RESENHA precisamente em definir e avaliar a natureza e o
âmbito das alternativas ao que está empiricamente
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão dado. A análise crítica do que existe assenta no indolente contra o desperdício da experiência . São pressuposto de que a existência não esgota as Paulo: Cortez, 2000. 1 possibilidades da existência e que, portanto, há _______________________________________________ alternativas susceptíveis de superar o que é criticável Elizabeth Teixeira 2 no que existe. O desconforto e o inconformismo ou a indignação perante o que existe suscita impulso para O livro é o primeiro volume de uma obra intitulada teorizar a sua superação (p.23). “Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a Para o autor, existem dificuldades para se construir política na transição paradigmática”, que terá ao todo uma teoria crítica que vê o real como campo de quatro volumes. O livro está organizado em três partes possibilidades, que procura definir e avaliar a natureza (com seis capítulos), com uma introdução geral à toda e o âmbito das alternativas ao que está dado e que a obra. Além de apresentar as idéias do autor na obra, reclama pela transformação. Nestes termos, a teoria desejo instigar e convidar o leitor à leitura da obra e crítica que se quer é uma teoria da tradução, que torna ousar como leitora atravessar a obra com algumas as diferentes lutas inteligíveis e que ouve as opressões idéias minhas. Afinal, ao ler um texto que traz no e aspirações dos múltiplos atores e é também uma título um apelo contra o desperdício da experiência, teoria pós-moderna do tipo inquietante (contra as pós- porque não atravessá-lo com experiências, reticências, modernas reconfortantes). resistências e também interrogações, aclamações, Para o autor uma teoria crítica pós-moderna se complementações? Foi mais ou menos isso o que constrói com base no conhecimento emancipação, no ocorreu quando realizei a leitura. Fui produzindo um reconhecimento, na solidariedade, contra o silêncio texto paralelo nos espaços laterais das páginas. O que dos saberes e a diferença das vozes, a favor, assim, de vou inserindo aqui e ali é exatamente um conjunto de travessias de saberes e vozes, de experiências, de idéias e questões que foram suscitando-me, uma esperanças, de alternativas e de resistências. É uma experiência que me levou a algumas conclusões e normatividade construída a partir do chão das lutas outras tantas inquietações, pois fui confrontando com sociais, de modo participativo e multicultural (p.37). a obra do autor minha própria obra3 . A meu ver, a idéia de travessia (ato ou efeito de A tese apresentada (no momento da discussão) atravessar, passar para o outro lado de, com começou a ser repensada (no momento da leitura), e possibilidade de transpor obstáculos, preconceitos, tal repensar abriu um campo de possibilidades e distâncias e até diferenças) traz a de ligação e percebi que não se esgotava, ao contrário, indicava conexão entre múltiplas vozes (polifonia), múltiplas novas questões. Com base nessas novas questões é lógicas (polilógica), sem separar nem negar, ou seja, que expressei, revelei e anotei, muito do que aqui de modo dialógico. Para MORIN4 , o princípio sistematizo. dialógico está pautado na contradição, uma Para além de uma resenha, sinalizo as idéias do autor contradição assumida, pensada, evidenciada e também que me provocaram (o ver do autor) e o que me revelada. A contradição que se revela não para ser provocaram (o a meu ver), e num texto atravessado ofuscada e/ou superada, mas para ser enfrentada, por idéias (do autor) e questões (da leitora), procuro como em um jogo de antagonismos, que não quer, impulso para pensar a idéia de travessias, que passo a necessariamente, encontrar uma síntese, mas que nem propor como utopia. por isso se fecha a essa possibilidade. A dialógica se substitui irrevogavelmente à dialética (idem:62) pois . Introdução Geral consideram-se os elementos, ao mesmo tempo concorrentes, antagônicos e complementares. É esta Na introdução geral, o autor faz o que entendi como idéia que entendo como modo participativo (inclusivo) lançamento de idéias. A questão central é expressa em e multicultural (diverso) de uma teoria crítica pós- uma pergunta: por que é tão difícil construir uma moderna, e que trago como possibilidade para pensar teoria crítica? Partindo do que se entende por teoria uma epistemologia das travessias. crítica, insinua-se como esta considera a realidade: A realidade qualquer que seja o modo como é . Parte I – Epistemologia das estátuas quando olham concebida é considerada pela teoria crítica como um para os pés: a ciência e o direito na transição campo de possibilidades e a tarefa consiste paradigmática
Esta parte contém uma introdução e dois capítulos.
1 Prêmio Jabuti 2000. No primeiro capítulo a ciência está em evidência e no 2 Professora Adjunto IV da UEPA e Titular da UNAMA de segundo o direito. A ciência está em evidência porque Metodologia Científica. Doutora em Ciências. Pós- nela evidenciam-se tanto o paradigma dominante e Doutoramento em Sociologia (Universidade de Coimbra, Portugal). 3 4 Trata-se da Tese de Doutorado intitulada Travessias, MORIN, Edgar. Por um pensamento ecologizado. In: redes e nós: complexidade do cuidar cotidiano de saúde CASTRO, Edna & PINTON, Florence. Faces do trópico entre ribeirinhos. úmido . Belém: Cejup, 1997. 2 sua crise como as evidências de um paradigma margens de um rio, topoi que substituirão os gerais e emergente. universais, e assim teremos retóricas dialógicas (no A primeira constatação feita é que vivemos um plural). A meu ver, tais retóricas serão viabilizadoras período de crise, que é também de perplexidades e de de travessias, de um ir e vir entre posições e inseguranças. A segunda é que necessitamos aspirações, estabelecendo-se negociações ao invés de perguntar. imposições. Analisando o paradigma dominante segundo o texto, O direito também está em evidência no segundo este paradigma afirmando nega; confiando desconfia, capítulo porque nele evidencia-se uma tensão entre sem intenção tem a intenção de romper, e parte das regulação e emancipação. Do pensar sobre o direito, o leis da natureza (mundo físico) às da sociedade autor indica um dês-pensar para poder repensa-lo (mundo social). A crise epistemológica deste societal e utópico. paradigma começa exatamente no mundo físico, no macro mundo da física da relatividade, vai ao micro . Parte II – As armadilhas da paisagem: para uma mundo da física quântica, passa pelo debate do rigor epistemologia do espaço-tempo da matemática e chega ao conceito de auto- organização. Esta parte contém uma introdução e mais dois O paradigma emergente (Especulação? Imaginação?) capítulos. Como na primeira parte em um capítulo emerge para se (o)por às questões: o que ficou está em evidência a ciência e no outro o direito. No inacabado? O que resistiu? (É um paradigma dos terceiro capítulo, ao trazer para debate o caso do inacabamentos e das resistências?). Seus princípios direito, o autor sinaliza a cartografia simbólica das fundantes são a comunidade, a participação, a representações sociais, o que entendo como uma solidariedade; sua racionalidade é a estético- investigação para além da investigação das expressiva. evidências. No meu entender, se estamos a favor de travessias Como usar a cartografia simbólica? A cartografia é necessitamos de paradigmas, para podermos ir de um uma ciência muito complexa, pois combina a outro lado, de uma margem a outra, ou seja, há que características das ciências naturais e das sociais. superar a expressão o paradigma (no singular) e Utilizando-se de três mecanismos que procura atravessar para a idéia de os paradigmas (no plural), se controlar ao máximo, produzem-se mapas que quisermos verdadeiramente a sua superação. Na 1a inevitavelmente distorcem a realidade. Conhecidos ruptura (ciência moderna) separamos; na 2a ruptura tais mecanismos, tal distorção que isso implica, (pós-moderna) precisamos, a meu ver, não separar segundo o autor, não significa que a representação mais, mas atravessar, no sentido mais ousado de seja arbitrária. suportar o outro com sua diferença. Também Para o controle, por exemplo, do primeiro mecanismo precisamos questionar, além dos inacabamentos e (a escala), deve-se responder: como definem os atores resistências: o que se construiu apesar de? O que ainda sociais as estratégias em pequena escala? Como atuam não foi construído? O que está latente? O que se no cotidiano em grande escala? Quais alternativas são tornou evidente? O que só está aparente? Quais são as construídas para se opor ao discurso oficial no local? experiências em curso? Quais os espaços (im)possíveis? Quais os critérios No contexto emergente, segundo o autor, do adotados? Para o controle do segundo mecanismo (a conhecimento- regulação se constrói o conhecimento- projeção), pergunta-se: o que está no centro? O que emancipação (das reavaliações e das revalorizações?). fica ao redor? Para o controle do terceiro mecanismo Um novo senso comum, antecipatório, é transformado (a simbolização) questionar-se-á: o que é usado para pelo conhecimento-emancipação (em emancipatório), expressar? Palavras? Cores? Desenhos? Qual o estilo que é responsável porque ético, político porque de expressão? participativo e prazeroso porque estético. Com este exercício, crê o autor apontar para uma Evidencia-se um movimento de conexão, pois, das concepção pós-moderna das representações sociais, considerações (do caos) e da prudência, aceita-se o que dá ênfase à dinâmica interna, às suas formas de conflito e se deseja a solidariedade. Há uma revisão auto-organização onde se geram resistências e efeitos radical da distinção entre sujeito e objeto e as perversos, neutralizações e bloqueamentos, biografias (de ambos) podem ser assumidas. Há que se autonomia e criatividade (p.223). unir o que foi separado. Rompendo distinções e Penso que uma nova modalidade de investigação (das diferenças tudo é (re)ligado, há uma revalorização e experiências) está a surgir. Sem ela esses mapas (do uma reaproximação entre autores, atores, complexo cotidiano e do homem complexo) não serão interlocutores e mentores. Há repartição, recuperação, traçados. A pesar das distorções, poderemos ter fusão. resultados aproximados, ampliados, dotados de Também se evidencia uma nova retórica (da respostas dos atores ao que lhes é (im)posto e reinvenção, reconsideração, reemergência). Para representações ao que lhes é (im)possível. fundar essa retórica, há que se contrapor à retórica da No quarto capítulo, ao trazer para debate o caso da ciência moderna (no singular), que se pauta nos topoi ciência, o autor nos convida à uma travessia. gerais, em fatos e verdades universais. A novíssima Com o autor descobre-se de onde temos que sair e retórica será dos topoi plurais, pólos, pontas, como para onde ir, ou seja, da epistemologia da cegueira à 3 da visão. Por que? Convence o autor que a dominante complexo possa ser traduzida em mapas, não vê as conseqüências (os círculos viciosos?) e os produzindo-se, assim, uma cartografia polimorfa. limites (os desconhecimentos? Desencontros? Desconexões?); não vê as tensões entre experiências e . Parte III – Os horizontes são humanos: da regulação expectativas nem a exogenia entre as ações e as à emancipação consequências. Na epistemologia emergente se pergunta pela Terminando o livro, esta parte, como as anteriores, validade de uma forma de conhecimento cujo contém uma introdução e dois capítulos. No quinto momento e forma de ignorância é o colonialismo e capítulo o direito e a ciência (ou melhor, o senso cujo momento e forma de saber é a solidariedade comum), encontram-se. No que se refere ao senso (p.246). Neste contexto, é possível conhecer comum, o autor indica seis grandes modalidades que construindo solidariedade. Informa o autor que para ir circulam em múltiplos espaços da sociedade, a saber: à uma epistemologia da visão, é preciso procurar no espaço doméstico; no da produção; no mercado; na resposta para: comunidade; no espaço da cidadania e no mundial. A) Qual o conhecimento ausente? Qual a distinção Para cada espaço estrutural, existe uma certa unidade entre os diferentes conhecimentos? Qual de prática social, instituições, dinâmicas de representação tenho e temos de tal distinção? Qual desenvolvimento, formas de poder e de direito e senso comum? Estou diante de uma modalidade de formas epistemológicas. Esse conjunto constitui uma pesquisa solidária para com os grupos oprimidos, constelação tensa. marginalizados (e à margem) ou excluídos (p.249)? Penso que os múltiplos espaços (como ilhas) também B) Quais os agentes ausentes? Que qualidades são múltiplos (como nos arquipélagos), e cada um emergentes eles têm? Que ações desenvolvem? Quais constrói um senso comum específico, uma hegemonia suas posições alternativas? Quais seus amigos e local (p.304), que não é homogênea mas fundada e inimigos? Estou diante de uma modalidade de fundante em uma heterogeneidade vitalizadora. Esse pesquisa transitiva 5 , aberta às complementaridades e conjunto constitui também uma paisagem complexa. (a)diversidades, qualidades e possibilidades? No sexto e último capítulo, o autor solicita “não C) Quais os limites da representação? Quais os pontos disparem sobre o utopista”. Pareceu-me, pela leitura de vista das conseqüências humanas de cursos de ação realizada, que a ciência e o direito são elementos de alternativos? Temos traduzido as diferentes escalas? regulação (1a. ruptura?) e uma nova ciência e um novo Estou diante de uma modalidade de pesquisa numa direito elementos de emancipação (2a ruptura?). Esta perspectiva curiosa? Tal perspectiva simultaneamente nova ciência conclama uma nova epistemologia lúdica e desestabilizadora, tem de ser invocada para a (epistemologias das travessias?), uma nova retórica determinação dos graus de relevância científica (retóricas dialógicas?), uma nova investigação (p.252). (investigações das experiências?), que poderão ser A meu ver estou diante do RE complexo. Segundo efetivadas em pesquisas com caráter solidário e MORIN6 , RE é conceptualmente radical (na raiz de transitivo com uma perspectiva curiosa. todos os conceitos que comportam nomeadamente as Também ficou evidente que o novo cenário pauta-se idéias de repetição, recomeço, recorrência), múltiplo em alguns princípios, como comunidade, (uma vez que se diversifica nos múltiplos conceitos), solidariedade e participação, dentro de uma total (concernindo todos os fenômenos e níveis da racionalidade estético-expressiva, em que há organização viva), global (concernindo a vida no seu possibilidades para o prazer, a autoria, a conjunto) e, enfim, complexo. artefactualidade. Esta dupla transição (reinvenção) Conclui o autor que esta passagem de uma à outra promoverá a emancipação social segundo o autor. Há epistemologia levar-nos-á de um paradigma de novos caminhos (no plural) e é preciso desejá-los. aplicação técnica da ciência a um paradigma de A meu ver, é preciso reinventar mapas aplicação edificante de conhecimentos prudentes, emancipatórios, subjetividades individuais e coletivas. capazes de transformar os objetos de investigação em É preciso ainda fomentar o desejar, o querer, o sonhar sujeitos solidários e de iniciar as ações assentes no e é preciso sim de novas utopias (ao ver do autor), de conhecimento a navegar, prudentemente e na medida travessias (a meu ver), pois navegar é preciso com do possível, à vista das conseqüências (p.253). novos viajantes e percursos, que levem a novos portos A meu ver, esta passagem necessariamente conduzir- (alegres e seguros). nos-á a travessias e penso que há (em vista disso) Passo a concluir refletindo com as palavras do autor. epistemologias (no plural), para que a polifonia Nas fronteiras posso escolher o que manter e o que polilógica do complexo cotidiano e do homem mudar; inventar entre abundantes margens pois viver na fronteira é viver nas margens sem viver uma vida 5 O adjetivo empregado tem o mesmo sentido daquele dos marginal (p.353). No barroco posso ser estético e verbos da gramática (verbos transitivos), que exprimem reencantar-me. No sul, posso correr do epistemicídio uma ação que transita ao complemento, abre-se ao perpetrado pelo Norte e recorrer ao outro para alargamento, permite-se estender. conhecer-me melhor. Enfim, no paradigma emergente 6 MORIN, Edgar. O método II A vida da vida. 2ed. Portugal: Publicações Europa-América, 1989. 4 (com-plexo 7 ) posso despertar com e pelas oportunidades e possibilidades de contribuir com e para reinventar um compromisso com uma emancipação autêntica, um compromisso que, além do mais, em vez de ser o produto de um pensamento vanguardista iluminado, se revela como senso comum emancipatório (p.383). Se, efetivamente, passo a propor epistemologias de travessias, é porque também desejo e aspiro construir utopia. Penso-a como um pólo (entre outros), uma margem (entre outras), um topoi (entre outros) para reflexão (com os outros). E assim, concluo estas linhas de idéias (o ver do autor), tecidas entre outras tantas idéias minhas (o a meu ver de leitora).
7 Como os plexos de veias e nervos que temos em nosso corpo. São sistemas de ramos comunicantes entre os elementos que os constituem, que estabelecem conexões, ligações, inervações, irradiações e distribuições.