Resenha Ovidio

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MANA 4(2):143-167, 1998

RESENHAS

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. te de uma crítica do Édipo, e sim da


1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e construção do conceito de multiplicida-
Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora de, para além da oposição do Um e do
34. 715 pp. Múltiplo, e dos dualismos da consciên-
cia e do inconsciente, da natureza e da
história, do corpo e da alma.
Ovídio Abreu Filho A teoria da multiplicidade efetua
Prof. de Antropologia, UFF uma interpretação do real que conjuga
uma construção ontológica e uma leitu-
Em 1997, publicado seu quinto volume, ra do mundo e da sociedade que sur-
concluía-se a edição brasileira de Mil preende com uma nova distribuição dos
Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Gua- seres e das coisas: não admite unidade
ttari, que se iniciara em 1995. O inter- natural, uma vez que não se apóia em
valo entre a edição original dessa obra, nenhuma necessidade e não visa a ne-
que é de 1980, e a de sua tradução com- nhum prazer; não reconhece a falta,
pleta para o português não deixa de re- uma vez que não se constitui em refe-
velar as dificuldades na recepção desse rência a uma unidade ausente (recu-
livro que faz avançar o trabalho de cria- sando, pois, a noção de desejo como fal-
ção de uma nova imagem do pensa- ta); e não aceita nenhuma transcendên-
mento e que questiona os pressupostos cia – seja na origem, como idéia ou mo-
dominantes na filosofia e nas ciências delo, seja no destino, como sentido his-
humanas: a crença em uma tendência toricamente desenvolvido. A perspecti-
natural do pensamento para a verdade, va da imanência e o conceito de multi-
o modelo do reconhecimento e a pre- plicidade fazem do pensamento uma
tensão de um fundamento. atividade ética – sem modelos e finali-
Mil Platôs, que compartilha com O dades transcendentes – avessa a qual-
Anti-Édipo o subtítulo Capitalismo e Es- quer conforto moral ou orientação his-
quizofrenia, não é uma continuação li- tórica.
near das teses propostas no livro de Mil Platôs é composto de quinze
1972: de um volume a outro há mudan- “platôs”, conceito que, tomado de em-
ça de tom e avanços da criação. Mesmo préstimo a Bateson, designa uma esta-
que pudéssemos imaginar que o Anti- bilização intensiva e, no caso, uma mul-
Édipo tivesse como subtítulo “pela filo- tiplicidade conceitual. Pois os concei-
sofia”, nele a construção ético-filosófica tos, para Deleuze e Guattari, devem de-
se fez através de uma crítica. Mil Platôs, terminar não o que é uma coisa, sua es-
ao contrário, é um livro fundamental- sência, mas suas circunstâncias. Expli-
mente positivo: não estamos mais dian- ca-se, assim, que cada platô possua um
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título relacionado a uma data. Os títulos real que contribui para o desbloqueio
enunciam um campo de problemas e as do movimento e para uma abertura má-
datas indicam que se pretende determi- xima das multiplicidades sobre um pla-
nar a potência e os modos de individua- no de consistência. O platô seguinte,
ção de um acontecimento. Cada platô 1914. Um ou Vários Lobos?, consiste em
realiza um mapeamento, cujos movi- uma crítica da psicanálise que aprofun-
mentos descrevem um mesmo percur- da as reflexões iniciais sobre o conceito
so: parte-se do interior de um ou mais de multiplicidade. O terceiro platô,
estratos e de seus dualismos na direção 10.000 a.C. A Geologia da Moral (Quem
de suas condições de possibilidade, das a Terra Pensa que É?), apresenta a on-
“máquinas abstratas” que os efetuam e tologia como geologia das multiplicida-
os determinam como atualizações; si- des, constituídas por movimentos de es-
multaneamente, os estratos são associa- tratificação e desestratificação que se
dos aos agenciamentos de poder que conjugam com movimentos de territo-
lhes são anexos e primeiros; por fim, rialização e desterritorialização traça-
em um outro giro, o pensamento con- dos por máquinas abstratas que operam
torna as máquinas abstratas e as reme- sobre diversos planos de consistência.
te a um plano de consistência a que se O segundo volume contém dois
acede por desestratificação: revela-se platôs fundamentais: 20 de Novembro
assim, nesse percurso, a heterogenei- 1923. Postulados da Lingüística e 587
dade, a coexistência, as imbricações e a.C. Sobre Alguns Regimes de Signos.
a importância relativa das diferentes Evitando pressupor qualquer relação
linhas que compõem uma multiplicida- de representação e de causalidade –
de. E ainda que a edição brasileira te- material ou simbólica – entre os siste-
nha subdividido o original em cinco vo- mas de signos e os sistemas maquínicos
lumes, percebe-se que os editores bus- dos corpos, Deleuze e Guattari dissol-
caram recortar o livro de acordo com vem os postulados de base do estrutu-
uma certa unidade de problemas. ralismo e da teoria marxista da ideolo-
O primeiro volume contém, além do gia. Atacam os pressupostos da semio-
prefácio à edição italiana (onde os auto- logia, questionando o primado da co-
res avaliam a novidade e a recepção do municação e sustentando ser a “pala-
livro), uma apresentação da ontologia vra de ordem” a função primeira da
das multiplicidades. Na Introdução: Ri- linguagem. Criticam a distinção lan-
zoma, recusa-se a idéia do pensamento gue/parole e destronam a indepen-
como representação, sua submissão à dência e autonomia da langue com os
lei da reflexão e da unificação, e apre- conceitos de agenciamento coletivo de
senta-se Mil Platôs como livro-rizoma enunciação e regimes de signos; não
que, abolindo a tripartição entre o mun- admitem uma semiologia geral, negan-
do, como campo de realidade a repro- do qualquer privilégio de um regime de
duzir, a linguagem, como instância re- signos sobre os outros.
presentativa, e o sujeito, como estrutura O terceiro volume congrega platôs
enunciativa, é capaz de conectar-se essenciais para a compreensão da mi-
com as multiplicidades. A escrita rizo- cropolítica e da esquizoanálise. 28 de
mática, que se define pela operação de Novembro de 1947. Como Criar para Si
subtração dos pontos de unificação do um Corpo sem Órgãos retoma e desen-
pensamento e do real, realiza um ma- volve o conceito de “corpo sem órgãos”
peamento e uma experimentação no proposto em O Anti-Édipo, conceito que
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permite pensar o desejo como processo cidade à equivocidade e analogia do


que produz o campo de imanência de ser, afirmando-o como potência de dife-
seus agenciamentos e não na depen- renciação irredutível às idéias de mo-
dência da idéia do corpo como origem delo e de imitação. Como pensar, então,
das necessidades e lugar dos prazeres. os entes concretos e suas relações? Os
Criar, selecionar e articular os corpos autores respondem que os entes são di-
sem órgãos plenos, eis o programa da ferenças e suas relações devires, afetos
esquizoanálise. O platô Ano Zero. Rosti- ou modificações, que devem ser pensa-
dade faz o mapa de uma semiótica mis- dos independentemente das idéias de
ta, que combina significância e subjeti- forma, função, espécie e gênero. O con-
vação, encarados como procedimentos ceito de devir acompanha o abandono
de comparação e apropriação que asse- das concepções substancialistas e da
guram uma política de inclusão diferen- perspectiva “hilemorfista” da indivi-
cial que ignora a alteridade e que defi- duação (simples encontro de forma e
ne, segundo os autores, o racismo euro- matéria), para pensar os corpos como
peu. Os platôs 1874. Três Novelas ou “O singularidades e seus devires como pro-
que se Passou?” e 1933. Micropolítica e cessos irredutíveis às sobrecodificações
Segmentaridade, ensinam que o real é do organismo, do significante e do su-
feito de linhas, isto é, de movimentos jeito. Nesse sentido, os devires são mo-
heterogêneos que operam segmenta- leculares e minoritários; imperceptíveis
ções (binárias, circulares e lineares), du- (anorgânicos), indiscerníveis (assignifi-
ras ou flexíveis, constituindo dimensões cantes) e impessoais (assubjetivos).
molares ou moleculares, e fugas criado- Nesse universo de intensidades, o con-
ras, tudo em perpétua coexistência e in- ceito de “ritornelo” enfrenta o proble-
terpenetração. A diferença de natureza ma da consistência ou da consolidação
dos planos molares e moleculares – que de agenciamentos de heterogêneos,
remetem a sistemas de referência dis- permitindo pensar a arte fora de qual-
tintos, linhas sobrecodificadas de seg- quer modelo mimético.
mentos e fluxos mutantes – não impe- O quinto e último volume encontra
de, pelo contrário, sua pressuposição sua unidade em uma filosofia política
recíproca. Os autores propõem uma vi- que postula um conjunto de teses críti-
são original sobre o que denominam cas às concepções racionalista e liberal,
centros de poder, definidos por suas bem como ao marxismo. Três dos platôs
operações de conversão dos fluxos mo- aí reunidos (1227. Tratado de Nomado-
leculares em segmentos molares, e so- logia: A Máquina de Guerra; 7000 a.C.
bre o Estado, pensado como agencia- Aparelho de Captura; 1440. O Liso e o
mento de reterritorialização ou movi- Estriado) deslocam a questão política do
mento de sobrecodificação que organi- direito e da liberdade civil para o pro-
za a ressonância dos centros de poder. blema do domínio dos fluxos. Deleuze e
O quarto volume reúne dois platôs Guattari afirmam, contra o racionalismo
(1730. Devir-Intenso, Devir-Animal, De- liberal, que o direito é impotente para
vir-Imperceptível e 1837. Acerca do Ri- controlar o Estado, uma vez que lhe é
tornelo) dedicados a contornar a visão interior e representa uma forma especí-
mimética da natureza, que se sustenta fica de violência; contra o marxismo,
em uma ontologia onde o ser se diz de questionam a dialética (a idéia de que
modo análogo segundo suas distribui- uma sociedade se define por um modo
ções categoriais. Contrapõem a univo- de produção e por suas contradições), o
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evolucionismo e toda idéia de progres- FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. 1996.


so histórico. O problema político é reco- Mulheres, Militância e Memória. Rio
locado a partir da distinção entre dois de Janeiro: Fundação Getulio Vargas
grandes tipos de agenciamentos, que Editora. 216 pp.
diferem em natureza mas que se pres-
supõem e que são coextensivos a toda a
história humana: a máquina de guerra Carla Costa Teixeira
e o aparelho de Estado. A criação des- Profa. de Antropologia, UnB
ses conceitos, a análise de suas trans-
formações e de suas relações, e a distin- O livro de Elizabeth F. Xavier Ferreira
ção de duas modalidades de temporali- apresenta, já em suas primeiras pági-
zação e de espacialização configuram nas, o projeto teórico e etnográfico em
novas direções para a compreensão das que a autora se engaja: a construção
sociedades: não defini-las por suas con- da memória social dos anos da ditadu-
tradições, mas por suas linhas de fuga; ra militar através das recordações de
considerar não as classes e sim as mino- ex-presas políticas, ou seja, de mulhe-
rias como potências revolucionárias; res que vivenciaram o cárcere e a tor-
definir as máquinas de guerra não pela tura nesse período. O título Mulheres,
guerra, mas, antes, por um certo modo Militância e Memória quase consegue
de ocupar e de inventar novos blocos esconder, para um leitor desavisado,
espaço-temporais. a complexidade singular que tal em-
Finalmente, a Conclusão: Regras preendimento assume no texto, pois
Concretas e Máquinas Abstratas reto- não se trata de registrar versões de um
ma, na forma de um léxico, os princi- conturbado período histórico – embora
pais conceitos desse livro, cuja atuali- este objetivo esteja contemplado no
dade está, não apenas no rigor de suas trabalho –, e tampouco de averiguar o
análises, mas, sobretudo, na sua potên- estatuto de verdade ou credibilidade
cia de resistência às forças que buscam dos relatos – questão considerada, mas
limitar o pensamento a uma reiteração somente na medida em que constitui
das exigências do mercado ou de su- uma preocupação das próprias mulhe-
postas necessidades históricas. Nesse res. A ambição é de outra natureza, e
sentido, Mil Platôs procura instigar – ao nas palavras de Elizabeth Ferreira:
mesmo tempo que neles se apóia – mo- “mais do que a busca de uma verdade
vimentos que tentam escapar do con- (mesmo sendo esta sempre problemá-
trole dos axiomas capitalistas e das “ne- tica, por ser relativa), deve-se buscar
cessidades” postuladas pela moderna um sentido para a pluralidade de ver-
teleologia liberal, bem como do niilismo dades que brotam dos relatos” (:105).
que, ao contrário do que se gosta de Seu desafio específico, portanto, é tra-
imaginar, é imanente aos ideais de duzir e recompor trajetórias indivi-
“progresso” embutidos nesses axiomas duais em uma trajetória coletiva, atra-
e nessa teleologia. vés da “descoberta” de valores de re-
ferência comuns aos discursos, ou seja,
de núcleos de sentido.
A narrativa flui, alinhavando os
testemunhos em uma história de vida
partilhada em três grandes marcos:
“A idade da inocência”; “A idade do
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perigo”; “A idade da razão”. A cada tivos entre o presente e o passado, que


um deles corresponde um momento são articulados, pela autora, em feixes
crucial da trajetória política das treze de relações e visões de mundo familia-
mulheres entrevistadas, respectiva- res, de motivações subjetivas para o
mente, a entrada no movimento políti- ingresso nessa nova forma de vida, de
co; a clandestinidade, a tortura e a pri- posições ideológicas, de tipos de inser-
são; e a volta à posição legal na socie- ção na militância, de condutas e repre-
dade. A delicadeza do arranjo final ca- sentações da experiência de prisão,
tiva o leitor, que se descobre transitan- tortura e clandestinidade. Em diversos
do em meio a múltiplos níveis de reali- momentos de suas trajetórias, essas
dade sem que, em nenhum momento, mulheres experimentaram formas si-
o fio condutor do texto perca densida- milares de situação-limite, mas, cada
de. Esse é um dos grandes méritos de uma a seu modo, pois a “qualidade da
Elizabeth Ferreira: a história coletiva experiência” e mesmo sua duração va-
torna-se viva nas recordações de seus riaram nos diferentes relatos.
agentes sem que estes sejam destituí- A clandestinidade foi narrada, por
dos de suas singularidades; simulta- várias ex-presas, como uma experiên-
neamente, a identidade de grupo en- cia de solidão e vulnerabilidade ante a
globa e dá significado às afinidades e sociedade maior e a própria organiza-
idiossincrasias de seus membros en- ção. A partir dessas rememorações,
quanto individualidades – valor central Elizabeth Ferreira leva-nos a explorar
no contexto histórico em que essas mu- a ambigüidade que essa situação en-
lheres fizeram suas escolhas político- gendra, ao se constituir em um proces-
ideológica e existencial. Afinal, “as so de redefinição global da identidade
participantes dos ideais revolucioná- das militantes. A clandestinidade não
rios encontram-se numa mesma estru- representa uma ruptura com o conjun-
tura que nivela as diferenças indivi- to da sociedade, caracteriza-se por
duais” (:104), sendo a adesão ao proje- criar um contexto de isolamento relati-
to coletivo da “esquerda”, em si mes- vo. Desse modo, exige a adoção de no-
ma, elemento essencial desse domínio vos nomes e, mais do que isso, de ou-
abrangente. Esse engajamento e, nos tras personalidades, com distintas ca-
alerta a autora, a própria disposição racterísticas pessoais e profissionais,
para rememorá-lo e verbalizá-lo em redes de relações sociais e estórias de
suas conseqüências, fazem parte de vida. Todos os laços anteriores têm de
um processo em que projetos e esco- ser cortados – e, como disse uma das
lhas pessoais são feitos nos limites de entrevistadas, até o sotaque há que ser
um certo contexto. Se o clima político disfarçado – sem que, contudo, novas
da época incitava à participação, res- relações possam ser assumidas por re-
salta, “não é suficiente para explicar a presentarem riscos individuais e para
adesão de determinados indivíduos à a organização. Dessa perspectiva, a
luta contra o regime, pois não explica- clandestinidade consiste em uma expe-
ria o recuo ou a indiferença de tantos riência liminar (tema clássico da antro-
outros” (:85). pologia) que, na memória de algumas,
Assim, Catarina, Joana, Bethânia, ficou gravada como um sentimento de
Angélica, Milena, Vitória, Gilda, Dal- “extrema solidão”, sentimento que,
va... vão contando suas histórias de vi- para Joana, contaminou toda a sua vi-
da e (re)elaborando ganchos significa- da a partir daqueles anos.
148 RESENHAS

A radicalidade da trajetória políti- verdade, o que está em jogo nas tortu-


ca que se iniciou para essas mulheres ras políticas não é a construção de um
ao assumirem a condição de clandesti- novo estatuto social, mas, sim, a incita-
nas, se aguçaria e seria profundamente ção de uma fala através da busca do
exacerbada com a vivência da tortura. “ponto insuportável de sofrimento” de
Impossível aqui deixar de evocar a es- cada ser humano, seja por meio da tor-
trutura dos ritos de passagem, com sua tura física ou do desequilíbrio indivi-
seqüência de separação, margem e dual e coletivo produzido pela “ruptu-
agregação, que se pode vislumbrar na ra da noção tempo e a ausência de nor-
proposta de ordenação das trajetórias mas que criem e regulem uma rotina
políticas apresentada pela autora a par- de vida” (:150).
tir dos relatos ouvidos. Trata-se, po- Sem dúvida, porém, a sobrevivên-
rém, de uma atualização pervertida cia a essa experiência redefiniu as
das sucessivas passagens que, na teo- identidades individuais e permitiu a
ria de Van Gennep, marcam a existên- conquista de uma nova identidade co-
cia social dos indivíduos. As “passa- letiva. Afinal, essa é uma propriedade
gens” vividas por essas militantes se dos contextos de profunda dor: gravar
inserem em um contexto de acirrado no corpo – social e do indivíduo – a me-
conflito político, no qual a sucessão de mória indelével do vivido, que fica a
etapas encontra sua razão de ser na exigir novos núcleos de sentido (pre-
quebra do consenso social. Como res- viamente elaborados ou não). De iní-
salta Elizabeth Ferreira, a prática da cio, o novo estatuto veio com a entra-
tortura institucional no mundo moder- da oficial em órgãos do governo, as
no significa uma completa inversão “desaparecidas” lograram tornar-se
de seus valores: “Sem o valor pedagó- presas políticas – identidade que, res-
gico uma vez atribuído ao suplício em salta a autora, pela própria qualidade
praça pública e sem o valor corretivo do “crime” que a definia, era, em po-
atribuído à pena por reclusão, a tortu- tencial, propiciadora de conversões fu-
ra está sempre à margem dos princí- turas (em contraste com o crime “co-
pios éticos e morais que ordenam o mum”). Assim, com o reconhecimento
convívio em sociedade. Sua existência do confinamento em instituições ofi-
é uma ameaça ao pacto social, sobretu- ciais, essas mulheres voltam a ter uma
do quando é perpetrada por órgãos do existência legal e, com isso, iniciam
Estado. Esta esfera, que deveria ser o suas trajetórias de reintegração ao
locus da efetiva realização e garantia conjunto da sociedade. Dessa perspec-
desse pacto, torna-se, nesse caso, sua tiva, a prisão representou, para algu-
antítese, o centro privilegiado do arbí- mas, a “suspensão da vivência do ter-
trio” (:144). ror” e uma nova possibilidade de “cole-
Para o indivíduo torturado, essa ex- tivo”; para outras, o confinamento pro-
periência de dor dissocia e coloca em longado trouxe a experiência de uma
conflito corpo e mente, pois, nas pala- “rotina de vazios, de dias carregados
vras do psicanalista Hélio Pelegrino, nas costas” e da difícil descoberta das
trazidas pela autora, “o corpo torna-se “contradições e antagonismos entre
nosso inimigo e nos persegue” (:144). companheiras de uma mesma causa”;
Quão distante estamos dos sofrimentos contudo, para a grande maioria, a pri-
corporais infligidos aos jovens nos ritos são foi ambas as coisas em momentos
de iniciação nas sociedades tribais! Em diferentes.
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Findo o encarceramento, a expe- tora e suas entrevistadas revela-se no


riência de reinserção social dessas, engajamento com a construção da me-
agora, ex-presas políticas envolveu mória social dos “anos de chumbo”,
“cuidados especiais”, pois esse passa- através de relatos de ex-presas políti-
do atuou inicialmente como uma “mar- cas, isto é, de determinadas falas femi-
ca”, um “estigma”, dificultando a re- ninas. Dessa perspectiva, a mediação
construção de suas vidas. Desde então, simbólica necessária entre entrevista-
por caminhos diversos e com ênfases das e entrevistadora engendra-se na
diferentes, essas mulheres vêm bus- articulação entre identidade política e
cando, sucessivamente, novos signifi- de gênero, que se constitui em locus
cados para essas experiências que, a atribuidor de legitimidade à rememo-
partir do campo político, contamina- ração em processo. Nisso reside, a meu
ram a totalidade de suas vidas. ver, a força do gênero no texto: fio con-
A rememoração propiciada pela si- dutor dos testemunhos – tecido com a
tuação de entrevista integra esse pro- competência teórica da autora na lite-
cesso de ressignificação do passado, ratura de gênero –, mas, principalmen-
mas não só para as entrevistadas. Eli- te, instituição social que preside a co-
zabeth Ferreira coloca-se como sujeito municação ao se apresentar como um
de um diálogo em que a escuta é tão espaço simbólico em que os sujeitos em
produtora da memorização das ex-mi- interlocução podem se reconhecer.
litantes, quanto os seus testemunhos. Nessa dimensão, a da identidade
Ancora-se, nesse empreendimento, de gênero, a cunha da autora se faz
nas idéias de Charles Peirce sobre a mais presente, pois (ela própria nos in-
centralidade do terceiro elemento na forma), se é grande a consciência das
linguagem, ou seja, daquele termo que entrevistadas acerca da radicalidade
torna possível a própria situação co- de suas opções políticas e da importân-
municativa. No plano das interações cia de suas conseqüências, o mesmo
face a face, a entrevistadora é o tercei- não se verifica com relação ao papel de
ro termo que permite a fala das ex-pre- suas experiências no que tange às re-
sas políticas (sujeitos da fala) sobre lações entre gêneros à época. As arti-
suas trajetórias de militância (referen- culações entre relação política e gêne-
te da fala) e, nessa mediação pragmá- ro, entre as noções de poder e de assi-
tica, contribui para estabelecer uma metria de papéis sociais nas histórias
conexão dinâmica entre passado e pre- de vida dessas mulheres, estão sendo
sente no processo de construção da feitas por elas no presente e, como a
memória coletiva. Mas a função me- leitura do livro nos sugere, graças não
diadora do terceiro “peirciano” não se apenas ao “potencial de escuta” do
esgota no âmbito dos sujeitos envolvi- momento atual – de que nos fala a au-
dos na situação dialógica, em verdade tora –, mas, também, pela própria qua-
pode até dispensar sua existência em- lidade da escuta oferecida por Eliza-
pírica, pois o que está em jogo é a pró- beth Ferreira.
pria função mediadora intrínseca ao
contexto comunicativo, ou seja, o fato
de que a comunicação requer, para
ocorrer, um universo compartilhado
que garanta o sentido da palavra dita.
No caso, o universo comum entre a au-
150 RESENHAS

HERZFELD, Michael. 1997. Cultural In- do autor seja ainda mais notável: como
timacy: Social Poetics in the Nation- se sabe, os principais desenvolvimentos
State. New York/London: Routledge. do “mediterranismo” sublinham exata-
226 pp. mente o papel de valores, como “hon-
ra” e “vergonha”, na singularização do
que seria esse “tipo” de sociedade. E
Marcio Goldman ainda que não seja possível explorar
Prof. de Antropologia Social, aqui os motivos que levam Herzfeld a
PPGAS-MN-UFRJ recusar essa abordagem, merece regis-
tro a enorme influência que os estudos
De origem britânica e vivendo hoje nos sobre sociedades “mediterrâneas” têm
Estados Unidos, onde é professor na exercido sobre trabalhos antropológicos
Universidade de Harvard, Michael realizados no e sobre o Brasil.
Herzfeld vem, há 25 anos, pesquisando É no interior dessa perspectiva mais
e escrevendo sobre a Grécia moderna, geral que devem ser compreendidas as
trabalho que é, simultaneamente, uma noções que balizam o livro, e que são
das reflexões mais originais e produti- objeto de detalhada discussão no capí-
vas da antropologia contemporânea. tulo 1. A “intimidade cultural”, essa
Seu último livro reúne artigos escritos proteção do espaço coletivo que o etnó-
entre 1986 e 1995 – reelaborados para a grafo tem de invadir, seria constituída
coletânea –, bem como dois inéditos justamente por esses valores que os in-
que abrem e fecham o volume. divíduos e grupos consideram como
A temática central do livro talvez “seus”, e que eles devem, ao mesmo
pudesse ser localizada na retomada im- tempo, seguir e apresentar aos demais,
plícita de uma velha questão que sem- pois a apresentação de tais valores não
pre dividiu a antropologia anglo-saxô- obedece a nenhum script rigoroso: re-
nica. Como se sabe, são inúmeros os presentam-se os valores no sentido tea-
debates opondo o privilégio concedido tral do termo (a referência aqui sendo
às relações sociais pela antropologia so- os “dramas sociais” de Victor Turner),
cial britânica, e o peso dos valores cul- mas isso só adquire sentido no quadro
turais enfatizado por boa parte da an- das interações concretas, interações
tropologia cultural norte-americana. O que, simultaneamente, produzem os
problema central de Herzfeld é justa- contextos em que se processam (e é aos
mente a investigação etnográfica do trabalhos de Erving Goffman que se re-
modo pelo qual os “valores” são agen- mete agora). Isso significa, em pouquís-
ciados na prática das “relações sociais”. simas palavras, que os “dramas” são o
Perspectiva que se opõe, por sua vez, próprio cotidiano e que a performance,
àquela que, principalmente na Grã- em sentido teatral, é “performativa”, no
Bretanha hoje, sustenta que o acesso do sentido da filosofia da linguagem de
analista à “sociedade” deve passar ne- Austin.
cessariamente pelas concepções que Aqui se situa a “poética social”, es-
seus membros dela fazem – espécie de sa “apresentação criativa do eu indivi-
“etno-sociologia” à qual Herzfeld pare- dual” (:X); se os valores são atuados,
ce opor algo como uma “sociologia da mais que meramente seguidos, parte da
cultura”. Vale a pena ainda observar vida social pode passar a ser concebida
que o fato de estudar uma sociedade nos moldes do que Jakobson denomi-
“mediterrânea” faz com que o esforço nou “função poética da linguagem”: a
RESENHAS 151

possibilidade, imanente à própria lín- sem abrir mão da nossa marca registra-
gua e à própria cultura ou sociedade, de da, que é a de compartilhar e tornar in-
“comentar” as mensagens no momento teligíveis as experiências vividas pelos
mesmo em que elas são emitidas, jo- agentes? Aqui, Herzfeld não se refugia
gando assim com os códigos – digam na solução mais fácil: abandonar o pla-
eles respeito aos valores ou às posições no mais geral para outras disciplinas e,
sociais. adaptando um velho chavão, dizer que
A “poética social” não se confunde, não estuda um Estado-nação, mas em
entretanto, com a “poesia”, e seu estu- um Estado-nação. Como se esse corte
do não consiste de forma alguma em fosse possível, como se fosse indiferen-
um “esteticismo” ou mesmo em uma te, para agentes e antropólogos, o fato
“estética”. O capítulo 7 detém-se neste de estarem, ambos, imersos em forma-
ponto, demonstrando que uma coisa ções dessa natureza.
são os modelos antropológicos “basea- Como proceder então? Trata-se – o
dos na linguagem”, e outra, muito dife- capítulo 5 e o posfácio do livro são con-
rente, aqueles “derivados da lingua- clusivos sobre esse ponto – de demons-
gem” (:145). Se os primeiros consistem trar de que modo a antropologia pode
em tentativas mais ou menos bem-su- contribuir, de forma específica, para a
cedidas de esboçar semânticas e/ou compreensão do Estado-nação. E aqui
sintaxes socioculturais, os segundos se fecha o círculo, na medida em que o
devem se concentrar nos aspectos antropólogo, que encara esse Estado-
pragmáticos da linguagem ou da socie- nação em seus planos de existência
dade, ou seja, nos agentes, suas rela- mais concretos – aqueles das experiên-
ções e suas práticas. É a retórica, na cias vividas pelos indivíduos e grupos
forma de uma “retórica social”, que de- que nele habitam –, percebe imediata-
ve servir de inspiração ao antropólogo, mente que o que se denomina com esse
não a gramática, que tende a conduzi- nome consiste, na verdade, em um con-
lo na direção de formalismos e univer- junto aberto de agentes e operações,
salismos sempre mais ou menos duvi- possuindo como denominador comum o
dosos. fato de estarem voltados para uma
Podemos compreender, assim, que “despoetização” da vida social, ou seja,
o terceiro termo do título da obra seja o para a essencialização, naturalização e
“Estado-nação”, pois Herzfeld, como literalização de experiências sociais
boa parte de nós – se não todos nós ho- sempre múltiplas e polifônicas. E aqui,
je – desenvolve suas pesquisas em uma de fato, o Estado encontra a cultura.
sociedade desse “tipo”. Quase todo o li- “O Estado” (o que não passa de um
vro gira, conseqüentemente, em torno nome) é um conjunto de instituições e
dessa questão, ainda que sejam os ca- estratégias que se apóiam nos mecanis-
pítulos 2, 3 e 4 os que abordam mais di- mos sociais mais cotidianos e, em prin-
retamente o tema. Essa situação quase cípio e ao contrário do que se gosta de
inelutável coloca, para o antropólogo, imaginar, não ignoram nada do que os
uma série de problemas mais ou menos antropólogos costumam estudar: as
conhecidos. Como manter a abordagem crenças e os mitos, o localismo e a seg-
etnográfica da disciplina sem perder os mentaridade, as identidades e os este-
grandes panoramas característicos des- reótipos… É fundamental observar, con-
sas formações sociais? Por outro lado, tudo, que ao se apoiar ou combater es-
como atingir essa visão panorâmica ses elementos de toda vida social, o Es-
152 RESENHAS

tado opera através de sua essencializa- corremos o risco de “essencializar o


ção: a ninguém será permitido possuir [próprio] essencialismo” (:171).
mais de uma religião, um pertencimen- Nada disso significa, é claro, que o
to local, uma etnia ou uma cor. “Esti- Estado seja menos “poético” do que
los”, sempre móveis e contextuais, con- qualquer outra coisa. Ao contrário, seu
vertem-se em “identidades” que, por poder de produção e manipulação da
sua vez, são cristalizadas em “etnicida- realidade é bem conhecido. Ocorre
des” que, finalmente, se enrijecem co- apenas que faz parte da “poética de Es-
mo “nacionalidades” (:42-43, e todo o tado” o esforço para apagar todos os
capítulo 4). A “labilidade semântica dos rastros de sua própria criatividade, ao
valores locais”, que faz com que per- mesmo tempo que busca impedir a de
tencimentos familiares, grupais, étnicos todos os demais. Desse modo, pode sus-
e mesmo nacionais funcionem como tentar – e há quem nele acredite – que
verdadeiros shifters (:45-46) – ou seja, suas invenções são “naturais”, semean-
só façam sentido em relação aos agen- do assim essências por toda parte. Todo
tes em interação em determinado con- cuidado é pouco por parte do antropó-
texto –, tende a ser eliminada ou limita- logo: um descuido e ele está pronto a
da pelo Estado. Ao mesmo tempo, uma aceitar como dado aquilo cuja constru-
vez substancializadas, essas variáveis ção deveria tentar demonstrar e tornar
(doravante “valores” ou mesmo “coi- inteligível. Desse ponto de vista, é pre-
sas”) retornam à vida social cotidiana e ciso observar inclusive que a “democra-
alimentam ódios, discriminações e mas- cia” não é necessariamente sinônimo
sacres (capítulos 4 e 5). de maior tolerância, ou seja, de menos
.A boa vontade da antropologia não essencialização. É o contrário que pode
é suficiente nesse caso. Não basta que mesmo ocorrer, na medida em que, em
afirmemos que as identidades são múl- nome da igualdade, toda diversidade
tiplas, que as etnias são relacionais, que tenda a ser suprimida (cf. :83 para o
o conceito de raça não possui funda- “igualitarismo essencialista”; e :111,
mento objetivo e que o “caráter nacio- para a “exclusão” em nome de “ideais
nal” é uma invenção. Não basta, tam- democráticos”).
pouco, sustentar que é preciso evitar os ....Por outro lado, e à medida que es-
dualismos e os essencialismos, nem atri- ses processos se disseminam, atingindo
buir todo o mal à quebra de supostas re- a menor das aldeias gregas, a verdadei-
lações de reciprocidade, forma de “nos- ra tarefa do antropólogo surge com cla-
talgia estrutural” que, desde Mauss, reza. Recusando a falsa separação entre
tendemos a compartilhar com nossos in- etnografia e teoria, ele deve seguir, de
formantes (cf. capítulo 6). Isto porque algum modo, contra a corrente. Acei-
estes podem não concordar conosco, tando o caráter social de suas próprias
chegando a matar ou morrer pela idéia teorias, bem como a força teórica das
de que o “sangue” define o pertenci- representações nativas, e a partir das
mento a um grupo, que o vizinho é “na- vivências mais concretas e das expe-
turalmente” inferior, e que tal ou qual riências mais profundas, deve praticar o
minoria só pode mesmo se comportar que Roland Barthes denominou certa
de determinada maneira. Ao renunciar, vez uma etimologia às avessas (capítulo
em nome do “politicamente correto”, à 3): não a que busca a “verdadeira” ori-
análise do que Herzfeld denomina “es- gem oculta das palavras, mas a que ten-
sencialismos práticos” (:26-29; 171), ta dissolver em seus múltiplos processos
RESENHAS 153

de criação aquilo, palavras e coisas, que “realidade” social. Agindo desse modo,
nos é apresentado como “natural”. ele introduz uma série de surpresas pa-
ra o leitor pouco familiarizado com a
história social e cultural da Argentina.
NEIBURG, Federico. 1997. Os Intelec- A primeira é a mudança de foco vis-à-
tuais e a Invenção do Peronismo. São vis boa parte da literatura sobre o tema,
Paulo: Edusp. 242 pp. em que o peronismo aparece como o re-
sultado de ações de grupos populares.
Neiburg, ao contrário, parte do pressu-
Regina Abreu posto de que, como todo fenômeno so-
Pesquisadora-visitante, PPGAS-MN-UFRJ cial e cultural, o peronismo resulta das
ações de diferentes agentes sociais, si-
Redigido inicialmente como tese de tuados em distintas áreas do espaço so-
doutorado para o PPGAS-MN-UFRJ, cial. Nesse sentido, os intelectuais tive-
esse livro parte de um tema amplo, po- ram desde o início papel central no pro-
lêmico e crucial para a construção da cesso de construção do peronismo, e é
identidade nacional na Argentina: o pe- justamente este o ponto investigado.
ronismo. Neiburg descarta desde o iní- No entanto, em vez de expor uma nova
cio as leituras apressadas e mais óbvias interpretação do peronismo – ou julgar
sobre o tema, explicitando a multiplici- o mérito das distintas interpretações
dade de significados que essa categoria que o tomaram como objeto –, o interes-
foi adquirindo ao longo do tempo: mo- se do autor é “compreender a lógica so-
vimento político nascido em meados da cial subjacente à existência dos deba-
década de 40 e identificado com a figu- tes, a gênese das figuras intelectuais
ra de Juan Perón; período da história da que deles participaram e seus efeitos
Argentina que se inicia em 1945 e ter- sobre a construção do próprio peronis-
mina em 1955; partido político criado mo como fenômeno social e cultural”
por Perón logo após sua vitória nas elei- (:16).
ções de 1946, que sobrevive até hoje Essa perspectiva permite uma esti-
com outras denominações; referência mulante reflexão acerca da relação
para a identidade política dos que pas- constitutiva entre “representação da
saram a invocar a figura de Perón e a realidade” e “realidade”. Ao enfatizar
recordação de seus governos para legi- o fato de que as interpretações e os in-
timar diferentes posições no campo da térpretes do peronismo foram produzi-
política. dos em uma dada sociedade e cultura,
A pesquisa é, na verdade, o estudo Neiburg amplia seu horizonte de pes-
de um período da história social e cul- quisa, a fim de compreender a lógica
tural da Argentina; ao mesmo tempo, o do funcionamento da sociedade argen-
autor revela, com intensidade cada vez tina em um dado período histórico. Ou-
maior, o papel ativo dos intelectuais na tra surpresa introduzida pelo autor diz
“invenção” do peronismo, noção que respeito ao período focalizado. Ao con-
nada tem a ver com um juízo acerca da trário do que se poderia supor, Neiburg
artificialidade das interpretações abar- não está interessado em analisar espe-
cadas pelo termo. Pelo contrário, Nei- cificamente o momento histórico da gê-
burg busca acentuar uma perspectiva nese do peronismo, com o golpe de Es-
não substancialista, atenta à dimensão tado de 1943, quando Perón passou a
produtiva das ações sociais sobre a ser identificado como o “homem forte”
154 RESENHAS

do regime militar – ao mesmo tempo Neiburg vê-se diante da difícil tarefa


que se converteu em alvo de oposição de, dentro da ampla bibliografia exis-
de grande parte dos partidos políticos e tente sobre o assunto, escolher os textos
das elites sociais e econômicas. Refle- e os porta-vozes mais significativos pa-
tindo sobre as representações do pero- ra compor seu universo de trabalho. O
nismo e do antiperonismo, o autor de- autor decide lançar mão de apenas três
cide focalizar justamente o período que textos, justificando sua escolha pelo fa-
se abriu em 1955, quando um golpe mi- to de se tratar de três obras consagra-
litar pôs fim ao segundo governo Pe- das, escritas por autores que são figuras
rón. A percepção de que foi a partir da centrais da Argentina pós-Perón, com
chamada “Revolução Libertadora” que potencial suficiente, portanto, para ilus-
se deu importante reestruturação do trar as dimensões constitutivas dos sis-
espaço social, com a eclosão de inúme- temas de questões e diferenças cons-
ras falas a favor e contra o peronismo, truídos pelos participantes dos debates
conduz Neiburg a privilegiar os discur- sobre o peronismo após a “Revolução
sos produzidos nesse momento. Trata- Libertadora”. O primeiro é de um autor
se de uma estratégia produtiva: tomar individual, Mario Amadeo, e foi publi-
a via do “fim” do peronismo para per- cado em 1956 sob o título Ayer, Hoy y
ceber a lógica subjacente à sua inven- Mañana. O segundo, intitulado Las Iz-
ção. A destituição de Perón do poder quierdas en el Proceso Político, é o pro-
teria provocado uma série de debates duto de uma reportagem organizada
com a finalidade de estabelecer uma em fins de 1958 pelo advogado Carlos
nova etapa na vida da Argentina, de- Strasser. O terceiro, La Naturaleza del
bates que construíram o chamado “fe- Peronismo, foi lançado em 1967, por
nômeno peronista” como objeto, ao Carlos H. Fayt, titular da Cátedra de Di-
procurar entender a história recente do reito Político, com o objetivo de “reunir
país. Neiburg debruça-se sobre algu- material para entender o quê e o por-
mas dessas representações, explicitan- quê do peronismo” (:37).
do os pressupostos mais significativos O segundo capítulo dá continuida-
que permitem compreendê-las em con- de ao primeiro, procurando mostrar co-
junto. Sua intenção não é isolar tais dis- mo o sistema de classificações gerado a
cursos da trama social ou do contexto partir de diferentes aproximações do
em que são produzidos, mas enfrentar peronismo é fundado em argumentos
as relações, os embates, os conflitos e de autoridade que variam de acordo
os pontos de contato entre eles. Trata- com as posições. Neiburg indica como
se de analisar uma “retórica de comba- cada indivíduo procura autorizar seu
te”, colocando em evidência algumas próprio argumento desqualificando o
das dimensões das lutas de classifica- argumento de seu adversário, o que,
ção travadas não só em torno de repre- paradoxalmente, implica o reconheci-
sentações do peronismo, como também mento de algum tipo de autoridade no
das diferentes posições que sustenta- segundo. Vemos, assim, ampliar-se o
vam os diversos pontos de vista sobre painel dos protagonistas em torno da
ele. questão peronista. A política é concebi-
No primeiro capítulo, no intuito de da como um campo de forças em que os
fornecer um mapa das diferentes posi- agentes, ao lutarem para impor suas
ções (“repertórios”) acerca de peroni- próprias representações acerca do pe-
zação, desperonização e reperonização, ronismo, estão também constituindo a
RESENHAS 155

si próprios e planejando uma nova Ar- movimento de explicar o país, os inte-


gentina. A própria “sociologia científi- lectuais de 1955 resgataram ou atuali-
ca” é tomada como uma voz dentre tan- zaram em suas análises antigos para-
tas outras que compunham o campo das digmas, dentre os quais a tese de ser a
representações sobre o peronismo. Atri- Argentina um país permanentemente
buir a si o papel de porta-voz da ciência dividido, marcado pela “contradição
era um dos seus principais argumentos entre duas Argentinas, uma visível, ur-
de autoridade. bana, moderna, cosmopolita, voltada
O capítulo 3 é dedicado ao exame para o mercado mundial por intermédio
da relação entre as interpretações do da metrópole de Buenos Aires; outra
peronismo e os relatos consagrados so- oculta, rural, tradicional, voltada para o
bre a nação argentina e sua história. mercado interno, cuja expressão máxi-
Sob o título “Peronismo e Mitologias ma eram as províncias do interior do
Nacionais”, o autor recorre à noção país” (:88-89).
clássica de mito formulada por Lévi- Na segunda parte do livro, que en-
Strauss, procurando os nexos entre o globa seus três últimos capítulos, há, de
peronismo e o “esquema de eficácia um lado, a preocupação de assinalar os
permanente” do mito, sua capacidade vínculos entre elites intelectuais e so-
de manter uma relação simultânea com ciais na Argentina e, de outro, de re-
o passado, o presente e o futuro, sua du- constituir a história de uma importante
pla estrutura histórica e anti-histórica. instituição político-cultural, resgatando
Por outro lado, retoma temas caros à so- significativa passagem da história da
ciologia weberiana ao procurar os vín- fundação das ciências sociais nesse
culos entre a consagração social de no- país. Elegendo casos expressivos para
vas profecias e de novos profetas e uma estudo, e trabalhando com trajetórias
tradição particular. Subjacente a essas institucionais ou biográficas, o autor
preocupações está o anseio de com- cria as condições para analisar o pro-
preender o caráter construído das reali- cesso de formação das redes de rela-
dades nacionais e dos mitos que as le- ções. O primeiro desses “estudos de ca-
gitimam, bem como descrever a lógica so” focaliza o “Colégio Livre de Estu-
social que embasa e permite a emer- dos Superiores”, importante centro de
gência de novos profetas. O autor pro- reunião de políticos, empresários, fi-
cura demonstrar de que modo esses no- nancistas e intelectuais de renome, fun-
vos profetas, vivendo sob determinadas dado no início de 1930 e atuante até o
condições e agindo de acordo com inte- período da “Revolução Libertadora”,
resses também socialmente construí- responsável em grande parte pela for-
dos, foram consagrados como intérpre- mação de uma camada de dirigentes
tes autorizados dos dilemas nacionais – atuante na “Argentina pós-peronismo”.
“dilemas” que, por seu turno, foram Analisando a composição social da ins-
também socialmente construídos e pas- tituição e suas fontes de sustento, Nei-
saram a legitimar a fala de seus “intér- burg chega a conclusões importantes
pretes”. Acompanhando as representa- para a compreensão das relações entre
ções de cada intérprete fica evidente o as elites intelectuais e sociais, como a
quanto explicar o peronismo na Argen- de que o principal apoio econômico ao
tina era explicar a própria Argentina e “Colégio Livre de Estudos Superiores”
de que forma cada explicação trazia provinha da atividade permanente de
consigo um projeto para o país. Nesse um grupo de mecenas.
156 RESENHAS

Para a análise da fundação da “so- STOCKING JR., George (org.). 1996.


ciologia científica”, o autor trabalha Volksgeist as Method and Ethics. Es-
com a trajetória de Gino Germani, iden- says on Boasian Ethnography and the
tificado como o “pai fundador” da disci- German Anthropological Tradition.
plina na Argentina. A análise da biogra- Madison: The University of Wisconsin
fia social e intelectual de Germani con- Press. 349 pp.
duz à compreensão do “processo de fa-
bricação social” e de institucionalização
da sociologia no país a partir da segun- Priscila Faulhaber
da metade dos anos 50. Por outro lado, a Pesquisadora do Museu Goeldi/CNPq
trajetória de Germani permite um me-
lhor entendimento das “possibilidades Lançada em 1983, a série History of
abertas no campo intelectual para a Anthropology, dirigida por George
constituição de novos pontos de vista so- Stocking Jr., se completa com um volu-
bre a sociedade durante o período da me, o oitavo, inteiramente dedicado à
história social e cultural da Argentina trajetória de Franz Boas. Não se trata,
em que o peronismo e a desperonização contudo, do fim da série, mas de uma
definiram uma agenda de problemas transição: o próximo volume será ainda
nacionais” (:158). Por fim, o último capí- organizado por Stocking Jr., mas já em
tulo concentra-se na palavra de ordem colaboração com Richard Handler –
divulgada a partir de 1955 incitando à que, a partir do décimo volume, assu-
desperonização. Neiburg procura traçar mirá a direção da mesma.
um painel dos diferentes significados Nesse último volume são examina-
dessa palavra de ordem para os diversos dos, sob diferentes ângulos, aspectos da
agentes e grupos interessados. formação intelectual e cultural (da Bil-
Se cada capítulo contém uma análi- dung) de Franz Boas – nascido em Min-
se instigante e reveladora de aspectos den, Vestfália, província da Prússia –,
centrais da história social e cultural da sobretudo suas raízes e influências no
Argentina, o livro em conjunto faz uma pensamento alemão. Em linhas gerais,
incursão em expressivas teorias “nati- seu itinerário intelectual delineia-se na
vas”, percorrendo “explicações do pe- tensão entre duas abordagens metodo-
ronismo” que são, também, “explica- lógicas: a física e a cosmográfica.
ções da Argentina”. O autor leva a bom Após uma introdução de Stocking
termo o objetivo indicado no início do Jr., que trabalha sobre a obra de Boas
livro de “mostrar que todas as interpre- desde os anos 60, é reeditado “The
tações do peronismo foram teorias so- Study of Geography”, de 1887, onde o
bre a Argentina, que nas relações das próprio Boas aborda o método e os limi-
diferentes figuras intelectuais com o pe- tes da disciplina. Neste artigo, ele não
ronismo estava em jogo tanto sua pró- pretende tender nem para o lado do fí-
pria existência social, quanto o ideal de sico nem para o lado do cosmógrafo,
uma boa sociedade, uma proposta de mas atender aos critérios pessoais e à
futuro” (:158). Acompanhando a longa inclinação para abstrações (:14). O cos-
e bem documentada argumentação, fi- mógrafo interessa-se pelo fenômeno co-
ca evidente como uma sociedade não mo um todo, e não dá mais valor ao es-
apenas constrói seus “enigmas”, como tético (abordagem da física) que ao afe-
também as figuras encarregadas de im- tivo (abordagem da cosmografia); sua
por formas “corretas” de “decifrá-los”. análise não desqualifica o estudo dos
RESENHAS 157

fenômenos que parecem estar conecta- a terminologia do parentesco, dos ri-


dos apenas na mente do observador. Ao tuais e das relações sociais.
contrário, a própria unidade de objetos Benoit Massin examina o papel das
do físico lhe parece subjetiva (:16). teorias da raça na institucionalização da
Matti Bunzl destaca, dentre outras antropologia física na Alemanha. Ini-
influências alemãs sobre Boas, os ir- cialmente, os teóricos raciais represen-
mãos Humboldt. A cosmografia foi con- tavam uma minoria marginal (:94). Sob
cebida por A. Humboldt no sentido de a influência de Virchow, sobressaía-se,
uma descrição dos homens e suas ações na comunidade dos antropólogos físicos
a partir de seu próprio caráter e dos e médicos anatomistas, o humanitaris-
eventos que influenciaram suas vidas, mo monogênico herdado de Herder.
bem como a observação sistemática de Bastian travou uma “guerra” de trinta
cada fenômeno a partir de sua própria anos pela consideração da igualdade e
existência (:13), no contexto das críticas dignidade de todas as culturas, assu-
à tentativa iluminista de reduzir o mun- mindo posições contrárias ao darwinis-
do a princípios abstratos e à classifica- mo social (:96). A maior parte dos antro-
ção hierárquica dos fenômenos segun- pólogos mantinha, contudo, o ponto de
do princípios positivistas de desenvolvi- vista da hierarquia evolucionista das ra-
mento (:39). Nos tratados de W. Hum- ças e culturas sustentada na dicotomia
boldt, dentro do referencial do naciona- “povos da natureza” e “povos da cultu-
lismo romântico alemão, a linguagem, ra”. Lushan, sucessor de Virchow (para
cuja necessidade e habilidade teriam quem a própria idéia de raça, construí-
originado a humanidade, é enfocada da a partir de tipos estatísticos, não con-
como representação do “gênio do po- sistiria em uma construção biológica,
vo” (:33). A partir dessas premissas, mas uma construção mental (:114)),
Bastian, de quem Boas foi assistente, aproxima-se do darwinismo, adotando
concebe os seres humanos como produ- a classificação racial como objetivo últi-
tos históricos constituídos duplamente mo e a craniometria como método. Na
pelo mundo espiritual (gestigen) e o virada do século, passaram a prevale-
meio ambiente físico, e as trajetórias do cer as recomendações de intervenção
Volkergedanken (lógica popular) em re- terapêutica, formuladas por biólogos e
lação com províncias geográficas (:52). físicos que interferiam na política de Es-
Após a migração para os Estados Uni- tado, em consonância com o crescente
dos, em 1887, Boas, apesar de acomo- antiliberalismo das elites alemãs (:120).
dar-se a uma divisão institucional dos Através da leitura de diários e cartas
campos disciplinares, afasta-se, dentro de Boas, e traçando um perfil de suas
de uma perspectiva pluralista, do etno- leituras desde a primeira adolescência,
centrismo em vigor, dá prosseguimento Julia Liss indica que os dilemas de sua
às linhas traçadas por Bastian e realiza formação traduziam seu próprio confli-
o projeto de W. Humboldt de estabele- to cultural em termos de sua experiên-
cer análises das estruturas da lingua- cia individual (:162). Formado dentro de
gem, da investigação de suas relações instituições de elite, viveu a ambivalên-
genéticas e das relações com a perso- cia de, judeu, não pertencer à cultura
nalidade nacional (:66). A partir de dominante alemã. Na maturidade, o
1900, Boas enfatiza os processos pelos universalismo científico foi uma manei-
quais o “espírito do povo” (Volksgeist) ra de transcender os limites de suas con-
traduz elementos exógenos, bem como tradições individuais e sociais (:163).
158 RESENHAS

Ira Jacknis desenvolve um estudo também intérprete e autor. O trabalho


de caso de como o conhecimento etno- boasiano teria ficado marcado, até o fim
gráfico é gerado na trajetória da meto- de sua trajetória, pelas tensões mal re-
dologia de Boas. No começo de sua car- solvidas entre o ponto de vista do antro-
reira até 1890, período no qual realizou pólogo e o ponto de vista nativo.
a maior parte de seus trabalhos de cam- Thomas Buckley mostra como Kroe-
po, a prática de pesquisa esteve centra- ber, proeminente discípulo de Boas,
da na coleta de artefatos, ainda que se fundamentou sua trajetória enquanto
observasse uma evolução para o tex- humanista científico e historiador, in-
tual. O interesse dirigia-se também pa- fluenciado também pelo legado da an-
ra as informações contidas nos relatos tropologia alemã do século XIX. Kroe-
nativos, porém ainda voltado priorita- ber buscou na história natural uma pon-
riamente aos objetos destinados aos te com as noções de cultura da antropo-
museus, algo que pudesse ser coletado, logia do século XX, e uma solução para
preservado e estudado (:200). A partir sua preocupação de explicar os proble-
de 1890 passa a considerar “‘toda a cul- mas segundo leis gerais (:261). Enfati-
tura de uma tribo’ – a orientação con- zou, em sua noção de cultura, a criativi-
textual” (:200). Em The Limitations of dade humana conceituada em termos
the Comparative Method in Anthropo- do impulso do crescimento cultural e do
logy, de 1896, os costumes e crenças já progresso humano, incorporando, as-
não eram os objetos últimos da pesqui- sim, o primado do positivismo das ciên-
sa, pois sua preocupação central seria cias naturais à sua perspectiva “huma-
principalmente descobrir os processos nista” de história natural, diferente-
através dos quais certos estágios de cul- mente de Boas, cujas concepções dão
tura se desenvolveram. Verifica-se, as- ênfase à subjetividade. A qualificação
sim, um deslocamento do “objetivo” co- da cultura através do conceito de super-
mo externamente observado para o ob- orgânico, leva-o a prescindir da consi-
jetivo como culturalmente constituído. deração dos seres humanos, reduzidos
É formulada assim uma nova concep- a meras ilustrações, e incorpora os ví-
ção do objeto etnográfico e do objeto da cios do essencialismo e do determinis-
etnologia, com a qual se passa a priori- mo cultural. E do idealismo, embora es-
zar o exame dos contextos culturais nos te conceito tenha sido cunhado como
quais os objetos são construídos. No fim um antídoto aos “fantasmas metafísicos
de sua carreira, o interesse central não do século XIX” (:267). Apesar da apolo-
era tampouco o relato original enquan- gia aos vínculos morais com os destinos
to artefato, mas a reconstrução verbal. dos povos estudados, a tarefa da antro-
Os objetos passaram a ser vistos tam- pologia para Kroeber seria compreen-
bém como recursos para uma auto-re- der objetivamente a cultura aborígine
constituição cultural pelos representan- original, e evitar o engajamento políti-
tes dos próprios povos (:209). co, a despeito dos indivíduos “em carne
Judith Berman analisa, em uma ten- e osso” e dos testemunhos dos nativos.
tativa de constituir bases sólidas para Ele ficaria, no mínimo, surpreso com
as generalizações antropológicas, as tendências posteriores de incentivar as
primeiras etnografias de Boas, pilares reinterpretações de suas próprias cultu-
de todo o seu trabalho futuro (:215), ras pelos descendentes de índios cujas
bem como suas relações com seus “in- tradições foram transformadas pelo con-
terlocutores de campo”, como Hunt, tato (:293).
RESENHAS 159

Suzanne Marchand aponta como o uma bola de lama. Só isso já desperta a


culto ao exótico por parte do classicis- atenção do leitor, pois, vivendo os Ara-
mo e do romantismo germânico não le- ras sobre o divisor que separa as águas
vou os exploradores a conhecer e estu- que correm para o Iriri, afluente do Xin-
dar apenas os chamados povos primiti- gu, das que descem diretamente para o
vos da América. A intervenção alemã Amazonas (mas destas últimas retira-
na Ásia Menor (:334) gerou toda uma dos após lograrem o contato amistoso
política cultural de coleta de artefatos com os brancos), eles têm como vizi-
arqueológicos vinculada à política im- nhos vários outros grupos tribais que
perialista e colonial. Esta política, já no também faziam a caça de cabeças por
despontar do século XX, não sofreu tan- uma extensa área, desde o Xingu até o
ta influência dos ideais românticos Madeira. Entretanto, tais grupos per-
quanto do positivismo e do cientificis- tenciam ao tronco tupi, enquanto os
mo, e implicou a coleta de verdadeiros Araras, da família caribe, constituíam
tesouros. Tais artefatos, dissociados dos talvez a única exceção.
contextos culturais onde tinham um Mas o autor opta por não comparar,
sentido, eram transformados em meros permanecendo no universo dos Araras,
fragmentos para exposição nos museus, entre os quais realizou pesquisa de
deleite dos seus usuários. campo de cerca de quatorze meses em
A leitura dessa coletânea de comen- várias etapas, distribuídas pelos anos
tadores do itinerário de Boas é um con- 1987, 1988, 1992 e 1994.
vite à reavaliação de sua obra, ainda Começa por uma apresentação ge-
não publicada em português, apesar ral da cerimônia e das condições em
das inúmeras traduções elaboradas com que é realizada. Mostra-nos como cada
fins didáticos. Boas constitui referência tipo de festa arara inclui uma festa me-
não só para etnólogos, mas para todos nor e pode ser englobada por outra
aqueles que se interessam pela etno- maior, desde aquelas festas de beber,
grafia de outras formas de saber. Vale- passando para aquelas de beber e co-
ria a pena um esforço editorial no senti- mer, para aquelas em que também se
do de sanar essa lacuna. tocam instrumentos musicais, se canta
e se dança, até chegar à mais inclusiva
e complexa, que é a do Ieipari, o poste
TEIXEIRA-PINTO, Márnio. 1997. Ieipa- encimado pelo crânio do inimigo. Des-
ri: Sacrifício e Vida Social entre os Ín- creve a elaboração da bebida fermenta-
dios Arara (Caribe). São Paulo/Curiti- da de tubérculos, frutas ou milho, a ma-
ba: Hucitec e Anpocs/Editora UFPR. neira de oferecê-la, sua relação com
413 pp., ilustr. substâncias como leite e esperma. Exa-
mina as técnicas de caça, o contato que
um xamã (todos os homens Araras são
Julio Cezar Melatti mais ou menos familiarizados com as
Prof. de Antropologia, UnB atividades xamânicas) estabelece com
um ser dono de uma espécie animal,
O livro tem por foco uma importante ce- pedindo-lhe que os dê para criá-los,
rimônia dos índios Araras, centrada em abrindo a oportunidade assim para que
um poste, erigido no pátio, em cujo to- os outros homens possam abatê-los.
po, até tempos recentes, se punha o crâ- Descreve os instrumentos de sopro, a
nio de um inimigo, hoje substituído por ordem em que tocam, os seres a que es-
160 RESENHAS

tão associadas suas músicas. Mostra co- do céu, obrigando a humanidade a vi-
mo os caçadores, aguardados com a be- ver sobre os seus fragmentos, mistura-
bida fermentada, que devem retribuir da aos seres maléficos até então manti-
com carne, entram na aldeia fingindo dos do lado de fora; o ensino da festa,
um ataque, uma encenação agressiva destinada a trazer novos filhos, pelo bi-
omitida na forma mais abrangente do cho-preguiça, que também deu aos hu-
rito, quando há o Ieipari. Expõe o trata- manos as flautas, a tecelagem em algo-
mento do inimigo, o que lhe dizem no dão e palha e povoou a mata de animais
cântico entoado antes de matá-lo e es- de caça; a recusa das mulheres de con-
quartejá-lo. Além do crânio, que inte- tinuar a aplicar as técnicas destinadas a
gra um instrumento musical antes de trazer de volta à vida aqueles que mor-
vir a coroar o poste ritual, outras partes riam, como faziam antes da catástrofe,
do corpo lhe são retiradas, mas seu des- de modo que a morte se instalou defini-
tino, talvez por lacuna na memória dos tivamente entre os humanos e serviu
Araras atuais, é apenas esboçado: os os- para que a divindade, agora transfigu-
sos das mãos e dos pés, a pele do rosto, rada na vingativa onça preta, transfor-
o escalpo, as vísceras. Descreve a ere- masse as partes em que se dividem os
ção do poste, como os homens o descas- corpos dos defuntos em uma série de se-
cam com pancadas e palavras agressi- res danosos; a viabilização da caça por
vas, e como as mulheres o abraçam for- intermédio das relações de reciprocida-
temente e nele esfregam sensualmente de entre os xamãs e os espíritos donos
suas vulvas. A carne trazida pelos caça- de animais, em que estes dão àqueles
dores disposta em torno do poste, assim bichos para criar e por sua vez criam um
como uma panela com bebida fermen- certo tipo daqueles seres danosos oriun-
tada colocada ao pé do mesmo, são co- dos dos mortos. Se o primeiro capítulo
mo ofertas do Ieipari. E as mulheres, ao sublinha a ausência da vingança nas
tomarem dessa bebida, dizem revela- palavras que os Araras dirigem ao ini-
doramente que estão bebendo um filho. migo, o segundo não trabalha o teor da
Essa apresentação inicial, que cons- vingança que atribui ao ser supremo.
titui o primeiro capítulo, é em si mesma A vingança ou sua ausência no con-
autônoma, não depende do que se se- flito com o inimigo poderia ter sido um
gue para ser compreendida. Dir-se-ia dos temas de discussão no terceiro ca-
que o livro se compõe de partes que pítulo, que se limita ao contato entre os
acrescentam mais sentido à apresenta- Araras e os brancos. Não tenta reconsti-
ção inicial, mas elas próprias também tuir as relações dos Araras com outras
autônomas. etnias indígenas, a não ser com os Caia-
O capítulo referente à cosmogonia e pós, mas estes apenas enquanto partici-
à cosmologia aponta a origem de certos pantes das frentes de atração. Chama a
elementos integrantes do rito ou aspec- atenção para o fato de os brancos não
tos da condição humana que levam à se contarem entre as vítimas cujas ca-
sua realização: o instrumento de sopro beças serviam de centro ao rito arara,
que a divindade principal tocava para até o momento em que a construção da
manter a calma e a boa ordem no céu, Transamazônica pressionou fortemente
onde a humanidade vivia de modo pa- pelo estabelecimento do contato. Que
radisíaco, e que hoje faz a música de etnias indígenas teriam sido alvo das
fundo das festas; a eclosão de um con- incursões araras, que motivos os mo-
flito que redundou na quebra da casca viam contra elas, ou, ao contrário, que
RESENHAS 161

razões os faziam limitar-se à defensiva um motivo para o autor examinar a


são perguntas que talvez o autor não te- guerra como um fator de articulação
nha feito ou, se as fez, das respostas não entre os vários grupos locais. Quem
tirou proveito. guardava o crânio do inimigo e o usava
No quarto capítulo examina a coe- como instrumento musical? Quem guar-
xistência de uma classificação horizon- dava os ossos dos membros, a pele da
tal dos termos de parentesco, aplicada face, o escalpo? Como se fazia a circu-
aos membros da própria unidade resi- lação desses troféus? Que importância
dencial, com uma oblíqua, referente às teriam eles nos ritos de passagem rela-
relações com outras unidades. Mostra tivos à idade? São questões que pode-
como o oferecimento ritual da bebida riam ter sido exploradas neste capítulo.
fermentada, que se faz entre a irmã (ou O quinto capítulo, na verdade,
o marido dela) e o irmão, moradores de abrange dois. Sua parte inicial (:305-
casas diferentes, é coerente com a clas- 343) trata da relação entre os modos de
sificação oblíqua. Observa também que dar, as coisas dadas e as relações sociais
um homem, ao dar sua irmã em casa- envolvidas, de um lado, e os valores mo-
mento, pode reivindicar em troca a filha rais, de outro. A classificação das for-
daquele que a recebeu, que não precisa mas de dar bens e prestar serviços mos-
necessariamente ser filha dessa ou de tra-se sobremodo complexa, a ponto de
outra irmã. E ainda, quando uma mu- mal poder ser ilustrada pela clássica es-
lher, dentre aquelas a que pode, pelo fera que combina os diferentes tipos de
jogo das trocas, aspirar a ter como es- troca com a distância social, desde o nú-
posa, se casa com outro homem, este úl- cleo da reciprocidade generalizada ca-
timo passa a lhe dever uma irmã ou fi- racterística dos parentes próximos até a
lha. Em outras palavras, uma esposa capa mais externa da reciprocidade ne-
reivindicada que se torna cônjuge de gativa associada aos inimigos. Além
outro gera dívida como se fosse uma ir- disso, no caso dos Araras, esse gradien-
mã a este cedida. Sem dúvida, tudo isso te é distorcido pelos ideais de generosi-
é muito convincente e feito com maes- dade, gentileza, solidariedade, de ma-
tria, apesar de as trocas de mulheres neira que a representação gráfica esco-
examinadas nos casos concretos mais lhida pelo autor lembra os esquemas
parecerem deduções das genealogias demonstrativos da influência do Sol e
do que descrições feitas a partir de de- da Lua nas marés oceânicas (:337).
poimentos dos Araras. Mas, tendo em Na segunda metade do capítulo
vista o rito que constitui o tema do livro, (:343-385), o autor retoma o grande rito
este capítulo talvez fosse o lugar de anteriormente descrito e o analisa se-
examinar também certas relações, co- gundo três seqüências paralelas: a su-
mo a dos amigos de guerra, que, ao sa- cessão de festas, a das músicas, que já
crificarem juntos um inimigo, trocavam apresentara anteriormente, e a ordem
entre si temporariamente as esposas. das fases (marcadas por tarefas ou des-
Se, tal como a dos amigos de caça (re- locamentos dos participantes). Uma in-
crutados entre os afins reais do mesmo cursão na teoria da linguagem de
grupo residencial), essa parceria tinha Hjelmslev não nos parece ter trazido
como protótipo genealógico a relação novas luzes para a compreensão do rito.
MB/ZS, mas escolhidos em outros gru- Por outro lado, neste capítulo e na con-
pos residenciais, no passado grupos lo- clusão que o segue, a idéia de “sacrifí-
cais distintos, ela poderia ter sido mais cio”, presente no título do livro, é trata-
162 RESENHAS

da de modo demasiado sumário; Hu- um contexto de acirradas discussões,


bert e Mauss não são convocados, nem propiciando o posicionamento público
mesmo aquele que os seguiu no exame de atores importantes da academia nor-
do mais discutido dos ritos de tratamen- te-americana. A atualização de argu-
to dos inimigos em nosso continente, mentos que tentam fundamentar as di-
Florestan Fernandes. ferenças entre os seres humanos tendo
Tal como a classificação das bebidas em vista suas capacidades cognitivas –
de acordo com a altura das partes dos cuja formulação mais cristalina se en-
vegetais das quais são produzidas (:62) contra no livro, de 1994, The Bell Cur-
ou tal como o poste Ieipari, centro do ve: Inteligence and Class Structure in
grande rito, poderíamos dizer que a in- American Life, de Richard J. Hernstein
terpretação desenvolvida no livro passa e Charles Murray – desencadeou inú-
do mais substancioso para o mais eté- meras respostas, dentre as quais o pró-
reo à medida que se desloca da base prio livro do historiador Charles Tilly.
para o topo. Muito de mistério ainda O autor é extremamente original ao
paira sobre a cabeça do inimigo. Mas, tratar da gênese e da permanência das
certamente, o Autor continuará a busca desigualdades humanas – mesmo que
de mais sentido com a elaboração de essa constatação seja quase óbvia nas
outros trabalhos. ciências sociais, que têm demonstrado
Não obstante, o livro constitui uma que tais desigualdades se estendem no
excelente contribuição à etnologia indí- tempo e no espaço. Sua originalidade
gena, tanto que a participação da An- consiste na discussão e na utilização de
pocs na sua publicação vem a ser o prê- teorias e perspectivas atuais, produzidas
mio que essa instituição lhe concedeu no âmbito de diversas disciplinas, tra-
como a melhor tese de doutorado de tando em conjunto temáticas que ten-
1995. Curiosamente, não há nenhuma dem a ser analisadas de maneira isola-
referência ao prêmio no volume. da. O autor propõe, assim, desenvolver
– com todo o peso que essa expressão
pode carregar – “explicações gerais”.
TILLY, Charles. 1998. Durable Inequa- Para Tilly, o motivo pelo qual as de-
lity. California: University of Califor- sigualdades sociais perduram está rela-
nia Press. 299 pp. cionado ao fato de que pares de catego-
rias assimétricas estão sempre disponí-
veis, fazendo parte do cotidiano e ofe-
Jorge Pantaleón recendo, mesmo para os hierarquica-
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ mente inferiores, a possibilidade de al-
gum benefício, ou, o que é o mesmo, a
A publicação desse livro poderia ser en- ilusão de tê-lo. O tom de provocação de
carada, em parte, como mais um capí- seu argumento deriva da revelação
tulo da polêmica atualmente em curso dessa face “positiva” dos mecanismos
sobre políticas públicas e sociais nos Es- geradores e perpetuadores das desi-
tados Unidos. O cerceamento de fundos gualdades. Em outro plano, o autor exa-
para assistência social, somado a uma mina as relações entre categorizações
seleção mais rigorosa dos seus benefi- assimétricas e sistemas de governo. Do
ciários, à precarização do emprego e a seu ponto de vista, as democracias re-
uma persistente racialização das rela- forçam os mecanismos de inclusão e ex-
ções sociais, vêm se desenvolvendo em clusão com muito mais energia que as
RESENHAS 163

autocracias, ainda que, ao mesmo tem- branco, homem e mulher, cidadão e es-
po, essas democracias possam oferecer trangeiro), mais do que a partir de dis-
às suas populações canais de inclusão tinções simples no plano das capacida-
mais eficazes do que em qualquer outro des, gostos ou, ainda, desempenhos in-
sistema político. Se toda inclusão impli- dividuais (:7). O livro descreve quatro
ca algum tipo de exclusão, todo proces- mecanismos básicos por intermédio dos
so de incorporação de novas categorias quais as desigualdades duradouras se-
sociais nos assuntos públicos reforçará riam geradas, e onde agentes sociais in-
e criará desigualdades, e mesmo nas corporariam pares de categorias assi-
políticas supostamente mais redistribu- métricas. O primeiro desses mecanis-
tivas, como as do welfare state, pode-se mos, “exploração”, baseia-se na extra-
comprovar a reprodução dos mecanis- ção, por parte dos indivíduos que con-
mos de criação de desigualdades so- trolam conjuntos de recursos específi-
ciais. cos, de benefícios gerados por outros. O
Compartilhando uma mesma abor- segundo mecanismo, “acumulação de
dagem processual e histórica com ou- oportunidades”, desenvolve-se quando
tros autores (como Skocpol, Wilson, integrantes de uma rede têm acesso a
Sen, Castel, Ewald e Rosanvallon, den- recursos que podem ser por eles mono-
tre outros), Tilly, nesse livro, concentra- polizados a partir do próprio modus
se na explicitação de esquemas e me- operandi da rede – a criação de catego-
canismos gerais, segundo ele, “sempre rias excludentes em unidades militares
presentes” na construção e na perdura- seria um exemplo disso. Os outros dois
ção da desigualdade. É essa singulari- mecanismos, “emulação” e “adapta-
dade que, em contrapartida, confere ao ção”, reforçam a efetividade das distin-
texto um certo tom por vezes excessiva- ções categoriais: o primeiro, mostrando
mente esquemático e terminológico. como uma organização se reproduz imi-
Coerente com sua intenção progra- tando modelos de desigualdade que já
mática, o texto define o que seriam os obtiveram sucesso (a emulação das for-
princípios gerais da constituição das mas de organizar as burocracias em ou-
relações assimétricas (principalmente tras nações, na formação de novos Esta-
nos dois primeiros capítulos), obser- dos, por exemplo); o segundo, obser-
vando como esses princípios funcio- vando como se cria e se rotiniza um
nam em situações históricas específicas “conhecimento local” constituído a par-
(capítulo 3), através de vínculos sociais tir desses modelos (os trabalhadores do
singulares, como no caso da geração de mundo da burocracia que, no seu dia-a-
categorias raciais, de gênero, cidada- dia, assumem e reproduzem as hierar-
nia, classe ou profissão (capítulos 4, 5 e quias existentes através da “elaboração
6). Nos capítulos finais (7 e 8), Tilly tra- de práticas evasivas, brincadeiras, epí-
ta da “política e do futuro das desigual- tetos, alianças e intrigas”).
dades”, desenvolvendo posicionamen- Tilly afasta-se de uma simples con-
tos relativos a questões acadêmicas e denação, ética ou teórica, da desigual-
políticas do mundo contemporâneo. dade, apoiando-se em uma constata-
A hipótese central é que as desi- ção: as desigualdades teriam surgido
gualdades duradouras entre os seres para resolver, a “baixo custo”, desajus-
humanos têm de ser compreendidas em tes organizacionais, simultaneamente
relação à gênese e reprodução das dife- juntando e separando agentes e grupos
renças entre categorias (como negro e sociais, e definindo as relações entre
164 RESENHAS

eles (:62). Uma das formas típicas de ção de “capital humano”, proveniente
permanência das desigualdades consis- da economia empresarial. Os movimen-
te, segundo o autor, na capacidade de tos migratórios ilustram de forma privi-
cruzar oposições e de sobrepor algumas legiada o mecanismo de acumulação de
categorias a outras. Segundo Tilly, as ca- oportunidades. O exemplo do processo
tegorias assimétricas geram, indireta- de estabelecimento e reprodução dos
mente, acumulação diferencial de ca- imigrantes italianos em um subúrbio de
pacidades e, diretamente, recompensas Nova York serve para ilustrar a criação
desiguais. A substancialização produz- de nichos ocupacionais baseados em
se quando as diferenças se transformam redes de relações sociais, ao lado da ex-
socialmente em qualidades que são atri- clusão sistemática daqueles que não fa-
buídas aos indivíduos – surgindo aí as zem parte da rede.
razões e a linguagem da raça, do gêne- Os “nacionalismos” não estão fora
ro, da aptidão cognitiva, da idade, da na- dos fenômenos tratados como parte do
cionalidade etc. mecanismo geral da exploração; ser-
O autor realiza uma escolha nada vem, também, como ilustração do fun-
ingênua ao operacionalizar, na análise cionamento dos mecanismos de emula-
histórica concreta, o modelo construído ção e de adaptação. Tilly identifica al-
na primeira parte do trabalho. Assim, a guns dos princípios constitutivos das
introdução do capitalismo na África do nacionalidades, tais como a criação de
Sul e a constituição do apartheid será o performances públicas de auto-reco-
caso paradigmático para a ilustração nhecimento, a luta entre grupos que
dos mecanismos de exploração. A aná- disputam a representatividade oficial
lise mostra as relações entre os esforços da nação, e a criação de crenças e práti-
coordenados dos indivíduos que se con- cas nacionalistas em territórios sociais
vertem em dominadores (funcionários até então altamente diversificados.
de Estado e capitalistas brancos), o mo- As páginas finais do livro revelam a
nopólio dos recursos disponíveis (no co- preocupação do autor com as formas
meço, jazidas de minérios e, depois, a mais efetivas de intervenção contra as
indústria e o comércio) e o retorno dife- desigualdades sociais. De acordo com
renciado dos benefícios a partir dos pro- Tilly, se as desigualdades não podem
cessos de exclusão categorial (como no ser explicadas a partir de teorias gené-
caso dos mecanismos de controle do ticas, ou ancoradas em performances
trabalho, que incluem fronteiras defini- individuais, tampouco poderão ser es-
das segundo princípios étnicos no inte- peradas mudanças significativas a par-
rior das empresas capitalistas). tir das formas individualistas de inter-
Estudando as formas de discrimina- venção, como as que se baseiam no “en-
ção das mulheres no mundo das empre- sino de atitudes novas mais tolerantes”.
sas norte-americanas, Tilly observa a Ao contrário, Tilly sugere que a única
combinação dos mecanismos de explo- possibilidade de mudança é a que visa
ração e acumulação de oportunidades, romper com as superposições de pares
dos quais, por sua vez, derivam modali- de categorias assimétricas, amplamente
dades de aquisição de capacidades e de aceitas e generalizadas na vida social
treinamento diferenciais, que resultam (:244).
em “aptidões diferentes”. Dessa forma, Construído de uma perspectiva não
polemiza também com as explicações substancialista, o livro nos lembra uma
das diferenças sociais baseadas na no- evidência freqüentemente esquecida:
RESENHAS 165

toda diferença é sempre sustentada por deveria orientar a cultura erudita de


uma relação. Tilly expõe também o fato seus países.
de que, por razões que remetem menos Os pensamentos desses artistas são
ao acaso e mais à existência dos pró- minuciosamente comparados no livro de
prios mecanismos da dominação, a ex- Elizabeth Travassos, derivado de uma
plicação da gênese das desigualdades tese de doutorado defendida em 1996
costuma ser substituída por reificações junto ao PPGAS/MN/UFRJ. Nessa obra,
e pela substancialização das qualidades marcada pelo trânsito por várias disci-
e das capacidades de indivíduos que, plinas, a autora, professora de etnomu-
na verdade, são criadas no interior das sicologia da Uni-Rio, mostra as proximi-
relações sociais. Enfim, uma das virtu- dades e as diferenças entre dois proje-
des do texto consiste, de forma algo pa- tos de “modernização pela tradição”,
radoxal, em seu caráter mnemônico, is- que tinham em comum a idéia de que
to é, no fato de apresentar uma de- grandes coletâneas impressas de músi-
monstração atualizada daquilo que, tor- ca popular seriam a base da renovação
nando-se óbvio, corre também o risco artística modernista. Sendo tanto uma
de tornar-se banal. reflexão sobre as relações entre arte e
identidade nacional quanto uma etno-
grafia de teorias de arte, o trabalho é
TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Man- belamente apresentado em um livro
darins Milagrosos: Arte e Etnografia com várias ilustrações, dois mapas e um
em Mário de Andrade e Béla Bartók. importante quadro cronológico. O bom
Rio de Janeiro: Ministério da Cultura tratamento editorial tem como grande
/Funarte/Jorge Zahar Editor. 236 pp. falha a ausência de bibliografia, o que é
parcialmente sanado pela distribuição
de uma separata.
João Felipe Gonçalves Elizabeth Travassos tem formação
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ musical e realizou trabalhos na Comis-
são de Folclore e Cultura Popular da
Uma das formas mais promissoras de Funarte, tendo feito ainda uma disser-
abordar as complexas relações entre os tação de mestrado sobre os índios Caia-
conceitos antropológico e humanístico bi e seus cantos xamanísticos. Com esse
de cultura é o estudo do ideário estético background, debruça-se basicamente
primitivista. Baseado no aproveitamen- sobre os escritos teóricos e etnográficos
to, pela “alta cultura” erudita, de ele- de M. de Andrade e de Bartók, dando
mentos culturais populares tradicionais, menor atenção a seus trabalhos pro-
esse ideário se confunde amiúde com a priamente artísticos (à exceção da aná-
reflexão sobre identidade nacional e lise de obras literárias do brasileiro).
com o desejo de afirmação de uma arte O resultado desse esforço é uma
autenticamente nacional. É o caso de cuidadosa comparação de dois pensa-
Mário de Andrade (1893-1945) e de Bé- mentos, cotejados a respeito de várias
la Bartók (1881-1945). Ambos comparti- questões inter-relacionadas. E ela é fei-
lham a prática da coleta etnográfica de ta de forma que cada um dos autores
música popular, tida como instrumento ilumine o outro, demonstrando suas es-
de conhecimento da especificidade na- pecificidades e trazendo à tona temas
tural de seus povos, e, portanto, como pouco explícitos. Como as questões tra-
base de uma nova visão de mundo que tadas são transdisciplinares e de ime-
166 RESENHAS

diato interesse da antropologia, muitos totais, com um perfil ainda por definir.
nomes da disciplina são trazidos à com- Essa cultura “sem caráter” não leva o
paração com os dois pensadores. Isso paulista a contestar o ideal de uma tra-
ajuda a impedir que se torne labiríntica dição autêntica a ser cultivada, mas
a riqueza de detalhes fornecida pela contrasta com o populismo camponês
autora, que demonstra habilidade em de Bartók, que o leva a traçar rigorosas
remeter pequenas soluções e idéias de cartografias étnico-musicais – atividade
sutis meandros aos grandes problemas de graves efeitos políticos no conflituo-
que estruturam o livro. so espaço interétnico do antigo império
Na primeira parte da obra, Travas- austro-húngaro.
sos aborda o ataque dos dois musicólo- Esse contraste entre os autores é ex-
gos à arte acadêmica, seja pelo comba- plorado na terceira parte do livro, onde
te de ambos ao virtuosismo, seja pela percebemos que a arqueologia musical
preocupação marioandradiana de criar de Bartók (e de seu colaborador Zoltán
uma arte vital e expressiva sem ser sen- Kodály) visa a uma essência magiar pri-
timental. Se Bartók é pouco preocupa- mordial, enquanto a de M. de Andrade
do com a questão da expressão e se M. busca o fundo primitivo da humanida-
de Andrade quer criticar o tecnicismo de, uma base comum dada na mentali-
parnasiano, ambos têm de acertar con- dade pré-lógica – a leitura de Lévy-
tas com a arte romântica e dela distin- Bruhl foi influência fundamental – e na
guir-se. Isso é mais importante para o fisiologia extática da música como so-
húngaro, que, inspirando-se nas teorias cializadora primitiva. Bartók distancia-
de Herder e Grimm, corre o risco de se se de M. de Andrade não só pela sua
confundir com o populismo romântico aversão à música ritual primitiva, como
anterior. Assim, lança-se à construção por sua aceitação sem restrições da tese
de métodos rigorosos para a determina- herderiana da criação espontânea pela
ção das diferenças culturais no Leste coletividade. M. de Andrade matiza es-
Europeu e ao ataque impiedoso a pro- ta tese com o reconhecimento da cria-
duções culturais “misturadas” ou “con- ção individual no povo e da legítima
taminadas” pelo mundo moderno e ur- apropriação popular de obras eruditas.
bano. Ademais, para ele, o maior valor da mú-
Esse tipo de produção – a cultura sica popular residia na superação de
popular “falseada”, “inautêntica” – é o várias dicotomias que embaraçavam o
grande “outro sinistro” de ambos os au- Ocidente, sobretudo entre subjetivida-
tores, desejosos de uma tradição pura e de e cultura. Sustenta que o cantador
genuína. As “bandas ciganas” de Bar- popular possibilita a remissão a um uni-
tók e as modinhas de M. de Andrade verso primitivo de indissociação entre
são o emblema dessa semicultura, lirismo e arte, entre culturas objetiva e
oposta igualmente aos dois pólos valo- subjetiva. Não busca, portanto, o coleti-
rizados: o do folclore, coletivo, e o da vo puro de Bartók.
criação erudita, individual. Como mos- O capítulo conclusivo mostra como
tra a segunda parte do livro, o repúdio a essas diferenças levam a projetos dis-
esse elemento híbrido é menos forte no tintos sobre o destino das coletâneas. A
autor brasileiro, que tem mais tolerân- simples relação de afinidade natural
cia e matizes, devido à sua concepção que Bartók vê entre seus pólos valoriza-
do Brasil como um país em formação, dos é para M. de Andrade problemáti-
um povo ainda sem tradições firmes e ca, propugnando ele que seus pares
RESENHAS 167

mergulhem nas coisas do povo não ape- antropologia da arte aí exercitado, tão
nas para produzir obras nacionais, mas raro no Brasil, mostra quão fecundo po-
também para superar grandes dicoto- de ser tratar os artistas como pensado-
mias como entre indivíduo e sociedade, res sociais. Reconhecê-los como tal não
entre expressão e técnica. Visam assim é apenas ser fiel à crença nativa, como
menos “à boca do povo” do que às sa- também ampliar o debate sobre nossas
las de concerto. questões tradicionais, trazendo à baila
Desse esboço percebe-se que, sen- concepções diversas e contribuindo pa-
do antes de tudo uma metaetnografia, o ra o cumprimento de uma das mais am-
trabalho de Elizabeth Travassos tem a biciosas promessas da disciplina: a de
especial virtude de ter como interlocu- ter no nativo um interlocutor e um es-
tor principal o seu próprio objeto. Seus pelho.
“nativos” não são pensadores filiados à
tradição das ciências sociais, mas discu-
tem questões a elas pertinentes, estan-
do na peculiar posição tanto de nativos
quanto de colegas antecessores. A au-
tora não poderia propiciar o diálogo en-
tre Bartók e M. de Andrade sem entrar
também na conversa, pois a sua etno-
grafia envolve posicionamentos sobre a
possibilidade de intercâmbio entre ní-
veis de cultura e sobre o caráter com-
plexo e heterogêneo da cultura moder-
na. A cultura aparece aí como produto
construído de um intercâmbio constan-
te, e não como essência total e coeren-
te. Sendo ela vista como um permanen-
te processo, contrasta com a autentici-
dade popular buscada pelos autores es-
tudados. É como se Travassos lhes res-
pondesse, narrando suas atividades, em
que medida uma “cultura popular” é
construída pela erudita e quanto os in-
telectuais contribuem para criar a idéia
de uma nação autêntica, que é mais in-
ventada do que descoberta.
Se o debate “nativo” é, assim, enri-
quecido pelo distanciamento relativiza-
dor da antropóloga, nota-se também
que esse livro é uma admoestação a
que nós, antropólogos, dialoguemos e
aprendamos com tradições com menor
êxito acadêmico (como os estudos de
folclore), bem como com tradições mais
distantes de nós (como teoria e crítica
de artes, e as próprias artes). O tipo de

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