Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resenha Ovidio
Resenha Ovidio
Resenha Ovidio
RESENHAS
título relacionado a uma data. Os títulos real que contribui para o desbloqueio
enunciam um campo de problemas e as do movimento e para uma abertura má-
datas indicam que se pretende determi- xima das multiplicidades sobre um pla-
nar a potência e os modos de individua- no de consistência. O platô seguinte,
ção de um acontecimento. Cada platô 1914. Um ou Vários Lobos?, consiste em
realiza um mapeamento, cujos movi- uma crítica da psicanálise que aprofun-
mentos descrevem um mesmo percur- da as reflexões iniciais sobre o conceito
so: parte-se do interior de um ou mais de multiplicidade. O terceiro platô,
estratos e de seus dualismos na direção 10.000 a.C. A Geologia da Moral (Quem
de suas condições de possibilidade, das a Terra Pensa que É?), apresenta a on-
“máquinas abstratas” que os efetuam e tologia como geologia das multiplicida-
os determinam como atualizações; si- des, constituídas por movimentos de es-
multaneamente, os estratos são associa- tratificação e desestratificação que se
dos aos agenciamentos de poder que conjugam com movimentos de territo-
lhes são anexos e primeiros; por fim, rialização e desterritorialização traça-
em um outro giro, o pensamento con- dos por máquinas abstratas que operam
torna as máquinas abstratas e as reme- sobre diversos planos de consistência.
te a um plano de consistência a que se O segundo volume contém dois
acede por desestratificação: revela-se platôs fundamentais: 20 de Novembro
assim, nesse percurso, a heterogenei- 1923. Postulados da Lingüística e 587
dade, a coexistência, as imbricações e a.C. Sobre Alguns Regimes de Signos.
a importância relativa das diferentes Evitando pressupor qualquer relação
linhas que compõem uma multiplicida- de representação e de causalidade –
de. E ainda que a edição brasileira te- material ou simbólica – entre os siste-
nha subdividido o original em cinco vo- mas de signos e os sistemas maquínicos
lumes, percebe-se que os editores bus- dos corpos, Deleuze e Guattari dissol-
caram recortar o livro de acordo com vem os postulados de base do estrutu-
uma certa unidade de problemas. ralismo e da teoria marxista da ideolo-
O primeiro volume contém, além do gia. Atacam os pressupostos da semio-
prefácio à edição italiana (onde os auto- logia, questionando o primado da co-
res avaliam a novidade e a recepção do municação e sustentando ser a “pala-
livro), uma apresentação da ontologia vra de ordem” a função primeira da
das multiplicidades. Na Introdução: Ri- linguagem. Criticam a distinção lan-
zoma, recusa-se a idéia do pensamento gue/parole e destronam a indepen-
como representação, sua submissão à dência e autonomia da langue com os
lei da reflexão e da unificação, e apre- conceitos de agenciamento coletivo de
senta-se Mil Platôs como livro-rizoma enunciação e regimes de signos; não
que, abolindo a tripartição entre o mun- admitem uma semiologia geral, negan-
do, como campo de realidade a repro- do qualquer privilégio de um regime de
duzir, a linguagem, como instância re- signos sobre os outros.
presentativa, e o sujeito, como estrutura O terceiro volume congrega platôs
enunciativa, é capaz de conectar-se essenciais para a compreensão da mi-
com as multiplicidades. A escrita rizo- cropolítica e da esquizoanálise. 28 de
mática, que se define pela operação de Novembro de 1947. Como Criar para Si
subtração dos pontos de unificação do um Corpo sem Órgãos retoma e desen-
pensamento e do real, realiza um ma- volve o conceito de “corpo sem órgãos”
peamento e uma experimentação no proposto em O Anti-Édipo, conceito que
RESENHAS 145
HERZFELD, Michael. 1997. Cultural In- do autor seja ainda mais notável: como
timacy: Social Poetics in the Nation- se sabe, os principais desenvolvimentos
State. New York/London: Routledge. do “mediterranismo” sublinham exata-
226 pp. mente o papel de valores, como “hon-
ra” e “vergonha”, na singularização do
que seria esse “tipo” de sociedade. E
Marcio Goldman ainda que não seja possível explorar
Prof. de Antropologia Social, aqui os motivos que levam Herzfeld a
PPGAS-MN-UFRJ recusar essa abordagem, merece regis-
tro a enorme influência que os estudos
De origem britânica e vivendo hoje nos sobre sociedades “mediterrâneas” têm
Estados Unidos, onde é professor na exercido sobre trabalhos antropológicos
Universidade de Harvard, Michael realizados no e sobre o Brasil.
Herzfeld vem, há 25 anos, pesquisando É no interior dessa perspectiva mais
e escrevendo sobre a Grécia moderna, geral que devem ser compreendidas as
trabalho que é, simultaneamente, uma noções que balizam o livro, e que são
das reflexões mais originais e produti- objeto de detalhada discussão no capí-
vas da antropologia contemporânea. tulo 1. A “intimidade cultural”, essa
Seu último livro reúne artigos escritos proteção do espaço coletivo que o etnó-
entre 1986 e 1995 – reelaborados para a grafo tem de invadir, seria constituída
coletânea –, bem como dois inéditos justamente por esses valores que os in-
que abrem e fecham o volume. divíduos e grupos consideram como
A temática central do livro talvez “seus”, e que eles devem, ao mesmo
pudesse ser localizada na retomada im- tempo, seguir e apresentar aos demais,
plícita de uma velha questão que sem- pois a apresentação de tais valores não
pre dividiu a antropologia anglo-saxô- obedece a nenhum script rigoroso: re-
nica. Como se sabe, são inúmeros os presentam-se os valores no sentido tea-
debates opondo o privilégio concedido tral do termo (a referência aqui sendo
às relações sociais pela antropologia so- os “dramas sociais” de Victor Turner),
cial britânica, e o peso dos valores cul- mas isso só adquire sentido no quadro
turais enfatizado por boa parte da an- das interações concretas, interações
tropologia cultural norte-americana. O que, simultaneamente, produzem os
problema central de Herzfeld é justa- contextos em que se processam (e é aos
mente a investigação etnográfica do trabalhos de Erving Goffman que se re-
modo pelo qual os “valores” são agen- mete agora). Isso significa, em pouquís-
ciados na prática das “relações sociais”. simas palavras, que os “dramas” são o
Perspectiva que se opõe, por sua vez, próprio cotidiano e que a performance,
àquela que, principalmente na Grã- em sentido teatral, é “performativa”, no
Bretanha hoje, sustenta que o acesso do sentido da filosofia da linguagem de
analista à “sociedade” deve passar ne- Austin.
cessariamente pelas concepções que Aqui se situa a “poética social”, es-
seus membros dela fazem – espécie de sa “apresentação criativa do eu indivi-
“etno-sociologia” à qual Herzfeld pare- dual” (:X); se os valores são atuados,
ce opor algo como uma “sociologia da mais que meramente seguidos, parte da
cultura”. Vale a pena ainda observar vida social pode passar a ser concebida
que o fato de estudar uma sociedade nos moldes do que Jakobson denomi-
“mediterrânea” faz com que o esforço nou “função poética da linguagem”: a
RESENHAS 151
possibilidade, imanente à própria lín- sem abrir mão da nossa marca registra-
gua e à própria cultura ou sociedade, de da, que é a de compartilhar e tornar in-
“comentar” as mensagens no momento teligíveis as experiências vividas pelos
mesmo em que elas são emitidas, jo- agentes? Aqui, Herzfeld não se refugia
gando assim com os códigos – digam na solução mais fácil: abandonar o pla-
eles respeito aos valores ou às posições no mais geral para outras disciplinas e,
sociais. adaptando um velho chavão, dizer que
A “poética social” não se confunde, não estuda um Estado-nação, mas em
entretanto, com a “poesia”, e seu estu- um Estado-nação. Como se esse corte
do não consiste de forma alguma em fosse possível, como se fosse indiferen-
um “esteticismo” ou mesmo em uma te, para agentes e antropólogos, o fato
“estética”. O capítulo 7 detém-se neste de estarem, ambos, imersos em forma-
ponto, demonstrando que uma coisa ções dessa natureza.
são os modelos antropológicos “basea- Como proceder então? Trata-se – o
dos na linguagem”, e outra, muito dife- capítulo 5 e o posfácio do livro são con-
rente, aqueles “derivados da lingua- clusivos sobre esse ponto – de demons-
gem” (:145). Se os primeiros consistem trar de que modo a antropologia pode
em tentativas mais ou menos bem-su- contribuir, de forma específica, para a
cedidas de esboçar semânticas e/ou compreensão do Estado-nação. E aqui
sintaxes socioculturais, os segundos se fecha o círculo, na medida em que o
devem se concentrar nos aspectos antropólogo, que encara esse Estado-
pragmáticos da linguagem ou da socie- nação em seus planos de existência
dade, ou seja, nos agentes, suas rela- mais concretos – aqueles das experiên-
ções e suas práticas. É a retórica, na cias vividas pelos indivíduos e grupos
forma de uma “retórica social”, que de- que nele habitam –, percebe imediata-
ve servir de inspiração ao antropólogo, mente que o que se denomina com esse
não a gramática, que tende a conduzi- nome consiste, na verdade, em um con-
lo na direção de formalismos e univer- junto aberto de agentes e operações,
salismos sempre mais ou menos duvi- possuindo como denominador comum o
dosos. fato de estarem voltados para uma
Podemos compreender, assim, que “despoetização” da vida social, ou seja,
o terceiro termo do título da obra seja o para a essencialização, naturalização e
“Estado-nação”, pois Herzfeld, como literalização de experiências sociais
boa parte de nós – se não todos nós ho- sempre múltiplas e polifônicas. E aqui,
je – desenvolve suas pesquisas em uma de fato, o Estado encontra a cultura.
sociedade desse “tipo”. Quase todo o li- “O Estado” (o que não passa de um
vro gira, conseqüentemente, em torno nome) é um conjunto de instituições e
dessa questão, ainda que sejam os ca- estratégias que se apóiam nos mecanis-
pítulos 2, 3 e 4 os que abordam mais di- mos sociais mais cotidianos e, em prin-
retamente o tema. Essa situação quase cípio e ao contrário do que se gosta de
inelutável coloca, para o antropólogo, imaginar, não ignoram nada do que os
uma série de problemas mais ou menos antropólogos costumam estudar: as
conhecidos. Como manter a abordagem crenças e os mitos, o localismo e a seg-
etnográfica da disciplina sem perder os mentaridade, as identidades e os este-
grandes panoramas característicos des- reótipos… É fundamental observar, con-
sas formações sociais? Por outro lado, tudo, que ao se apoiar ou combater es-
como atingir essa visão panorâmica ses elementos de toda vida social, o Es-
152 RESENHAS
de criação aquilo, palavras e coisas, que “realidade” social. Agindo desse modo,
nos é apresentado como “natural”. ele introduz uma série de surpresas pa-
ra o leitor pouco familiarizado com a
história social e cultural da Argentina.
NEIBURG, Federico. 1997. Os Intelec- A primeira é a mudança de foco vis-à-
tuais e a Invenção do Peronismo. São vis boa parte da literatura sobre o tema,
Paulo: Edusp. 242 pp. em que o peronismo aparece como o re-
sultado de ações de grupos populares.
Neiburg, ao contrário, parte do pressu-
Regina Abreu posto de que, como todo fenômeno so-
Pesquisadora-visitante, PPGAS-MN-UFRJ cial e cultural, o peronismo resulta das
ações de diferentes agentes sociais, si-
Redigido inicialmente como tese de tuados em distintas áreas do espaço so-
doutorado para o PPGAS-MN-UFRJ, cial. Nesse sentido, os intelectuais tive-
esse livro parte de um tema amplo, po- ram desde o início papel central no pro-
lêmico e crucial para a construção da cesso de construção do peronismo, e é
identidade nacional na Argentina: o pe- justamente este o ponto investigado.
ronismo. Neiburg descarta desde o iní- No entanto, em vez de expor uma nova
cio as leituras apressadas e mais óbvias interpretação do peronismo – ou julgar
sobre o tema, explicitando a multiplici- o mérito das distintas interpretações
dade de significados que essa categoria que o tomaram como objeto –, o interes-
foi adquirindo ao longo do tempo: mo- se do autor é “compreender a lógica so-
vimento político nascido em meados da cial subjacente à existência dos deba-
década de 40 e identificado com a figu- tes, a gênese das figuras intelectuais
ra de Juan Perón; período da história da que deles participaram e seus efeitos
Argentina que se inicia em 1945 e ter- sobre a construção do próprio peronis-
mina em 1955; partido político criado mo como fenômeno social e cultural”
por Perón logo após sua vitória nas elei- (:16).
ções de 1946, que sobrevive até hoje Essa perspectiva permite uma esti-
com outras denominações; referência mulante reflexão acerca da relação
para a identidade política dos que pas- constitutiva entre “representação da
saram a invocar a figura de Perón e a realidade” e “realidade”. Ao enfatizar
recordação de seus governos para legi- o fato de que as interpretações e os in-
timar diferentes posições no campo da térpretes do peronismo foram produzi-
política. dos em uma dada sociedade e cultura,
A pesquisa é, na verdade, o estudo Neiburg amplia seu horizonte de pes-
de um período da história social e cul- quisa, a fim de compreender a lógica
tural da Argentina; ao mesmo tempo, o do funcionamento da sociedade argen-
autor revela, com intensidade cada vez tina em um dado período histórico. Ou-
maior, o papel ativo dos intelectuais na tra surpresa introduzida pelo autor diz
“invenção” do peronismo, noção que respeito ao período focalizado. Ao con-
nada tem a ver com um juízo acerca da trário do que se poderia supor, Neiburg
artificialidade das interpretações abar- não está interessado em analisar espe-
cadas pelo termo. Pelo contrário, Nei- cificamente o momento histórico da gê-
burg busca acentuar uma perspectiva nese do peronismo, com o golpe de Es-
não substancialista, atenta à dimensão tado de 1943, quando Perón passou a
produtiva das ações sociais sobre a ser identificado como o “homem forte”
154 RESENHAS
tão associadas suas músicas. Mostra co- do céu, obrigando a humanidade a vi-
mo os caçadores, aguardados com a be- ver sobre os seus fragmentos, mistura-
bida fermentada, que devem retribuir da aos seres maléficos até então manti-
com carne, entram na aldeia fingindo dos do lado de fora; o ensino da festa,
um ataque, uma encenação agressiva destinada a trazer novos filhos, pelo bi-
omitida na forma mais abrangente do cho-preguiça, que também deu aos hu-
rito, quando há o Ieipari. Expõe o trata- manos as flautas, a tecelagem em algo-
mento do inimigo, o que lhe dizem no dão e palha e povoou a mata de animais
cântico entoado antes de matá-lo e es- de caça; a recusa das mulheres de con-
quartejá-lo. Além do crânio, que inte- tinuar a aplicar as técnicas destinadas a
gra um instrumento musical antes de trazer de volta à vida aqueles que mor-
vir a coroar o poste ritual, outras partes riam, como faziam antes da catástrofe,
do corpo lhe são retiradas, mas seu des- de modo que a morte se instalou defini-
tino, talvez por lacuna na memória dos tivamente entre os humanos e serviu
Araras atuais, é apenas esboçado: os os- para que a divindade, agora transfigu-
sos das mãos e dos pés, a pele do rosto, rada na vingativa onça preta, transfor-
o escalpo, as vísceras. Descreve a ere- masse as partes em que se dividem os
ção do poste, como os homens o descas- corpos dos defuntos em uma série de se-
cam com pancadas e palavras agressi- res danosos; a viabilização da caça por
vas, e como as mulheres o abraçam for- intermédio das relações de reciprocida-
temente e nele esfregam sensualmente de entre os xamãs e os espíritos donos
suas vulvas. A carne trazida pelos caça- de animais, em que estes dão àqueles
dores disposta em torno do poste, assim bichos para criar e por sua vez criam um
como uma panela com bebida fermen- certo tipo daqueles seres danosos oriun-
tada colocada ao pé do mesmo, são co- dos dos mortos. Se o primeiro capítulo
mo ofertas do Ieipari. E as mulheres, ao sublinha a ausência da vingança nas
tomarem dessa bebida, dizem revela- palavras que os Araras dirigem ao ini-
doramente que estão bebendo um filho. migo, o segundo não trabalha o teor da
Essa apresentação inicial, que cons- vingança que atribui ao ser supremo.
titui o primeiro capítulo, é em si mesma A vingança ou sua ausência no con-
autônoma, não depende do que se se- flito com o inimigo poderia ter sido um
gue para ser compreendida. Dir-se-ia dos temas de discussão no terceiro ca-
que o livro se compõe de partes que pítulo, que se limita ao contato entre os
acrescentam mais sentido à apresenta- Araras e os brancos. Não tenta reconsti-
ção inicial, mas elas próprias também tuir as relações dos Araras com outras
autônomas. etnias indígenas, a não ser com os Caia-
O capítulo referente à cosmogonia e pós, mas estes apenas enquanto partici-
à cosmologia aponta a origem de certos pantes das frentes de atração. Chama a
elementos integrantes do rito ou aspec- atenção para o fato de os brancos não
tos da condição humana que levam à se contarem entre as vítimas cujas ca-
sua realização: o instrumento de sopro beças serviam de centro ao rito arara,
que a divindade principal tocava para até o momento em que a construção da
manter a calma e a boa ordem no céu, Transamazônica pressionou fortemente
onde a humanidade vivia de modo pa- pelo estabelecimento do contato. Que
radisíaco, e que hoje faz a música de etnias indígenas teriam sido alvo das
fundo das festas; a eclosão de um con- incursões araras, que motivos os mo-
flito que redundou na quebra da casca viam contra elas, ou, ao contrário, que
RESENHAS 161
autocracias, ainda que, ao mesmo tem- branco, homem e mulher, cidadão e es-
po, essas democracias possam oferecer trangeiro), mais do que a partir de dis-
às suas populações canais de inclusão tinções simples no plano das capacida-
mais eficazes do que em qualquer outro des, gostos ou, ainda, desempenhos in-
sistema político. Se toda inclusão impli- dividuais (:7). O livro descreve quatro
ca algum tipo de exclusão, todo proces- mecanismos básicos por intermédio dos
so de incorporação de novas categorias quais as desigualdades duradouras se-
sociais nos assuntos públicos reforçará riam geradas, e onde agentes sociais in-
e criará desigualdades, e mesmo nas corporariam pares de categorias assi-
políticas supostamente mais redistribu- métricas. O primeiro desses mecanis-
tivas, como as do welfare state, pode-se mos, “exploração”, baseia-se na extra-
comprovar a reprodução dos mecanis- ção, por parte dos indivíduos que con-
mos de criação de desigualdades so- trolam conjuntos de recursos específi-
ciais. cos, de benefícios gerados por outros. O
Compartilhando uma mesma abor- segundo mecanismo, “acumulação de
dagem processual e histórica com ou- oportunidades”, desenvolve-se quando
tros autores (como Skocpol, Wilson, integrantes de uma rede têm acesso a
Sen, Castel, Ewald e Rosanvallon, den- recursos que podem ser por eles mono-
tre outros), Tilly, nesse livro, concentra- polizados a partir do próprio modus
se na explicitação de esquemas e me- operandi da rede – a criação de catego-
canismos gerais, segundo ele, “sempre rias excludentes em unidades militares
presentes” na construção e na perdura- seria um exemplo disso. Os outros dois
ção da desigualdade. É essa singulari- mecanismos, “emulação” e “adapta-
dade que, em contrapartida, confere ao ção”, reforçam a efetividade das distin-
texto um certo tom por vezes excessiva- ções categoriais: o primeiro, mostrando
mente esquemático e terminológico. como uma organização se reproduz imi-
Coerente com sua intenção progra- tando modelos de desigualdade que já
mática, o texto define o que seriam os obtiveram sucesso (a emulação das for-
princípios gerais da constituição das mas de organizar as burocracias em ou-
relações assimétricas (principalmente tras nações, na formação de novos Esta-
nos dois primeiros capítulos), obser- dos, por exemplo); o segundo, obser-
vando como esses princípios funcio- vando como se cria e se rotiniza um
nam em situações históricas específicas “conhecimento local” constituído a par-
(capítulo 3), através de vínculos sociais tir desses modelos (os trabalhadores do
singulares, como no caso da geração de mundo da burocracia que, no seu dia-a-
categorias raciais, de gênero, cidada- dia, assumem e reproduzem as hierar-
nia, classe ou profissão (capítulos 4, 5 e quias existentes através da “elaboração
6). Nos capítulos finais (7 e 8), Tilly tra- de práticas evasivas, brincadeiras, epí-
ta da “política e do futuro das desigual- tetos, alianças e intrigas”).
dades”, desenvolvendo posicionamen- Tilly afasta-se de uma simples con-
tos relativos a questões acadêmicas e denação, ética ou teórica, da desigual-
políticas do mundo contemporâneo. dade, apoiando-se em uma constata-
A hipótese central é que as desi- ção: as desigualdades teriam surgido
gualdades duradouras entre os seres para resolver, a “baixo custo”, desajus-
humanos têm de ser compreendidas em tes organizacionais, simultaneamente
relação à gênese e reprodução das dife- juntando e separando agentes e grupos
renças entre categorias (como negro e sociais, e definindo as relações entre
164 RESENHAS
eles (:62). Uma das formas típicas de ção de “capital humano”, proveniente
permanência das desigualdades consis- da economia empresarial. Os movimen-
te, segundo o autor, na capacidade de tos migratórios ilustram de forma privi-
cruzar oposições e de sobrepor algumas legiada o mecanismo de acumulação de
categorias a outras. Segundo Tilly, as ca- oportunidades. O exemplo do processo
tegorias assimétricas geram, indireta- de estabelecimento e reprodução dos
mente, acumulação diferencial de ca- imigrantes italianos em um subúrbio de
pacidades e, diretamente, recompensas Nova York serve para ilustrar a criação
desiguais. A substancialização produz- de nichos ocupacionais baseados em
se quando as diferenças se transformam redes de relações sociais, ao lado da ex-
socialmente em qualidades que são atri- clusão sistemática daqueles que não fa-
buídas aos indivíduos – surgindo aí as zem parte da rede.
razões e a linguagem da raça, do gêne- Os “nacionalismos” não estão fora
ro, da aptidão cognitiva, da idade, da na- dos fenômenos tratados como parte do
cionalidade etc. mecanismo geral da exploração; ser-
O autor realiza uma escolha nada vem, também, como ilustração do fun-
ingênua ao operacionalizar, na análise cionamento dos mecanismos de emula-
histórica concreta, o modelo construído ção e de adaptação. Tilly identifica al-
na primeira parte do trabalho. Assim, a guns dos princípios constitutivos das
introdução do capitalismo na África do nacionalidades, tais como a criação de
Sul e a constituição do apartheid será o performances públicas de auto-reco-
caso paradigmático para a ilustração nhecimento, a luta entre grupos que
dos mecanismos de exploração. A aná- disputam a representatividade oficial
lise mostra as relações entre os esforços da nação, e a criação de crenças e práti-
coordenados dos indivíduos que se con- cas nacionalistas em territórios sociais
vertem em dominadores (funcionários até então altamente diversificados.
de Estado e capitalistas brancos), o mo- As páginas finais do livro revelam a
nopólio dos recursos disponíveis (no co- preocupação do autor com as formas
meço, jazidas de minérios e, depois, a mais efetivas de intervenção contra as
indústria e o comércio) e o retorno dife- desigualdades sociais. De acordo com
renciado dos benefícios a partir dos pro- Tilly, se as desigualdades não podem
cessos de exclusão categorial (como no ser explicadas a partir de teorias gené-
caso dos mecanismos de controle do ticas, ou ancoradas em performances
trabalho, que incluem fronteiras defini- individuais, tampouco poderão ser es-
das segundo princípios étnicos no inte- peradas mudanças significativas a par-
rior das empresas capitalistas). tir das formas individualistas de inter-
Estudando as formas de discrimina- venção, como as que se baseiam no “en-
ção das mulheres no mundo das empre- sino de atitudes novas mais tolerantes”.
sas norte-americanas, Tilly observa a Ao contrário, Tilly sugere que a única
combinação dos mecanismos de explo- possibilidade de mudança é a que visa
ração e acumulação de oportunidades, romper com as superposições de pares
dos quais, por sua vez, derivam modali- de categorias assimétricas, amplamente
dades de aquisição de capacidades e de aceitas e generalizadas na vida social
treinamento diferenciais, que resultam (:244).
em “aptidões diferentes”. Dessa forma, Construído de uma perspectiva não
polemiza também com as explicações substancialista, o livro nos lembra uma
das diferenças sociais baseadas na no- evidência freqüentemente esquecida:
RESENHAS 165
diato interesse da antropologia, muitos totais, com um perfil ainda por definir.
nomes da disciplina são trazidos à com- Essa cultura “sem caráter” não leva o
paração com os dois pensadores. Isso paulista a contestar o ideal de uma tra-
ajuda a impedir que se torne labiríntica dição autêntica a ser cultivada, mas
a riqueza de detalhes fornecida pela contrasta com o populismo camponês
autora, que demonstra habilidade em de Bartók, que o leva a traçar rigorosas
remeter pequenas soluções e idéias de cartografias étnico-musicais – atividade
sutis meandros aos grandes problemas de graves efeitos políticos no conflituo-
que estruturam o livro. so espaço interétnico do antigo império
Na primeira parte da obra, Travas- austro-húngaro.
sos aborda o ataque dos dois musicólo- Esse contraste entre os autores é ex-
gos à arte acadêmica, seja pelo comba- plorado na terceira parte do livro, onde
te de ambos ao virtuosismo, seja pela percebemos que a arqueologia musical
preocupação marioandradiana de criar de Bartók (e de seu colaborador Zoltán
uma arte vital e expressiva sem ser sen- Kodály) visa a uma essência magiar pri-
timental. Se Bartók é pouco preocupa- mordial, enquanto a de M. de Andrade
do com a questão da expressão e se M. busca o fundo primitivo da humanida-
de Andrade quer criticar o tecnicismo de, uma base comum dada na mentali-
parnasiano, ambos têm de acertar con- dade pré-lógica – a leitura de Lévy-
tas com a arte romântica e dela distin- Bruhl foi influência fundamental – e na
guir-se. Isso é mais importante para o fisiologia extática da música como so-
húngaro, que, inspirando-se nas teorias cializadora primitiva. Bartók distancia-
de Herder e Grimm, corre o risco de se se de M. de Andrade não só pela sua
confundir com o populismo romântico aversão à música ritual primitiva, como
anterior. Assim, lança-se à construção por sua aceitação sem restrições da tese
de métodos rigorosos para a determina- herderiana da criação espontânea pela
ção das diferenças culturais no Leste coletividade. M. de Andrade matiza es-
Europeu e ao ataque impiedoso a pro- ta tese com o reconhecimento da cria-
duções culturais “misturadas” ou “con- ção individual no povo e da legítima
taminadas” pelo mundo moderno e ur- apropriação popular de obras eruditas.
bano. Ademais, para ele, o maior valor da mú-
Esse tipo de produção – a cultura sica popular residia na superação de
popular “falseada”, “inautêntica” – é o várias dicotomias que embaraçavam o
grande “outro sinistro” de ambos os au- Ocidente, sobretudo entre subjetivida-
tores, desejosos de uma tradição pura e de e cultura. Sustenta que o cantador
genuína. As “bandas ciganas” de Bar- popular possibilita a remissão a um uni-
tók e as modinhas de M. de Andrade verso primitivo de indissociação entre
são o emblema dessa semicultura, lirismo e arte, entre culturas objetiva e
oposta igualmente aos dois pólos valo- subjetiva. Não busca, portanto, o coleti-
rizados: o do folclore, coletivo, e o da vo puro de Bartók.
criação erudita, individual. Como mos- O capítulo conclusivo mostra como
tra a segunda parte do livro, o repúdio a essas diferenças levam a projetos dis-
esse elemento híbrido é menos forte no tintos sobre o destino das coletâneas. A
autor brasileiro, que tem mais tolerân- simples relação de afinidade natural
cia e matizes, devido à sua concepção que Bartók vê entre seus pólos valoriza-
do Brasil como um país em formação, dos é para M. de Andrade problemáti-
um povo ainda sem tradições firmes e ca, propugnando ele que seus pares
RESENHAS 167
mergulhem nas coisas do povo não ape- antropologia da arte aí exercitado, tão
nas para produzir obras nacionais, mas raro no Brasil, mostra quão fecundo po-
também para superar grandes dicoto- de ser tratar os artistas como pensado-
mias como entre indivíduo e sociedade, res sociais. Reconhecê-los como tal não
entre expressão e técnica. Visam assim é apenas ser fiel à crença nativa, como
menos “à boca do povo” do que às sa- também ampliar o debate sobre nossas
las de concerto. questões tradicionais, trazendo à baila
Desse esboço percebe-se que, sen- concepções diversas e contribuindo pa-
do antes de tudo uma metaetnografia, o ra o cumprimento de uma das mais am-
trabalho de Elizabeth Travassos tem a biciosas promessas da disciplina: a de
especial virtude de ter como interlocu- ter no nativo um interlocutor e um es-
tor principal o seu próprio objeto. Seus pelho.
“nativos” não são pensadores filiados à
tradição das ciências sociais, mas discu-
tem questões a elas pertinentes, estan-
do na peculiar posição tanto de nativos
quanto de colegas antecessores. A au-
tora não poderia propiciar o diálogo en-
tre Bartók e M. de Andrade sem entrar
também na conversa, pois a sua etno-
grafia envolve posicionamentos sobre a
possibilidade de intercâmbio entre ní-
veis de cultura e sobre o caráter com-
plexo e heterogêneo da cultura moder-
na. A cultura aparece aí como produto
construído de um intercâmbio constan-
te, e não como essência total e coeren-
te. Sendo ela vista como um permanen-
te processo, contrasta com a autentici-
dade popular buscada pelos autores es-
tudados. É como se Travassos lhes res-
pondesse, narrando suas atividades, em
que medida uma “cultura popular” é
construída pela erudita e quanto os in-
telectuais contribuem para criar a idéia
de uma nação autêntica, que é mais in-
ventada do que descoberta.
Se o debate “nativo” é, assim, enri-
quecido pelo distanciamento relativiza-
dor da antropóloga, nota-se também
que esse livro é uma admoestação a
que nós, antropólogos, dialoguemos e
aprendamos com tradições com menor
êxito acadêmico (como os estudos de
folclore), bem como com tradições mais
distantes de nós (como teoria e crítica
de artes, e as próprias artes). O tipo de