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Capítulo XVII
Sobre a Vida Cristã
Quando falamos da fé reformada ou calvinista, não estamos falando apenas de um
sistema de doutrina, mas de um estilo de vida na prática da Palavra de Deus mortificando
a carne e o pecado para uma vida com Deus em santidade. A maioria dos
questionamentos que recebo através do site www.teologiacalvinista.com são acusações
de que se cremos na eleição, então vivemos desordenadamente e não procuramos à
santidade. Para desmentir esta acusação e aquecer a chama quase apagada dos
corações reformados, segue o capitulo XVII das Institutas da Religião Cristã escrita por
João Calvino. Boa leitura e distribuam ao maior número de pessoas que conseguirem
para o despertar de viverem o evangelho. Como diz Calvino neste capitulo: Porque o
evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida.
28 de Março de 2008
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1. Introdução
[1539] Dispondo-me a descrever em que consiste a vida do cristão, sei que entro num
assunto amplo e muito diversificado, que poderia encher um grande volume, se eu
quisesse abranger tudo quanto contém. Sabemos muito bem como são prolixas as
exortações dos doutores antigos quando tratam de alguma virtude específica. Não é que
simplesmente os que exageram no falar tenham culpa disso, porque sobre qualquer
virtude que se queira apreciar e recomendar é tal a abundância de material disponível que
parecerá ao mestre que não discutiu bem o assunto se não consumiu nisso muitas
palavras. Bem, não é minha intenção estender-me sobre a doutrina da vida cristã de que
pretendo tratar apresentando detalhadamente cada virtude e fazendo de cada uma delas
longas exortações. Isso pode ser encontrado em livros de outros autores, principalmente
nas homilias ou sermões populares dos doutores antigos. Quanto a mim, considero
suficiente mostrar certa ordem pela qual o cristão possa ser conduzido e dirigido à
verdadeira meta que consiste em ordenar adequadamente a sua vida.
2. Método e limites
[1541] Eu me contentarei, pois, em apresentar uma breve regra geral que lhe sirva de
parâmetro para orientar todas as suas ações. [1539] Talvez tenhamos ocasião de, noutra
oportunidade, fazer deduções e aplicações como as que encontramos nos sermões dos
doutores antigos. O trabalho que temos em mãos exige que exponhamos uma doutrina
simples e clara dentro do menor espaço possível.
3. Comparação da filosofia com a Bíblia
Assim como os filósofos tratam de algumas finalidades da honestidade e da retidão das
quais deduzem os deveres particulares e todas as ações próprias de cada virtude, assim
também a Escritura tem sua maneira de agir neste assunto, maneira aliás muito melhor e
mais certa que a dos filósofos. A única diferença é que eles, se sua ambição, exibiram a
perspicuidade ou clareza mais notável que puderam, para que se vissem a ordem e a
disposição empregadas por eles e assim mostrassem a sua perspicácia. Ao contrário, o
Espírito Santo ensina sem exibida ostentação, e nem sempre nem estritamente observa
alguma ordem e algum método. Todavia, quando ocasionalmente os emprega, significa
que não os devemos despreza.
4. Divisão bíblica do assunto
Pois bem, a ordem da Escritura da qual falamos consiste de duas partes. Uma visa
imprimir em nosso coração o amor pela justiça, para o qual por natureza não temos
nenhuma inclinação. A outra visa dar-nos uma regra definida para que, seguindo-a, não
fiquemos vagando sem rumo certo e não edifiquemos mal a nossa vida.
Quanto à primeira parte, a Escritura tem muitas razões excelentes para inclinar o nosso
coração ao amor pela retidão. Temos feito menção de algumas dessas razões em
diversos lugares da nossa obra, e tocaremos nalgumas outras aqui.
5. O padrão divino: santidade
Que fundamento seria melhor para começarmos do que admoestar-nos no sentido de
que devemos ser santificados porque o nosso Deus é santo? Fortalecemos o argumento
com a lembrança de que, havendo por assim dizer vivido espelhados como ovelhas
desgarradas e dispersas pelo labirinto deste mundo, ele nos recolheu para juntar-nos a si.
Ao sabermos que Deus promove esta sua união conosco, devemos lembrar que o laço
desta união é a santidade. Não que pelo mérito da nossa santidade passemos a gozar da
companhia ou da comunhão com o nosso Deus, visto que primeiro é preciso que nos
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acheguemos a ele para que ele derrame a santidade sobre nós, mas sim que, como não
há nenhuma associação da sua glória com a iniqüidade e com a impureza, temos que nos
assemelhar a ele porque lhe pertencemos.
Por isso a Escrituras nos ensina que esta é a finalidade da nossa vocação, finalidade à
qual devemos estar sempre atentos, se queremos responder positivamente ao nosso
Deus. Por que, de que valerá livrar-nos da impureza e da corrupção em que estávamos
imersos, se o tempo todo ficamos querendo revolver-nos de novo nessa lama? Além
disso, a Escritura nos admoesta no sentido de que, se desejamos estar na companhia do
povo de Deus, temos que habilitar em Jerusalém, na sua santa cidade. Cidade que, como
ele consagrou e dedicou à sua hora, também não é lícito que seja contaminada e
corrompida por habitantes impuros e profanos. Daí decorrem sentenças como esta: “Que,
Senhor, habitará no teu tabernáculo? Quem h[a de morar no teu santo nome? O que vive
com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade” [Sl 15.1,2; 24.3; Is
35.8etc.; Rm 6.1-3,13,17-23].
6. Cristo, nosso Redentor e nosso Modelo
Acresce que, para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que, assim
como Deus em Cristo nos reconciliou consigo, assim também ele o constituiu em exemplo
e padrão ao qual devemos amoldar-nos. Que aqueles que consideram que somente os
filósofos tratam devidamente da doutrina moral me mostrem em seus livros um método
que seja tão bom como o que eu acabo de citar. Quando eles querem exortar-nos quanto
podem à virtude, outra coisa não nos passam senão que vivamos como convém à
natureza. Já a Escritura nos leva a uma fonte melhor de exortação, quando não somente
nos ordena que reportemos toda a nossa vida a Deus, seu autor, mas, depois de nos ter
advertido de que nos degeneramos em relação à verdadeira origem da nossa criação,
acrescenta que Cristo, reconciliando-nos com Deus, seu Pai, nos é dado como um
exemplo de inocência e cuja imagem deve ser representada em nosso viver. Que se
poderia dizer com maior veemência e com maior eficácia? Que outra coisa mais se
poderia desejar? Porque, se Deus nos adora como seus filhos, com a condição de que a
imagem de Cristo se veja em nossa vida, se abandonarmos a justiça e a santidade, não
somente estaremos abandonando o nosso Criador com a mais negligente deslealdade,
mas também estaremos renunciando a ele como Salvador.
Por conseguinte, a Escritura toma tampo e espaço para nos exortar quanto a todos os
benefícios que nos vêm de Deus e a todas as partes da nossa salvação, como quando
diz: Visto que Deus nos é dado como Pai, mereceremos ser repreendidos por nossa
grande ingratidão, se não nos comportarmos com seus filhos. Visto que Cristo nos
purificou e nos lavou com o seu sangue, e nos comunicou está purificação pelo Batismo,
é mister que não nos maculemos com nova impureza. Visto que ele nos uniu a si e nos
enxertou em seu corpo, devemos zelosamente cuidar que não nos contaminemos de
modo algum, já que somos seus membros. Visto que ele, que é a nossa Cabeça, subiu ao
céu, é de toda conveniência que nos desfaçamos de todo apego às coisas terrenas, para
aspirarmos de todo coração à vida celestial. Visto que o Espírito Santo nos consagrou
para sermos templos ou santuários de Deus, é necessário que façamos tudo o que
pudermos para que a glória de Deus seja exaltada em nós, e, por outro lado, para que
não nos deixemos manchar por nenhuma forma de contaminação do pecado. Visto que a
nossa alma e o nosso corpo foram destinados à imortalidade do reino de Deus e à
incorruptível coroa da sua glória, é necessário que nos esforcemos para conservar alma e
corpo puros e imaculados, até o dia Senhor.
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Aí estão fundamentos verdadeiramente bons e próprios para que sobre eles edifiquemos
a nossa vida. Não se vai encontrar nada parecido em todos os filósofos, porque eles
nunca vão além dos limites da dignidade meramente natural do homem, quando procuram
mostrar qual é o seu dever.
7. Mensagem aos cristãos nominais
Nesta altura devo dirigir a palavra àqueles que, não tendo nada de Cristo exceto o título,
entretanto querem ser reconhecidos como cristãos. Que atrevimento deles, quererem
gloriar-se em seu sacrossanto nome! Pois só têm relação de amizade com Cristo aqueles
que o conhecem verdadeiramente mediante a Palavra do evangelho. Pois bem, o
apóstolo Paulo nega que alguém possa receber o correto conhecimento de Cristo, a não
ser aquele que aprendeu a despojar-se “do velho homem, que se corrompe segundo as
concupiscências do engano”, sendo então revestido do novo homem [Ef 4.20-24].
Vê-se, pois, que é baseados em ensinamentos falsos que esses tais dizem que
conhecem a Cristo. E com isso lhe fazem grande injúria, por mais belas que sejam as
suas palavras. Porque o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida. E,
diferentemente das outras disciplinas, não se apreende só pela mente e pela memória,
mas deve envolver e dominar a alma e ter como sede e receptáculo as profundezas do
coração. De outra forma, o evangelho não será recebido adequadamente como deve ser.
Portanto, ou que tais cristãos nominais deixem de se gabar do que não são, com o que
afrontam vergonhosamente a Deus, ou que tratem de mostrar que são discípulos de
Cristo.
Demos o primeiro lugar à doutrina em matéria de religião, uma vez que constitui o
princípio da nossa salvação. Mas, para que nos seja útil e frutífera, também é necessário
que ela nos penetre o íntimo do coração e demonstre o seu poder em nossa vida, e que
até mesmo nos transforme fazendo-nos conformes à sua própria natureza. Se os filósofos
com razão ficam indignados contra aqueles que, declarando0se amantes da arte, a que
eles chamam mestra da vida, contudo a convertem numa loquacidade sofística, muito
maior razão temos nós para detestar os palradores que se contentam em ter o evangelho
na boca, desprezando-o totalmente em sua maneira de viver! Pois a eficácia do
evangelho deveria penetra as profundezas do coração e arraigar-se na alma, cem mil
vezes mais que todas as exortações filosóficas, que, em comparação, não tem grande
vigor!
8. Reconhecendo limitações, o cristão deve aspirar a perfeição requerida por Deus
Não exijo que a vida do cristão seja um evangelho puro e perfeito, embora o devamos
desejar e esforçar-nos por esse ideal. Não exijo, pois, uma perfeição cristã de tal maneira
estrita e rigorosa que me leve a não reconhecer como cristão a quem não tenham
alcançado. Porque, se fosse assim, todos os homens do mundo seriam excluídos da
igreja, visto que não se encontra nem um só que não esteja bem longe dela, por mais que
tenha progredido. E a maioria ainda não avançou nada ou quase nada. Todavia, nem por
isso os devemos rejeitar. Que fazer então?
Certamente devemos ter diante dos nossos olhos como nossa meta a perfeição que Deus
ordena, para a qual todas as nossas ações devem ser canalizadas e à qual devemos
visar. Repito: temos que nos esforçar para chegar à meta. Sim, pois não é lícito que
compartilhemos com Deus apenas aceitando uma parte do que nos é ordenado em sua
Palavra e deixando o restante a cargo da nossa fantasia. Porque Deus sempre nos
recomenda, em primeiro lugar, integridade [Gn 17.1]. Com essa palavra ele se refere a
uma pura singeleza e sinceridade de alma, destituída e limpa de toda fantasia ou ficção e
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contrária à dobrez do coração. Como, porém, enquanto estamos nesta prisão terrena,
nenhum de nós tem a presteza necessária, e, na verdade a maior parte de nós é tão fraca
e débil que vacila e coxeia pouco podendo avançar, prossigamos avante, cada um
segundo a sua pequena capacidade, e não deixemos de seguir o caminho no qual
começamos. Ninguém caminhará tão pobremente que não avance ao menos um pouco
por dia, ganhando terreno.
Portanto, não cessamos de buscar a meta proposta, aproveitando constantemente os
benefícios da vereda do Senhor. E não nos desanimemos, ainda que o nosso proveito
seja diminuto. Mesmo que o nosso progresso não corresponda ao que imaginávamos, o
esforço não foi totalmente perdido quando se vê que o dia de hoje supera o de ontem.
Somente fixemos os nossos olhos na meta com pura e sincera simplicidade, e façamos
todos os esforços possíveis para alcançá-la, sem acariciar o nosso ego com vã adulação
nem desculpar os nossos erros morais. Esforcemos-nos sem cessar, empenhado em que
cada dia sejamos melhores do que somos, até alcançarmos a bondade suprema, que
devemos buscar durante toda a nossa vida. Perfeição que obteremos quando, despojados
da fraqueza da nossa carne, seremos feitos plenamente partícipes dela, isto é, quando
Deus nos acolher para vivermos para sempre em sua companhia.
9. Não somos nossos; somos do Senhor
[1541] Passemos agora à segunda parte. Embora Leis de Deus tenha, como tem, um
excelente método e um arranjo bem ordenado com vistas à edificação da nossa vida, não
obstante pareceu bem ao nosso bondoso Mestre celestial formar os seus por meio de
uma doutrina mais sublime que a que nos é comunicada em sua Lei.
Então, o princípio dessa forma de instrução consiste em determinar que é dever dos
crentes oferecerem seu corpo “por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”, que constitui
o culto legítimo que lhe devemos prestar [Rm 12.1]. Deste princípio decorre a exortação a
que eles não se acomodem à imagem deste século, mas que sejam transformados pela
renovação da sua mente, para buscar e experimentar a vontade de Deus. Temos aí já um
importante motivo para dizer que somos pessoas consagradas e dedicadas a Deus para
que não pensemos, nem meditemos, nem façamos coisa alguma que não seja para a sua
glória. Porque não é lícito aplicar algo sagrado a uso profano. Ora, se nós não nos
pertencemos, mas somos do Senhor, vê-se claramente o que devemos evitar para não
errarmos, e para onde devemos canalizar todas as ações que praticarmos em nosso
viver.
Não somos de nós mesmos; portanto, não permitamos que a nossa razão e a nossa
vontade exerçam domínio sobre nossos propósitos e sobre nossas ações. Não somos de
nós mesmos; portanto, não tenhamos como nosso objetivo buscar o que nós traz proveito
à carne. Não somos de nós mesmos; esqueçamo-nos, pois, de nós mesmos, quando
possível, e de tudo o que nos cerca.
E agora: nós somos do Senhor; vivamos e morramos por ele e para ele. Somos do
Senhor; que a sua vontade e a sua sabedoria presidam a todas as nossas ações. Somos
do Senhor; relacionemos todos os aspectos da nossa vida com ele como o nosso fim
único. Ah, quão proveitoso será para o homem que, reconhecendo que não é dono de si,
negue à sua razão o senhorio e o governo de si mesmo e o confie a Deus! Porque, assim
como a pior praga, capaz de levar os homens à perdição e à reina, é se comprazerem a si
mesmo, assim também o único e singular porto de salvação não está em o homem julgar-
se sábio, como tampouco em querer nada de sua vontade própria, mas em seguir
unicamente ao Senhor [Rm 14.7,8].
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reino de Deus que os publicanos e os devassos. Contudo, ainda não demonstramos com
suficiente clareza quantas coisas impedem o homem que não se negou a si mesmo de se
dedica à real prática do bem. Os antigos já diziam com razão que há um mundo de vícios
ocultos na alma do homem. E não encontraremos remédio para isso, a não ser que,
renunciando ou negando a nós mesmos e deixando de buscar o que nos agrada,
impulsionemos e dediquemos o nosso entendimento a buscar as coisas que Deus exige
de nós, e a buscá-las unicamente porque lhe são agradáveis.
12. Abnegação com vistas aos homens e mormente a Deus
Devemos notar que a abnegação ou renuncia de nós mesmos em parte visa ao bem dos
homens e em parte, na verdade principalmente, visa à nossa relação com Deus. Ora,
quando a Escritura nos ordena que nos portemos de tal maneira para com os homens que
os prefiramos em honra a nós próprios e que nos empenhemos com toda a lealdade a
promover o seu progresso, ela nos dá mandamentos que o nosso coração não será capaz
de cumprir, se primeiro não for esvaziado dos seus sentimentos naturais. Porque somos
todos tão cegos e tão dominados pelo amor de nós mesmos que não há ninguém que não
julgue ter todos os bons motivos para elevar-se acima dos demais e para menosprezá-los
a fim de exaltar-se a si próprio. Se Deus nos concede algum dom digno de apreço,
imediatamente, à sombra disso, o nosso coração se eleva. E não somente nos inflamos,
mas quase nos arrebentamos de orgulho.
Nossos vícios e defeitos, dos quais estamos cheios, tratamos de zelosamente ocultar dos
demais, e procuramos fazer com que lhes pareçam pequenos e leves. Às vezes até os
consideramos virtudes. Quando se trata de graças ou dons por nós recebidos, tanto os
valorizamos que até os fazemos objeto de extasiada contemplação. Mas se tais dons se
manifestam noutras pessoas, e mesmo dons maiores que nos vemos constrangidos a
reconhecer, procuramos obscurecê-los ou então os desprezamos o mais que podemos.
Por outro lado, quando se manifestam vícios e defeitos nos outros, não nos contentamos
em fazer-lhes severa observação, mas os aumentamos odiosamente. Daí procede esta
arrogante insolência – que cada um de nós, como se estivesse isento da condição
humana comum, ambiciona preeminência, colocando-se acima de todos os demais e a
todos, sem exceção, considera inferiores a si. Os pobres cedem aos ricos; os plebeus,
aos nobres; os servos, a seus senhores; os indoutos, aos sábios – mas não há ninguém
que, no intimo do seu coração, não alimente a fantasia de que tem dignidade superior à
de todos os demais. Dessa forma, cada qual em sua categoria se vangloria e mantém um
reino em seu coração. Porque, atribuindo a si mesmos valores a seu bel-prazer, critica o
espírito e os costumes dos demais. E se chegam a travar contenda, o veneno de cada um
logo aparece. Há muitos que mantêm certa aparência de mansidão e de modéstia, em
quanto não são contrariados por coisa alguma. Mas, poucos são os que continuam a
mostrar brandura e modéstia quando provocados e irritados. E de fato não se pode alterar
isso, a não ser que a praga mortal do amor próprio e da exaltação própria seja arrancada
do fundo do coração, como determina o ensino da Escritura. Se dermos ouvidos à sua
doutrina, esta nos fará lembrar que todas as graças que Deus nos concede não são
propriamente nossas, mas são dádivas gratuitas da sua imensa generosidade.
Portanto, quem se orgulha demonstra ingratidão. Por outro lado, constantemente
reconhecendo os nossos vícios e defeitos, somos levados a proceder com humildade.
Com isso nada nos restará de que nos orgulharmos, mas, antes, haverá forte motivo para
que nos rebaixemos e nos humilhemos. Além disso, também nos é ordenado que todos
os dons de Deus que vejamos em nossos semelhantes sejam por nós de tal maneira
exaltados e reverenciados que, em função deles, honremos as pessoas nas quais eles
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residem. Seria uma grande maldade querer despojar um homem da honra que Deus lhe
deu. Acresce que nos é ordenado que não fiquemos observando e anotando as faltas do
próximo, mas que as cubramos; não por adulação, mas para que não insultemos o
faltoso, visto que lhe somos devedores de amor e de honra. Decorre disso que a todos
aqueles com quem nos relacionarmos, não somente tratemos com modéstia e
moderação, mas também com brandura e companheirismo. Tenha-se por certo que
ninguém jamais chegará por outro caminho à verdadeira mansidão, a não ser dispondo-se
de coração a rebaixar-se a si mesmo e a exaltar os outros.
13. A abnegação requer diligente empenho
Quão difícil é cumprir o dever de trabalhar pelo proveito do próximo! Se não deixarmos de
lado a consideração de nós mesmos e não nos despojarmos de todo afeto ou interesse
carnal, não conseguiremos fazer nada nessa esfera. Porque como havemos de cumprir
os deveres que o apostolo quer que cumpramos com amor, se não renunciarmos a nós
mesmos para dedicar-nos de coração aos nossos semelhantes? “O amor é paciente”, diz
ele, “é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se
conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses”, etc. Ainda que ele só nos
ordenasse que não busquemos nosso próprio proveito, ainda teríamos que forçar a nossa
natureza, que de tal modo nos leva a amar a nós mesmos que não permite com facilidade
que deixemos de procurar benefício próprio para atender diligentemente ao nosso
próximo. Ou melhor, não nos deixa perder nossos direitos para cedê-los ao nosso
próximo.
Ora, a Escritura, para nos persuadir a respeito, lembra-nos que tudo o que recebemos da
graça do Senhor nos foi entregue sob esta condição: que o tornemos parte do bem
comum da igreja. E, portanto, que o uso legítimo dos bens recebidos consiste em
compartilhá-los fraternal e liberalmente, visando ao bem do nosso próximo. Para levar a
efeito esse compartilhar, não se pode achar melhor regra nem mais certa do que quando
se diz: tudo o que temos de bom nos foi confiado em depósito por Deus, e, nessas
condições, deve ser distribuído para o bem dos demais.
E a Escritura vai além, comparando as graças e dons que cada um de nós tem com as
qualidades ou funções próprias de cada membro do corpo humano. Nenhum membro tem
sua faculdade independentemente, e não a aplica para seu beneficio particular, mas para
proveito comum, e não recebe nenhum beneficio que não proceda do beneficio distribuído
e partilhado por todo o corpo. Dessa maneira, o crente deve pôr tudo quanto é do seu
poder à disposição dos irmãos, não fazendo uso disso unicamente para si, mas sempre
com a nobre a clara intenção de que propicie o bem comum da igreja.
Portanto, para nos orientarmos na prática do bem e das ações humanitárias, adotemos
esta norma: de tudo o que o Senhor nos deu com o que podemos ajudar o nosso próximo,
somos despenseiros ou mordomos, sendo que teremos que prestar contas de como nos
desincumbimos da nossa responsabilidade. E mais: não há outra maneira recomendável
de administrar o que recebemos senão a de seguir a norma do amor. Em decorrência
disso, não somente juntaremos os esforços para beneficiar o nosso próximo à solicitude
que aplicamos com vistas ao nosso próprio proveito, mas também sujeitaremos o nosso
proveito ao dos demais.
E realmente, para nos mostrar que essa é a maneira de administrar bem e devidamente o
que ele nos dá, Deus a recomendou antigamente ao povo de Israel, mesmo com
referencia aos menores beneficio que ele lhe fazia. Recordemos que ele ordenou que
fossem ofertadas as primícias, ou seja, os primeiros frutos das colheitas, para que desse
modo o povo testificasse que não lhe era lícito desfrutar nenhuma espécie de bens antes
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de lhe serem consagrados. Ora, se os dons de Deus nos são finalmente santificados,
após os havermos consagrado de nossas mãos, certamente se vê que é um abuso
condenável negligenciar a referida consagração. Por outro lado, seria uma verdadeira
loucura tentar enriquecer a Deus dando-lhes as coisas que temos em mãos. Visto, pois,
que o bem que podemos fazer não pode subir a Deus, como diz o profeta, devemos
praticá-lo em favor dos seus servos que vivem neste mundo.
14. Fazer o bem a todos, quer mereçam quer não
Além do que acima foi dito, para que não nos cansemos de fazer o bem, o que de outra
forma aconteceria em pouco tempo, devemos recordar o que apóstolo Paulo logo adiante
diz: “o amor é paciente... não se exaspera”. O Senhor ordena que façamos o bem a todos,
sem exceção, apesar do fato de que em sua maior parte são indignos, se os julgarmos
segundo os seus próprios méritos. Mas a Escritura não perde tempo e nos admoesta no
sentido de que não temos que observar tais ou quais méritos dos homens, mas, antes,
devemos considerar em todos eles a imagem de Deus, a qual devemos honrar e amar.
Singularmente, o apóstolo nos exorta a que a reconheçamos nos da “família da fé”, visto
que neles a imagem de Deus é renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo.
Portanto, seja quem for que se apresente a nós como necessitado do nosso auxílio, não
há o que justifique que nos neguemos a servi-lo. Se dissermos que é um estranho, o
Senhor imprimiu nele uma marca que deveríamos reconhecer facilmente. Se alegarmos
que é desprezível e de nenhum valor, o Senhor nos contestará, relembrando-nos que o
honrou criando-o à sua imagem. Se dissermos que não há nada que nos ligue a ele, o
Senhor nos dirá que se coloca no lugar dele para que reconheçamos nele os benefícios
que ele [o Senhor] nos tem feito. Se dissermos que ele não é digno de que demos sequer
um passo para ajudá-lo, a imagem de Deus, que devemos contemplar nele, é digna de
que por ela nos arrisquemos, contudo o que temos. Mesmo que tal homem, além de não
merecer nada de nós também nos fez muitas injúrias ultrajantes, ainda assim isso não é
causa suficiente para que deixemos de amá-lo, agradá-lo e servi-lo. Porque, se dissermos
que ele não merece nada disso de nós, Deus nos poderá perguntar que é que
merecemos dele. E quando ele nos ordena que perdoemos aos homens as ofensas que
nos fizeram ou fizerem, é como se o fizéssemos a ele.
Não há outro caminho pelo qual possamos chegar a praticar o que não somente é difícil
para a natureza humana, mas também lhe é totalmente repulsivo, isto é, que amemos os
que nos odeiam, que devolvamos o bem pelo mal, que oremos pelos que falam mal de
nós. Só chegaremos a esse ponto se nos lembrarmos de que não devemos dar atenção à
malícia dos homens, mas contemplar neles a imagem de Deus, a qual, por sua excelência
e dignidade, pode mover-nos a amá-los e pode apagar todos os vícios que poderiam
fazer-nos desviar do caminho que nos cabe seguir
15. Só o amor nos habilita a mortificar-nos
Então, essa mortificação só terá lugar em nós quando exercermos vera caridade. O que
não consiste em apenas cumprir todos os deveres da caridade, mas em cumpri-los
movidos pelo verdadeiro amor. Pois pode acontecer que alguém faça ao seu próximo tudo
o que deve quando se trata do cumprimento meramente exterior do dever, e, todavia estar
bem longe de cumprir o seu dever movido pela razão legítima. Vê-se muito isso, pois há
aqueles que querem parecer muito generosos e, todavia, não dão coisa alguma sem
lançar em rosto, seja pelo semblante altivo, seja por palavra soberba. Atualmente
chegamos a esta desgraça, que a maioria não dá nenhuma esmola senão acompanhada
de algum insulto. Perversidade intolerável, mesmo entre pagãos.
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Pois bem, o Senhor exige dos cristãos coisa muito diferente do que semblante alegre e
amável, para tornar a sua beneficência simpática graças a um tratamento humanitário e
terno. Primeiro, devem colocar-se no lugar da pessoa que tem necessidade de ajuda;
segundo, que tenham dó da sua sorte como se eles próprios estiverem passando por
essa situação; e, terceiro, que se deixem mover pelo mesmo sentimento de misericórdia
ao ajudá-la, como se eles próprios fossem os necessitados socorridos. Quem tiver tal
disposição de ânimo na ajuda que prestar a seus irmãos, não somente não contaminará a
sua beneficência com qualquer laivo de arrogância ou censura, mas também não
menosprezará a pessoa beneficiada por sua indigência, nem quererá subjugá-la, como se
ela lhe devesse obrigação.
A verdade que não insultamos nenhum dos nossos membros enfermos, por cujo
restabelecimento todo o resto do corpo trabalha, e nem por isso achamos que ele fica
especialmente obrigado aos demais membros pelo empenho destes em socorrê-lo.
Porquanto o que os membros se comunicam uns aos outros não deve ser considerado
como coisa gratuita, mas, antes, como pagamento e cumprimento do que a lei da
natureza exige.
Daí decorre também que venceremos outro aspecto, pois não nos consideraremos livres
e com as contas pagas por termos feito o nosso dever nisto ou naquilo, como geralmente
se pensa. Porque o rico acredita que, depois de ter dado algo do que possui, pode dar-se
por satisfeito, e então negligencia todas as outras responsabilidades, como se não lhe
dissessem respeito. Ao contrário, cada um deverá considerar que é devedor ao próximo
de tudo o que tem e de tudo que está em seu poder, e que não deve limitar a sua
obrigação de praticar o bem, a não ser quando já não tenha recursos para isso; estes, até
onde podem estender-se, devem estar subordinados ao que manda a caridade.
16. Abnegação ou renúncia com vistas a Deus
Tratemos agora da outra parte da abnegação ou renúncia de nós mesmos, agora com
relação a Deus. Já tratamos disso aqui e ali; seria supérfluo repetir tudo o que já foi dito.
Será suficiente mostrar como essa disposição nos leva à paciência e à mansidão.
Consideremos: primeiramente, enquanto procuramos meios de viver ou gozar paz e
comodidade, a Escritura sempre nos faz voltar a ver a necessidade de entregar a Deus
todo o nosso ser e tudo quanto temos, sujeitando a ele os nossos afetos e os sentimentos
do nosso coração, para que ele os domine e os dirija soberanamente. Há em nós uma
intemperança furiosa e uma cobiça desenfreada que nos levam a desejar crédito e
honras, a buscar posições de poder, a acumular riquezas e a juntar tudo quanto nos
parece conveniente para uma vida de pompa e de magnificência. Por outro lado,
tememos e detestamos pavorosamente a pobreza, a pequenez e a ignomínia; por isso
fugimos delas o mais que podemos. Por essa causa se vê quanta inquietude de espírito
padecem todos aqueles que procuram dirigir a sua vida conforme o seu próprio conselho,
quantos meios tentam e de quantas maneiras se atormentam, para chegar a uma
situação para a qual os levam a sua ambição e a sua avareza, a fim de evitarem a
pobreza e uma condição inferior.
17. A bênção de Deus nos basta
Dado o que acima foi dito, para que os crentes não se deixem prender por esses laços,
terão que seguir este caminho: primeiro, não devem desejar nem esperar nem imaginar
outro meio de prosperar senão graças à bênção de Deus, é, por conseguinte, nela devem
firmar-se, apoiar-se e descansar. Pode parecer que a carne é em si suficiente para levar a
efeito a sua intenção, quando aspira a honras e riquezas, confiante em que as pode obter
por seu engenho e arte, ou quando ela faz esforços para isso, ou quando é ajudada pelo
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favor dos homens. Entretanto, o certo é que todas essas coisas de nada valem e nenhum
proveito nos darão, não por nosso engenho nem por nosso labor, a não ser que o Senhor
os torne profícuos. Ao contrário, unicamente sua bênção achará caminho através de
todos os obstáculos para nos dar bom êxito em todas as coisas.
Além disso, ainda quando pudéssemos adquirir honras e fortuna sem buscar para isso a
bênção de Deus, pois, constantemente vemos os ímpios conseguirem grandes riquezas e
alta posição, todavia, uma vez que nas coisas sobre as quais pesa a maldição de Deus
não se pode experimentar nem uma só gota de felicidade, qualquer coisa que obtivermos
nos fará infelizes, a não ser que a bênção de Deus esteja sobre nós. Ora, seria uma
loucura querer algo que nos pode infelicitar.
18. A bênção de Deus é o segredo da moderação e de um viver profícuo e benéfico
Portanto, se acreditamos que o único meio de prosperar é a bênção de Deus, e que sem
ela nos sobrevirão misérias e calamidades, o que devemos fazer é deixar de desejar com
sofreguidão riquezas e honras e de pôr a nossa confiança em nosso engenho ou em
nossos esforços ou no favor dos homens ou na sorte. E mais, devemos pôr sempre os
nossos olhos em Deus para que, sob a sua direção, sejamos conduzidos à condição na
qual lhe pareça bem colocar-nos.
Disso resultará que não procuraremos conseguir riquezas nem usurpar honras a torto e a
direito, pela violência, por trapaça e por outros meios escusos, mas só buscaremos obter
o que não nos faça culpados diante de Deus. Porque, haverá quem espere que a bênção
de Deus o ajude a cometer fraudes, rapinas e outras maldades? É, assim como a bênção
divina favorece os que são retos em seus pensamentos e em suas obras, assim também
o homem que a deseja deve manter-se longe de toda iniqüidade e de toda má cogitação.
Acresce que a submissa confiança na bênção de Deus nos servirá de freio para nos
conter, impedindo que nos inflamemos de uma desordenada cobiça por riquezas e que
labutemos ambiciosamente pela nossa exaltação. Pois, que impudente ousadia será
pensar que Deus nos ajudará a obter coisas que desejamos contrariamente à sua
Palavra! Longe de nós pensar que Deus favorece com a graça da sua bênção algo que
ele amaldiçoa com a sua própria boca!
Finalmente, quando as coisas não sucederem conforme o nosso desejo e a nossa
esperança, a presente consideração nos impedirá de deixar-nos arrastar pela impaciência
e de odiar a nossa situação. Porque saberemos que fazê-lo seria murmurar contra Deus,
por cuja vontade são distribuídas as riquezas e a pobreza, o desprezo e as honras.
Em suma, todo aquele que descansar na bênção de Deus, como acima foi dito, não
desejará obter por meios escusos e maus nenhuma das coisas que em geral os homens
cobiçam desenfreadamente, pois sabe que esses meios não lhe darão nenhum real
proveito. E se lhe advier alguma prosperidade, não a imputará aos seus esforços
diligentes, nem à sua capacidade, nem à sorte, mas reconhecerá agradecido que lhe vem
de Deus.
Por outro lado, se ele não consegue progredir, e até regride, enquanto outros conseguem
tudo o que querem, não deixará por isso de suportar com mais paciência e equilíbrio a
sua pobreza do que a suportaria um ímpio por não alcançar as riquezas medíocres que
almeja, que a final não são tão grandes que valha a pena desejá-las. Porque o crente fiel
desconsidera com maior tranqüilidade todas as riquezas e honras do mundo porque tem o
consolo de saber que todas as coisas de que decorrem da ordenação e direção de Deus
visam à sua salvação.
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Começou a agir dessa forma com Cristo, seu Filho, e depois com todos os demais.
Porque, apesar de ser ele seu Filho amado, em quem sempre se agradou, vemos que
não foi tratado com brandura concessões indulgentes neste mundo. A tal ponto que se
pode dizer que ele não somente padeceu constante aflição, mas também que toda a sua
vida foi uma espécie de cruz perpétua. Como, então, vamos querer isentar-nos da
condição à qual se sujeitou Cristo, nossa Cabeça? Ainda mais quando nos lembramos de
que se sujeitou a isso por nossa causa, para dar-nos exemplo de paciência! Por isso o
apóstolo anuncia que Deus predestinou todos os seus filhos para esta finalidade: que se
façam semelhantes a Jesus Cristo.
Desse fato nos advém uma singular consolação. É que, sofrendo todas as misérias em
geral descritas como coisas adversas e más, co-participemos da cruz de Cristo para que,
assim como ele passou por um abismo repleto de todos os males para entrar na glória
celestial, assim também nós cheguemos lá por meio de muitas tribulações. Noutra
passagem o apostolo Paulo nos ensina que quando experimentamos certa participação
nas aflições de Cristo, ao mesmo tempo nos é dado captar o poder da sua ressurreição. E
que quando participamos da Sua morte, preparamo-nos dessa maneira para chegar à sua
eternidade gloriosa. Quão grande é a eficácia desta realidade, para suavizar todo o
amargor que poderia haver na cruz – ter a convicção de que, quanto mais formos afligidos
e quanto mais misérias sofrermos, mais certos e seguros estaremos de que estamos
unidos a Cristo! Pois quando temos real comunhão com ele, as nossas adversidades não
somente se tornam bênçãos, mas também nos ajudam grandemente a progredir em
nossa salvação!
21. A cruz assinala marcantemente a presença da Soberana graça de Deus em nossa
vida
Lembremo-nos de que o Senhor Jesus não tinha necessidade nenhuma de levar a cruz e
de sofrer tribulações, exceto para atestar e comprovar sua obediência a Deus, seu Pai.
Mas por muitas razões nos é necessário sofrer perpétua aflição nesta vida.
Primeiro, como somos por demais inclinados por natureza a nos exaltar e atribuir tudo a
nós mesmos, se a nossa fraqueza não for demonstrada de maneira patente, depressa
avaliaremos exageradamente o nosso poder e virtude e não duvidaremos de que vamos
permanecer invencíveis frente a todas as dificuldades que se nos anteponham. Daí
sucede que nos elevamos firmados numa vã e estulta confiança na carne, o que a seguir
nos incita a orgulhar-nos contra Deus, como se a nossa capacidade fosse suficiente para
nós, sem a sua graça.
Não há melhor meio pelo qual ele põe abaixo a nossa arrogância do que mostrar-nos
experimentalmente como somos fracos e frágeis. Por isso ele nos aflige, quer nos
ocasionando afrontas vergonhosas, quer pela pobreza, ou doença, ou perda de parentes,
quer por outras calamidades, de tal modo que logo sucumbimos, visto que não temos
forças para resistir. Então, humilhados e agora humildes, aprendemos a implorar seu
poder, a única força que nos habilita a subsistir e a manter-nos firmes sob o peso desses
tão pesados fardos.
Até os mais santos, embora reconheçam que a sua firmeza se funda na graça do Senhor
e não em seu próprio poder, ainda assim tenderiam a confiar demais em sua força e em
sua constância, se o Senhor não os conduzisse a um conhecimento mais correto sobre si
mesmos, provando-os pela cruz. E, no caso de se jactarem, concebendo a seu próprio
respeito uma opinião de firmeza e perseverança quando tudo lhes vai bem, depois de
passarem por alguma tribulação reconhecem que aquilo não passava de hipocrisia.
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Temos aí, pois, a maneira pela qual os santos são advertidos de sua fraqueza por tais
provações, para que aprendam a humilhar-se e a despojar-se de toda perversa confiança
na carne e se rendam totalmente à graça de Deus. Então, havendo-se rendido, sentem a
presença do poder de Deus, no qual encontram satisfatório refúgio e fortaleza.
22. A cruz produz em nós perseverança e experiência
É o que o apóstolo quer dizer quando declara que “a tribulação produz perseverança; e a
perseverança, experiência”. Como o Senhor prometeu aos que nele crêem assisti-los nas
tribulações, eles experimentam a realidade dessa promessa quando perseveram com
paciência, sustentados por sua mão, cientes de que não o poderiam fazer por suas
forças. A perseverança é, pois, uma prova de que Deus verdadeiramente presta o socorro
que lhes prometeu, sempre que se faz necessário. Com isso é confirmada e fortalecida a
sua esperança, considerando que seria uma grande ingratidão não confiar na veracidade
futura de Deus, tendo já sido comprovada a sua firmeza e imutabilidade.
Já vemos aí, então, quantos benefícios nos provêm da cruz, como numa corrente
ininterrupta. Destruindo a falsa opinião que naturalmente concebemos sobre a nossa
própria virtude e capacidade, e desmascarando a nossa hipocrisia, que nos seduz e nos
engana com suas lisonjas, a cruz elimina a confiança em nossa carne, confiança assaz
perniciosa. Depois, havendo-nos humilhado dessa forma, ensina-nos a descansar em
Deus que, sendo como é o nosso real fundamento, não nos deixa sucumbir nem
desanimar. Dessa vitória segue-se a esperança. Pois visto está que o Senhor, tendo
cumprido o prometido, estabelece como certa e segura a sua veracidade quanto ao
futuro.
Com certeza, ainda que só houvesse essas razões, vê-se quão necessário é o exercício
da cruz. Porquanto não é pequena bênção que o nosso amor a nós mesmos, amor que
nos cega, seja extirpado, para que reconheçamos adequadamente a nossa debilidade;
que tenhamos bom discernimento dela para aprendermos a desconfiar de nós mesmos;
que, desconfiando de nós mesmos, ponhamos a nossa confiança em Deus; que nos
apoiemos em Deus com segura e firme confiança, de coração, para que, mediante seu
auxilio, perseveremos vitoriosos até o fim; que permaneçamos firmes em sua graça, e
assim saibamos e reconheçamos que ele é verdadeiro e fiel em suas promessas; e que
tenhamos como certas e manifestas as suas promessas, para que dessa forma a nossa
esperança seja confirmada e fortalecida.
23. A cruz prova a nossa paciência e nos ensina a obediência
O Senhor tem ainda outro motivo para afligir os seus servos, qual seja, provar sua
paciência e ensinar-lhes a obediência. Não que eles possam ter outra obediência além da
que lhes é dada; agrada ao Senhor, porem, mostrar e atestar as graças que dá aos seus
que nele crêem, a fim de que não permaneçam ociosos e fechados em si mesmos. Por
isso, quando ele fala da virtude da perseverança com que dotou seus servos, declara que
prova a paciência deles. Disso procedem as expressões referentes ao fato de que ele
provou Abraão e, viu sua piedade; visto que não se negou imolar seu filho para agradar
ao Senhor. Pela mesma razão o apóstolo Pedro declara que a nossa fé não é menos
provada pela tribulação que o ouro pelo fogo.
Ora, quem negará que é de toda conveniência que um dom tão excelente como esse,
dado pelo Senhor aos seus servos, seja posto em uso, e assim se torne notório e
manifesto? De outro modo, os homens jamais o apreciariam como convém. Ora, se o
Senhor tem justa razão para dar importância às virtudes que colocou em seus servos,
para que as exercitem e não fiquem fechados em si mesmos tornando-as inúteis, vemos
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que não é sem motivo que ele envia aflições, sem as quais seria nula sua paciência ou
sua perseverança.
Digo também que a cruz ensina aos cristãos a paciência, pois assim aprendem a viver,
não para agradar os desejos do seu coração, mas para agradar a Deus. É evidente que
se todas as coisas lhes sucedessem como gostariam, nunca saberiam o que é seguir a
Deus. Note-se que Sêneca, filósofo pagão, disse que antigamente, quando se queria
exortar alguém a suportar pacientemente as adversidades, costuma-se citar este
provérbio: “É necessário seguir a Deus”. Com isso os antigos queriam dizer que o homem
se submete real e finalmente ao jugo do Senhor quando se deixa castigar e
voluntariamente oferece mãos e costas aos seus açoites. Ora, se é razoável que nos
façamos obedientes em todas as coisas ao Pai celestial, não devemos negar-nos a que
ele nos acostume por todos os meios possíveis a prestar-lhe obediência.
24. A cruz freia a intemperança da nossa carne
Todavia, não enxergaríamos a grande necessidade de prestar-lhe esta obediência, se não
considerássemos quão grande é a intemperança da nossa carne, predisposta a arrojar de
nós o jugo do Senhor, tão logo se vê tratada com brandura. Acontece com ela o que se dá
com cavalos fogosos que, depois de serem deixados por algum tempo ociosos e
descansados no estábulo, tornam-se indomáveis e desconhecem o seu dono, a quem
antes se sujeitavam. Em resumo, o que o Senhor lamentava haver acontecido com o povo
de Israel vê-se costumeiramente em todos os homens – que, engordando muito pelo trato
generoso, voltam-se contra aquele que os tratou.
Certo é que convinha que a generosidade de Deus nos levasse a considerar e amar a sua
bondade. Ma, visto que a nossa ingratidão é tão grande que, ao sermos beneficiados pela
indulgência de Deus, somos mais corrompidos do que estimulados à prática do bem, é
mais que necessário que ele nos freie com rédeas firmes e sempre nos mantenha sob
algum tipo de disciplina, para que não deixemos atravessar a nossa petulância. Por essa
causa, para que não fiquemos orgulhosos por uma grande abundância de bens, para que
as honras não nos tornem arrogantes, e para que os ornamentos do corpo e da alma não
gerem em nós alguma forma de atrevimento insolente, o Senhor intervém e impõe ordem,
refreando e dominando, com o remédio da cruz, a loucura da nossa carne. E isso ocorre
de diversas maneiras, conforme Deus considere benéfico e salutar em cada caso. Porque
nem todos estamos tão enfermos como outros, nem padecemos o mesmo tipo de
enfermidade. Portanto, não é necessário aplicar o mesmo tipo de cura a todos. Esse é o
motivo pelo qual Deus faz uso de diferentes tipos de cruz, a uns e a outros. Todavia,
como ele quer prover à saúde de todos, aplica remédios mais suaves a uns, e mais
ásperos e rigorosos a outros, sem abrir nenhuma exceção, visto que sabe que todos
estão enfermos.
25. A cruz previne com vistas ao futuro e corrige o passado
Além do que foi dito, é necessário que o nosso bondoso Pai não somente trate
preventivamente da nossa fraqueza, com vistas ao futuro, mas também que corrija as
nossas faltas passadas, a fim de nos manter na obediência a ele. Por isso, assim que nos
sobrevenha alguma aflição, devemos recordar a nossa vida passada. Procedendo dessa
forma, certamente veremos que cometemos alguma falta merecedora do castigo
recebido, se bem que não devemos considerar o reconhecimento do nosso pecado como
o fator principal de estímulo à paciência e à perseverança. Pois a Escritura põe em
nossas mãos uma consideração muito melhor dizendo que dessa maneira “somos
disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo”.
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buscando nele refugio e forças. Se nos fazem afrontas e nos humilham, mais exaltados
somos no Reino de Deus. Se morremos, abre-se para nós o portal da vida bem-
aventurada.
28. Sejamos gratos a Deus pela superior consolação espiritual
Não seria uma vergonha considerarmos menos valiosas as coisas que Deus tanto estima,
comparadas com os prazeres deste mundo, que depressa se desfazem como fumaça? E
como a Escritura nos anima e nos consola em todas as afrontas e calamidades a que
somos submetidos em nossa luta para defender a justiça, seremos muito ingratos. se não
as aceitarmos pacientemente e com bom ânimo. Especialmente tendo em vista que,
acima de todas as demais, essa espécie de cruz é própria dos crentes fiéis, visto que por
ela Cristo quer ser glorificado neles, como diz o apóstolo Pedro.'
Considere-se, porém, que Deus não exige de nós uma tão jovial alegria" que seja capaz
de eliminar em nós todo sentimento de amargura e dor. Nesse caso, a paciência e a
perseverança dos santos não teriam nenhum valor - numa cruz sem tormentos e sem
dores, não sentindo eles nenhuma angústia quando perseguidos de alguma forma. Assim,
se a pobreza não lhes fosse dura e amarga, se na doença não sentissem nenhum
tormento, se não se sentissem feridos pela ignomínia, se a morte não lhes causasse
nenhum horror, que força ou moderação haveria em desprezar todas essas coisas? Mas,
como cada uma delas traz consigo um amargor com o qual naturalmente faz doer o
coração de todos nós, nisso se demonstra a força do homem crente e fiel, pois, sendo
tentado por tais agruras e tendo que enfrentar lutas tremendas, todavia, resistindo a tudo,
sobrepuja e vence tudo isso." Dessa maneira se manifesta a sua paciência - se, sendo
espetado por tal sentimento, não obstante se refreia como que pelas rédeas do temor de
Deus, para não suceder que, deixando de lado o recato e a modéstia, cometa excessos.!
E então se vêem o seu gozo e a sua alegria em que, embora ferido pela tristeza e pela
dor, aquiesce e se tranqüiliza sob a consolação espiritual de Deus.'
29. O combate cristão: submisso e dinâmico
Este combate, que os crentes travam contra o sentimento natural de dor, sendo marcado
pela paciência e pela moderação, é muito bem descrito por estas palavras do apóstolo
Paulo: "Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não
desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos".
Vemos que levar a cruz pacientemente não é urna atitude estulta nem significa não sentir
dor nenhuma, como os filósofos estóicos tolamente descreviam no passado o homem
magnânimo, que, despojando-se da sua humanidade, não ligava nem para a adversidade
nem para a prosperidade, nem se havia tristeza ou alegria. ou, melhor dizendo, era
destituído de sentimento, como uma pedra. E que proveito tiveram dessa tão elevada"
sabedoria? Na verdade pintaram um simulacro ou uma falsa representação da paciência,
coisa que jamais se viu nem se poderá ver entre os homens. O que de fato fizeram foi
que, pretendendo ter uma paciência tão admirável. eliminaram o uso da verdadeira
paciência" entre os homens. I
Existem hoje em dia cristãos semelhantes àqueles estóicos, que consideram um mal. não
somente gemer e chorar, mas também entristecer-se e preocupar-se ou mostrar
solicitude. Essas opiniões anti-sociais em geral procedem de pessoas ociosas. que,
dedicando-se. mais a especular que a pôr mãos à obra, só podem produzir fantasias
como essa.
30. Ensino e exemplo de Jesus Cristo
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De nossa parte, nada temos com essa dura e rigorosa filosofia, condenada pelo Senhor
Jesus não só por palavras, mas também por seu exemplo. Pois ele mesmo gemeu e
chorou, tanto por seus próprios sofrimentos como pelos de outros. e não ensinou coisa
diferente aos seus discípulos, como se vê nestas palavras: "Em verdade, em verdade eu
vos digo que chorareis e vos lamentareis. e o mundo se alegrará".! E para que ninguém
visse nenhum mal nisso, declarou que são bem-aventurados os que choram.' O que não é
de admirar, porque, se devêssemos condenar toda sorte de lágrimas, que juízo faríamos
do Senhor Jesus. de cujo corpo brotaram gotas de sangue? Se vamos julgar como
infidelidade ou falta de fé toda manifestação de temor, como qualificaremos o tremendo
horror' que se apoderou dele? Como aprovaremos esta sua confissão: "A minha alma
está profundamente triste até à morte"?
31. A paciência e a perseverança cristãs coadunam-se com a prazerosa aceitação da
vontade de Deus
Quis dizer essas coisas para impedir que os bons de coração se desesperem, e para que
não renunciem ao exercício da paciência por não poderem se desfazer do sentimento
natural de dor.g Agora, o que acontece com os que consideram, paciência urna tolice e
que confundem o homem forte e corajoso com um tronco de árvore, é que eles ficam
completamente desanimados quando é necessário que demonstrem paciência. A
Escritura, ao contrário, louva a paciente tolerância dos santos quando, sendo
tremendamente afligidos pela dureza dos seus males, não se deixam abater nem
desfalecer; quando são espetados por grande amargura e, contudo, demonstram gozo
espiritual; c quando, pressionados por forte angústia, nem por isso perdem o alento,
regozijando-se na consolação de Deus. Entretanto, isto lhes causa repulsa: que lhes fuja
o afeto natural e que tenham horror de tudo o que lhe é contrário. Por outro lado, a
piedade cristã os impulsiona a obedecer à vontade de Deus, mesmo em meio a estas
dificuldades. Sobre a repulsa acima referida Jesus Cristo se expressou quando disse ao
apóstolo Pedro: "Em verdade, em verdade te digo que, quando eras mais moço, tu te
cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás
as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres" [Jo 2 I. I 8). Não é nem um
pouco provável que o apóstolo Pedro, que haveria de glorificar a Deus com sua morte,
tenha sido arrastado a isso à força e contra o seu querer, pois, se fosse assim, o seu
martírio não mereceria muito louvor. Todavia, ainda que obedecesse ao mandado de
Deus com ânimo forte e alegre, considerando que ainda não se havia despojado da sua
humanidade, ficou dividido por um duplo desejo. Porque, enquanto pensava na morte
cruel que deveria sofrer, enchia-se de horror, e bem que gostaria de escapar. Por outro
lado, quando considerava que a essa morte era chamado por ordem de Deus, dispunha-
se a apresentar-se a ela voluntariamente, e até com alegria, pondo sob seus pés todo o
temor. Portanto, se queremos ser discípulos de Cristo, devemos empenhar-nos no sentido
de que o nosso coração se encha de tal reverência e obediência a Deus que nos habilite
a dominar e subjugar todos os sentimentos contrários ao seu beneplácito." Decorre disso
que, em qualquer tribulação que estejamos, mesmo na maior aflição de alma que seja
possível alguém sofrer, não deixaremos de perseverar em nossa paciência. As
adversidades sempre nos causarão agrura e sofrimento. Por essa causa, quando formos
afligidos por enfermidades, gemeremos e choraremos, e desejaremos ser curados;
quando formos oprimidos pela indigência, sentiremos alguns aguilhões nascidos da
perplexidade e da preocupação. Semelhante mente, a humilhação, o desprezo e todas as
formas de injúria que nos causem nos farão sentir dor no coração. Quando morrer algum
parente ou amigo. não deixaremos de derramar lágrimas por ele, atendendo à lei da
natureza. Mas sempre chegaremos a esta conclusão: "Como. porém. Deus o quis,
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que devemos render graças a Deus - porque nos criou e nos colocou neste mundo;
porque nos sustenta e nos preserva nele; e porque nos supre de tudo quanto nos é
necessário para a nossa subsistência na terra.
Acrescente-se esta razão muito mais importante: considerarmos que Deus aqui nos
prepara para a glória do seu Reino. Porque outrora ele ordenou que aqueles que hão de
receber a coroa no céu, lutem primeiro na terra, para que não tenham a vitória final
enquanto não enfrentarem as dificuldades do combate cristão e de terem obtido a vitória.
Ainda outra razão tem seu peso. É a seguinte: começamos a apreciar aqui o dulçor da
sua benignidade, demonstrada por suas bênçãos, e dessa forma somos incitados a
esperar e a desejar a revelação plena e completa. Após havermos fixado esta verdade,
qual seja, que a vida terrena é um dom da clemência divina, pelo qual ficamos obrigados
a Deus, a quem devemos demonstrar a nossa gratidão, chega então o momento de
condescendermos em considerar a infeliz condição desta existência, para que nos
desvencilhemos' desta grande cobiça à qual, como já demonstramos, somos
naturalmente propensos. E tudo quanto tirarmos do amor desordenado por esta vida, é
necessário transferir ao amor pela vida celestial.
36. Nem se compara a gloria futura com a vida na terra!
Reconheço que, conforme o sentir humano, julgaram bem os que consideravam como o
primeiro e supremo bem não nascer, e o segundo, morrer quanto antes. Porque, como
eram pagãos, destituídos da luz de Deus e da religião verdadeira, que poderiam ver na
vida terrena senão miséria e horror?d Igualmente, não é sem motivo que os citas.
choravam o nascimento dos seus filhos e, quando morria algum dos seus pais,
alegravam-se e realizavam festa solene; mas isso não lhes aproveitava nada. Porque,
como lhes faltava a verdadeira doutrina da fé, não viam como algo que em si não dá
felicidade nem é desejável torna-se em segurança e paz para os crentes. Por isso o
desespero era a conclusão a que chegavam.
Então, que os servos de Deus, ao considerarem esta vida mortal, vendo que só tem a
oferecer miséria, busquem sempre como sua meta dedicar-ser mais e com mais
disposição a meditar na vida futura e eterna. Quando as compararem, não somente
estarão capacitados a negligenciar a primeira, mas também a desprezá-la, e a não lhe
dedicar nenhuma estima em detrimento da segunda. Porque. se o céu é a nossa pátria,
que outra coisa é a terra, senão exílio e desterro?" Se partir deste mundo é entrar na
verdadeira vida, que outra coisa é a terra senão um sepulcro? E demorar-se nele, que
outra coisa é senão soterrar-se na morte? Se a liberdade consiste em ficar livre deste
corpo, que outra coisa é o corpo senão uma prisão? Se fruir a presença de Deus é a
felicidade suprema. não é uma tremenda infelicidade não fruí-Ia? Ora. é certo que
enquanto estivermos neste corpo. estaremos distantes' de Deus.2. .' Por tudo isso. se
compararmos a vida terrena com a vida celestial, não haverá dÚvida de que aquela pode
ser desprezada e considerada pouco menos que esterco. Lembremo-nos, porém. de que
não devemos odiá-la, exceto no que ela nos retém em sujeição ao pecado. Se bem que
não é próprio imputar-lhe essa culpa.
O caso é que, diga-se o que se disser, apesar do cansaço ou fastio que acaso sintamos
deste mundo, vivamos de maneira agradável a Deus e cuidemos para que o nosso tédio
não nos leve à murmuração e à impaciência.' Porque é como se estivéssemos num local
de temporada no qual o Senhor nos colocou e onde devemos permanecer até quando ele
nos chamar de volta. O apóstolo Paulo lamenta o fato de estar preso ao corpo por mais
tempo do que ele gostaria. e suspira de ardente desejo de libertação. Todavia, em sua
obediência à vontade de Deus. declara que está pronto a uma coisa e à outra, pois se
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reconhece devedor a Deus e se dispõe a glorificar o seu nome, quer pela vida quer pela
morte.? Ora, cabe ao Senhor determinar o meio pelo qual deve ser glorificado. Por isso
nos convém viver e morrer para ele, deixando aos cuidados do seu beneplácito tanto a
nossa vida como a nossa morte. Todavia, façamo-lo de modo que desejemos. sempre a
nossa morte e nela meditemos constantemente, desprezando esta vida mortal com vistas
à imortalidade futura, e estando dispostos a renunciar à vida presente sempre que isso
aprouver ao Senhor, considerando que ela nos mantém sujeitos à escravidão do pecado.
37. Desejar e esperar a vida eterna é infinitamente melhor do que temer a morte
Uma coisa que mais parece um prodígio monstruoso é o fato de que muitos que se
gabam de serem cristãos, em vez de desejarem a morte, têm horror a ela. Mal ouvem
falar dela, tremem de medo, como se fosse a maior desgraça que lhes pudesse ocorrer.
Não é de se estranhar que o nosso sentir natural se abale e se espante quando ouvimos
que a nossa alma deverá separar-se do corpo. Mas é intolerável a idéia de que não haja
no coração do cristão suficiente luz para habilitá-la sobrepujar e dominar esse temor,
como é igualmente certo haver para ele uma consolação muito maior. Porque, se
considerarmos que o tabernáculo deste corpo, que é inseguro, maculado pelo mal,
corruptível, de nulo valor real e sujeito à decomposição, será desfeito e destruído para
depois ser restaurado e revestido de uma glória perfeita, segura, incorruptível e celestial,
como a fé não nos constrangerá a apetecer ardentemente o que a natureza repudia e
evita com horror? Se considerarmos que a morte nos livra de um miserável exílio para
então vivermos em nosso país, sim, em nossa pátria celestial, não haveremos de
conceber desse fato uma singular consolação?
Mas alguém objetará que tudo o que existe deseja permanecer como é. Reconheço isso.
Por isso mesmo eu sustento que devemos aspirar à imortalidade futura, onde teremos
uma condição inabalável, coisa que não se vê em parte alguma na terra. Essa é a razão
pela qual os animais inferiores, e mesmo a criação inanimada, até mesmo as árvores e as
pedras, possuindo algo como um senso da sua vaidade e da sua corrupitibilidade,
aguardam "em ardente expectativa” o Juízo, esperando a sua redenção "para a liberdade
dos filhos de Deus". E muito mais nós, que primeiro temos algo da luz natural e, além
disso, somos iluminados pelo Espírito de Deus, em nosso caso, não elevaremos os
nossos olhos para além e acima da podridão terrena?
Mas não é minha intenção discutir longamente aqui sobre tão grande perversidade. E, de
fato, já no início declarei que não queria tratar aqui de cada matéria na forma de
exortação, Aconselho aos de ânimo fraco que leiam o livro de Cipriano, ao qual ele
intitulou Sobre a Mortalidade, não seja o caso de que mereçam que os remeta aos
filósofos, os quais demonstraram tal desprezo pela morte que os encheria de vergonha.
Contudo, atenhamo-nos a esta máxima: ninguém progrediu muito na escola de Cristo
senão aquele que espera com gozo e alegria o dia da sua morte e a ressurreição fina\.
Porque o apóstolo descreve os crentes referindo-se a esse marco e meta, e a Escritura
sempre nos faz lembrar isso, quando nos fala do tema da alegria cristã. "Exultai e erguei a
vossa cabeça: porque a vossa redenção se aproxima". I Com que propósito, rogo ao leitor
que me diga, vamos transformar em tristeza e assombro o que para Jesus Cristo é próprio
para nos fazer regozijar? E se há de ser assim, por que nos gloriamos de ser seus
discípulos? Retomemos, pois, ao bom senso, c, por maior repulsa que isso cause à nossa
carne, em sua concupiscência e cegueira estulta, esperemos a vinda do Senhor como
algo verdadeiramente maravilhoso. E não nos limitemos a desejá-la, mas tomara
passemos a gemer e a suspirar por ela. Porque ele virá
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redentoramente e nos introduzirá na herança da sua glória, depois de nos tirar deste
abismo de males e misérias sem conta.
38. Assumamos nosso papel de ovelhas e cordeiros do cordeiro
É necessário que todos os crentes, enquanto vivem na terra, sejam como ovelhas
destinadas ao matadouro, para se fazerem semelhantes a seu Chefe e Cabeça. Jesus
Cristo. Pois seriam desesperadamente infelizes,~ se não dirigissem seu pensamento para
o Alto, para suplantarem tudo o que há no mundo e para que a sua atenção e o seu
interesse transcendam as coisas da presente vida.
Muitíssimo melhor será se os crentes elevarem seus pensamentos para além das coisas
terrenas, mesmo quando virem florescer os ímpios com suas riquezas e honras, gozando
paz e tranqüilidade e vivendo em meio a prazeres e pompas. E até quando forem tratados
pelos ímpios de maneira desumana, sofrerem ultrajes, forem oprimidos ou afligidos por
toda sorte de afrontas humilhantes, pois, ainda assim, com os pensamentos postos no
Alto, não lhes será difícil consolar-se em meio a todos esses males. Porque terão sempre
diante dos seus olhos o dia final dia em que eles sabem que o Senhor vai ajuntar todos os
que nele crêem, recoIhendo-os ao repouso do seu Reino, vai enxugar as lágrimas dos
seus olhos, vai dar-Ihes uma coroa de glória e vestes de jubilosa alegria, vai saciá-los
com o dulçor indescritível dos prazeres celestiais e exaltá-los às alturas da sua glória; em
suma, sabem que ele os fará participantes da sua própria felicidade. Ao contrário, lançará
à ignomínia extrema os ímpios que são enaltecidos na terra, mudará seus prazeres em
tormentos horríveis, seu riso e alegria em choro e ranger de dentes, seu repouso e
tranqüilidade em assombrosa aflição de consciência; em suma, ele os lançará no fogo
eterno e os colocará em sujeição aos crentes, que por eles foram maltratados com tanta
maldade.
Certamente nisso está o nosso único consolo. Se nos privarem dele, cairemos no
desânimo, ou buscaremos afago e mel em consolações vãs e inúteis, que serão a nossa
ruína. Pois o próprio profeta confessou que vacilou, que os seus pés quase resvalaram,
enquanto prestava atenção na felicidade atual dos ímpios, e declarou que não pôde
resistir a isso enquanto não se pôs a contemplar. em sua meditação, o santuário de Deus;
isto é, enquanto não passou a considerar qual será o fim dos justos e o dos ímpios.
Para concluir com poucas palavras, afirmo que a cruz de Cristo triunfa definitivamente no
coração dos crentes contra o Diabo, a carne, o pecado, a morte e os ímpios quando
voltam seu olhar para contemplar o poder da sua ressurreição.
39. Ensino Bíblico sobre o uso dos bens Terrenos
Dentro deste mesmo assunto, a Escritura nos ensinar também que uso devemos fazer
dos bens terrenos. E não devemos negligenciar esta doutrina, visto que se relaciona com
a boa maneira de ordenar a nossa vida. Porque, se temos que viver, também precisamos
utilizar os recursos necessários à vida. Tampouco podemos abster-nos das coisas que
mais parecem atender ao bem viver e ao bem estar, que à necessidade. Por isso
precisamos estabelecer certa medida que nos permita usá-las em sã consciência, tanto
para satisfazer à nossa necessidade como para propiciar-nos prazer. Essa medida nos é
indicada por Deus, quando ele nos ensina que, para os seus servos, a vida presente é
como uma peregrinação rumo ao Reino celestial. Ora, se só devemos passar pela terra,
não há dúvida de que devemos usar os bens terrenos de tal maneira que nos ajudem a ir
avante em nossa caminhada e não a retardem.
Mas, visto que esta matéria pode provocar escrúpulos e corre o perigo de ser levada de
um extremo a outro, é de bom aviso firmar-nos em boa e sã doutrina que nos garanta
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uma solução segura. Houve bons e santos personagens que, entretanto, vendo que a
intemperança dos homens se extravasa desordenadamente e sem freios quando não se
lhe impõe severa restrição, querendo corrigir tão grande mal, proibiram aos homens o uso
de bens materiais. a não ser em caso de real necessidade. Eles fizeram isso por não
terem visto outro remédio. Seu conselho provinha de boa intenção, mas agiram de
maneira excessivamente rigorosa. Porque fizeram uma coisa muito perigosa, qual seja:
ataram aS consciências muito mais apertadamente do que as obriga a Palavra de Deus.
Por outro lado, hoje em dia há muitos que, na busca de qualquer pretexto para escusar
toda a intemperança no uso das coisas externas e para deixar a carne às soltas, a qual
está sempre pronta a se exceder, dão como estabelecido o seguinte artigo, com o qual
não posso concordar: não devemos impor nenhuma restrição à liberdade, e que cada um
faça uso dela conforme lhe permita a sua consciência e segundo lhe pareça lícito.
40. Regras ou princípios gerais da Escritura
Reconheço que não se pode nem se deve impor à consciência fórmulas e preceitos nesta
questão. Mas, visto que a Escritura nos dá regras gerais sobre o uso legítimo dos bens
temporais, por que não havemos de render-nos a esse critério? O primeiro ponto que se
deve adotar é que o uso dos dons de Deus não é mau se se limitar ao fim para o qual
Deus os criou e os destinou, visto que os criou para nosso bem, e não para nosso mal.
Portanto, ninguém terá diante de si um caminho mais certo e reto que aquele que
considerar diligentemente esse fim.
Ora, se considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos. veremos que ele não só
quis prover à nossa necessidade. mas também ao nosso prazer e recreação. Assim,
quanto ao vestuário, além de considerarmos a sua necessidade, devemos aplicar-lhes o
que se vê na relva. nas ervas. nas árvores e nas frutas. pois, sem contar as suas outras
utilidades e os benefícios que delas colhemos. Deus quis alegrar-nos a visão por sua
beleza e propiciar-nos ainda outro deleite ao aspirarmos seu agradável aroma. Se isso
não fosse certo. o profeta não contaria entre as bênçãos de Deus "o vinho, que alegra o
coração do homem" e "o azeite, que lhe dá brilho ao rosto"; a Escritura não faria a
menção que faz aqui e ali da benignidade de Deus, que faz todos esses benefícios ao
homem. E as próprias qualidades que todas as coisas têm por natureza mostram como
devemos alegrar-nos por elas, com que finalidade e até que ponto. E vamos considerar
que não é lícito sentir prazer em contemplar a beleza dada por Deus às flores? Vamos
pensar que o Deus, que lhes deu tão agradável odor. não quer que o homem se deleite
em aspirar o aroma que elas recendem?' Além disso. que dizer das cores variadas - com
variantes de matiz e graça? E Deus não revestiu de aspectos encantadores o ouro, a
prata, o marfim e o mármore. para que fossem mais nobres e mais preciosos que os
outros metais e as outras pe dras? Finalmente, não nos deu o Senhor muitíssimas coisas
que devemos valorizar e que, entretanto, não nos são necessárias?'
. Deixemos de lado, pois, essa filosofia desumana que, não concedendo ao homem
nenhuma utilização das coisas criadas por Deus, a não ser por sua real necessidade, não
somente nos priva sem razão do fruto lícito da benignidade divina, mas também, quando
aplicada, despoja o homem de todo sentimento e o toma insensível como uma acha de
lenha. Mas, por outro lado, é necessário que não menos diligentemente repudiemos a
concupiscência da nossa carne, que se extravasará sem medida, se for deixada sem
freios. Lembremo-nos de que, como eu já disse, há alguns que, sob o pretexto de
liberdade, concedem à carne tudo quanto ela deseja.
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que não suporta com paciência a pobreza mostra o vício contrário quando se vê na"
abundância.2 Explico isso dizendo que aquele que se envergonha de usar roupa rústica
ou modesta usará com vanglória vestes finas; quem não se contenta com uma
alimentação frugal atormenta-se com o desejo de melhor comida e não conseguirá conter-
se quando tiver mesa mais farta e rica; quem não souber viver em condição humilde ou
sem cargos públicos, não conseguirá evitar o orgulho e a arrogância, se passar a uma
situação socialmente honrosa.
Por isso tudo, todos quantos desejam servir a Deus com sinceridade aprendam do
exemplo do apóstolo, que sabia viver contente na abundância e na escassez; saibam,
pois. conduzir-se moderadamente na abundância e ter positiva paciência na pobreza.
44. Outra regra: reconhecer que somos mordomos ou administradores dos bens de Deus,
e agir como tais
A Escritura tem ainda outra regra, a terceira regra ou princípio geral. pela qual devemos
moderar o uso dos bens terrenos, regra da qual tratamos resumidamente quando falamos
sobre os preceitos do amor cristão. Porque a presente regra nos mostra que todas as
coisas nos foram dadas de tal maneira pela benignidade de Deus, e destinadas ao nosso
uso e proveito. que elas nos foram deixadas como em custódia, em depósito, e chegará o
dia em que deveremos prestar contas delas. Por isso devemos administrá-las tendo
sempre em mente esta sentença: teremos que prestar contas de tudo o que o Senhor nos
tem confiado. Também devemos pensar em quem nos vai chamar a contas: Deus. que
tanto nos exorta à abstinência, à sobriedade, à temperança e à modéstia, como
igualmente tem condenado à execração toda sorte de intemperança, orgulho, ostentação
e vaidade; por quem nenhuma administração será aprovada senão a que é regida pelo
amor; e quem com sua própria boca já condenou todas as formas de prazeres que levam
o coração do homem a afastar-se da castidade e da pureza. ou que embotam o seu
entendimento.
45. A nossa vocação deve ser levada em conta em tudo quanto planejamos e fazemos
É também nosso dever observar diligentemente que Deus ordena que cada um de nós
leve em conta a sua vocação em todas as ações da sua existência. Pois ele sabe muito
bem quanto o homem se inflama de inquietação e com que facilidade passa de um lado a
outro; como também sabe com quanta ambição e cobiça ele é solicitado a abarcar muitas
coisas ao mesmo tempo. Por isso, para que não compliquemos tudo por nossa
temeridade e loucura, ele ordenou a cada um o que fazer; estabelecendo distinções entre
posições ou estados e diversas maneiras de viver. E, para que ninguém ultrapasse
levianamente os seus limites, deu a tais maneiras de viver o nome de vocações. Portanto,
cada qual deve considerar o seu estado ou posição como um posto estabelecido por
Deus e no qual ele o colocou para que não fique girando e circulando inconsideradamente
para cá e para lá a vida toda.
Pois bem, essa distinção é tão necessária que segundo ela todas as nossas obras são
avaliadas por Deus, e muitas vezes de um modo contrário ao critério de julgamento
filosófico ou da razão humana. Tanto as pessoas comuns como os filósofos consideram
como o ato mais nobre e mais excelente que se poderia realizar é libertar o seu país da
tirania. Por outro lado, o homem de vida privada ou particular que se lance contra um
tirano é abertamente condenado pela voz de Deus. Contudo, não pretendo me demorar
aqui relatando todos os exemplos que se poderia citar a respeito.
É suficiente que saibamos que a vocação de Deus é como que um princípio e fundamento
baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas, e que aquele que
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não atentar para ela jamais encontrará o caminho reto e certo para desincumbir-se
devidamente do seu dever. Poderá por vezes fazer algo cuja aparência exterior inspire
louvor, mas não será aceito pelo trono de Deus, seja qual for o valor que os homens lhe
atribuam.
Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não
poderá haver clara consonância e correspondência entre as diversas partes da nossa
vida. Assim, será muito bem ordenada e dirigida a vida de quem a conduzir tendo em
vista esse propósito. Desse modo de entender e de agir nos resultará esta singular
consolação: não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante
de Deus e que não lhe seja preciosa, contanto que a realizemos no serviço e
cumprimento da nossa vocação.
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