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ISSN 1981-1225

Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins

Foucault e a crítica do sujeito e da história

Foucault and the criticism of the subject and of


the history

Cesar Candiotto
Doutor em Filosofia – PUCPR
Correio eletrônico: c.candiotto@pucpr.br

Resumo: Nesse ensaio discute-se a indissociabilidade entre a crítica do sujeito de


razão e a crítica da historia contínua, elaborada por Michel Foucault. Na história
tradicional das ciências, a confiança no progresso do conhecimento é associada ao
privilégio da temporalidade do sujeito que conhece; na concepção dialética de história,
esta é entendida como produção de obras por parte de sujeitos razoáveis; na escritura,
a unidade do autor figura como exigência fundamental para a credibilidade da obra.
Foucault toma distância de tais posicionamentos, valorizando o espaço em detrimento
do tempo, apontando os limites da obra histórica a partir da noção de fim da história e
indicando a insuficiência da unidade discursiva da obra diante da ausência de obra.

Palavras-chave: Michel Foucault – História – Espaço – Sujeito – Obra.

Abstract: In this essay, it is discussed the undissociability between the critique of the
subject of reason and the critique of the continuous history, elaborated by Michel
Foucault. In the traditional history of sciences, the confidence in the progress of
knowledge is associated to the privilege of the subject of reason’s temporality; in the
dialectic conception of history that is understood as production of works by reasonable
(reasoning) subjects; in writing, the unity of the author appears as a fundamental
requirement to the credibility of his work. Foucault keeps away from such positions,
valorizing space instead of time, pointing out the limits of the historical work from the

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Cesar Candiotto
Foucault e a crítica do sujeito e da história

notion of end of history and indicating the insufficiency of the discursive unity of the
work before the absence of it.

Key-words: Michel Foucault – History – Space – Subject – Work.

Introdução

Em Sens et non-sens, Merleau-Ponty aponta a presença de uma


linguagem comum com a filosofia de Hegel no pensamento
contemporâneo tanto por parte dos que exaltam sua dialética quanto
daqueles que dela pretendem afastar-se. “Hegel está na origem de tudo
aquilo que foi feito de grande há mais de um século na filosofia - por
exemplo, no marxismo, em Nietzsche, na fenomenologia e no
existencialismo alemão, na psicanálise -; ele inaugura a tentativa de
explorar o irracional e integrá-lo numa razão ampliada que permanece a
tarefa do século” (1946: 109).
Na filosofia francesa dos anos 1960 deixa-se de acreditar que o
melhor modo de interpretar a filosofia hegeliana seja integrar o
irracional no cerco da razão ampliada, como queria Merleau-Ponty em
1946. Pelo contrário, busca-se enfatizar o caráter infrutífero de tal
empresa, haja vista que a história da razão é apresentada
indissociavelmente à segregação da desrazão.
A história ocidental tem privilegiado o discurso da razão sobre a
desrazão, do mesmo sobre o outro. Nesse ensaio pretende-se apontar
seus limites e o espaço tênue de sua verdade. Ao contrário da história
ampliada da razão, acentua-se o questionamento de seu processo de
constituição e a precariedade de sua legitimidade.

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Sob este viés, é oportuna a escolha da investigação de Michel


Foucault. Justamente, assim posiciona-se o filósofo a respeito da
filosofia de Hegel em dezembro de 1970: “Toda nossa época, seja pela
lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, tenta
escapar de Hegel” (Foucault, 1971: 74).
Escapar de Hegel significa apreciar o quanto custa desprender-se
dele; implica saber naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que
ainda é hegeliano. A própria investigação de Michel Foucault pode ser
situada sob aquela perspectiva epocal, sem esquecer que sua leitura
inspira-se no legado do tradutor para o francês da Fenomenologia do
espírito e professor na École Normale Superieure: Jean Hyppolite.
Conforme Foucault, a investigação de Hyppolite precisa ser situada
nos termos de história do pensamento filosófico e não de história da
filosofia. Aventurar-se no pensamento significa submergir no
desbordamento do sistema filosófico relevando seu incessante
“inacabamento” (Foucault, 1994a: 780); descrever a maneira segundo a
qual as filosofias retomam em si um imediato que já deixaram de ser, o
modo pelo qual fixam um limite que sempre transgridem.
Se Kant introduz a relevância da finitude quando estabelece os
limites do conhecimento e as determinações da liberdade, Hyppolite
avança no estudo da finitude da própria filosofia quando faz da história
seu lugar privilegiado. “Enquanto outros viam no pensamento hegeliano
a re-dobra sobre si da filosofia e o momento em que ela passa à
narrativa de sua própria história, Hyppolite reconhece lá o momento em
que ela ultrapassa seus próprios limites para tornar-se filosofia da não-
filosofia, ou talvez não-filosofia da própria filosofia” (Idem: 784). De

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onde a importância de saber se é permitido ainda filosofar lá onde Hegel


deixa de ser possível (Foucault, 1971: 76).
A investigação de Michel Foucault distancia-se da história do
pensamento filosófico de seu mestre e professor. Contudo, quando
designa sua própria trajetória intelectual como “historia crítica do
pensamento” (Foucault, 1994b: 631), eleva às últimas conseqüências as
pistas deixadas por Hyppolite.
Merece ser destacado que a arqueologia do sujeito moderno de
Michel Foucault afasta-se não tanto da leitura que Jean Hyppolite faz de
Hegel, mas da interpretação de Merleau-Ponty a respeito de Husserl,
conforme a qual o sujeito doador de sentido, a existência humana tal
como ela é vivida, o misto constituído-constituinte, sujeito-objeto,
síntese finita e precária do Em si e do Para si é designada como
fundamento da própria história.
Foucault lê Nietzsche no início dos anos 1950 a fim de apontar que
o sujeito trans-histórico de tipo fenomenológico é incapaz de dar conta
da historicidade da razão. Nietzsche serve como “caixa de ferramentas”
para assinalar o ponto de fratura com a fenomenologia; ele é fonte de
inspiração para o postulado de que a história da razão é indissociável da
história do sujeito (Foucault, 1994b: 436).
Foucault investiga como é possível ao sujeito constituinte ser ao
mesmo tempo oferecido como objeto de saber, por meio de que formas
de racionalidade, mediante quais condições históricas? Decorre que o
abandono do sujeito trans-histórico em sua investigação terá como
exigência outro modo de fazer história, segundo o qual o privilégio
tradicional do tempo cederá diante da valorização do espaço; a razão
histórica cara à dialética será dobrada pela noção de fim da história; a
unidade discursiva da obra será fragmentada pela ausência de obra.

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Tais ênfases somente matizam a incessante tentativa foucaultiana de


deslocar-se lateralmente em relação à unidade do sujeito e à
continuidade da história.

O Privilégio do Espaço

No prefácio de Les mots et les choses, Foucault aponta que pretende


elaborar uma arqueologia dos sistemas de autocompreensão do
pensamento ocidental por ele designada de “história do Mesmo” (1966:
15). No entanto, a estratégia de tal história acentua o privilégio de
sistemas anônimos de regras, escavações transversais entre os diversos
saberes de uma época distanciando-se do método utilizado pela história
tradicional das ciências.
Em Les mots et les choses (1966) é desenvolvida uma arqueologia
das ciências humanas que aponta o terreno movediço de sua história; é
escavado o solo dos discursos que configura a existência daquelas
ciências aquém de qualquer determinação de suas condições de
verdade; é delimitado outro ponto de sustentação para sua história, que
não sejam os enunciados contemporâneos de verdade de uma ciência já
constituída nos termos da objetividade e da sistematização; são
descritas as condições de realidade responsáveis pela distribuição dos
saberes segundo coerências específicas numa geografia determinada.
Diferentemente da história tradicional das ciências que parte de
fundamentos atuais de verdade e de objetos específicos, na arqueologia
os diversos objetos de saber constituídos numa mesma época não são
estudados nos termos de uma leitura retrospectiva, mas pelo “espaço de
ordem” (Foucault, 1966: 13) que os possibilita serem apreendidos.

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O espaço de ordem é uma espécie de transcendental histórico que


atua como elemento informador dos saberes responsável pela formação
dos objetos, pela posição dos sujeitos e pela distribuição dos conceitos:
a validade de suas regras anônimas confunde-se com a geometrização
de uma época.
Sendo uma arqueologia das ciências humanas, seu escopo consiste
em traçar o espaço de ordem no qual emergiu a figura do homem como
objeto para saberes possíveis. Se tais ciências definem seu estatuto
epistemológico tomando como ponto de partida a verdade do homem, a
arqueologia procura mostrar que ela não possui seu próprio objeto. A
evidência epistemológica do homem como objeto do pensamento tem
sua condição de existência fora dele mesmo, no espaço de ordem da
história e da finitude, a partir do século XIX na Europa ocidental. Um
pensamento sobre o homem foi possível apenas quando o pensamento
desse pensamento tornou-se histórico, e em nenhum outro espaço de
ordem.
A arqueologia descreve aquele fora, pensamento do pensamento,
condição de existência anterior às condições de verdade, recuo do
espaço de ordem em relação aos discursos científicos, epistémê aquém
de toda epistemologia.
A epistémê de cada época pode ser facilmente confundida com
totalização cultural (Weltanschauung). Afinal suas atribuições são
amplas: ela é o espaço de ordem a partir de que idéias aparecem,
ciências são constituídas, experiências são filosoficamente refletidas,
racionalidades são formadas. Vale ressaltar, porém, que seu alcance é
limitado pelos próprios domínios percorridos pelas arqueologias de
Michel Foucault: elas atêm-se à descrição das condições de existência
dos enunciados de uma época, mas apenas daqueles que configuram a

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possibilidade histórica das ciências humanas. Segue a dificuldade de


pensá-la como totalização cultural, sendo uma análise estritamente
regional (cf. Machado, 1988: 15-32).
Merece ser sublinhado que o pensamento do pensamento ou
epistémê de uma época tem uma configuração geométrica em Les mots
et les choses. No pensamento renascentista (século XVI) a esfera
simboliza a circularidade do saber no momento em que o conhecimento
dos seres, das coisas e das palavras está referido a Deus. Os
quadriláteros configuram o pensamento clássico (séculos XVII e XVIII) e
moderno (a partir do século XIX) e se referem às diferentes articulações
entre as palavras e as coisas. O triedro do pensamento contemporâneo
(a partir de 1950) sugere a correlação entre estruturas científicas e
epistemológicas.
O retrato do pensamento ocidental a partir do século XVI por meio
de configurações geométricas tem como fim a elaboração de uma
historicidade do sujeito diferente daquela que o considera nos limites de
sua temporalidade. Quando é abordado pela sua temporalidade, tudo
aquilo que na história lhe escapa pode ser restituído por ele; a fuga dos
acontecimentos é reassumida pela memória numa unidade recomposta.
“Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência
humana o sujeito originário de todo devir e de toda prática são duas
faces de um mesmo sistema de pensamento” (Foucault, 1969: 22).
Eis como ocorre a relação entre tempo e espaço nas
descontinuidades estabelecidas em Les mots et les choses. Na epistémê
da Representação, o tempo funciona como pano de fundo do
conhecimento, enquanto que o espaço ocupa o primeiro plano. Se o
tempo é o movimento contínuo que percorre superficialmente a série já

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constituída dos seres e das coisas, o espaço demarca a visibilidade onde


eles podem ser representados.
Na epistémê da História, a importância é invertida. O espaço aparece
como pano de fundo e o tempo é deslocado para o primeiro plano.
Configurações de saber tais como a biologia, a filologia e a economia
deixam de ser representadas num quadro liso; seus objetos respectivos, a
vida, a linguagem e o trabalho, adquirem volume próprio e historicidade
específica. Na filosofia, o homem se torna o fundamento de um
pensamento finito, temporal. Michel Foucault pretende mostrar que
somente na época moderna, no espaço de ordem da História, o tempo
prevaleceu sobre o espaço e a evidência epistemológica do homem se
impôs ao mesmo tempo como objeto de saber e sujeito universal de
conhecimentos.
Na contemporaneidade, tempo e espaço emergem juntos como
primeiro plano do conhecimento, de modo que já não há pano de fundo
para o pensamento, permanecendo configurações locais. O tempo é
disperso e fragmentado; o espaço deixa de ser ocupado pela
representação dos seres ou pela pletora da consciência; doravante, a
possibilidade do pensamento tem como condição um vazio, um
impensado.
Na filosofia francesa do decênio de 1960 prevalece a percepção de
que o lugar do sentido não está naquele que discursa e sim na própria
discursividade; não no emissor, mas no código que o precede; não no
sujeito de significação, mas no significante que a ele se antecipa. O mérito
de Foucault foi ter apresentado o deslocamento do sujeito doador de
sentido para o sujeito constituído pelo discurso a partir da perspectiva da
história. Não é o sujeito que faz história; ele é constituído por ela, tem
data de nascimento e está preste a desaparecer. A possibilidade do

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estabelecimento de uma idade para o homem se justifica porque a história


arqueológica privilegia espaços de ordem descontínuos, deixando de lado a
idéia de progresso da razão, de desvelamento da consciência.
Vale ressaltar a coerência entre a história arqueológica das ciências
humanas e o espaço de ordem que a permite, no qual o pensável
prescinde do homem como objeto a ser pensado. A arqueologia de Michel
Foucault apresenta o espaço de ordem que torna possível seu próprio
discurso: a época contemporânea.

O Fim da História

A época contemporânea é atribuída por Foucault como fim da história.


Ela está condicionada pela ausência de obra e pela derrocada da filosofia
moderna do Mesmo, para a qual é o sujeito de razão que faz história e
produz obras razoáveis. De onde a crítica insistente às ciências
humanas: elas estendem à época contemporânea o fundamento
moderno e ambíguo do homem, ao mesmo tempo designado como
sujeito de conhecimentos e objeto de saber.
Em seu notável livro Histoire de la folie à l´âge classique (1962),
Foucault apresenta o dilema no qual se encontram as ciências humanas,
como é o caso da psicologia objetiva que surge no século XIX. Ou ela
aprofunda a negatividade do homem até o extremo em que louco e são
de espírito se pertencem na forma da recusa; ou ela retoma
incessantemente ajustamentos dialéticos entre sujeito e objeto, interior
e exterior, vivido e conhecimento. Ainda, ou ela reduz a obra (obras que
se realizam e palavras que são transmitidas pela razão histórica com a
qual uma cultura se identifica) à ausência de obra (gestos que não

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dizem nada, a inoperância da vida que uma razão histórica exclui para
seu exterior) ou sua verdade não passa de uma possibilidade cercada
pela desrazão, ou seja, por aquilo que ela exclui e ignora para
constituir-se cientificamente como psicologia. Ao optar pela segunda
alternativa, a psicologia objetiva adquire status científico, mas com o
ônus teórico da exclusão da loucura e o custo prático da exclusão do
louco.
A arqueologia de Michel Foucault destaca que aquilo considerado
pela história de nossa identidade como obra está rodeado pela ausência
de obra.
A grande obra da história do mundo está perpetuamente
acompanhada de uma ausência de obra, que se renova a cada instante,
mas que corre inalterada em seu inevitável vazio ao longo da história:
desde antes da história, posto que ela já está lá na decisão primitiva; e
ainda depois dela, posto que ela triunfará na última palavra pronunciada
pela história” [Tradução e grifos nossos] (Foucault, 1994a: 163).
V. Descombes ressalta que a atribuição da história como obra do
homem - entenda-se do homem não-louco - é um dos aspectos
fundamentais do pensamento dialético. “O homem é aquilo que ele faz,
sua ‘práxis’ define a realidade. (...) A história é a obra por excelência. É
loucura tudo aquilo que não encontra qualquer papel a desempenhar no
drama histórico, o que não contribui para o ‘fim da história’” (1979:
133). O fim da história seria a reconciliação final, a síntese superior da
negação da negação, da presença da verdade e da verdade da presença.
Michel Foucault situa sua investigação fora da percepção segundo a
qual o homem encontra sua verdade na síntese da obra realizada. Para
ele, há obra porque a ausência de obra foi constituída; afirma-se a
verdade do homem pensante porque a loucura foi excluída do

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pensamento; há um espaço do Mesmo porque houve um distanciamento


do espaço do Outro; reconhece-se a cidade e sua obra a partir da Nau
dos loucos e sua errância.
O fim da história deixa de ser a reconciliação final para dar lugar à
negatividade; nossa história é definida por aquilo que ela recusa no seu
interior: a loucura como ausência de obra. Elaborar sua arqueologia
significa escavar aquilo que foi encoberto antes dela e deparar-se diante
da vacância que depois dela se anuncia. Daí ser a arqueologia de um
silenciamento, mas que resgata a tênue alteridade de um incessante
murmúrio.
Michel Foucault sugere que o homem, objeto das ciências humanas,
somente é oferecido ao conhecimento a partir daquilo que não é. Sua
positividade desprende-se da negatividade, sua normalidade é limitada
pela anormalidade, seu papel de sujeito constituinte é o apaziguamento
de seu ser constituído, sua consciência reflexiva é precedida de seu ser
empírico, sua obra depende da ausência de obra.
Estabelecer os limites da obra a partir da ausência de obra constitui
outro modo de encaminhar-se para fora da filosofia do sujeito, qual seja
aquela que faz do homem ao mesmo tempo sujeito do conhecimento e
objeto de saber possível, aquele que fala e aquele do qual se fala
(Foucault, 1990: 12).
Conduzir às últimas conseqüências a negatividade do homem e sua
história tem como efeito perceber a época contemporânea como
acúmulo de não-sentido na qual “não há mais nada a ser feito (pois toda
ação é derrisória), nada mais a dizer (pois toda palavra é insignificante)”
(Descombes, 1979: 133-134). Se antes da história a razão está
tragicamente vinculada à desrazão, a obra à ausência de obra na forma

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de recusa, após a história haverá a errância permanente pela qual a


negatividade da obra (da razão e da história com a qual nos
identificamos) será contínua e indefinida. Desde que há razão e obra
histórica há loucos. Não existiria loucura senão a partir da decisão da
moral social em favor da obra do sujeito de razão.
Na perspectiva de Michel Foucault, a verdade do homem não está
situada em sua obra, na capacidade que ele possui de produzir
ciência, fundamentar reflexões e constituir história. Ele mesmo é
constituído como obra ambígua na história. “A verdade do homem só
é dita no momento de seu desaparecimento; ela só se manifesta
quando já se tornou outra coisa que ela própria” (Foucault, 1972:
545).
Ao estudar os diversos domínios de saber modernos, no vão dos
quais surge o homem - no sentido de evidência epistemológica -, não se
o vê constituindo-se mediante sua práxis, mas constituído na
precariedade da história.
Se na economia o ser trabalhador “passa, usa e perde sua vida
escapando da iminência da morte” (Foucault, 1966: 269); se na
linguagem, o homem falante surge como ser finito reconduzido às
sedimentações históricas daquilo que diz, ao silêncio que destrói aquilo
que é dito e à referência ao ser bruto da palavra; se na biologia, na
qualidade de ser vivente acossado pela morte ele só pode tornar-se
objeto de saber possível como ser votado ao aniquilamento; se na
medicina “a noite viva se dissipa na claridade da morte” (Foucault, 1963:
49), na psicologia é “apenas na noite da loucura que a luz é possível, luz
que desaparece quando se apaga a sombra que ela dissipa” (Foucault,
1972: 548).

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Quaisquer verdades objetivas e universais sobre o homem como


sujet - no sentido daquele do qual se fala - estão condicionadas pela
ausência de verdade; aquilo com o qual ele se identifica é inseparável
daquilo que rejeita; as realizações históricas de sua cultura configuram
apenas uma escolha dentre outras possibilidades preteridas e que, no
entanto, rondam aquelas realizações. Foucault denuncia ao mesmo
tempo a precariedade do homem como objeto específico das ciências
humanas e a provisoriedade da obra como constituinte de sua história.
Além de abordar a obra a partir da ausência de obra, a arqueologia
pretende destituí-la de sua designação de unidade discursiva. O
arqueólogo recusa entender a existência da obra como individualidade
cuja fisionomia precisa ser conservada no decorrer do tempo; apenas
afirma que ela é algo, mera materialidade determinada pela relação
mantida com cada intérprete. A materialidade da obra somente existe
como objeto do discurso quando uma relação histórica faz dela isso ou
aquilo (cf. Veyne, 1995: 176). A obra deixa de ser objeto pronto, aquilo
do qual trata o discurso. Ela é efeito de um jogo de regras definido por
um espaço de ordem exterior. A materialidade da obra torna-se objeto
quando é problematizada a partir de uma regularidade discursiva.
Algo análogo ocorre com a constituição arqueológica de outros
objetos abordados por Foucault, tais como a sexualidade, o governo, a
doença mental. Nem sempre a materialidade da conduta sexual foi
objetivada como sexualidade; tampouco o poder tem sido em todos os
tempos objeto de pensamento na condição de governo; a loucura, por
sua vez, apenas no século XIX foi objetivada como doença mental. É
necessário um espaço de ordem discursivo para que algo seja

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problematizado como sexualidade, como governo ou como doença


mental.
Segue que não há objetos naturais; não há fatos, como escreve
Nietzsche. Há modos de objetivação. A obra não pré-existe como objeto,
existe apenas como efeito de condições positivas de um “feixe complexo
de relações” (Foucault, 1969: 61). As regularidades não definem a
constituição interna do objeto, permitem somente que ele seja colocado
numa região de exterioridade alheia ao campo de uma totalidade fechada
e dotada de significação.
A partir de tais precisões conceituais, compreende-se a articulação
estabelecida por Foucault entre a obra e seu autor. Aparentemente, a
soma de textos assinada por um nome próprio é considerada como obra;
entretanto, sua constituição plena supõe um número de escolhas difíceis
de serem justificadas ou formuladas: por exemplo, a obra de um autor
está limitada aos seus textos publicados ou inclui ainda rascunhos,
projetos, rasuras, correções, cartas e conversas relatadas?
Normalmente, afirma-se a unidade da obra como função expressiva
do pensamento, da experiência, da imaginação, do inconsciente ou até
mesmo das determinações históricas entre as quais um autor se encontra.
Michel Foucault indica a insuficiência na designação da obra como unidade
expressiva do pensamento. As funções de expressão dependem de
operações interpretativas que numa época se impõem sobre outras
interpretações. “A obra não pode ser considerada como unidade imediata,
nem como unidade certa, nem como unidade homogênea” (Foucault,
1969: 36). Vale destacar que o pensador francês põe em questão a
unidade da obra porque ela reconduz à unidade do autor. Nesse caso,
encaminhar-se para fora da filosofia do sujet excede à tentativa de

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mostrar a fragmentação daquilo a ser conhecido pelos saberes; ela insiste


na dispersão contemporânea daquele que conhece.

A fragmentação da unidade do autor

A unidade discursiva do autor nem sempre foi considerada importante no


pensamento ocidental. A relevância de sua função está vinculada a um
momento de nossa história - o da Modernidade - concomitante ao
nascimento do homem entre os saberes positivos e a filosofia.
Textos literários e ficções históricas da Grécia antiga e da Idade Média
não relevam a autoria. Na Modernidade, ela adquire importância posto que
a verdade daquilo que é lido depende da autoridade daquele que escreve.
Na época contemporânea, o discurso literário não busca mais a verdade
dos fatos a partir de um autor determinado, de modo que a exigência da
autoria não passa de controle do discurso.
Sem negar a existência natural e histórica daquele que escreve,
Foucault pretende mostrar que a evidência epistêmica da autoria limita a
liberdade da própria palavra e o que ela tem a dizer. Em vez de o livro
remeter à identidade do eu que o escreve, ele deve bastar com “as frases
de que é feito” (Foucault, 1972: 10). Contrariamente à busca da origem e
significação do discurso no autor escriturante é suficiente deixar que as
próprias palavras falem.
A insignificância do autor tem-se tornado tema recorrente na crítica
literária no decênio de 1960. Vale lembrar a frase de Beckett, “que
importa quem fala; alguém disse: que importa quem fala” (Foucault,
1994a: 792). Significa que a escritura deixa de ser expressão de outra
coisa para ser auto-referencial, no sentido de exterioridade desdobrada,

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transgressão para além das regras da escritura, “abertura de um espaço


onde o sujeito escritor não cessa de desaparecer” (Foucault, 1994a:
793).
Na escritura desaparecem as características individuais do sujeito
escriturante; a única marca do escritor é a singularidade de sua ausência.
Como diria Mallarmé, diante da indiferença daquele que fala, permanece
apenas “a própria Palavra” (Foucault, 1966: 394).
Para Foucault, não basta reiterar o desaparecimento do homem
moderno como sujeito diante da nova configuração do saber da época
contemporânea; do mesmo modo, é insuficiente constatar a dispersão do
autor diante da emergência do discurso. Importa a delimitação do espaço
vazio por ele deixado e as possibilidades que dele emergem. De onde a
insistência na apresentação das funções normalmente desempenhadas
pelo autor naquele vazio lacunar, na forma de nomes, apropriações,
atribuições e posições heterogêneas.
Para começar, o nome do autor: a impossibilidade de designá-lo a
partir de uma descrição definida, mas igualmente de lhe atribuir um nome
próprio ordinário. Em seguida, a relação de apropriação: o autor não é
exatamente o proprietário ou o responsável pelos seus textos. Ainda, a
relação de atribuição: ele é provavelmente aquele ao qual pode ser
atribuído aquilo que foi dito ou escrito, mas a atribuição - mesmo quando
se trata de um autor conhecido - é resultado de operações críticas
complexas e raramente justificadas. Vale ressaltar igualmente as diversas
posições assumidas pelo autor num livro, nos diferentes tipos de discursos
ou ainda num campo discursivo.
Em outros termos,

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a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que


encerra, determina, articula o universo do discurso; ela não se exerce
uniformemente e do mesmo modo sobre todos os discursos, em todas
as épocas e em todas as formas de civilização; não é definida pela
atribuição espontânea do discurso a seu produtor, mas por uma série
de operações específicas e complexas; não reconduz pura e
simplesmente a um indivíduo real, podendo dar lugar simultaneamente
a diversos ego em diversas posições-sujeito que classes diferentes de
indivíduos podem vir a ocupar (Foucault, 1994a: 803-804).

Obra e autor são pensados como funções e posições oscilantes por


Michel Foucault. Ele não resgata individualidades, delas se serve.
Autores e obras configuram instrumentos, ferramentas de discursos,
conjunto de enunciados. Foucault é alguém indeterminado.
Insignificante é saber quem seja ele, importando o que é dito por meio
dele. Resulta um anelo singular: “Gostaria de perceber que no momento
de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria,
então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser
percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um
sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa” (Foucault, 1971: 7).
A crítica das unidades discursivas da obra e do autor é constitutiva
da recorrente tentativa foucaultiana de encaminhar-se para fora de uma
filosofia do sujet porque aponta a insuficiência do conhecimento
fundamentado no sujeito constituinte e na existência de objetos já
constituídos no real. Seu desdobramento positivo configura-se pela
liberação de um espaço no qual o pensamento ainda é possível.
Na época contemporânea apenas um pensamento é possível, o
pensamento do fora. Na verdade, um espaço neutro resultante da
dispersão da pletora da consciência inerente ao sujeito constituinte
moderno.

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Evidenciando a inspiração da escritura de Maurice Blanchot quando


este apresenta o Fora como “espaço literário” (1988), para Michel
Foucault, o ser do homem cede lugar ao ser (de) linguagem na
contemporaneidade.
A experiência de encaminhar-se para fora da interioridade reflexiva
do sujeito em direção ao ser da linguagem adquire importância nos
diferentes aspectos da cultura ocidental: “no único gesto de escrever
como nas tentativas para formalizar a linguagem, no estudo dos mitos
na psicanálise, também na pesquisa desse Logos que forma o lugar de
nascimento de toda a razão ocidental” (Foucault, 1994a: 521).
O ser (de) linguagem mantém-se “fora de toda subjetividade para
fazer surgir do exterior seus limites, enunciar seu fim, fazer cintilar sua
dispersão e recolher somente sua invencível ausência” (Foucault, 1994a:
521). O pensamento do fora se mantém no limiar da positividade do
saber, na exterioridade da reflexão filosófica e das certezas imediatas a
fim de encontrar o espaço no qual se desdobram, o vazio que lhes serve
de lugar, a distância na qual se constituem.
Sade e a nudez do desejo no murmúrio infinito do discurso,
Hölderlin e a ausência de Deus diante de uma linguagem em vias de se
perder insinuaram a experiência flutuante do fora na espessura de nossa
cultura. Errância estranha, situada nas margens de uma reflexão que,
com Kant e Hegel, prima pela interiorização da lei da história e do
mundo e pela humanização da natureza.
A cintilação da experiência do fora reaparece na segunda metade do
século XIX no âmago da linguagem. Nietzsche descobre que a metafísica
ocidental tem estado vinculada à gramática e àqueles que detêm o
direito à palavra quando sustentam discursos; Mallarmé propõe a
permanência do ser da palavra diante do desaparecimento daquele que

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ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins

fala; Bataille aposta no discurso da transgressão, da subjetividade


rompida irredutível ao discurso da contradição ou do inconsciente.
Imagina-se que a literatura moderna é possibilitada a partir de um
desdobramento que permitiria pensar a si própria, auto-implicação que a
conduziria à extrema interiorização, limitando-se a ser seu próprio
enunciado.
Porém, aquilo que num sentido restrito é designado de literatura
não nasce pelo caminho da interiorização, mas pela passagem ao fora.
“A linguagem escapa ao modo de ser do discurso - quer dizer, da
dinastia da representação -, e a palavra literária se desenvolve a partir
de si própria, formando uma rede na qual cada ponto, diferente dos
demais, na distância mesma dos mais vizinhos, está situado em relação
aos demais num espaço que ao mesmo tempo os aloja e os separa”
(Foucault, 1994a: 520).
A literatura desvela seu ser próprio prescindindo do desdobramento
da linguagem sobre si e privilegiando o movimento de distanciamento
para fora de si. Tomada na sua positividade, a linguagem constitui-se
pela articulação entre alguém que fala e algo de que se fala, entre
sujeito e objeto. A ficção literária rompe com tal articulação
permanecendo o vazio no qual se enuncia na nudez da frase
intransitiva: falo.
Foucault escreve que a neutralidade do espaço literário indicada
pelo falo coloca em questão o penso do racionalismo ocidental. O Cogito
cartesiano conduz à certeza indubitável do Eu e sua existência; o falo
dispersa e desvanece aquela existência, possibilitando cintilar apenas
seu território vazio. A interioridade reflexiva a qual conduz a filosofia
moderna está baseada no pensamento do pensamento. O

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Cesar Candiotto
Foucault e a crítica do sujeito e da história

direcionamento para o fora no qual está desaparecido o sujeito que fala


é o caminho proposto pela literatura, cuja referência é a palavra da
palavra.
Segue a longa hesitação da reflexão filosófica para pensar o ser da
linguagem: sua experiência nua é indissociável do perigo que cerca a
evidência do eu sou. Há incompatibilidade espacial entre o aparecimento
da linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade. “Para
Kant, a possibilidade de uma crítica e sua necessidade estavam
vinculadas, por meio de alguns conteúdos científicos, ao fato de que há
conhecimento. Em nossos dias elas estão vinculadas - e Nietzsche, o
filólogo é testemunha disso - ao fato que há linguagem” (Foucault,
1963: XII).

Considerações

A arqueologia do saber de Michel Foucault evidencia que na época


contemporânea permanece somente a possibilidade de uma história
crítica do pensamento situada fora daquele que fala e daquele do qual
se fala. Se o pensamento normalmente é abordado pela articulação
entre um sujeito idêntico a si mesmo e um objeto já constituído no real,
a história crítica do pensamento é o encaminhamento para fora da
fixidez de tais unidades.
Sair da filosofia do sujeito, escapar de Hegel, encaminhar-se em
direção ao fora implica elaborar uma ontologia histórica pela qual algo
se torna objeto e alguém se torna sujeito dependendo da relação que os
constitui. No caso da época contemporânea é o ser (de) linguagem, o
ser do discurso que constitui sujeitos e objetos, os transforma, os
articula e atua no seu mútuo desvanecimento.

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ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins

Bibliografia

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VEYNE, P. Como se escreve a história. 1995. 3. ed., Brasília, Unb.

Recebido em dezembro/2006.
Aprovado em fevereiro/2007.

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