desejo de sair de sua cela para conversar
com alguém, como se a conversa fosse o único meio de se livrar do tédio. . . Se não
consegue fazer o monge sair da cela, o demônio trata de distrair seu espírito durante a
leitura e durante a oração. Isto aqui está fora do lugar, sugere ele, e aquilo ali deve ser
posto lá. . . O objetivo destas distrações é tornar o espírito ocioso e estéril."

Uma coisa é o tédio — outra é o desencorajamento. Acontece que o homem, neste


estado de espírito, preferiria se destruir ou ficar privado de conhecimento a permanecer
neste vago tormento. É preciso sair dele o mais rápido possível. Guarde-se do espírito
de desencorajamento pois todo mal nasce dele.

Para salvaguardar a paz interior, é preciso então fugir da tristeza e tratar de ter o espírito
sempre alegre, pois, segundo o Sirácida, a tristeza mata e não tem nenhuma utilidade.
"A tristeza segundo Deus opera um arrependimento para a salvação, mas a tristeza do
mundo opera a morte" (2 Cor. 7:10).

Pior do que tudo é o desespero. É a maior alegria do demônio. É o "pecado mortal" de


que fala a Escritura (l João 5:16).

Da Doença.

O corpo é escravo da alma. A alma é rainha. Quando o corpo é enfraquecido pela


doença, é um sinal da misericórdia de Deus: a doença enfraquece as paixões, o homem
volta a si. Até acontece que a doença seja gerada pelas paixões. Tire o pecado — as
doenças desaparecerão, afirma S. Basílio, o Grande. O Senhor criou o corpo, não a
doença, a alma e não o pecado. O que então é salutar e necessário? A união com Deus é
uma troca de amor com Ele. É perdendo o amor que nos separamos de Deus e,
separados, nos tornamos presa de diversos males. Ao contrário, para aquele que suporta
a doença com paciência, ela é contada como equivalente a uma "façanha" ascética, e até
mais.

Dever e Amor para com o Próximo.

É preciso tratar o próximo com doçura, tomando cuidado em não ofendê-lo de jeito
nenhum.

Quando evitamos ou ofendemos alguém, é como se colocássemos uma pedra sobre


nosso coração.

É preciso devolver a coragem a um homem desamparado e perturbado, com uma


palavra afetuosa.

"Joga teu casaco sobre o pecador para cobri-lo," aconselha Isaac, o Sírio (Hom 89).

Ao se aproximar dos homens, é preciso ser puro em palavras e espírito, igual para com
todos, nunca elogiar ninguém — senão tornaremos nossa vida inútil.
Devemos amar o nosso próximo não menos do que a nós mesmos, segundo o preceito
do Senhor: "Ama a teu próximo como a ti mesmo" (Luc. 10:27), mas de tal forma que,
permanecendo nos limites da moderação, este amor não nos afaste do primeiro e mais
importante mandamento: "Quem ama o pai ou a mãe mais do que Mim não é digno de
Mim" (Mat. 10:37).

São Dimitri de Rostov se exprime bem a este respeito (Segunda parte, sermão 2):
"Constata-se em um cristão um amor imperfeito quando ele compara a criatura ao
Criador, ou tem mais olhos para ela do que para o Criador; e um amor verdadeiro
quando somente o Criador é perfeito e amado acima de qualquer criatura"!

Do Julgamento do Próximo.

É preciso não julgar, mesmo se, com nossos próprios olhos, vemos alguém pecando e
infringindo os preceitos divinos. Critique a má ação, mas não aquele que a fez. Não
cabe a nos julgar, e sim ao Juiz Supremo.

"Não julgueis, para que não sejais julgados" (Mat. 7:1), e ainda: "Quem és tu para
julgar o servo alheio? que ele fique em pé ou caia, isso é com seu patrão; mas, ele
ficará em pé, pois o Senhor tem a força para sustentá-lo" (Rom. 14:4). *

Não sabemos quanto tempo nós mesmos conseguiremos perseverar na virtude. "Eu
dizia na minha prosperidade: não vacilarei jamais. Tu, Senhor, pelo teu favor fizeste
forte a minha montanha; tu encobriste o Teu rosto, e fiquei perturbado" (Sal. 30:6-7).

Devemos considerar a nós mesmos como os piores culpados, perdoar ao próximo toda
transgressão e só odiar o demônio que o tentou. Pode nos parecer às vezes que o outro
faz o mal, enquanto que na realidade, por causa de sua boa intenção, ele faz o bem. A
porta do arrependimento está aberta para todos e não se sabe quem será o primeiro a
entrar — você que julga, ou aquele que é julgado por você.

Para não julgar, é preciso prestar atenção a si mesmo, não aceitar idéias alheias de
ninguém, e ficar morto para tudo. Julgue-se a si mesmo, e você vai parar de julgar os
outros.

* Nota:(N. da T) Na tradução de J. F. de Almeida, lê-se: "Quem és tu, que julga o servo alheio?
Para seu próprio Senhor ele está em pé ou cai; mas estará firme, porque poderoso é Deus para o
firmar."

Do Perdão das Ofensas.

Não se deve nunca vingar uma ofensa, qualquer que seja, mas, ao contrário, perdoar de
todo coração aquele que nos ofendeu, mesmo se nosso coração se opõe. "Se não
perdoardes aos homens, também vosso pai vos não perdoará as vossas ofensas" (Mat.
6:15), e ainda: "Amai a vossos inimigos, orai pelos que vos maltratam" (Mat. 5:44).
Se a sua honra é atacada, faça o máximo para perdoar. . . "e ao que tomar o que é teu,
não lho tornes a pedir" (Luc. 6:30).

Deus nos recomenda a inimizade unicamente para com a serpente que, desde o começo,
induziu o homem em tentação e expulsou-o do paraíso.

Pensemos em David, Jó, em todos os santos agradáveis a Deus que vieram ignorando o
ódio.

Se nós também vivemos assim, podemos esperar que a luz divina brilhe em nossos
corações, iluminando nosso caminho para a Jerusalém celeste.

Da Paciência e da Humildade.

É preciso suportar tudo, o que quer que aconteça, com paciência e até com
reconhecimento pelo amor de Deus.

Você é acusado — responda com elogios: é perseguido — aguente; fazem-lhe críticas


— não as faça.

Sofra em silêncio o ultraje do inimigo, e abra seu coração somente a Deus.

Humilhemo-nos, e veremos a glória de Deus, pois onde ha humildade a glória se


manifesta. Assim como a cera sem ser aquecida e amolecida não pode receber a marca o
selo, a alma não pode receber o selo divino sem haver antes passado por provas e
tribulações. Quando o demônio deixou o Senhor no deserto, os anjos se aproximaram
d'Ele para servi-lo (Mat. 4:11). Se eles se afastam de nós durante as tentações, eles não
vão longe, e voltam logo. . .

Não agradeçamos a Deus somente na prosperidade. . .

O Apóstolo Tiago nos ensina: "Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em
varias tentações. . . Bem aventurado o varão que sofre a tentação; porque, quando for
provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que O amam"
(Tia. 1:2, 12).

Da Misericórdia.

Seja misericordioso para com os pobres e os peregrinos. Os Padres, luminares da Igreja,


velavam assiduamente por eles.

Quanto a esta virtude, devemos nos conformar ao mandamento divino: "Sede, pois
misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso" (Luc. 6:36), e ainda:
"Misericórdia quero, e não sacrifício" (Mat. 9:13).
Os sábios estão atentos a estas palavras, enquanto que os outros não a escutam. Eis
porque a recompensa será diferente: "O que semeia pouco, pouco também ceifará; e o
que semeia em abundância, em abundância também ceifará" (2 Lo 9:6).

É preciso dar esmola com benevolência, segundo o ensinamento de S. Isaac, o Sírio


(Hom. 89): . . ". que a alegria de teu rosto preceda a oferta, e que tuas boas palavras
consolem a miséria."

"Dê sempre — em qualquer lugar" dizia o staretz. E acrescentava: "Aquele que dá com
alegria é amado por Deus. A esmola feita assim, mesmo se for insuficiente, traz consigo
uma recompensa" (2 Lo 9:7-8).

Estas instruções são como que um resumo da espiritualidade do Staretz de Sarov.


Dirigem-se elas àqueles que aspiram à vida monástica? Só perguntaríamos isto se não
soubéssemos que a ortodoxia traça poucas fronteiras fixas entre religiosos e "leigos".

Regra de Oração.

Ao acordar, todo cristão, em pé diante dos ícones, deve recitar a oração dominical "Pai
Nosso" três vezes, em honra da Santíssima Trindade; em seguida o canto à Virgem:
"Rejubila ó Virgem, Mãe de Deus" (na Ed. Original é equivalente à Ave Maria);
também três vezes e, finalmente, o Credo, uma vez — após orar assim, que cada cristão
trate de seus afazeres. Trabalhando, em casa, ou fora, no caminho, deve repetir
suavemente: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador" e se
não está sozinho, deve dizer interiormente: "Senhor, tem piedade" e assim até o meio
dia.

Antes de comer, deve repetir a regra matinal.

À tarde, cada cristão, ocupando-se de seus afazeres, deve dizer: "Santa Mãe de Deus,
salva-me, pecador, ou: "Senhor Jesus Cristo, pela intercessão da Tua Santa Mãe, tem
piedade de mim, pecador (ou pecadora)."

Na hora de ir dormir, cada cristão deve recitar de novo a mesma regra da manhã; depois
deve ir dormir, após ter feito o sinal da cruz.

Seguindo esta regra, dizia o Staretz, pode-se chegar ao cume da perfeição cristã, pois as
três orações que ela compreende estão na própria base do Cristianismo. A primeira foi
dada pelo próprio Senhor e serve de exemplo a todas as outras; a segunda é um canto
trazido do céu pelo Arcanjo para saudar a Virgem Maria, mãe de Deus; quanto ao
Credo, contém de forma breve todos os dogmas da fé Cristã.

Àqueles que não tinham sequer a possibilidade de recitar esta regra diante dos ícones, o
Staretz permitia recitá-lo na cama, andando, trabalhando, pois foi dito: "Todo aquele
que invocar o nome do Senhor será salvo." Quanto àqueles que têm mais tempo do que
necessário para completar esta regra, e que são instruídos, podem acrescentar outras
orações, a leitura dos cânones, dos acatistas, dos salmos, do Evangelho e das Epístolas.
Comparando esta regra àquela dada outrora pelo Staretz as monjas de Diveyevo,
percebe-se que a diferença não é grande. O "Pai Nosso" a "Ave Maria" e o Credo
formam a base. O mais difícil é comum às duas: "sustentar" a oração interior, ao longo
do dia, no espírito, unido ao coração. Ela é "a vitória invisível" "a estrela que nos guia
no caminho do Reino."

Tanto a leigos como a religiosos o Staretz aconselhava a comunhão frequente. "Sempre


que possível. Aquele que não comunga só uma vez por ano, mas frequentemente —
dizia — será abençoado desde aqui embaixo. Creio que a graça se difunde também por
sobre a descendência daquele que comunga. Um justo conta mais diante de Deus do que
milhares de ímpios."

É preciso acrescentar que a regra seguida cotidianamente pelo próprio staretz não era
tão simples nem tão curta. Compreendia um grande número de orações, invocações,
tropários, kondakions, catismas* que deixamos de traduzir. Pode-se encontrá-la,
resumida, no livro de N. Levitsky (pp. 643-646), assim como em V. I. Ilyn "São Serafim
de Sarov" (em russo).

*Nota: (da Ed. Original) Tropários, Kodakions, Catismas, são hinos que fazem parte do ciclo liturgico da
Igreja Ortodoxa.

Gostaríamos somente de citar aqui uma oração de penitência — a de S. Efrem o Sírio


— que os fiéis recitam com amor e contrição durante a Grande Quaresma, e que o
staretz havia incluído em sua regra cotidiana por sua grande beleza e sua íntima
correspondência com o espírito da ortodoxia.

Senhor e Mestre de minha vida

afasta de mim o espírito de preguiça

o espírito de dissipação

de domínio e de vã loquacidade

Metanóia

Concede a teu servo

o espírito de temperança

de humildade

de paciência e de caridade
Metanóia

Sim, Senhor e Rei

concede-me que veja as minhas faltas

e que não julgue a meu irmão

Pois tu és bendito pelos séculos dos séculos

Metanóia

Amém.

Missionary Leaflet # EA8b

Copyright © 2002 Holy Trinity Orthodox Mission

466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011

Editor: Bishop Alexander (Mileant)

(seraphim_2_p.doc, 08-30-2002)

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