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O DILEMA DO GORDO:

COMER OU NÃO COMER?


e outros contos
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
www.galenoalvarenga.com.br

Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo


Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
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dos esquizofrênicos, Política: Políticos e Corrupção, Problemas Familiares, Socie-
dade: Valores e Cultura, Uso de Drogas (Consumo)
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA

O DILEMA DO GORDO:
COMER COMER?
OU NÃO

e outros contos

BELO HORIZONTE - 2009


Copyright © by GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA

Supervisão Gráfica
Sofia Lopes

Edição Independente do Autor


Galeno Procópio M. Alvarenga

Imagens capa e contracapa


Galeno Procópio M. Alvarenga

Diagramação
Marcos de Oliveira Lara

Capa
Max Guedes (Estagiário)

Revisão
Maria Isabel da Silva Lopes

Impressão
Sografe

Contato c/ o Autor
galenoalvarenga@terra.com.br
www.galenoalvarenga.com.br

Alvarenga, Galeno Procópio de Mendonça


A473 O dilema do gordo: comer ou não comer?
E outros contos / Galeno Procópio de
Mendonça Alvarenga. – Belo Horizonte: Ed.
do autor, 2009.
215 p.

ISBN 978-85-907543-6-7

1.Literatura brasileira – Crônicas e ensaios.


I. Título.

CDD: B869.85
CDU: 869.0(81)-82
Elaborada por:
Maria Aparecida Costa Duarte
CRB/6-1047
Agradecimentos

Meus agradecimentos à
Maria Isabel da Silva Lopes, minha prezada
amiga, revisora e conselheira. Maria Isabel não
só leu meus seis livros, como também sugeriu,
com profissionalismo e competência, reparos
de possíveis erros relativos à estrutura do texto
(redação, digitação, etc.), Além de ter proposto,
com sabedoria, algumas modificações quanto
ao conteúdo, num e em outro lugar. Meu muito
obrigado pela sua enorme colaboração.
SUMÁRIO

O dilema do gordo: Comer ou não comer?..............................9


Diga não sem se sentir culpado..............................................13
Diante de uma provocação.....................................................17
Passando um telegrama..........................................................21
O sequestro da camisa listrada................................................25
Os fatos podiam ter sido outros.............................................31
A prisão domiciliar nas grandes cidades.........................................37
Fanfarra para um homem comum..........................................43
Os agitados e os sossegados....................................................47
Obsessivos e compulsivos.......................................................49
Tenha coragem de ter medo...................................................53
A triste história dos deprimidos..............................................59
Tome seu tranquilizante e Viva feliz.......................................63
Sono, insônia e pílulas............................................................65
Prelúdio para um casamento morto........................................71
A difícil arte do casamento.....................................................75
Os descasados........................................................................79
O casamento do neurótico.....................................................85
Brigas de casais: Agressão ou excitação sexual?........................87
Marido violento: Este incompreendido..................................89
Incesto emocional..................................................................93
Solitários mas não isolados.....................................................97
O amor nas canções populares..............................................101
Duas mulheres: Num dia qualquer.......................................109
Benditas sejam as queixas.....................................................113
Homem x mulher................................................................117
As mulheres: O silêncio das inocentes...................................125
Separação e perícia: Advertências..........................................137
O terapeuta amador.............................................................141
O chantagista emocional......................................................145
Pedófilo: o monstro de duas faces................................................151
Conheça o estuprador..........................................................153
Suicídio pela provocação de seu assassinato..........................155
Uma alegoria do fórum........................................................159
Por um natal diferente.........................................................171
“Gays”, loucos, ateus e velhos..............................................175
A sentença final....................................................................177
A pintura dos esquizofrênicos..............................................183
No embalo das últimas férias................................................187
A boa terapia do carnaval.....................................................193
A última lembrança..............................................................197
Mergulho no passado: Uma história verdadeira ...................199
O DILEMA DO GORDO:
COMER OU NÃO COMER?

Comer ou não comer? As mães empanturram os filhos de alimen-


tos, enquanto isso, elas mesmas vão às academias, fazem regimes e
caminhadas, compram o último “best-seller” para emagrecer, tomam
drogas e mais drogas para tirar o apetite, para urinar e eliminar uma
boa parte dos alimentos que ingeriram. Essas mesmas mães compram
para os filhos pudins, chocolates, sorvetes e mais uma infinidade de
guloseimas. Mas elas mesmas tomam hormônios para acelerar o meta-
bolismo, fumam e tomam café com adoçante, na esperança de ingerir
menos calorias.
Ao lado dessa contradição alimentar familiar, os meios de divul-
gação, tais como TVs, rádios, jornais, revistas, despejam em cima do
alerta e fiel consumidor os mais recentes produtos alimentícios, todos
eles atraentes, charmosos, deliciosos e de alto teor calórico. Somos,
sem querer, sócios contribuintes das multinacionais, saboreando seus
produtos e pagando-os a preços módicos.
Se a robusta criança tiver uma mãe muito desocupada, de modo
que lhe sobre bastante tempo para cuidar da alimentação do seu queri-
do filho, e se este tiver mais algum tempinho para saborear, degustar,
deglutir e “incorporar” as propagandas das multinacionais, a primeira
fase, a essencial da formação do futuro obeso, acha-se terminada. Seu
destino provavelmente está selado e ele estará “frito”, no mundo ma-
ravilhoso dos alimentos.

9
Do mesmo modo que Konrad Lorenz descreveu o fenômeno da
“impressão” - observado com as crias que ficam “marcadas”, passando
a seguir o animal que estiver ao seu lado durante certos momentos
dos primeiros dias do desenvolvimento, - também a criança, criada
no ambiente dos alimentos, desenvolverá percepções e valorizações
hipertrofiadas acerca de alimentos.
Seu ideal passará a ser, fundamentalmente, o alimento.
Nos bate-papos informais, o obeso fatalmente fará incursões so-
bre a “boa mesa”. Seus pensamentos e suas conversas giram sempre
em torno de carnes, pudins e sorvetes: “Comi uma lasanha extraor-
dinária, você precisa ira lá. A sobremesa: um sorvete com creme e
suspiro. Uma delícia!” Ele se acha preso, tanto biológica como psico-
logicamente, ao mundo dos alimentos, preferencialmente aqueles em
que predominam os hidratos de carbono e as gorduras. Sabe-se que
nosso organismo é mais atraído por alimentos saborosos e nutritivos.
Assim, uma carne cheirosa e gordurosa nos atrai mais do que belas
folhas da alface bem temperadas.
Costuma-se falar em obesidade quando o peso da pessoa se acha
20% acima do considerado normal para ela. Entretanto, para alguns, obe-
so é quem acha que é. A obesidade já teve a sua glória e seus cultores,
pois fazia parte dos valores difundidos pelas classes privilegiadas. Hoje,
seu prestígio está em declínio. “Malhada” pelos poderosos, passou a ser
mais comum entre as mulheres de classe sócioeconômica mais baixa,
por causa da alimentação dessas ser rica em hidratos de carbono.
A maioria dos autores concorda que a obesidade é consequência
de diversas causas. Parece ser mais grave quando começa na infância,
mas pode surgir na adolescência, na vida adulta e até após a maturida-
de, quando algumas mulheres se tornam obesas após os 50 anos. Tal
fato é menos frequente entre os homens.
A maior parte dos grandes obesos, uma vez iniciado um regime
e ter emagrecido alguns quilos, sente-se como se estivesse passando
fome. Em outras palavras, quando um obeso se submete ao regime
e seu peso ainda não alcançou o chamado “peso normal”, biologica-
mente ele se encontra como os indivíduos que estão passando fome.

10
Alguns autores argumentam que o peso corporal de um dado
indivíduo é autorregulado, alcançando cada pessoa um nível apro-
ximadamente constante, ou seja, um ponto fixo em torno do qual o
peso oscila.
Nos obesos este ponto fixo é elevado, acima do peso constante
dos “normais” de desenvolvimento físico semelhante. O obeso tem
um maior acúmulo de gorduras nas células, ou tem maior número des-
sas células, um excesso adquirido geralmente na infância. É comum
apresentar os dois fatores ao mesmo tempo. Em outras palavras, tanto
o teor de gordura como o número das células gordurosas alcança, no
obeso, valores superiores aos de um indivíduo não-obeso.
Ao emagrecer sob regime, não haverá redução do número de
células, mas tão somente de teor de gordura celular, o qual, portanto,
ficará abaixo de seu valor normal para aquela pessoa. Consequente-
mente, em condições normais, isto é, sem regime, a gordura celular
tende a aumentar até atingir seu ponto fixo, o que ocasionará novo
aumento de peso. Nos obesos há uma alteração entre o “crédito” e o
“débito”, de modo que neles sempre haverá uma “sobra”, se compa-
rados à maioria dos indivíduos. Segundo esse modelo, um indivíduo
normal e que tem o seu ponto fixo em torno de 60 quilos, tenderá
sempre a manter-se em torno desse peso. Caso ele enfrente situações
anormais, internas ou externas, (por exemplo doenças, alimentação
em excesso ou escassa), durante um certo período seu peso irá di-
minuir ou aumentar de acordo com a situação. Entretanto, tão logo
a situação se normalize, o peso voltará a ficar em torno dos 60 quilos
anteriores. O obeso, tendo o seu ponto fixo, por exemplo, em torno
dos 120 quilos, tenderá a manter-se também em torno desse peso, em
condições normais.
A obesidade, como qualquer problema médico, está longe de
ser entendida em sua totalidade. Por esse modelo do “ponto fixo”,
observações e experiências realizadas em animais e homens puderam
ser compreendidas. Em cativeiro, os animais engordam ao receber
uma superalimentação, no entanto, quando são deixados de lado, li-
vres, sem serem forçados àquela alimentação, retornam ao peso ante-

11
rior à engorda. Diversas observações semelhantes foram feitas, prin-
cipalmente com pessoas que, por diversas circunstâncias, receberam
escassa quantidade de alimentos.
Essas, após o emagrecimento, retornaram ao peso do seu ponto
fixo. De acordo com esse modelo, as drogas comumente usadas para
combater o apetite - os anorexígenos - inicialmente fazem descer o
ponto fixo do indivíduo para um nível mais baixo e só secundariamen-
te diminuem o apetite. Lamentavelmente, após a retirada da droga, o
ponto fixo se eleva novamente, aumentando o apetite e, consequen-
temente, o peso aumenta, alcançando o nível de equilíbrio anterior
daquele indivíduo.
A atividade física constitui, talvez, a única técnica eficiente para
aqueles indivíduos que, considerados de risco, ou seja, com pon-
to fixo corporal elevado, manterem peso normal. A atividade física
queima calorias, diminui o apetite e, por último, eleva o metabolis-
mo basal, não só durante o exercício, mas também horas após este.
Portanto, a pessoa ativa fisicamente está continuamente “gastando”
mais calorias do que precisa para manter as funções fisiológicas do
organismo em condições de não-exercício. Por outro lado, para azar
dos obesos, o regime alimentar nos indivíduos de vida sedentária
baixa o metabolismo, ou seja, “economiza” a perda de calorias. Os
resultados são óbvios, à medida que o peso diminui no indivíduo de
vida sedentária, a sua taxa de metabolismo cai também, com conse-
quente estabilização do peso.

12
DIGA NÃO SEM SE SENTIR CULPADO

Quem diz sim a um pedido de aval, para não magoar o outro,


pode depois amargar o pagamento da dívida. O passageiro que deixa
os centavos com o trocador, com medo de reclamar ou de ser ridi-
cularizado, está deixando algo mais além do dinheiro: pode se sentir
um “fraco”, ou covarde. O consumidor que levou o sapato, por não
ter coragem de dizer não ao vendedor, não o usará com prazer, mas
com raiva ou desgosto. A visita desagradável que chegou sem avisar
poderia estragar a tarde de domingo, em outro momento poderia ser
até agradável.
Provavelmente, quem experimentou tais acontecimentos vai
reclamar tanto de si mesmo, como dos outros. Entretanto é provável
que nada faça para modificar sua conduta e influir favoravelmente
no curso dos acontecimentos. Quase sempre esses nem mesmo ten-
taram modificar seu comportamento, visando a atingir objetivos que
lhe dariam prazer, maior autoestima e também um relacionamento
mais agradável com o visitante de horas indesejáveis.
As situações embaraçosas e, às vezes, humilhantes, das quais as
pessoas se queixam, são frequentes e na verdade atingem todos os
seres humanos.
O que fazer diante de situações semelhantes àquelas que foram
descritas acima?

Resumidamente existem três maneiras de agir:

13
1) Aceitar as imposições, lastimar-se e queixar-se da má educa-
ção das pessoas.
2) Brigar, xingar e agredir quem tentou a manipulação.
3) Ser afirmativo, sem ser agressivo ou queixoso, defender clara
e calmamente seus direitos.
Vamos a um exemplo: Aníbal está em uma fila, pacientemente,
há vários minutos quando um homem entra, sem pedir, à sua frente.
Conforme o exposto, Aníbal poderá:
1º - Nada fazer e reclamar para si mesmo ou com o companhei-
ro do lado a respeito do abuso do intruso. Provavelmente Aníbal se
sentirá irritado, envergonhado da sua passividade e com queda da sua
autoestima, por estar sendo enganado.
2º - Aníbal, em altos brados dirige impropérios ao furador de fila,
iniciando uma briga, o que passa a constituir um novo problema a ser
resolvido. Nesse caso, possivelmente, talvez a respiração fique ofegan-
te, o coração bata mais depressa e, pior ainda, a discussão possa cami-
nhar até chegar às “vias de fato”, dependendo da reação do outro.
3º - Num tom de voz firme, mas normal, Aníbal dirá ao intruso
que aquilo é uma fila, que deve ser respeitada e que ele, o furador de
fila, deve sair dali e procurar seu lugar lá atrás. Nesse caso, sua ação
foi exclusivamente para dar solução ao problema surgido e não para
criar outro. É possível que Aníbal se sinta ligeiramente emocionado,
mas satisfeito consigo mesmo, ao defender o seu direito. Posterior-
mente, ele se sentirá melhor ainda.
Situação semelhante é a do passageiro que não obtém nem o
troco nem a resposta do trocador, ao passar na roleta do ônibus. O
passageiro pode:
1º - Ir embora sem receber o seu troco e ficar deprimido por sua
conduta apática.
2º - Brigar com o trocador e eventualmente com o motorista, até
com algum passageiro que ache absurdo ele exigir algumas moedas
de troco.
3º - Finalmente exigir uma resposta adequada do trocador, não
temendo a pressão dele e de outros que querem passar na roleta.

14
Para cada uma dessas três condutas, encontra-se subentendida
uma crença ou uma concepção da melhor maneira de se conviver
com outras pessoas.
No primeiro caso, isto é, a passividade como tônica do compor-
tamento, indicará uma suposição de que nunca se deve, em nenhuma
situação, desagradar às pessoas. O foco da conduta está em não criar
problemas no relacionamento com os outros, seja lá quem for.
No segundo caso, quando há briga, o indivíduo percebe a ação
do intruso como um abuso, uma agressão e, não imaginando outra
opção, agride também. Neste caso, ele criou um segundo problema,
sem resolver o primeiro.
E finalmente, no terceiro caso, quando a pessoa exprime sua
opinião firme e objetiva, sem rodeios, o centro da conduta se situa em
si mesma e não no bem-estar e manutenção da relação. Neste caso o
indivíduo acha natural alguém tentar furar a fila, como também acha
adequado ele defender seu lugar e, por isso, o faz de maneira conve-
niente. Como não tem poder sobre a conduta dos outros, sabe que
alguns agem diferente dele.
Não se pretende aqui defender como correta nenhuma das três
posturas descritas. Não é raro um indivíduo ser afirmativo em um
lugar e não o ser em outro. Uma pessoa pode ser firme e objetiva no
seu trabalho, passiva em casa e agressiva no futebol de fim de sema-
na. Também pode ser agressiva em uma ocasião, com uma determi-
nada pessoa, e ser passiva, fraca, em outro momento, com a mesma
pessoa.
Você, leitor, escolhe a melhor conduta para si, em cada momen-
to, em cada lugar e com cada pessoa, de acordo com o seu estilo
pessoal. Provavelmente, não será conveniente sermos agressivos ou
afirmativos quando nos defrontamos com um assaltante, de revólver
em punho, exigindo o nosso dinheiro ou tênis. Neste caso, sejamos
passivos e fracos, do contrário podemos tornar-nos defuntos.

15
Diante De Uma Provocação

Todos nós enfrentamos, com alguma frequência, provocações


produzidas por nossos inimigos, amigos e até por pessoas indiferen-
tes a nós. As provocações são expressas das mais variadas formas:
críticas diretas e indiretas, insultos com ou sem palavrões, ameaças fí-
sicas ou verbais, ironias, zombarias diversas, demonstrações de força
ou de poder e outras variedades de agressões.
O insultante tem como objetivo essencial provocar uma respos-
ta negativa na pessoa-alvo, caracterizada por medo, raiva, desaponta-
mento, sentimento de inferioridade ou de revide. Em outras palavras,
o agressor espera uma resposta padronizada, ditada pelo modelo so-
cial, semelhante à manifestada por ele, o provocador.
Fico perplexo, em meu consultório, ao ouvir queixas dos meus
clientes quanto às mais diferentes formas de se revidar uma agressão.
Quase todos os agredidos - pasmem, caros leitores - dão exatamen-
te as respostas desejadas pelo autor da ação. Respondem ao insulto
com uma carga emocional negativa, com grande sofrimento físico e
mesmo com alguma confusão mental. Na realidade, o agredido faz
exatamente o “jogo” desejado pelo agressor.
Não sei explicar precisamente por que isso ocorre. Acredito que
essa rigidez de resposta, essa falta de jogo de cintura tem origem cul-
tural: foi aprendida como um valor a ser seguido. Costumo sugerir
aos meus clientes revidarem à agressão com respostas diferentes das
usuais e presumidas, recorrendo a “lances” inesperados, como sor-

17
rir para o agressor, olhá-lo sem nada dizer. Percebo, então, da parte
deles, uma reação de quase indignação, pois, ao agir deste modo, de
acordo com seus valores, estariam fazendo um papel de idiotas. A
regra seguida é: “se sou agredido, devo ou preciso reagir da mesma
maneira”. Quase nunca passa pelas mente das pessoas que é exata-
mente isso que o provocador deseja de nós: sentirmos raiva, como ele
provavelmente está sentindo, ficarmos frustrados, enfim, sofrermos
como nosso incitador.
O indivíduo pensa frequentemente que perderá seu amor pró-
prio caso não reaja ao insulto, atacando o provocador através das mes-
mas técnicas utilizadas por ele. Ora, na verdade, se quisermos agra-
dar ao nosso agressor, nada mais correto do que agir dessa maneira,
pois assim o estamos recompensando. Porém, se o nosso desejo for
o oposto, isto é, não entrar no seu “jogo”, o mais indicado será fazer
exatamente o contrário do desejado e habitual.
Imaginemos uma cena comum de rua, onde o nosso carro é
“fechado” e recebemos de lambuja alguns palavrões da nossa sexu-
alidade ou de nossa progenitora. O que deseja o prezado motorista
desafiador? Nada mais, nada menos, do que uma resposta à altura,
expressada com os mesmos gestos, os mesmos tons de voz e até com
os mesmos nomes feios. Imaginemos então um agredido não “ligado”
na arte de brigar no trânsito, muito mais ativo do que reativo e mais
dirigido por si mesmo do que pelos estranhos, ou seja, com respos-
tas próprias e não controladas pelas pessoas que encontra. Ao dar
uma resposta totalmente diversa da aguardada, nosso amigo colocará
o brigão totalmente confuso. A pessoa pode, em lugar de revidar à
agressão, apenas sorrir (ou não mudar a fisionomia), observar as no-
táveis contrações faciais do agressor, seguir o seu caminho sem nada
dizer, ou até mesmo pedir-lhe desculpas, num tom de voz doce, por
ter impedido o brigador de obter a primazia desejada. Existem ou-
tras respostas semelhantes. Tais respostas, diferentes das comumente
aguardadas, quebrarão certamente a segurança do agressor, já que ele
não esperava por aquela conduta e ao se deparar com o novo “lance”,
não saberá como dar continuidade ao jogo.

18
Em resumo, aprenda a se livrar de antiquadas maneiras de agir
usadas apenas por serem familiares e socialmente valorizadas, mas
que são, na verdade, improdutivas, dolorosas e perigosas, levando a
pessoa a ser, no momento da querela, dirigida pelo agressor, pelo in-
divíduo do qual gostaria de estar bem distante, talvez até vê-lo morto.

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PASSANDO UM TELEGRAMA

- 0880........
- O número discado está errado
- 0880....
- Para telegramas fonados disque 1, para envios de sedex disque
2, para... disque 3, para outros serviços disque 9
- 1...
- Para telegramas fonados disque 1; para envios de sedex disque
2, para... disque 3...
- Os correios agradecem sua ligação. Em que posso servi-lo
senhor?
- Desejo passar um telegrama.
- É internacional, nacional, estadual ou municipal?
- Municipal, Belo Horizonte.
- Qual o DDD?
- 31, Belo Horizonte.
- Com quem eu falo?
- Gabriel Marques.
- Qual o DDD?
- 31, Belo Horizonte.
- Qual seu nome completo?
- Gabriel Garcia Marques.
- Gabrela é com K?
- Não! É Gabriel com G, GABRIEL

21
- Qual o endereço completo de quem está passando o telegrama?
- Rua da Esperança número 1000.
- É apartamento?
- Sim, no. 380.
- Qual o cep?
- 48902-007.
- Qual cidade?
- Belo Horizonte, já falei!
- É nacional?
- Sim, claro.
- Qual o DDD?
- 31.
- E o número desse telefone?
- Já disse! O telefone que estou falando 3001-2288.
- Para quem está passando?
- Maria Filomena da Paixão.
- Qual a rua?
- Rua dos Sofredores, no.1.
- Bairro e cep?
- Céu Azul, cep 12345-678.
- Qual cidade?
- BELO HORIZONTE, já disse.
- Meu senhor, temos que perguntar de novo!
- Certo.
- Qual seu telefone, cep e DDD?
- Já disse várias vezes.
- Temos que confirmar. Faz parte do serviço, da nossa tarefa.
- O telefone é 3001-2288, o cep 48902-007.
- Qual seu nome senhor?
- Gabriel Garcia Marques.
- Com K?
- Não! Com G! quantas vezes terei que repetir!
- O senhor quer confirmação?
- Não!

22
- Quer marcar a data da entrega?
- Hoje! A formatura é hoje.
- Quer mandar flores?
- Só na minha morte, uma coroa.
- Quer mandar cantores?
- Não.
- Qual a mensagem?
- Parabéns, votos de felicidades na profissão.
- Quem assina?
- Eu.
- Nome?
- Gabriel Garcia Marques.
- Qual cidade?
- Aqui, Belo Horizonte.
- Queira, meu senhor, por favor, repetir o seu cep, DDD, núme-
ro deste telefone, endereço completo: rua, número e bairro.
- Já disse.
- Mas é uma formalidade: é preciso repetir, para que eu confirme.
- NÃO! Desisto! Anule o telegrama! Fica mais fácil comparecer à
baderna da formatura do que....

23
O SEQUESTRO DA CAMISA LISTRADA

Fim de semana. Nos sábados e domingos, como sempre, há mui-


tos e muitos anos, visto minha velha e surrada camisa branca com oito
listras horizontais, finas, azuis e amarelas. Eu percebia que ela estava
ficando desbotada, alguns orifícios começaram a aparecer e, além dis-
so, foi abrindo uma grande abertura junto ao meu peito, bem ao lado
do coração. Compreendia que, com a idade e também com muito tra-
balho, ela não mais suportava os “embates da vida”. Aos poucos, para
o meu pesar, foram nascendo diversas feridas em sua pele, que não
mais cicatrizavam, por mais que ela fosse levada ao “hospital” para
receber alguns pontos.
Numa segunda-feira triste de outubro, perto do aniversário de
minha camisa, a antiga lavadeira, grávida de nove meses, entrou de
licença. A nova lavadeira, uma moça dengosa e alta, decidida e afirma-
tiva, logo após tocar o interfone, passando por mim quase sem cum-
primentar, subiu as escadas rapidamente dirigindo-se até a lavanderia
para começar o novo trabalho na minha residência.
A lavadeira antiga conhecia e amava, como eu, minha camisa.
Tinha por ela uma ternura especial. Eu sabia, mas não demonstrava,
que ela a protegia. Era lavada e passada com mais cuidado e carinho,
estava fraca, doente e, além disso, era mais “idosa” que as outras. Eu,
como a antiga lavadeira, sabia dos problemas de saúde da camisa listra-
da e, por isso mesmo, a vestia com cuidado, em momentos especiais
e calmos, não só para que ela percebesse sua utilidade, mantivesse

25
sua autoestima e autoeficácia, mas também para que ela, sem se sentir
abandonada e esquecida, exercitasse e convivesse um pouco com o
mundo externo à gaveta. Eu e ela, nos fins de semana, recordávamos,
abraçados, os fatos bons e ruins vividos juntos.
Preocupado com a nova lavadeira, atento às possíveis reações
dela para com a minha amada camisa, estava apreensivo, receava que,
sem conhecê-la, ela pudesse maltratá-la, ou, no mínimo, não dar à
camisa a atenção merecida.
Há muito a camisa listrada fazia parte da família, tinha ligações
estreitas comigo, minhas filhas e parentes mais chegados. Sabia que
para a nova lavadeira a camisa não tinha história e, sem história, ela
nada significava, pois nenhum fato vivido pela camisa se ligava a ou-
tros eventos existentes na vida da lavadeira.
Não era uma camisa bonita de chamar a atenção e nem metida
a sebo. Era simpática, nem larga nem apertada, abraçava-me com a
suavidade e meiguice de quem conhece e ama o companheiro. Ela
encostava-se ao meu tórax com carinho, sem apertar-me. Tocava-me
suavemente quando precisava e às vezes massageava minha pele sofri-
da e carente. Conhecia, como ninguém, meu corpo quente e amigo. A
camisa era calma e tolerante, não agredia abertamente, gostava mais
de uma ironia suave, um sorriso ou de um elogio gozador.
Minha camisa era superdiscreta e confiável. Eu e ela guardáva-
mos nossos segredos diante de experiências vivenciadas juntos, que
não podiam, ou não deviam, ser contadas pra qualquer um. Mas nossa
relação não era constituída apenas de segredos. Minha camisa, ajudan-
do-me, testemunhou e partilhou de diversos acontecimentos bons e
ruins, alegres e tristes. Foi cobrindo meu corpo que ela, amedrontada,
enredada no meu peito, viu nascer minha primeira filha. Anos depois
a segunda, lá na Maternidade Otaviano Neves. Participando dos mes-
mos eventos, pouco a pouco passamos a gostar e odiar as mesmas
coisas. Na maioria das vezes, ela me dava sorte, levando-me a usá-la
diante de situações especiais e complicadas. Sabia respeitar uma e ou-
tra cerimônia, pois sempre foi bem educada e civilizada. Mas a camisa
listrada não participou apenas dos fatos bons, ela acompanhou-me

26
também, com toda a dedicação e sensibilidade, durante as situações
tristes vividas por mim: a doença, morte e velórios de parentes próxi-
mos e amigos.
Como ela acabou fazendo parte de minha vida e das minhas con-
versas, muitas e muitas vezes, nos meus papos com amigos, me referia
a ela, contando seus modos, idiossincrasias, gostos e até mesmo julga-
mentos. Quando me referia à camisa para outras pessoas, ou também
nas conversas solitárias comigo mesmo, batizei-a com uma frase, não
com um só vocábulo.
Chamava-a de “a camisa branca de listras horizontais”. Sei que
era um nome muito simples, pensei até em chamá-la de “A Globo”.
Desisti: ela não gostou do nome. Quando eu lhe contei meu dese-
jo, ela confidenciou-me, educadamente, que “A Globo” era um nome
muito sofisticado e ela preferia ser chamada pelo apelido, pois já se
acostumara a ele.
Quando convidada, acompanhava-me sem se irritar para qual-
quer lugar. Além disso, não tinha ciúme, pois não insistia em continuar
abraçada ao meu corpo quando era chegado o momento de largar-me
por instantes ou dias, para dar lugar a uma ou outra camisa, às vezes
mais bonita e faceira que ela. Costumava me dar conselhos: “Cuidado!
Não vista aquela vermelha. Não lhe fará bem”. Eu não sabia e nem per-
guntava os motivos de sua preocupação. Era uma camisa de verdade.
Sentindo o prazer de seu tecido alisando meu corpo cansado
e envelhecido, juntos e isolados do mundo, somente eu e ela, olhá-
vamos nos fins de semana, no sossego e calma do terraço, a cidade
esfumaçada, agitada e distante, lá longe.
Sábado, como sempre acontecia nos fins de semana, fui à sua
procura na gaveta onde ela me esperava limpa e cheirosa, pronta
para o abraço gostoso e singelo daquele dia especial. Tranquilo, ima-
ginando o encontro carinhoso das tardes de sábado, o momento de
aconchegar-se em torno do meu corpo, abri a gaveta sorridente e ale-
gre. Assustei-me! Ao procurá-la, não a encontrei! Tornei a procurá-la.
Nada! Comecei a ficar em pânico. Onde estará minha camisa branca
de listras horizontais? Será? Imaginei o pior. Abri afoitamente uma por

27
uma as gavetas onde encontrei outras e outras companheiras: azuis,
brancas, vermelhas, listradas diversas, mais largas, apertadas, de man-
gas compridas e curtas, velhas e novas, mas todas sem a história dela,
uma história especial e única. Ela não estava em lugar algum.
Dois dias depois, afinal, chega a segunda-feira. Espero inquieto,
olhando pela vidraça, a lavadeira nova e malvada. Toca o interfone.
Junto à porta de entrada, aguardo sua entrada. Altiva, pisando duro,
ela cruza a porta, espichando o pescoço e olhando para cima.
Bruscamente, irritado com sua postura de superior ou indife-
rença, perguntei-lhe se se lembrava da camisa. Soberba e insensível,
a lavadeira, ignorando minha angústia enquanto subia, com passos
largos e antipáticos, a escada em direção à lavanderia, resmungou de
forma quase inaudível:
- Uma camisa toda esburacada... feia e velha, desbotada, que não
mais prestava para nada, esgarçada...
Ao virar o rosto em minha direção, via-se claramente que seu
olhar era de deboche. Ela criticava-me por me preocupar com artigo
tão inútil. Fiquei com vontade de pular em seu pescoço grosso e, ao
mesmo tempo, estava confuso por demonstrar, abertamente, minha
preocupação por um artigo tão desprezível para ela. Por outro lado,
sentia culpa e raiva de mim mesmo por estar envergonhado por de-
monstrar, diante da lavadeira, meu amor à camisa. Após respirar fun-
do, com muito custo, tomei coragem e decidi falar grosso:
- Sim, ela mesma! Gostava muito dela!
Falei o mais claro que pude, ao perder a vergonha de demons-
trar meu afeto à camisa. Meus sentimentos de culpa acabaram-se e
continuei, quase gritando:
- Onde você a colocou?
- Sei, não, senhor. Não prestava pra mais nada.... não sei se pus
no lixo, ou se a rasguei para limpar a pia. Nem pra isso ela servia. O
pano era ruim.
De repente, voltando a caminhar, arrematou:
- Por quê? O senhor usava aquilo?
Falou zombando, dando um risinho maroto.

28
Saí rápido, antes que perdesse a cabeça. Fui até o cesto de lixo,
sonhando poder encontrá-la. Nada! Não estava lá. Desci as escadas
correndo. Eram nove e cinco e o caminhão de lixo passava mais ou
menos nesse horário. Quem sabe? Não havia mais lixo, tudo estava va-
zio, não havia mais a camisa branca de listras horizontais, mais nada!
Solucei, desolado.
Assim foi decretada a morte, o fim de minha querida camisa. Ela
não mais foi encontrada, nem para ser enterrada, cremada ou guarda-
dos suas restos finais, como lembrança de nossas relações e história.
Uma camisa que fez parte de minha vida, simbolizando fatos que
presenciei e vivenciei. Para minha nova lavadeira, a amada camisa
nada significava, era apenas um pano velho e inútil, que merecia ser
rasgado, um trapo sem valor, uma qualquer, uma porcaria que não
provocava lembranças de nenhuma espécie, nem boas nem más.
Para mim, a camisa era parte de minha vida, recuperava me-
mórias alegres e tristes, conversava comigo coisas que só nós dois
sabíamos: as dificuldades e brigas que tive, as esperanças, tudo isso
e muito mais. Ela significava, só para mim, lutas, vitórias e derrotas,
uma bandeira representando várias fases e aspectos de minha auto-
biografia. A lavadeira, sem ter criado nenhum vínculo com a camisa, a
classificou como um tecido desbotado e furado, uma fazenda rasgada
e envelhecida, sem valor, um pano que não tinha nada para contar e
nada simbolizava.
Coitada de minha camisa, seu fascínio foi ignorado por quem
não a conhecia. Percebida por um ângulo genérico – pano – e não por
um singular – uma camisa com uma história – ela foi desvalorizada.
A lavadeira a olhou sob um ponto de vista diferente do meu, a consi-
derava sob um aspecto imediato, prático e simples. Sob essa visão, a
camisa não possuía uma identidade própria, não tinha valor e signifi-
cado. Por tudo isso, para a lavadeira minha amada camisa merecia ir
para o lixo, pois não servia nem para lavar a pia.
Pobre de mim! Perdi um pouco do meu passado, de minha me-
mória. Quanta dor!

29
OS FATOS PODIAM TER SIDO OUTROS

Todos nós sonhamos com a possibilidade, impossível por sinal,


de conseguir mudar alguns fatos anteriores de nossa vida, que aconte-
ceram e foram transformados em outros. O que você e todos nós não
faríamos, para transformar certas ações feitas, em outras, pois após
realizá-las você se arrependeu amargamente? O povo fala: “ninguém
é perfeito”. Assim sendo todos nós já, anteriormente, fizemos nossas
bobagens, diversas delas durante nossa passagem pela terra. Alguns
sentem-se terrivelmente arrependidos de terem largado os estudos e
queixam-se de que ninguém nada fez para dissuadi-los disso. Outros
lamentam um casamento muito cedo, que estragou todos os seus ou-
tros planos. Há ainda os que se arrependeram de ter mantido uma
amizade por muitos anos, quando o melhor teria sido mandar “para o
inferno” o “amigo urso” de longa data. Muitos, por fim, amaldiçoam
a hora fatídica do trágico encontro que resultou numa gravidez, um
filho nascido num momento terrível de sua vida e que jogou por terra
todas suas belas fantasias. A psicologia costuma chamar esses arrepen-
dimentos de “pensamento contrafactual”, que nada mais é do que o
nosso desejo de mudar o que aconteceu no passado.
Como o mundo corre, independente do que queremos, muitas
vezes um pequeno, simples e tolo fato não pensado, não desejado e
nem necessário, surge e muda para sempre nossas vidas. Um escorre-
gão numa casca de banana dará origem a um novo e árduo caminho,
sem que nada mais possa ser feito. Fica destruída para sempre uma

31
trajetória delineada e amada anteriormente. Pensando nos meus es-
corregões, nas minha burradas pela vida afora, lembrei-me do meu
encontro ocasional com Adamastor.
Esse meu amigo de infância tinha uma vida traçada para ser uma
pessoa feliz. Alegre, bonito, rico, conheceu a filha do colchoeiro.
Após certos fatos, a princípio sem importância, foi abrindo um cami-
nho para uma vida distante, penso que sem que ele quisesse, da outra
que imaginava que ia ter.
Eu caminhava, a mando do cardiologista, fazendo o cooper,
quando encontrei-me com ele. Achei-o envelhecido. Fiz os descon-
tos, pois sei que nós sempre achamos o outro mais acabado do que
nós mesmos. Como nos acostumamos a ver no espelho todos os dias,
acostumamo-nos com cada sinal terrível da idade, da velhice, que só
não atinge aos que morrem cedo. Fiquei tão preocupado com a ida-
de, que ia me esquecendo do Adamastor.
Fomos colegas no colégio e também do futebol de várzea. Nem
eu nem ele fomos craques, nem de futebol, nem de estudos, pois es-
tudávamos para passar e jogávamos para nos divertir. Entretanto não
éramos os piores da sala ou do time. Um dia, um dia como os outros,
quando Adamastor era ainda jovem... Esqueci de dizer que ele era um
dos poucos do grupo de amigos, cuja família tinha algum dinheiro.
Falava-se, entre nós, que seu pai era fazendeiro rico no norte de Mi-
nas. Nas nossas conversas, e assim era todo o grupo, ninguém conta-
va sua vida familiar e os segredos para ninguém. Essa regra implícita
era adotada por todos. Não havia proibições explícitas, mas uma nor-
ma que todos acatavam, respeitavam e que não podia ser burlada.
Havia certos fatos que, se fossem ventilados, iriam ferir os ami-
gos do futebol. Assim é que nosso glorioso goleiro tinha uma irmã
que, já naquela época, era uma “massagista” ocasional. O Cidinho,
que morreu de tanto beber, tinha uma irmã que “’fazia vida” aberta-
mente. Havia indícios, não discutidos, que sua mãe também seguia a
mesma profissão, apesar da idade. A mãe de Cidinho não trabalhava,
e, possivelmente, vivia de parcos trocados ganhos de homens amigos
que a visitavam, à noite, no seu velho barraco da vila Maria Brasilina,

32
iluminado com luz de querosene. Nunca discutíamos esses assuntos,
apesar de que todos os conheciam.
Voltando ao Adamastor. Este, quando era ainda ginasiano, foi
fisgado pela filha do colchoeiro. Lucélia era uma bela morena, ou
mulata, isso não importa. Era desejada por todo o grupo, nunca para
namorar, apenas para se fazer um excelente programa.
Espantamo-nos quando vimos Adamastor de mãos dadas com
Lucélia diante de todos. Orgulhoso do que fazia, de fato, gerava in-
veja. Pensei, inicialmente, que devia ser uma paquera sem maiores
consequências. Fiquei pensando como é que ele havia conseguido
ganhar a disputa com os companheiros de grupo.
Mas as pequenas diferenças foram, pouco a pouco, trazendo
grandes diferenças à vida do Adamastor. A vida dele foi mudando à
medida que sua paixão pela filha do colchoeiro aumentava. Primeira-
mente ele abandonou os encontros com os companheiros e, mais tar-
de, largou o futebol. Depois abandonou os estudos e, a cada dia mais,
sua vida girava exclusivamente em torno de Lucélia. Esta também
mudou. Já não era a jovem livre e alegre de outros tempos.Tornou-se
uma donzela séria, não mais dava bola para ninguém do bairro.
Após um curto período de dedicação exclusiva e de muita pai-
xão, Adamastor deu mais um pequeno escorregão, provavelmente
não desejado e não programado. Um pequeno fato existente sem
os cuidados necessários transformou de vez a vida de Adamastor,
produzindo “uma grande diferença”. O inevitável ocorreu, Lucélia
foi deflorada. Como era chamado na época, Adamastor “fez mal” a
Lucélia. Nesse tempo, diferente dos tempos modernos, o costume
obrigava o suposto autor a casar-se com sua “vítima”. Neste caso que
relato, havia dúvidas quanto ao autor denunciado, ou seja, o réu.
Sua boa vida foi decepada para sempre. Adamastor, que nunca
havia trabalhado, passou a fazê-lo. Ele, que sempre tinha algum di-
nheirinho sobrando para comprar um doce ou ir ao cinema, teve que
economizar. Os fatos negativos, como uma pequena bola de neve,
foram se acumulando. Sem alternativa, e em sérias dificuldades finan-
ceiras, Adamastor mudou-se da pensão razoável onde morava, para

33
o barraco existente nos fundos da colchoaria do seu sogro e que era
apenas um quartinho para dormir.
O banheiro era fora da quarto e não havia cozinha e nem sala.
Adamastor passava parte do dia ao lado da esposa grávida. Esta, uma vez
assim, foi despedida do emprego de vendedora das Lojas Americanas.
Nas folgas dos cuidados dispensados à esposa, vendia doces a
domicílio para as famílias amigas, fabricados por ele e sua mulher, e à
noite era porteiro da Associação Comercial.
Tentou voltar aos estudos, mas foi impossível e os largou para
sempre. Foi abandonando, progressivamente, outras metas anterior-
mente planejadas e tidas como certas para ele. Incentivado sempre
pelo seu pai, sonhou em ser advogado na área criminal, ser famo-
so, rico, participar de júris com criminosos conhecidos, aparecer nas
notícias dos jornais, ter diversas mulheres apaixonadas por ele. O
mundo imaginado e esperado foi sendo substituído por um mundo
frio, feio, monótono, pobre, chato, sem sabor, poderoso e exigente.
Adamastor foi sucumbindo às pressões dos fatos que o obrigaram a
ganhar dinheiro para pagar as dívidas.
A cuidar dos filhos que foram nascendo, que tinham dor de barri-
ga, tosse, diarreia, choravam, riam, pedindo companhia. Da mulher que
o vigiava, desconfiava dele e gastava o que não podia. Da família dela,
com problemas de alcoolismo, de seu pai e da hipertensão da sogra.
Os sonhos foram desaparecendo, dando lugar à realidade de
todo o dia. Adamastor transformou-se num escravo das exigências do
cotidiano, num ser dedicado exclusivamente a resolver, prontamen-
te, os entraves constantes de sua vida. Não tinha mais tempo e nem
mesmo capacidade para pensar acerca de si mesmo. Foi, aos poucos,
deixando de lado o que sonhara e vivendo as exigências do mundo
externo.
Cada vez mais o mundo imaginado tinha menos importância do
que o outro, o dos outros e dos eventos. Seus desejos e sonhos, aos
poucos, foram ficando encostados, vivendo apenas na memória passa-
da. Ele começou a dedicar-se integralmente à manutenção da relação
iniciada com um namoro aparentemente sem consequências.

34
Naquela tarde, abandonei meu cooper para ouvir o desabafo de
Adamastor. Eu, que não havia casado, tinha dificuldade de entender
sua prisão dentro de uma família, senti que, ao ouvi-lo, com paciência
e até piedade, deixava de lado minha caminhada das tardes.
Pensava em como escapei várias vezes dessa vida de que sempre
tive medo, ao vê-lo relatar, com voz embargada, seu arrependimento,
suas amarguras e a sua vida há muito inútil e sem rumo, sua vontade
de nunca ter feito aquilo. Mas notei uma certa satisfação no seu sem-
blante de ter uma família para abrigá-lo à noite. Voltei para casa para
curtir minha liberdade sem ter seus problemas e, talvez também, sem
ter o que fazer...

35
A PRISÃO DOMICILIAR NAS GRANDES CIDADES

Uma parte da população das grandes cidades encontra-se presa.


A chamada classe média talvez nem saiba que ela própria decretou
sua prisão domiciliar. Certas famílias pagaram um pouco mais caro
para habitar prisões de segurança máxima, mais novas e talvez mais
bonitas. Uma vez morando nelas, não podem colocar a cabeça fora ou
andar tranquilamente pelas ruas e, em muitos locais, só podem sair
de casa através da fuga. Para escapar do possível assalto, antes de sair
de casa, o cidadão examina, pela câmera ou a fresta do portão, com
extremo cuidado para não ser visto, se há alguém suspeito por perto.
Só então ele entra no automóvel que se encontra na garagem. Estando
a rua sem riscos aparentes, o carro bem fechado, o motorista, muito
atento, aciona o “controlador da prisão”, abrindo, com ansiedade, o
portão que vai expô-lo aos perigos da rua ameaçadora. O carro sai em
disparada, escapa como pode, antes que seu proprietário seja rouba-
do, assaltado ou assassinado.
Algumas famílias mais precavidas e privilegiadas, residentes em
casas – elas são mais perigosas - contratam vigilantes permanentes
que espreitam, dia e noite, tanto os possíveis assaltantes, como os
movimentos dos donos da casa: suas idas e vindas, a hora em que
chegam e saem de casa e também do banheiro, que hora dormem e
quando acordaram à noite para fazer pipi. Assim, consegue-se uma
segurança e controle quase total. Troca-se o possível e ocasional assal-
to, pela continuada observação e interpretação da conduta da família

37
pelo vigia. Algumas famílias aprisionam-se em pequenos apartamen-
tos cercados por grandes edifícios, onde o sol só aparece por poucos
minutos.
A ideia enfatizada pela sociedade, transmitida como conselho
para todos os “detentos” é: “Tenha cuidado ao andar pelas ruas, prin-
cipalmente parar e caminhar devagar.
Ao sair - a não ser que desejem perder o seu suado dinheiro
ou mesmo a sua preciosa e, às vezes, inútil vida – você deverá, rapi-
damente, entrar numa outra prisão semelhante como cinemas, bar-
zinhos, teatros ou lojas comerciais. Nesses há menos perigo de ser
assaltado “.
Uma vez no mundo selvagem das ruas e praças, ficamos frente
a frente com os perseguidores, que são diversos: os temidos pivetes,
estupradores, trombadinhas, vendedores, assaltantes, mendigos, ca-
melôs, maloqueiros, perguntadores suspeitos e desconhecidos que
desejam contar-nos sua vida, veículos em disparada, pregadores reli-
giosos, objetos, cuspe e fezes lançados dos prédios, propagandistas
ambulantes, sequestradores, vigaristas, etc.
Mas há também, às vezes, perseguidores-fantasmas que habitam
nossa mente, como os assaltantes inexistentes, elevadores que vão
cair, bombas que explodirão, gente nos observando ou livros com
ideias estranhas escritas por pessoas que pensam diferente de nós. As
grandes cidades impõem suas regras, aniquilando o indivíduo, se esse
se descuidar. Quase sempre, sem querer, o perseguido colabora com
o perseguidor, seja ele fantasma ou real. Uma boa parte dos habitan-
tes não só se submete à estrutura desumana das metrópoles, como,
com frequência, ainda a aplaude, engrandece e se orgulha de fazer
parte dela. É difícil saber se a nossa posição ou a nossa atitude está
nos favorecendo ou se estamos ajudando o “inimigo” desconhecido.
O jogo é extremamente complexo.
Torna-se cada dia mais difícil driblar todos esses obstáculos. Uma
boa parte da população desistiu da luta, não mais a enfrenta, sucum-
biu, presa ao jogo do adversário. Esses não mais sabem onde querem
chegar, para onde vão. Encontram-se sem rumo e, como disse o gato

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para Alice, no livro “Alice no País das Maravilhas”: - “Se você não sabe
onde quer chegar, qualquer caminho serve”.
Passando pela rodoviária, num desses fins de tarde de sexta-feira
confusos e irritantes, observei um homem assentado numa das cadei-
ras da sala de embarque.
Vagarosamente ele preparava um cigarro de palha. Ao seu lado,
havia uma mala amarela simples. Ele parecia estar indiferente ao tu-
multo à sua volta. Tive inveja dele. Não pude, na minha correria, dei-
xar de fantasiar: “daqui a pouco ele estará no ônibus que o levará à
sua cidadezinha, talvez até seja Santa Maria de Itabira.
Ele terá no ônibus tempo para conversar calmamente consigo
mesmo, de pensar o que quiser, fazer ou não fazer várias coisas que
sua mente mandar. Talvez viva numa cidade calma, vendo, todos os
dias, o verde do campo, observe vacas pastando e possa ouvir uma
chuva tranquilizadora. Lá, bem longe daqui, poderá andar e falar
com calma. Lá não há pressa, seu relógio de pulso é um enfeite,
seus compromissos não têm horas rigidamente marcadas, podem ser
adiados até para dias ou semanas depois. Na sua casa as portas e as
janelas ficam abertas, à tardinha, ele e sua mulher debruçam-se no
peitoril e observam os amigos passando, todos conhecidos, e a todos
ele cumprimenta sem discriminar ricos, pobres, negros, mulheres ou
crianças.
De quando em quando, poderá ir até o quintal saborear uma
manga e oferecê-la, de graça, ao vizinho e amigo. Poderá sair à rua
sem medo de fantasmas, parar em qualquer esquina, entrar e sair de
onde desejar. Quando a noite chegar, ele dormirá tranquilo sem pen-
sar em ladrões, sem ser incomodado por algazarras e barulho de frea-
das no asfalto. Ouvirá sonolento em sua cama, de quando em quando,
o berro de um bezerro recém-nascido ou, mais distante, o latido dos
cães. Acordará com a claridade do sol, o cantar dos galos e não com
ruídos barulhentos dos ônibus, caminhões e carros.
Fui despertado do meu devaneio ao presenciar um carro, na
avenida Paraná, jogando um senhor no asfalto. Meu sonho acabou...
Eu me permiti essas divagações para lembrar-me, e também, quem

39
sabe, ao leitor, que talvez haja alguma maneira diferente de viver.
Quis retratar um contraste. Peço desculpas por ter talvez imaginado
um paraíso diante do inferno onde moramos, mas acredito que devem
existir modos mais humanos para construir a difícil e trabalhosa arte
de viver, além da do cárcere privado.
Parece-me que a massificação impede essa criatividade, forçan-
do todos a serem semelhantes, normais e uniformizadas, de tal forma
que a maioria das famílias, nas grandes cidades, segue um mesmo
modelo.
Os mais velhos, coitados, esses quase não mais saem de casa.
Suas vidas restringem-se a comer, dormir, ver TV e, principalmente,
tomar de manhã, à tarde e à noite grandes quantidades de comprimi-
dos para as suas dores diversas, outras para o “coração” e para dor-
mir. Os de meiaidade trabalham incessantemente e, nas folgas que
existirem, divertem-se sem parar após se embriagarem. Os jovens,
trabalhando, estudando ou não fazendo nada, seguem a última moda
de qualquer ídolo fabricado e, com eles se identificando, sentem-se
alguém. As crianças obedecem: as de maior poder aquisitivo estudam
nos “melhores” colégios, fazem mediocremente ginástica, dançam
balé ou tocam algum instrumento. Nas folgas, assistem aos programas
chatos para crianças e outros da mesma espécie. As de menor poder
econômico tentam imitar, sem grande sucesso, algumas mazelas das
crianças ricas.
Talvez dentro dos cárceres privados viva uma família “feliz”. To-
dos estão cercados por vizinhos, colegas e companheiros que fazem
as mesmas coisas, pensam do mesmo modo e têm os mesmos valores,
de acordo com as classes a que eles julgam pertencer. Passeiam e
tiram férias, nos locais “em voga”, conforme sua posição social. Iso-
lados, mas unidos fisicamente, cada um desses indivíduos, nos seus
apartamentos, pobres ou ricos, ou nas mansões, todos, como autô-
matos e sem o saber, fazem as mesmas coisas: contam as mesmas
histórias, cantam a mesma letra da música, leem os livros mais ven-
didos e assistem e discutem, emocionados, à última novela. Cada um
desses espetáculos é mais comentado e mais vivido do que os fatos de

40
suas próprias vidas, que, possivelmente, há muito se perderam. Sua
consciência, excelente crítico que é, filtra e censura toda e qualquer
ideia estranha que possa fazer desabar a sólida estrutura mental e ide-
ológica construída pelo grupo que o cerca. Os que pensam, vivem e
se comportam diferentemente são discriminados como tolos, jecas,
bregas ou outros termos pejorativos. Assim, o equilíbrio é mantido.

41
FANFARRA PARA UM HOMEM COMUM

Na manhã daquele feriado vazio, ao ler as propagandas anun-


ciando a fantástica liquidação, os olhos do adorador de produtos
brilharam diante das belas e coloridas imagens. Agindo como mãos
protetoras e estimulantes, ícones potencialmente maravilhosos socor-
reram o desvalido consumidor, transportando-o para o porto amigo,
seguro e conhecido. Reanimado após desvencilhar-se do tédio das
manhãs sem trabalho, ele assimilou energias novas para suportar sua
vida sem importância.
A injeção mágica, aplicada à distância pelo executivo ou dono,
introduziu no organismo plástico e débil significados importantes.
Animado, realizadas as anotações necessárias, o consumidor telefo-
nou para os mais chegados, relatando as vantagens da liquidação, as
ofertas imbatíveis e as compras planejadas. Tudo devia ser feito o
mais rápido possível: eram apenas 500 calcinhas para milhares de
compradores.
Nem só disso vive o consumidor aflito e bem treinado pelos Pa-
vlovs, Skinners e Watsons dos tempos modernos. Ele carrega consigo
outros interesses, tão importantes como as compras planejadas com
entusiasmo. Uma vez ou outra, sem tirar sua mente das propagandas,
como aperitivo, ele penetra com avidez e a fundo na vida íntima de
alguns de seus deuses preferidos. Devorando cada detalhe, fungando,
tendo os olhos bem abertos, ele esforça-se para encontrar, fora de
si, um modelo inspirador para sua desvalida vida. Detecta e memori-

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za, com um imenso entusiasmo - que não tem para si mesmo - cada
atributo insignificante da vida do ídolo que possa lhe servir de guia.
Ludibriado, aplaude o poder e o exibicionismo distante de seus pro-
prietários, donos disfarçados de amigos. Ele sonha em participar de
uma realidade distante que jamais encontrará.
Condicionado de modo eficaz pelos adestradores, como cobaia
mansa, domesticada e resignada, pateticamente come gato por le-
bre, imaginando poder se transformar no inacessível modelo jovem,
bonito e elegante, usando a loção para a barba anunciada, lavando
o rosto manchado de cimento e ferrugem com o sabonete cheiroso
propagado.
Treinado e educado para jamais criticar os poderosos, chefes,
ídolos e santos, e também sendo proibido de ter consciência do seu
estado desprezível, esse ser humano infeliz, possivelmente foi contido
muito cedo e reprimido por um pai ou uma mãe nervosa e mandona,
que instituiu um modelo de obediência total, sem questionamentos e
sem críticas. Essa potente marca, imprimida precocemente, dominou
o frágil cérebro do nosso amigo para o resto da vida.
Hoje seus pais estão muito longe, entretanto, seus rígidos prin-
cípios e os sinais indeléveis continuam ordenando com precisão ao
filho obediente o modo de agir frente a outros adultos com poderes
supostamente semelhantes aos possuídos pelos seus antigos proprie-
tários. Obedecer, obedecer sem saber o porquê, esta foi a regra fixa-
da. Submisso, sai à procura de chefes, políticos, colegas, namoradas,
sogras, ídolos do futebol, amantes ocasionais, companheiros da con-
dução, padres e pastores, vizinhos e colegas de trabalho, analistas e
cartomantes: qualquer um serve de inspiração para lhe dar conselhos
acerca do que fazer, em qualquer área, em qualquer ocasião. Quando
escapa dessas ligações, sobrando-lhe algum tempinho, esse indivíduo
diverte-se no salão de dança, na festinha familiar, no “shopping”, no
casamento do sobrinho, conforme determina a lei do cidadão bem
comportado e ordeiro. “Coitado: ele não sabe o que faz”.
Bem domesticado pelo meio ambiente cultural, semelhante à
“casa dos pais”, controlado e gratificado por todos os lados na apren-

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dizagem estímulo-resposta e pelos malabaristas dos símbolos - grita-
rias, mulheres e homens jovens e bonitos, frases e mais frases - ele
permanece iludido e puro, trabalhando muito e recebendo pouco,
em troca de sorrisos e de frases enganadoras, com intenções, quase
sempre, opostas às expressadas.
A técnica maldita alastrou-se como gripe asiática: fez o cão sali-
var diante da sirene, confundindo-a com o bife de carne de primeira.
A prática perniciosa da venda da burla e ilusão ultrapassou as
inocentes propagandas de calcinhas, cremes dentais e cerveja. A “pro-
paganda enganosa” invadiu abertamente boa parte da assistência mé-
dica e odontológica - tratamentos espetaculares e caros – alastrou-se
como fogo na palha, alcançando as igrejas com suas pregações acer-
ca das salvações milagrosas, representações teatrais, obediência total
e dízimos. Germinou com rapidez, dominando praticamente toda a
propaganda política e o esporte. Vivemos no mundo da trapaça, vale
mais o que simula melhor ser o que não é. Estamos todos presos, cada
vez mais afastados do mundo real, talvez, definitivamente perdidos,
nessa atmosfera fantástica da propaganda, da venda de ilusões e do
virtual. Sem terreno firme para pisarmos, estamos sem “lenço e sem
documentos”, atolados no palavrório enganador.
Por falta de ensino e experiência, o azarado não aprendeu a
distinguir os símbolos (sons e letras) do concreto (da linguiça), pois
ainda não se encontram à venda processadores mentais sofisticados,
vendidos em 24 suaves prestações, capazes de traduzir os símbolos
em coisas e eventos concretos, transformar o mapa em território. Coi-
tado: satisfeito, continuará engolindo os sons e discursos dos outros,
ou melhor, seus dejetos, em lugar de vomitá-los, convencido de es-
tar devorando canjiquinha, costelinha de porco, feijão, batatas fritas,
queijo e couve mineira.

45
OS AGITADOS E OS SOSSEGADOS

Maria ama seu sossego, seu lar e, às vezes, até sua solidão. João
ama a vida agitada, a rua, os botecos, as festas, as novas conquistas e,
principalmente, as novidades. Maria não se arrisca, evita novas ami-
zades, cumpre o que promete, é medrosa, séria, minuciosa e pontu-
al. João é boêmio, irresponsável, teatral, alegre, impulsivo, agitado,
otimista, simpático e adora o perigo. Maria odeia brigas e discussões.
João adora polêmicas e confusões. Maria não bebe e detesta cigarros.
João fuma, gosta de um trago e, às vezes, experimenta um “baseado”
ou cheira o “pó”.
Maria, que era virgem, conheceu João e nunca mais amou nin-
guém. João, que começou sua vida sexual aos treze anos, amou e ama
várias Marias ao mesmo tempo. Maria, cheia de incertezas, pensou
muito antes de se casar. João, seguro e despreocupado, casou com
Maria sem pestanejar. Todos imaginaram que o casamento não dura-
ria. Mas, após 23 anos de casados, eles continuam juntos e se comple-
tam na sua relação assimétrica, pois Maria é dependente, tolerante e
presa às suas convicções. Ela conserva, custe o que custar, o casamen-
to que João nunca levou a sério.
João é sociável, irascível, ativo, inconstante, dominante, extra-
vagante, desordenado, assertivo, desinibido, gastador e aventureiro.
Maria é fria, reflexiva, rígida, inibida, ordenada, cautelosa, tensa, leal,
não-empática, envergonhada, preocupada crônica, detesta novidades
e sofre sem reclamar.

47
Afirmamos que João e Maria são diferentes com respeito ao “óti-
mo nível de excitação”. Todos os animais, incluindo o homem, têm
um certo nível de estimulação interna que os faz sentir bem, ou seja,
“estar numa boa”. Quando o indivíduo afasta-se desse nível ótimo, por
estar sendo pouco ou estar demasiadamente estimulado, ele sente-se
mal e instintivamente busca, através de ações, aumentar ou diminuir
sua estimulação, visando a restaurar o seu bem-estar anterior.
Entre os modelos explicativos para esses comportamentos en-
contram-se os do psiquiatra Eysenk (extroversão, introversão), o de
Zuckerman (busca de sensações) e o de Cloninger (procura de novi-
dade e fuga do dano).
Alguns se autoestimulam tocando campainhas, chutando latas,
gritando e brigando, fazendo os pneus “cantarem”, sem medo ou an-
siedade, ou seja, prazerosamente. Tornam-se ansiosos nas situações
rotineiras da vida, nas sem risco. Esses indivíduos praticam a “roleta
russa”, voam em asadelta, mostram os bumbuns publicamente, as-
saltam, queimam mendigos, matam garçons e índios. Através dessas
ações recebem seu “suprimento de energia”, aumentam seu baixo
nível de excitação interna. Ligam-se aos partidos políticos radicais da
direita ou da esquerda e, nas religiões, são fanáticos. Agridem e ma-
tam em defesa de seu deus.
O outro grupo, o da Maria, foge das novidades, das grandes emo-
ções, dos sofrimentos e problemas. Para se sentirem bem, precisam
trabalhar num ambiente calmo e sem barulho. Seu cérebro está con-
tinuamente estimulado, excitado. Na escola são sérios e honestos,
até demais, evitam as bagunças e a “cola”, não perdem o ano e têm
poucos amigos. São cautelosos na política, “ficam em cima do muro”
e seguem um modelo mais tradicional de conduta religiosa. Mas não
se assuste, caro leitor, nós somos semelhantes à maioria das pessoas,
uma mistura dos dois estilos descritos, podendo ter mais caracterís-
ticas de um ou de outro modelo. Faço votos para que não seja um
extremista.

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OBSESSIVOS E COMPULSIVOS

Milton é uma pessoa estranha. Ele nunca pisa nos frisos que cos-
tumam separar os lances dos passeios. Se entra por uma porta em uma
loja, de forma alguma sai pela mesma porta. Convidei-o para lanchar
comigo. Ele lavou as mãos e sem enxugá-las na toalha, balançou-as no
ar, exclamando sem graça:
- Economizo a toalha.
E olhando para as mãos, balbuciou:
- Está ventando. Elas secam depressa.
Milton tinha medo de toalhas alheias. Após o café, bebemos um
vinho. Como se sabe, este propicia o escoamento, sem violência, das
fantasias que encobrem os caprichos secretos dos homens. Suave-
mente seus pensamentos e imagens esquisitas desabrocharam, mos-
trando uma mistura confusa de valores contraditórios, na luta pelo do-
mínio das ações. Medrosamente, as fantasias singulares abandonaram
o esconderijo seguro, para fluírem deslocadas, leves, modificadas,
algumas até belas, através de sua voz abafada e nervosa. Sem êxito,
procurava as palavras capazes de descrever as situações incomuns do
seu mundo:
- É... guardo pensamentos estranhos. De uns tempos para cá
passei a achar que estou sujo. É um sujo diferente, que não sai com
água e sabão, nem é um sujo moral. Não sei lhe explicar direito.
Milton, angustiado, procurava os termos. Os conceitos usados
nas experiências do dia-a-dia não descrevem com precisão as imagens

49
carregadas de emoções. Ele buscou as metáforas. Também essas são
pobres para expressar as fantasias, emoções e ideias extravagantes do
nosso mundo íntimo. Talvez precisássemos inventar palavras espe-
ciais para essas descrições. Milton, tossindo nervosamente, os olhos
lacrimejando, prosseguia:
- Após imaginar-me sujo, achei que meu corpo sujaria tudo o que
tocasse. Assim parei de ir à missa e fugi de todos os frequentadores
da igreja.
Ah!... Nos domingos aumenta meu sofrimento. Moro perto da
igreja, observo, de minha janela, as pessoas entrando e saindo da mis-
sa. Sei que é doideira minha, mas enxergo claramente um pó feito de
resíduos de hóstias, finíssimo e brilhante sob o sol, dançando ao sabor
do vento quente, saindo da roupa dos fiéis. Essa maldita poeira sobe e,
lentamente, invade todo meu corpo. Sinto-me, nesse encontro, como
se fosse uma lesma repugnante, andando, roçando, penetrando e su-
jando o corpo sagrado de Cristo. Envolvido pelo pó sagrado, não sei
o que fazer. Impotente e desesperado, corro para o chuveiro, numa
tentativa tola e vã de limpar-me. O contato da água deslizando mor-
na no meu corpo trêmulo, por mais de uma hora, acalma-me, mas o
sujo permanece preso por longo tempo. Debaixo do chuveiro, sou
atormentado pela obrigação de contar, minuciosamente, as juntas dos
azulejos. Já fiz isso milhares de vezes.
Consolei-o como pude, enquanto procurava inspiração no vinho.
Disse-lhe que ele apresentava uma ideia obsessiva, isto é, uma ideia
intrusa, que invade a nossa consciência sem que a gente a deseje. O
seu ato, evitando pisar nos frisos do passeio, é uma compulsão: a pes-
soa sente-se obrigada a realizar um ritual tolo, sem objetivo definido.
Expliquei-lhe que esse comportamento é normal, quando ocorre num
grau moderado. Para alegrá-lo, comentei que esse sintoma aparece
com mais frequência nas pessoas de nível intelectual e cultural mais
elevado. Sabia que dar um nome para o seu relato era pouco. Milton
sentiu-se mais seguro. É curioso constatar que as pessoas se julgam
protegidas com conceitos, mesmo quando eles não representam uma
entidade. Ele prosseguiu:

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- Quase todos os meus irmãos são assim. Uma das irmãs assiste a
várias missas aos domingos, por julgar que não se manteve suficiente-
mente atenta nas missas anteriores. A missa, segundo ela, só é válida
se assistida sem nenhuma distração. À noite, cansada e culpada, cami-
nha encurvada pelas ruas retornando para casa amargurada, lamentan-
do o pecado cometido. Tenho um irmão que lava as mãos sem parar;
isso acabou ferindo suas mãos de tanto serem lavadas.
Uma tia, para sair de casa, obriga-se a realizar um ritual esquisito:
veste roupas diferentes por quatro vezes, calça e tira três vezes os sa-
patos velhos, coloca duas vezes os brincos e, por fim, lava as mãos. Só
assim ela sente-se aliviada. Minha mãe não dorme sem antes verificar
se o gás está desligado ou se a porta está trancada. Antes de se deitar
faz um teste para verificar se realmente ela está trancada, mas logo
que se deita, imagina que, sem querer, pode ter destrancado a porta
ao examiná-la. Assim a inspeção continua noite adentro, parece-me
que não dorme.
Contei-lhe, para ser empático, casos de clientes. Uma se sentia
obrigada a contar as letras da primeira página do jornal. Terminando,
imaginava que o número achado podia estar errado e assim novas
contagens eram feitas. Um cliente, ao chegar no portão de sua casa,
marcava um carro que se aproximava e corria para chegar no topo da
escada antes do carro passar em frente da moradia. Outro, ao conver-
sar informalmente com pessoas que considerava importantes, enxer-
gava imagens de cenas sexuais estranhas e sujas com o interlocutor.
Milton não ouviu o que lhe contei. Prosseguia sua narração com a voz
arrastada de semiembriagado:
- Se estou num cinema, imagino-me gritando ou xingando algum
palavrão. Num enterro, vejo-me dando gargalhadas, fico suando de de-
sespero. Tenho um sobrinho que adoro, vislumbro-me degolando-o.
Com frequência enxergo-me jogando minha avó, que está paralítica,
pela escada abaixo. Ao sair de casa, imagino-me sem roupa em plena
rua. Outras vezes obrigo-me a fazer somas, subtrações, multiplicações
ou divisões com os algarismos das placas dos automóveis. Rapidamen-
te, seja lá que algarismo for, faço as contas necessárias para encontrar

51
o número mágico 24, e, instintivamente, xingo-me: “veado, veado”.
Eu nunca fui ou desejei ser ”gay “.
A noite estava longe, os carros não mais faziam barulho, um ven-
to frio de maio exigia mais agasalhos. Milton continuava excitado pelo
efeito do vinho e das recordações que saíam agora mais fáceis. Suas
representações mentais, presas no porão, fabricadas com esmero,
desfilavam livremente.
Indiferente ao frio, Milton falava. Enquanto isso seus dedos cur-
tos, de pontas achatadas, reuniam os farelos de pão caídos na mesa
em montículos, para, em seguida, desmanchá-los num ritual inútil.
O dia amanhecia, era mais um domingo triste para o meu ami-
go. Pensei na hóstia, na poeira, no sofrimento criado pelas figuras
distorcidas. Despediu-se com um sorriso cansado e envergonhado.
Estendeu com asco sua mão em direção à minha. Desceu as escadas,
batendo as pontas dos dedos nos canos que cercam o corrimão da
escada. Deitei-me, pensando: “Será que fechei a porta da geladeira?”.
Levantei-me para verificar.

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TENHA CORAGEM DE TER MEDO

Medo: - O medo é universal, atinge todos os homens e os ani-


mais chamados de irracionais. Dele ninguém escapa. Trata-se de uma
emoção caracterizada por uma apreensão, com comprometimento
físico, mental e social. O indivíduo que nele se encontra, apresenta
falta de ar, palpitações, tremores, músculos fracos, dificuldade para
pensar, falar e agir, pois sua criatividade diminui. A pessoa torna-se
“abobada” no momento, agindo aquém de suas possibilidades nor-
mais. Alguns ficam paralisados durante a crise de medo.
A palavra medo tem sido usada num sentido muito geral, abran-
gendo uma série de quadros que têm origens, significados, evoluções
e tratamentos diferentes. O uso do termo “medo” no sentido geral
produz confusões e discussões, pois muitas vezes os envolvidos nes-
tas falam de entidades diferentes.
Tentarei esclarecer algumas dúvidas. Psicológica e mesmo fi-
losoficamente, o termo “medo” tem sido usado no sentido restrito
como uma emoção negativa ou desagradável, com as características
já descritas, ocorrendo em todos os animais quando estes se sentem
ameaçados por um perigo real ou imaginado. A conduta natural dian-
te do medo será o animal ou o homem fugir do fator causador deste
e, caso tenha sucesso, haverá o término da emoção desagradável. Al-
guns exemplos: percebo algo caminhando nos meus pés descalços,
olho e vejo que se trata de um escorpião. Sinto medo e cuidadosa e
rapidamente livro-me dele. Ao atravessar uma rua, vejo surgir inespe-

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radamente um carro em disparada, corro e me salvo do acidente ao
alcançar o passeio. Termina o meu medo.
Fobia: - Há um tipo de “medo” que tradicionalmente tem re-
cebido por parte dos psiquiatras o nome de “fobia”. Nesta, a reação
emocional é semelhante à descrita para o medo, mas o objeto provo-
cador da emoção é praticamente inofensivo ou neutro.
Um indivíduo percebe algo caminhando em seus pés descalços,
vira-se e vendo que se trata de uma barata, corre e grita apavorado.
A barata, por si só, não é um inseto ameaçador. Na fobia, o medo é
subjetivo, isto é, fabricado pela mente de quem o tem a partir de um
estímulo determinado, que é interpretado pelo fóbico como ameaça-
dor. O fóbico, muitas vezes, utiliza as palavras nojento, asqueroso e
outras, para classificar e justificar a emoção sentida. Tanto na fobia
como no medo o indivíduo tenta escapar da ameaça ou do perigo
real ou subjetivo.
Doença do Pânico: - Na psiquiatria existe uma doença que tem
recebido o nome de “Doença do Pânico”. Trata-se de um quadro
clínico “parente” do medo e da fobia, mas com alguma diferença.
O fator que desencadeia a reação emocional de pavor no pânico,
com frequência não exige estímulo externo denominado ameaça-
dor. A pessoa acometida da doença do pânico pode acordar à noi-
te, (sem estar sonhando), ou estar vendo um programa na TV e,
repentinamente, sentir, de forma intensa e duradoura, as reações
descritas acima para o medo, com sensação de que morrerá. Não
havendo objeto externo identificável, ele não poderá fugir. Pode-
rá, posteriormente, ficar condicionado, isto é, passar mal diante de
situações ou objetos que eram neutros (não produziam emoções),
mas como a crise foi desencadeada num certo lugar (sala de TV,
usando uma camisa azul), a pessoa passa a sentir-se mal nessas cir-
cunstâncias. São comuns frases como: “Não posso passar no centro
da cidade, me provoca um malestar”, “Quando escuto essa música
fico triste”, etc. Em todos esses casos, ocorreu o condicionamento
da pessoa. O contrário existe: ficar animado ou alegre diante de
um fato ou lugar.

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Ansiedade: - O quarto grupo, com as características do “medo”,
atinge todos os mortais. A ansiedade faz parte de todos os quadros
clínicos, tanto da psiquiatria como da chamada, erroneamente, me-
dicina orgânica. Quase sempre, quando se utiliza o termo popular
“nervosismo”, estamos nos referindo à ansiedade no sentido que des-
creverei.
O estudo da ansiedade não é propriedade apenas dos médicos,
psicólogos e sociólogos, mas também dos filósofos, poetas, literatos,
ou seja, de toda a humanidade. Ansiedade é um estado emocional,
agudo ou crônico, de apreensão, diante do possível resultado nega-
tivo de uma viagem, de um negócio, do namoro, de não dormir esta
noite, etc.
Ansiedade, liberdade e cultura de massa - Esta ansiedade que
aqui discuto se liga, intimamente, ao conceito de “liberdade para”
no sentido de Erich Fromm. O indivíduo, através de sua consciência,
visualiza uma possibilidade de ação ou de mudança, na qual ele passa
de um estado já atingido e bem protegido para um desconhecido,
ainda não alcançado, incerto ou não-familiar. Ao contrário do medo
no qual o indivíduo foge, neste tipo de ansiedade a pessoa a procura,
enfrenta ou caminha junto dela, para alcançar o propósito idealizado,
para se sentir tranquilo. É uma emoção exclusiva do homem: envolve
consciência, hipóteses e previsões para agir ou não. Trata-se de uma
ansiedade produtiva, isto é, leva a pessoa ao crescimento.
A outra ansiedade, a improdutiva, leva a pessoa à “não-ação”,
provocará uma ansiedade neurótica ou patológica, ligada ao sen-
timento de culpa pela não-realização, pelo não-crescimento ou ex-
pansão de si. Desejo esclarecer o leitor que, em alguns momentos, a
“não-ação” pode constituir um propósito da pessoa na sua expansão.
A criança procura, a qualquer preço, andar, apesar do risco de cair,
para desenvolver-se e suplantar uma fase da sua jornada. Mais tarde,
quando entra no pré-primário, ao desligar-se de sua família, fica ansio-
sa, chora, mas cresce ao se expandir e vivenciar novos modos de ser.
O primeiro emprego, o primeiro namorado, o afastamento da família
protetora, todas constituem crises de readaptações, nas quais a pes-

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soa passa de uma fase mais pobre de desenvolvimento, para uma mais
complexa. Esta irá exigir-lhe maior habilidade e competência. Quanto
mais o indivíduo for capaz de suportar essas ansiedades, mais ele se
desenvolverá.
Muitas pessoas ainda pensam acerca das emoções como especu-
lavam os grandes filósofos anteriores ao século XVII. Spinoza acredita-
va que a ansiedade podia ser abolida por meio do raciocínio lógico – a
supremacia da razão – ou da matemática.
Para ele e outros, a ansiedade e o medo eram emoções negati-
vas e vergonhosas. Esta falsa crença tem provocado consequências
graves: a eliminação da ansiedade produtiva paralisa o crescimento
individual. Ao escapar da ansiedade produtiva a pessoa sofrerá, inevi-
tavelmente, a ação da ansiedade neurótica devido ao não-crescimento
do indivíduo.
Os governos totalitários, a mídia em geral, as religiões e outros
hipnotizadores, frequentemente procuram narcotizar e paralisar os
indivíduos. Para isso esforçam-se para transformá-los em “grupos de
felizes”, incentivando-os a realizarem, unidos, ações tolas e infantis.
Esses grupos tendem a aniquilar os sistemas individuais, em proveito
de um sistema grupal criado por dirigentes fora do grupo.
As pessoas têm duas alternativas com respeito às suas vidas:
crescerem, suportando uma carga de ansiedade ao se projetarem para
o ainda desconhecido, isto é, para um futuro incerto do vir-a-ser, ou
permanecerem estáveis, sem se arriscarem ou sem propósitos pró-
prios. Nesta segunda opção, livram-se da ansiedade criadora ou sadia,
mas passam a apresentar sentimentos de culpa e tédio.
Têm sido criadas crenças e religiões diversas, ídolos, heróis, mi-
tos naturais e artificiais, para apaziguar e narcotizar esta multidão de
necessitados de uma orientação externa, já que não desenvolveram
uma interna. A ação da cultura fabricada tem fornecido paz e calma
ao indivíduo contra o sentimento de nulidade, mas, ao mesmo tempo,
impede o aparecimento da ansiedade produtiva, ou seja, do impulso
que força o indivíduo ao crescimento. Ao decretar sua morte como
sistema individual, dando-lhe uma orientação externa, nossa cultura

56
produz no alegre indivíduo uma emoção inocente, pueril, por fazer
parte de um sistema maior, que nunca é questionado, aceito com fé,
por pertencer a este ou àquele grupo: “Sou membro do fã-clube de
Emilinha”, “Sou médico”, “Sou torcedor do Atlético”, “Sou sócio do
PIC”, “Lavo-me com o sabonete Y, o que me faz ser igual aos artistas
de Hollywood”, “Moro na zona sul da cidade, janto nos melhores res-
taurantes e viajo pela...”.
Os mitos são seguidos cândida e fielmente por grande parte da
classe média. Esta, uma vez hipnotizada, acompanha as mais estranhas
sugestões e prescrições dos seus donos. Aquele que ousa escapar do
cabresto é marginalizado do grupo ideológico, ou mesmo internado
como louco nos hospícios.
O seguimento hipnótico das ideologias míticas, consumidas
por quase todos atrás dos modismos, das últimas novidades, da úl-
tima casa noturna aberta, buscando a relação sexual mais moderna
e com a mais recente aquisição da boate, confere-lhe o direito de
seguir sua trajetória no mundo, sem culpa e ansiedade, sem reclamar
e questionar. A massa que se submete ao novo modelo do penteado
seguirá, talvez um pouco mais animada, o novo político salvador de
vidas perdidas.

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A Triste História Dos Deprimidos

“Ando cansado... às vezes penso até que o melhor seria morrer.


Não tenho fome, a comida é sem gosto. Já emagreci 6 quilos neste
mês. Acordo muitas vezes durante a noite e a partir das 4 horas não
durmo mais. Como é difícil sair da cama... aliás, tudo está difícil, como
tomar banho e fazer a barba. Não acho graça em nada... olho para
meus filhos e choro. Morro de dó deles, por terem de enfrentar este
mundo horrível. Não tem nada bom, tudo é chato. Não tenho mais
forças. Se pego um jornal para ler, ou se olho uma novela na TV, não
entendo nada e nem sei contar o que foi que eu vi... nem o que foi
que eu li... Não cuidei direito da minha família. Falhei em tudo. Sou
um fracassado. O que eu sinto, não gostaria que o meu pior inimigo
sentisse. Cometi muitos erros na minha vida... eu me arrependo mui-
to deles. Acho que não vou conseguir sair dessa... só tenho vontade
de ficar deitado, de não fazer nada. De ficar sozinho. É horrível.”
Sua voz é fraca e penosamente lenta. Há um grande intervalo
entre cada som que ele pronuncia. Suas roupas estão mal cuidadas,
largas, desleixadas, até sujas. Falta-lhe um botão na camisa e existe um
abotoado no lugar errado. Seus ombros curvados para frente tentam
esconder o rosto fino. A barba grisalha está por fazer. A face é de tris-
teza, pálida, com grandes sulcos laterais. Duas olheiras sustentam um
olhar sem expressão. Os cabelos, também grisalhos, mal penteados,
mal cuidados e grandes para a sua pequena testa. Os óculos têm um
dos vidros partidos e um das hastes amarradas com uma linha que

59
um dia foi branca. Nas pontas dos dedos finos, unhas grandes, sujas
e amareladas pelos cigarros constantemente acesos. Apesar do calor,
nota-se, por baixo de sua camisa, uma camiseta de malha e, por cima
daquela, um paletó roto e largo. Seus dentes talvez há muito não sejam
escovados e no bigode ralo acha-se o que restou da última refeição.
Pouco fala e, quando o faz, parece aborrecido e cansado de
estar ali, defronte a mim, para relatar suas misérias. Às vezes seus
olhos se umedecem, lágrimas lentamente começam a escorrer, mas
ele discretamente passa o punho do paletó sobre os olhos e os en-
xuga, engolindo, através de sua garganta seca, alguma lágrima que
desceu. Tudo é vagaroso e penoso. O paciente transmite dor e so-
lidão. Seu desespero, tão profundo quanto sua amargura e tristeza,
contamina a minha mente, também às vezes triste e confusa por
conviver, há anos, dia-a-dia, com o absurdo e incompreensível sofri-
mento humano.
Eis aí, em resumo, uma tagarelice acerca de um dos meus pacien-
tes. Tagarelice, sim, pois nós não conseguimos captar os sofrimentos
de ninguém: apenas os imaginamos, lembrando os nossos próprios
sofrimentos. Assim também a minha vivência com esses pacientes é
minha propriedade, aprisionada em minha mente e impossível de ser
transmitida ao leitor de um modo adequado. Quando se trata de expe-
riências emocionais, com pouca, ou melhor, com nenhuma lógica, a
comunicação torna-se realmente impossível.
Todos nós já convivemos com a nossa depressão, seja por ho-
ras, dias, meses ou anos. A maior parte de nós tanto entramos, como
saímos da depressão, com relativa facilidade, utilizando os nossos
recursos próprios, quase sempre de maneira automática. Assim, va-
mos supor uma moça que perde o namorado e, compreensivelmente,
fica deprimida. Ela poderia arranjar um outro namorado e esquecer o
anterior, ou buscar outras atividades para substituir a ausência dele.
Poderá criticar o ex-namorado, taxando-o de estúpido e ignorante, e
com isso sentir até um certo alívio pelo rompimento, ou usar várias
outras técnicas disponíveis para cada um de nós. Rapidamente a nos-
sa amiga estará bem e suas emoções normalizadas.

60
Vamos supor, agora, em outro extremo, uma pessoa que não
utilizou seus recursos para combater a depressão. Nesse caso, a nossa
amiga, ao perder o namorado, vai, pouco a pouco ou rapidamente,
caminhando para aquele estado e várias partes dos seus sistemas aca-
bam sendo atingidos, contaminados.
Ela pode, por exemplo, faltar ao serviço, perder o sono, alimen-
tar-se mal, passar a não se cuidar, agredir as pessoas ao seu redor
afastando-as do seu convívio, etc. Desse modo, diversas atividades
saudáveis vão deixando de ser fonte de alegria, transformando-se em
problemas difíceis de resolver, ou em processos dolorosos. Cada novo
problema que aparece, ou cada disfunção ocorrida, necessariamente
aumenta a impotência de nossa amiga, vai-lhe criando uma imagem
cada vez mais negativa de si mesma e, simultaneamente, uma fantasia
altamente pessimista acerca do mundo ao seu redor e dos meios de
abordá-lo. Formou-se uma cadeia cada vez mais difícil de ser quebra-
da. Poucos são os aspectos positivos em sua vida e estes vão inexora-
velmente sendo minados e transformados também em sofrimento e
problemas. Nesse ponto a nossa amiga encontra-se já mergulhada em
sua depressão, totalmente dependente de outras pessoas e não mais
dos seus próprios recursos.
Para o deprimido, o mundo é mau, e ele, não tendo meios
para enfrentá-lo, acha-se sem saída. Com essa convicção, surgem fre-
quentemente as ideias ou a ação de suicidar-se. A obsessão é escapar
do sofrimento, ainda que seja necessário sacrificar a própria vida. Po-
dem surgir na mente do deprimido fantasias que o levam a querer
exterminar toda a família, para livrá-la do mundo de desgraças em
que vive. Também não é incomum o suicídio indireto, causado pela
provocação da própria morte por outra pessoa ou por um acidente
fatal. Nessa fase é ainda frequente o uso exagerado de bebidas ou cal-
mantes que têm a mesma função, isto é, tornar as próprias desgraças
e as de seu mundo mais toleráveis.
O deprimido é, portanto, uma pessoa que perdeu a capacidade
de manter uma adaptação biopsicossocial equilibrada dentro da nor-
malidade, ao enfrentar os múltiplos fatores ou miniacontecimentos

61
de seu cotidiano (fracassos, perdas, doenças, desapontamentos, etc.).
Seu sistema individual não retorna ao equilíbrio anterior, com a con-
sequente normalização, após cada problema.
A depressão é um transtorno emocional ou do afeto, como o
próprio nome indica, mas que pode ter repercussões graves e sérias
no relacionamento social, acarretando perturbações cognitivas, psi-
comotoras, psicofisiológicas e ainda facilita a instalação da maioria,
senão de todas as doenças orgânicas, pela diminuição das defesas
imunitárias.
A esta altura, convém lembrar que algumas depressões parecem
originar-se primariamente de distúrbios bioquímicos, enquanto em
outras as causas iniciais são transtornos psicológicos e sociais, ocor-
rendo, posteriormente, as modificações bioquímicas.
Uma vez mergulhado na depressão, o paciente não crê que
possa escapar dela. Entretanto, ao receber tratamento adequado, suas
chances de recuperação são grandes. Alguns poucos casos evoluem
para a depressão crônica, apesar dos tratamentos. Para alguns, o ata-
que de pânico, o alcoolismo, a dependência às drogas, as dores crôni-
cas e outras formas de conduta desadaptada dos jovens seriam equiva-
lentes de uma crise depressiva. Para terminar, a depressão é a doença
mais frequente no consultório psiquiátrico: atinge cerca de 50% dos
pacientes que nos procuram. A maioria dos que dela padece, não vai
ao médico.

62
tomE seu TRANQUILIZANTE E
VIVA FELIZ

Diga adeus à ansiedade. Os grandes laboratórios farmacêuticos


interessados no faturamento construíram a crença de que podemos e
devemos viver sem ansiedade. Esta falsa ideia foi assimilada por alguns
médicos e pelo público em geral, promovendo a ida dos ansiosos aos
consultórios, em busca do remédio milagroso. Entretanto a ansiedade
pode ser uma emoção saudável e necessária a uma boa adaptação do
indivíduo ao meio, sendo, muitas vezes, um aviso do organismo, indi-
cando que algo precisa ser feito para modificar a vida.
Os tranquilizantes têm sido usados há milênios. O primeiro de-
les, e que continua a ser consumido, é o álcool. Atualmente, cada dia
mais, diversos outros calmantes são lançados no mercado para alegria
dos consumidores aflitos. Uma estatística da Organização Mundial de
Saúde, publicada há alguns anos, mostrou um consumo anual de 500
milhões de psicotrópicos no Brasil. Desses, 70% eram ansiolíticos, ou
seja, medicamentos para diminuir a ansiedade, apreensão, tensão ou
medo. Muitas pessoas só dormem após tomarem seu sedativo prefe-
rido e, para suportar o dia desagradável que virá, ingerem mais outro
calmante diurno. Alguns usam os tranquilizantes para viajar de avião,
dançar, namorar, transar, dar aulas, casar, isto é, as atividades que
podem acarretar um certo grau de intranquilidade.
Os ansiolíticos são ingeridos puros ou misturados com bebidas,
usados junto a moderadores de apetite, as drogas anticolinérgicas (os

63
chamados antidistônicos). Alguns estão embutidos nos medicamen-
tos antidepressivos, fortificantes, vitaminas, diuréticos, etc. As bulas
acerca dos calmantes geralmente são mentirosas, descrevem muito
mais os “bons” resultados do que os “maus”. Muitas não relatam a
dependência após um curto período de uso, a diminuição da capaci-
dade psicomotora, o aumenta do cansaço, a diminuição da memória,
a piora dos sintomas após a sua interrupção (ansiedade rebote) e o
risco de seu uso nos idosos e crianças. Uma curiosidade: os que têm
menos conhecimentos acerca de seus “excelentes efeitos terapêuti-
cos”, como os pacientes mais humildes dos ambulatórios, beneficiam-
se pouco com seu uso.
Como a população brasileira tem estado intranquila com res-
peito ao futuro do país, conclamo o governo a distribuir essas drogas
milagrosas para todos nós, em lugar de gastar dinheiro com alimen-
tos, moradias, empregos e assistência médica. Com o povo calmo, os
governantes poderiam usufruir o encantamento do poder. Cada cida-
dão teria direito de uma a três doses diárias, conforme sua ansiedade.
Este, uma vez embriagado com o efeito do calmante, não mais faria
greve, não mais amolaria o pobre governo com reclamações tolas e
injustas. Ingerindo sua dose diária de ansiolíticos as pessoas viveriam
e morreriam calmas, talvez, quem sabe, até felizes.

64
sono, Insônia E Pílulas

Das 8.760 horas de um ano, o homem dedica perto de 3.000


ao sono e dorme aproximadamente 24 anos de sua existência. Você,
que está lendo esse artigo, já teve vários sonhos, pesadelos e algumas
vezes falou enquanto dormia. Quando criança, ou mesmo depois de
adulto, urinou na cama e pode ter perambulado pela casa durante seu
sono. Alguns dias deitou-se e demorou a adormecer; diversas vezes
acordou durante a noite ou cedo demais, sem desejar, e durante al-
guns dias de sua existência, você trabalhou sonolento. Talvez use, ou
já usou, medicamentos, na falsa esperança de que eles o ajudariam a
dormir. Você sabe o que é o sono?
Cerca de 12 a 15 por cento da população dos países industria-
lizados tem sérios distúrbios do sono, outros 20 a 25 por cento da
população apresentam distúrbios ocasionais de insônia.
A partir das ondas cerebrais, que são detectadas quando um
eletroencefalograma (EEG) é registrado durante o sono, verifica-se o
aparecimento de ondas sincronizadas (sono NREM), também denomi-
nado de sono ortodoxo, e de ondas não-sincronizadas (sono REM), ou
sono paradoxal. O termo “REM” decorre do inglês (“rapid eye move-
ments”), indicando que nesse sono ocorrem movimentos rápidos dos
olhos.
O sono NREM (sem movimentos rápidos dos olhos), compreen-
de três fases: 1, 2 e 3 (delta). Nosso sono inicia-se com um sono mais
leve e prossegue até alcançar a etapa mais profunda. Ao adormecer,

65
surgem as fases do sono, nas sequências 1-2- 3 (delta) e novamente
2, que são entremeadas pela fase REM (fase dos sonhos). A fase 1 é o
período de transição da vigília ao sono.
O sono delta - sono profundo - é o período do comportamento
extravagante, quando as pessoas falam dormindo, se sentam e come-
çam a ter longas conversas consigo mesmo e os sonâmbulos levantam-
se e passam a andar pela casa. É também o período da noite em que as
crianças, às vezes, urinam na cama, ou apresentam o estranho proble-
ma chamado terror noturno (por exemplo, gritar enquanto dorme).
Ao começar o sono REM, o corpo se acha totalmente relaxado.
Se alguém arrastar a pessoa para fora da cama e tentar colocá-la de pé,
ela cairá. O corpo não se move absolutamente, percebendo-se apenas
a oscilação ocular. Caso se trate de um homem, ele tem uma ereção
peniana automática, caso se trate de mulher, os tecidos vaginais en-
chem-se de sangue. No interior do corpo, os batimentos cardíacos e
a pressão arterial sobem, a respiração torna-se irregular, e poderosos
hormônios invadem a corrente sanguínea, liberados de certos órgãos,
tais como das glândulas suprarrenais. Todos os tipos de cenas e ima-
gens fantásticas passam pela mente da pessoa, pois é nesse período
que se tem a maioria dos sonhos e pesadelos.
Cada ciclo completo de sono NREM, somado ao REM, tem uma
duração aproximada de 90 minutos cada. Durante uma noite inteira de
sono, ocorrem 4 e 5 ciclos, de cerca de 90 minutos cada. Nos ciclos
posteriores, no fim da noite, quase não se observa mais a fase delta.
Nos idosos, a fase 1 do sono NREM, que é o sono mais superficial,
cresce muito, em detrimento do sono delta ou sono profundo. Nessa
faixa etária também, diminui geralmente o número de horas realmen-
te dormidas, que cai para 5 a 6 horas por noite. Em outras palavras, o
idoso normal dorme menos tempo, sonha menos e seu sono é mais su-
perficial e, além disso, frequentemente apresenta sonolência diurna.
As necessidades de horas de sono, além de variar com a idade,
variam de pessoa para pessoa. Assim alguns necessitam de 10 a 12
horas, outros, de 3 a 4, alguns poucos, de apenas 1 hora de sono por
noite. Uma pessoa apresenta insônia se sua dificuldade para dormir

66
interfere cronicamente com uma eficiente função durante o dia, inde-
pendente do número de horas dormidas. Portanto, o que caracteriza
a insônia é o malestar ou sonolência diurna e não o número de horas
dormidas durante a noite. Cada indivíduo deve estabelecer as suas
necessidades diárias de sono, a partir de suas próprias experiências
com diferentes números de horas de sono.
Alguns clientes se queixam do oposto da insônia, ou seja, da
hipersônia - sono exagerado. Quando essa ocorre, é possível que a
pessoa esteja dormindo um número de horas inferior à sua real ne-
cessidade, mas também podem estar ocorrendo certos problemas
médicos tais como o do hipotireoidismo, transtornos psiquiátricos
(depressão), ou ainda perturbações específicas próprias do sono (ap-
neia do sono, narcolépsia). Esses transtornos levam a pessoa a não
dormir normalmente, ainda que eles achem que dormiram satisfato-
riamente.
O que às vezes torna-se intrigante são as insônias de causas com-
portamentais ou situacionais. Algumas são bastante óbvias. Sabe-se,
por exemplo, que o primeiro sono da noite em local estranho é, em
geral, insatisfatório. As pessoas que moram perto de aeroportos, ou
de estradas e ruas muito movimentadas, talvez não durmam tão bem
como quem vive numa tranquila localidade do campo, ou num bair-
ro silencioso. Vários estudos revelam que, embora as pessoas que
partilham da mesma cama e tenham, em geral, uma boa vida sexual,
muitas vezes dormiriam melhor se estivessem em camas separadas,
particularmente se uma delas tem sono agitado. Partilhar a cama com
alguém pode significar também partilhar a insônia. Finalmente, a pes-
soa pode, ocasionalmente, ser vítima do que é conhecido como “Insô-
nia da Noite de Domingo”. Esta resulta em geral da alteração na escala
horária dos fins de semana, quando se vai para a cama e se levanta
mais tarde. Algumas pessoas, mesmo adormecidas, permanecem pen-
sando intensamente, dando a impressão de estarem acordadas, mes-
mo quando, objetivamente, através do eletroencefalograma, se per-
ceba que estejam no sono NREM. Também pode ocorrer que certos
insones apresentam tempo excessivo de sono na fase 1, isto é, na fase
superficial, dando-lhes a impressão de estarem dormindo pouco.

67
As mais diversas e curiosas particularidades acerca da melhor
maneira de dormir, para uma dada pessoa, são encontradas. Alguns
necessitam silêncio absoluto, enquanto que para outros o sono é me-
lhor quando ouvem uma música, ou quando a TV estiver ligada. Para
alguns o melhor sonífero é um certo tipo de leitura.
Certas pessoas só dormem com as janelas abertas. Muitos, ao se
dirigirem para a cama, imaginam que não vão dormir e acabam não
dormindo. O exercício físico realizado no fim da tarde ou início da
noite, parece influenciar o sono: há aumento de ondas deltas - en-
quanto que realizado em excesso, pouco antes de se deitar, prejudica
o sono. É mais fácil acordar uma pessoa quando esta se encontra na
fase 1 do que na fase 2, ou no sono REM, e há ainda mais dificuldade
de despertá-la na fase delta.
Uns preferem a cama dura, outros, a macia. Não se dorme bem
nas temperaturas muito baixas ou muito altas. Dorme-se mal acima
de 24 graus, nessa temperatura a pessoa acorda e movimenta-se mais
vezes à noite e há um decréscimo do sono REM e do delta. Tudo in-
dica que o sono melhora, se a pessoa alimentar-se com uma refeição
leve à noite.
Alguns médicos decidem o que fazer diante de uma queixa de
insônia dos seus clientes em cinco minutos, prescrevendo-lhes um
comprimido para dormir. Isto é grave, pois parte dos pacientes que se
queixam de insônia não a têm, quando se lhes faz exame mais minu-
cioso. Outros que realmente têm insônia, podem estar apresentando
distúrbios psiquiátricos ou médicos não tratáveis com hipnóticos ou
ansiolíticos. A negligência em relação às drogas ingeridas diariamen-
te pode também afetar o sono, caso a pessoa não perceba que está
abusando delas. A cafeína existente no café, alguns chás e em vários
refrigerantes, é provavelmente uma das mais ignoradas causas de in-
sônias e, no que se refere ao sono, seus efeitos são, sem dúvida, pou-
co lembrados.
Dependendo da sensibilidade ao efeito excitante dessa droga,
uma xícara de café é capaz de estimular o cérebro até sete horas de-
pois de ingerida.

68
Se você fuma muito, isto é, dois maços, ou mais, de cigarros por
dia, talvez o vício da nicotina o esteja mantendo acordado à noite. Os
pesquisadores descobriram que alguns fumantes, após dormirem cer-
ca de quatro horas, passam por uma necessidade de nicotina tão forte
que acordam ansiosos por um cigarro.
Outra droga que perturba o sono é o álcool.
Um pequeno “drinque”, ingerido para “chamar o sono”, perde
pouco a pouco o seu efeito, e é preciso beber cada vez mais para
conseguir o mesmo resultado. Em grande quantidade - após uma ver-
dadeira bebedeira, ou no caso extremo de um alcoólatra - o álcool é
capaz de arruinar o sono normal durante dias ou semanas. Em qual-
quer quantidade, o álcool anula os períodos REM do sono, conduzin-
do, assim, a descanso pouco profundo. Quando se deixa de beber,
todo o sono REM reprimido volta, trazendo consigo um acúmulos de
sonhos e pesadelos.
Os comprimidos para dormir são capazes de transformar uma
insônia comum, banal, diária, num verdadeiro monstro. A razão é que
essas pílulas talvez provoquem, exatamente, o problema que estão
destinadas a curar. Tomadas todas as noites funcionam apenas por al-
gum tempo, em geral duas semanas. Tomando-se pílulas durante mui-
to tempo, a insônia e a qualidade do pouco sono existente se tornará
pior do que no tempo em que não se tomava comprimido algum.
Como nação de sofredores, possuímos o que equivale a uma
fé religiosa no poder das drágeas. Tomamos comprimidos e cápsulas
para tudo, desde ansiedade, dores nas costas, resfriados, depressão,
fadiga, ressaca, azia, dores de estômago, etc., até, naturalmente, para
a insônia. Se uma pílula não funciona, não perdemos a fé e a trocamos
por outra. O poder de tal confiança é extraordinário e permanece
muito misterioso. O grau de eficácia de um remédio depende, em
parte, do seu conteúdo químico. A droga tem que ter o seu atrati-
vo para a pessoa. É preciso que o paciente acredite nela, razão pela
qual algumas das medicações de efeitos mais mortais são envoltas em
alegres cápsulas de gelatina vermelha, amarela e verde, lembrando
saborosas balas.

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Drágea alguma proporciona uma noite de sono inteiramente nor-
mal. Todas as vendidas com ou sem receita médica são depressoras
do sistema nervoso central, maneira médica de dizer que funcionam
indo direto ao cérebro e deixando semiconsciente a pessoa. Reduzem
os batimentos cardíacos, a pressão arterial, o ritmo respiratório, os
reflexos e o tono muscular, inibindo também parte do sono, em geral
o ciclo REM.
De alguns anos para cá os estudiosos do sono têm “receitado”
para a insônia uma substância chamada triptofano. Trata-se de uma
proteína natural encontrada em diversos alimentos, desde a manteiga
de amendoim até o bife. Triptofano, ou L-triptofano, conforme é às
vezes chamado, fornece a matéria-prima do elemento químico cere-
bral, a serotonina, que conforme os pesquisadores, é um dos ingre-
dientes mais necessários à ativação dos centros do sono. Você, leitor,
poderá economizar seu dinheiro indo direto à fonte para obter uma
dose de triptofano. Entre os comestíveis com alto teor de proteínas
figuram: atum, fígado, carne, costelas de porco, galinha, peru, amen-
doim, feijão e laticínios, como queijo, requeijão e aquele antigo remé-
dio caseiro para a insônia, muito usado pelas nossas mães, um copo
de leite morno. Todos são encontrados, não nas farmácias, mas nos
supermercados.
Se você não estiver com fome, pode tentar outro recurso: bas-
ta procurar no seu armarinho de remédios: a aspirina e a dipirona
devem estar lá. Alguns insones descobriram que elas têm o efeito de
um suave comprimido para dormir. Não force seu sono, a raiva é um
poderoso despertador interno. Para dormir, é necessário não pensar
em dormir. Para terminar, Bom Sono e Bons Sonhos.

70
Prelúdio para um casamento morto

Todos nós já convivemos com casais que estão no último round


de uma luta de muitos assaltos, na busca de uma separação. O que ou-
vimos são quase sempre as mesmas histórias, semelhantes a várias ou-
tras, ou seja, repletas de acusações mútuas, com vários lances teatrais
e quase sempre enfadonhas. Nunca ouvimos do cônjuge nosso amigo
um relato onde ele se diz culpado, pois o errado é sempre o outro.
As brigas do casamento já não são mais como antigamente, quan-
do poucas separações ocorridas eram devidas às “traições” diversas
ou ao abandono do lar, geralmente por parte do homem.
Hoje elas se dão, em grande parte, pela disputa do poder. Luta-se
pelo direito de dar ordens. Antigamente, o poder, quando exercido
pelas mulheres, o era às escondidas, pois aceitava-se como normal os
homens mandarem.
O prelúdio da separação é caracterizado por discussões contínu-
as, algumas vezes acompanhadas de agressões físicas. Os temas deba-
tidos, que na verdade servem de “aperitivos” para a entrada das agres-
sões pessoais, são vários: o horário de se chegar a casa, a demora para
se aprontar, o sabor ruim da comida. As diversas disputas revelam
os valores antagônicos do casal, como as queixas quanto à escassez
ou ao excesso das relações sexuais, a saída ou não de casa para fazer
visitas ou passeios.
Várias condutas dos cônjuges servem para precipitar ressenti-
mentos como: o marido fica vendo o jornal na TV, enquanto a esposa

71
deseja conversar, a mulher quer a casa bem arranjada e o marido a
suja e nem liga, um deseja ficar abraçado ao outro e este, que detesta,
sente-se como estivesse assentado em espinhos.
Também os diversos projetos familiares tendem a promover bri-
gas: quando e onde ir nas próximas férias, onde passar os fins de
semana, como educar os filhos ou os netos, qual a melhor hora de se
levantar ou de se deitar, quem fará as compras.
Nos momentos finais de um casamento, tudo serve para desper-
tar antipatias, discussões e despertar antigas irritações transitoriamen-
te adormecidas. Essas últimas surgem por motivos fúteis, tais como o
modo de andar, mastigar, ir ao banheiro, dormir, roncar, dirigir, as-
sentar-se e tossir, do outro cônjuge. E como elas ficam insuportáveis.
Tudo mudou. Antes, no período do namoro e paixão, as preferências
de cada um eram admiradas e encantadoras. Agora, no tempo das
disputas, ela passam a ser ridículas como gostar de assobiar, soprar o
café para esfriá-lo, fazer ginástica, tomar cerveja, ouvir música caipira,
andar de ônibus ou fazer compras na rua dos Caetés.
Os diálogos de um casamento em fase final têm características
singulares. Quando um cônjuge pergunta algo ao outro, ele não quer
ouvir respostas objetivas ou possíveis, quer descobrir pretextos para
criticar, arrumar uma briga, a partir da “deixa” dada pelo parceiro.
Assim, a água retorna ao rio, reinicia-se a velha e conhecida briga in-
terrompida por motivos alheios aos dois. Muitos desses diálogos são,
de fato, metadiálogos, isto é, discute-se acerca dos próprios diálogos
e não de algo externo à fala, como nos exemplos: “você sempre me
agride” ou “você está sempre me acusando”. A comunicação é sobre a
própria briga. Esta, quase sempre, coloca mais lenha na fogueira.
O casal lembra com saudades os velhos tempos quando havia
complementaridade nas conversas. Antes, quando um fazia um co-
mentário a respeito do dia, afirmando que esse estava lindo, o com-
panheiro, sorrindo, concordava usando um tom de voz calmo e me-
lodioso, achando a observação pertinente e poética. Nos prelúdios
do casamento morto, a mesma declaração desencadeará uma série de
agressões, muito diferente dos comentários carinhosos de antigamen-

72
te: “Você sempre teve um gosto estranho, o dia hoje está horrível!”
Num ambiente desses, torna-se penosa e incerta a vida a dois.
O ataque poderá surgir a qualquer momento, nenhum deles
sabe quando e como ele virá e essa incerteza produz insegurança e
desconfiança.
As mensagens trocadas no fim do casamento são com frequên-
cia ambíguas, como nos casos do marido que, com uma voz áspera e
usando palavrões, afirma para a esposa que a ama muito, não poden-
do viver sem a sua companhia. Ou no caso da esposa que prepara um
delicioso e requintado jantar para o aniversário do marido mas, ao
mesmo tempo, mostra uma cara amarrada e de enfado na presença
dele com o que está fazendo.
As tensões, ao crescerem dia após dia, levam os dois, muitas ve-
zes, ao desespero, pois as feridas surgidas pela discussões violentas,
produzem marcas que não desaparecem nunca mais. Ao mesmo tem-
po, a possibilidade de virem a se separar e terem que reiniciar uma
vida longe um do outro, assusta os dois. No final de um casamento,
cada um, sozinho, passa grande parte do tempo pensando acerca da
vida ruim que está levando.
Alguns, depois de muitas e muitas brigas, exaustos acabam por
desistir de continuar a luta: renunciam às agressões e também ao
amor. Isolam-se, cada um no seu canto, sob o mesmo teto, dormindo
muitas vezes na mesma cama. Desfazem de todos os modos possí-
veis as comunicações que poderiam despertar antigas rixas. Nesses
casos, aos olhos dos outros, eles passam a viver felizes para sempre.
Comemoram todas as bodas possíveis e, impotentes, ficam esperando
a morte os separar, pois enquanto viveram, eles não tiveram fôlego
suficiente para isso.

73
A difícil arte do casamento

Acerca do casamento todos nós podemos falar, mesmo os que


nunca se casaram nem mesmo pensaram casar-se, pois tudo o que se
diz é certo e ao mesmo tempo não o é. Sabemos muito acerca do ca-
samento, porém não sabemos realmente muitas coisas. Todos nós, até
os peritos em casamento, falham ao falar sobre este tema.
Uma pessoa se casa por dois motivos básicos: o primeiro - e a
cada dia torna-se o principal - é a busca da própria satisfação e a do
seu cônjuge, através do encontro com o outro. Busca-se uma “com-
plementação” do que lhe falta, ou seja, uma preenchimento de si mes-
mo. Um nutre o outro do alimento biopsicossocial. Em segundo lugar,
casa-se para procriar, mas, diga-se de passagem, aumenta o número de
casais sem filhos.
O casamento, infelizmente, contém muitos ingredientes para
não dar certo e é necessário muito esforço, habilidade e flexibilidade,
para que conduza a melhores condições de vida. Vejamos alguns des-
tes ingredientes frequentes em todos casamentos, variando apenas
quanto ao grau: a) Passam a morar juntas duas pessoas de sexo dife-
rente, geralmente com suposições falsas a respeito de si mesmas. Para
isso basta analisar as ideias “machistas” ou as “feministas”, para perce-
ber os estereótipos imputados aos homens e às mulheres; b) Unem-se
duas pessoas provenientes de organizações familiares diferentes, com
atitudes, valores, percepções, modos de relações, ideologias e religi-
ões diferentes. Um gosta de uma coisa que o outro detesta: um côn-

75
juge aprecia ficar abraçado ao outro, quando junto. Isso lhe fornece
segurança e amparo. Por outro lado o outro cônjuge tem pavor desse
agarramento, é como estar deitado numa cama coberta de cascalho.
A diferença entre os cônjuges é a riqueza e a miséria do casa-
mento. Quando quero crescer ou aprender, procuro conversar ou ler
algo que possua ideias diferentes das minhas, do contrário nada apren-
deria. Biologicamente, há sérios riscos de casamentos entre iguais,
podendo esses conduzir à hipertrofia de defeitos físicos. Do mesmo
modo, cognitivamente, se interagirmos com iguais, poderemos, sem
perceber, regredir ao ouvir e seguir opiniões e julgamentos iguais aos
nossos, uma soma de nossas mazelas, pontos cegos ou condutas ingê-
nuas. Já o casamento de pessoas diferentes, tanto no sentido estrito
como no lato, pode ser um contato reparador, que nos desperta e nos
faz descobrir mundos nunca imaginados.
Anteriormente a “grande família” - avós, tios, primos - vivia como
um clã e seus membros interagiam uns com os outros com muita fre-
quência. Atualmente, cada família vive quase isolada, mantendo ape-
nas contatos esporádicos e superficiais com os parentes. Como con-
sequência, enquanto nossos antepassados podiam observar de perto
diferentes modelos de vida, hoje os nossos filhos possuem, quando
muito, apenas os pais, e mesmo esses muitas vezes pouco contato
têm com os filhos. Nos velhos tempos os filhos presenciavam o tra-
balho dos pais e vivenciavam suas satisfações e insatisfações diárias.
Hoje os filhos só veem o pai e mãe à noite, quando isto ocorre. Muitas
crianças são educadas apenas pelas mães ou babás, sem a presença de
modelos masculinos.
Os casamentos são, em grande parte dos casos, entre duas pes-
soas inseguras, medrosas, com pouco conhecimento de si mesmas e
fazendo pouco uso de suas potencialidades, percebendo, avaliando
e atuando mal nos eventos de seu mundo. Por isso, a escolha de um
companheiro, não como ele é, mas como se julga, imagina e deseja
que seja, baseado em suas aspirações. Espera-se, na ligação, um su-
porte ou direção externa que leve a alcançar uma “boa vida”, ou uma
felicidade que não foi conseguida através do esforço próprio. Julga-

76
se que o poder de uma “vida feliz” encontra-se no outro e exige-se
deste a felicidade não conseguida em si mesmo. “Só serei feliz junto a
você”, “Não aguento viver sem você”.
Essas são frases comuns entre pessoas enamoradas. Nada mais falso.
Não se pensa o que um poderá fazer para ajudar o outro, pensa-
se no seu oposto, ou seja, como serei ajudado já que não tenho o
que dar. Está claro que após o casamento os dois percebem o que
ocorreu: ambos estavam enganados. Assim, as exigências começam,
pouco a pouco surgem os desgostos, as brigas, as agressões, o deses-
pero, as ameaças e, ao mesmo tempo, a dificuldade de sair disso tudo.
As agressões costumam ser sutilíssimas, já que os cônjuges conhecem
muito bem os pontos fracos e as feridas do outro.
No casamento de pessoas mais amadurecidas, a escolha é mais
bem feita, as diferenças mais respeitadas, cultivadas e até incentivadas,
pois aprende-se com elas. Como não é fácil conviver com diferenças,
os cônjuges amadurecidos estão sempre se modificando, utilizando
novas técnicas e métodos de lidar com pequenos aborrecimentos e
crises que inevitavelmente ocorrem, mas que são superados pela co-
municação entre eles. Essa é feita de maneira clara e objetiva, sem ro-
deios e sem medo. Fundamentalmente, se os casais são amadurecidos,
cada cônjuge consegue reajustar-se ao novo relacionamento, criando
um sistema de vida conjugal sem que este determine a extinção dos
sistemas individuais.
Com o nascimento dos filhos, nova adaptação torna-se necessá-
ria, já que os cônjuges terão também de participar do sistema paren-
tal. No casamento de pessoas inseguras o sistema individual de cada
cônjuge, que já não era claro e eficiente, vai se esvaindo no sistema
conjugal e é muitas vezes enterrado para sempre, no sistema parental
que poderá surgir.
Para finalizar, podemos distinguir dois tipos diferentes de casa-
mento: o “arranjado” e o procurado. O casamento “arranjado”, que
era o predominante em épocas passadas, baseia-se na premissa bá-
sica de que “o amor vem depois”. É o casamento de desiguais, as-
simétrico, onde o casal comumente tem grande número de filhos,

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tendo como objetivo manter o poder social e econômico. Pouca im-
portância é dada à relação entre os cônjuges e por isso o número de
separações é pequeno.
Casamentos deste tipo ainda são frequentes nos grupos de maior
poder político e econômico e em pequenas cidades do interior.
No casamento procurado, a crença básica é a de que o amor
vem primeiro e a ênfase é dada à relação entre os cônjuges que supos-
tamente são iguais: em direitos e deveres. Geralmente são casamen-
tos com poucos filhos e o poder econômico não é muito relevante.
Casa-se para complementar um ao outro e para troca de prazeres e
o número de separações neste tipo de casamento é mais frequente.
Estamos vivendo um período de transição com aumento do número
de casamentos procurados ou livres. Mas em ambos os tipos citados,
os cônjuges estão presos aos padrões e valores sociais mesmo quan-
do suas escolhas são “livres”. Assim um rapaz “escolhe livremente”
uma moça que tem a sua cor, cultura, valores e educação, frequenta
os mesmos lugares, comunga a mesma religião, o mesmo partido po-
lítico e assim por diante. Ou seja, o indivíduo “escolhe” um tipo de
companheira já escolhida previamente pela sua cultura, seguindo os
valores que foram impressos em sua mente sem sua crítica. Poucos
conseguem escapar desse domínio simbólico e descobrir outros ca-
minhos possíveis.

78
Os Descasados

Após o dilema, casar ou não casar, se o indivíduo optou pelo casa-


mento, surge um novo dilema: descasar ou não. Isto, para aqueles que
têm à sua disposição, no seu mundo mental, essa opção. Alguns creem
que, uma vez casados, seu casamento está “garantido”, ou seja, que
não há necessidade do esforço de cada cônjuge para mantê-lo durante
a crise que o casal atravessar. No outro extremo, encontram-se aqueles
para os quais a separação constitui a principal, ou mesmo a única arma
para a mais simples crise. Estes últimos, diante de qualquer desavença,
argumentam: “É melhor nos separarmos”, “Vou procurar o advogado”
ou ainda, “Se você fizer novamente esse arroz, eu saio de casa”.
Qualquer casamento tem, inevitavelmente, inúmeras crises. Es-
sas, bem aproveitadas, podem conduzir à produção de um casamento
funcional e sadio, como meios para readaptações, que forçosamente
terão de sofrer os indivíduos quando se casam.
Cada um dos cônjuges possuía, antes de se casar-se, um modelo
de vida próprio, diferente do sistema conjugal formado pelo casamen-
to. Ocorre o mesmo quando uma pessoa que se acha desempregada,
começa a trabalhar, ou vice-versa. Ela necessitará adaptar-se ao novo
esquema de vida e isto é feito com algum sofrimento, apreensão e
perda de conduta e valores importantes que possuía.
Busca-se no casamento uma melhoria de qualidade de vida do in-
divíduo. Se isto não ocorre, o casamento fracassou e medidas devem
ser tomadas para melhorá-lo ou terminá-lo, caso a melhoria não seja
alcançada após diversas tentativas disponíveis ao casal.

79
Imaginemos um casal que, tendo tentado todos os recursos à
sua disposição e, não obtendo resultados, decida separar-se. O pro-
blema é semelhante quanto ao casar ou não casar.
Antes o problema se constituía em romper um sistema de vida
de solteiro, para passar a fazer parte de um sistema conjugal. Agora
os cônjuges já comprometidos num sistema conjugal e, se tiverem
filhos, também no parental, retornarão ao sistema individual após o
rompimento do casamento. Mas não é fácil romper um sistema de
vida e entrar em outro, quando o indivíduo já se encontra amolda-
do, principalmente se o casamento durou muitos anos e, mais difí-
cil ainda, se o casal teve muitos e bons momentos. Não é raro que
após a separação, os cônjuges, derrotados e amargurados, retornem
à casa paterna, tornando-se novamente “filhos” e não mais “marido”
ou “mulher”.
Quando acontece a separação, o casamento já estava provavel-
mente “doente” há muito tempo. Algumas separações iniciam-se antes
mesmo do casamento ocorrer. Quando as brigas continuadas pelos
mesmos temas entre namorados ou cônjuges inicia-se, cada um culpa
o outro pelo ocorrido e, geralmente, recebem dos amigos e familiares
- juízes parciais - uma sentença favorável. Cada um, na interpretação
do respectivo amigo, está certo e o culpado é sempre o outro. “Como
ele mudou”. “Era tão diferente quando começamos a namorar”. “Vi-
rou um monstro insuportável, notei isso ainda na lua de mel.
Cada cônjuge busca apoio nas pessoas que têm o seu próprio
modelo e isto reforça a falsa crença no “erro do outro”, aumentando
e cristalizando as desavenças e o abismo entre o casal, onde cada um,
seguido por seu exército, dá origem à guerra conjugal. Esta batalha
é reforçada com a ajuda de tropas alienígenas, isto é, advogados, psi-
quiatras e outros assessores.
Tudo isso ocorre em virtude de uma cegueira coletiva acerca da
propalada ideia de “causa de um só lado”. Em toda relação, a conduta
de cada um dos indivíduos é resultado de sua própria conduta e do
comportamento do outro. Em outras palavras, se um deles muda, a
conduta de seu companheiro fatalmente mudará.

80
Os dois têm, em suas mãos, os lances necessários para mudar a
conduta do “outro”, simplesmente agindo de maneira diferente do es-
perado, ou seja, em desacordo com o sistema estabelecido, desenhado,
estruturado e compartilhado por ambos os cônjuges e não por apenas
um deles. Minha mãe já há muito dizia: “Quando um não quer, dois não
brigam”. Está aí, de forma simples, toda a sabedoria da causalidade circu-
lar ou do poder de ambos, em contraposição à linear, ou seja, do poder
de apenas um dos indivíduos. Se sairmos do “jogo” a disputa terminará
ou, se desejarmos, fazendo uma provocação, a briga ocorrerá. Uma vez
separados, a tendência normal dos descasados é a de se manterem ainda
casados, seja através da continuação dos encontros ou das brigas, seja
através do “casamento” com os filhos, ou até arranjando apressadamen-
te um novo casamento. Neste último caso, o fracasso do novo casamen-
to é quase a regra, pois quando estamos nos afogando, qualquer “galho”
parece-nos ótimo para segurar. Um pouco mais tarde, verificamos que o
“galho” salvador é fraco e não servirá para nos apoiar.
Caso o modelo mental do cônjuge não lhe permita viver só, ao
procurar os seus familiares estará perdendo a oportunidade de “cur-
tir” uma solidão, que, uma vez bem cultivada, poderá lhe permitir
ser criativo ou recompor sua vida. O medo ao desconhecido, viver
sem o cônjuge, poderá ser uma forma de crescimento individual, pois
constitui um novo modo de vida e é, talvez, o principal obstáculo à
separação, quando o casamento está se deteriorando. Outros fatores
criam pressões para a não separação: a antiga crença no compromisso
“até que a morte nos separe”, a admiração por aqueles que, mesmo
vivendo mal, não ousam separar-se, o valor atribuído pela sociedade
à vida conjugal, reputado como superior à vida de solteiro, a ideia
de que um homem bem-sucedido deve estar casado, os problemas
financeiros futuros, a dificuldade de educar os filhos sozinhos e, por
último, o sofrimento do afastamento da família.
Esses motivos provavelmente constituem as principais barreiras
contra a separação, que podem levar os cônjuges à depressão, assassi-
nato, suicídio, ao surgimento de várias doenças orgânicas graves, mas
também ao crescimento individual.

81
De qualquer modo, os primeiros meses ou anos da separação
são quase sempre dolorosos. O que fazer para escapar aos seus as-
pectos negativos e alcançar os positivos? Teoricamente é simples.
Todo sistema humano é aberto e por isso transforma e é transfor-
mado pelos sistemas vizinhos. Todo indivíduo acha-se ligado com
vínculos humanos, ora mais fortes, ora mais fracos. O sistema conju-
gal e parental constituem, entre outros, sistemas com ligações fortes
para a maioria dos humanos. Mas existem outros sistemas também
fortes que o descasado poderá procurar: o de sua família, o trabalho,
o lazer, os amigos, a saúde física e mental, o econômico, o criativo,
artístico e outros.
Rompendo-se, pela separação, o sistema conjugal e comumente
o parental para os homens, o indivíduo provocará uma piora na sua
vida caso abandone também, ou diminua, o envolvimento com os de-
mais sistemas como, por exemplo, afastando-se ou desinteressando-se
do seu trabalho, dos amigos, família, lazer, etc. Por outro lado, se o
descasado hipertrofiar ou incrementar suas energias nos vários outros
sistemas que haviam sido cortados devido ao casamento, ou ligar-se a
outros sistemas gratificantes que não haviam ainda sido vivenciados, a
separação será mais suportável, agradável e podendo, até mesmo, ser
benéfica para os dois cônjuges e para os filhos.
Torna-se necessário que além da separação física, o ex-cônjuge
a obtenha também no plano psicológico. Para isto ele criará um novo
“mapa” do mundo sem a inclusão do antigo cônjuge, sem esperar
nada dele como a compreensão, agradecimentos, exigências, agres-
sões, conduta moral ou imoral e assim por diante. Se possível, não
mais falar bem ou mal acerca do outro cônjuge, mantendo apenas o
relacionamento, caso seja preciso, estritamente necessário. Não pro-
curar mais saber de sua vida íntima, nem reviver as cenas agradáveis e
as amargas do casamento que terminou. Não mais tentar provar para
si e para os outros quem foi o réu e quem foi a vítima. Em resumo,
para separar-se e construir bem uma nova vida, o indivíduo necessita
separar-se também psiquicamente, do contrário continuará a ser um
mal casado até morrer.

82
Portanto, procure encontrar, ao se separar, sua própria identi-
dade, sem a contaminação do antigo sistema conjugal não mais exis-
tente. Adquira sua autonomia, goze e usufrua de seus benefícios e tire
de sua cabeça os antigos problemas do casamento e da separação. Em
resumo: enterre um casamento morto.

83
O CASAMENTO DO NEURÓTICO

Há uma aceitação geral de se fazer um exame pré-nupcial para


verificar a saúde física dos cônjuges, entretanto jamais ouvimos falar
que os namorados se submeteram a um exame psicológico para veri-
ficarem suas capacidades ou competências para viverem juntos com
alguém ou serem pais. Observações acerca do casamento fracassado
mostram que uma piora na conduta em um dos cônjuges, piora o
comportamento do outro, que por sua vez piora o primeiro e assim
sucessivamente, e numa espiral, vai perturbando os dois e aumentan-
do os distúrbios conjugais. A sociedade ainda não assimilou o uso do
exame mental para os futuros cônjuges.
Uma pesquisa feita nos USA mostrou fatos interessantes e úteis
para os que estão desejosos de se casarem ou de morarem juntos. Inde-
pendente do sexo dos entrevistados, através das escalas, foi mostrado
que a qualidade do casamento estava influenciada negativamente pelo
neuroticismo dos cônjuges. Resumidamente, as pessoas apresentan-
do o traço “Neuroticismo”, também chamado de “Emoção Negativa”,
que será descrito a seguir, tinham mais dificuldades no casamento.
1) Ansiedade (propensão ao medo, tensão, preocupação, nervo-
sismo);
2) Depressão (alto nível de tristeza, solidão e desesperança);
3) Raiva (propensão a episódios de irritabilidade e frustração);
4) Autoconsciência aumentada (mais sujeito a ficar envergonha-
do, desajeitado e com sentimentos de inferioridade);

85
5) Culpa (experiência frequente de culpa, autocensura devido a
falhas ou erros);
6) Super-sensibilidade (sensitivo às críticas e ao ridículo);
7) Insatisfeito consigo (vê a si próprio como cheio de defeitos);
8) Super-reatividade aos estresses (facilmente sofre com aconte-
cimento próximo do normal);
8) Labilidade Emocional (experimenta, repentinamente, mudan-
ças marcadas de humor);
9) Avaliação Negativa (tende a ver os acontecimentos como
ameaçadores e problemáticos);
10) Queixas Somáticas (apresentam sintomas corporais pertur-
badores).
Outros estudos mostram que o psicotismo (pessoas mais fecha-
das, desconfiadas, isoladas, estranhas, delirantes) contribui mais ainda
para o mau casamento. Alguns estudos enfatizam o fator impulsivida-
de - de um ou dos dois cônjuges - como um importante fator do mau
casamento. Essa característica aparece principalmente nos indivíduos
com transtorno de personalidade antissocial (egocêntrico, explora-
dor, desonesto, insensível).
Uma pesquisa focalizou, como fator de prognóstico do mau ca-
samento, dois tipos do “lugar de controle dos cônjuges”. Um tipo
apresenta o controle interno, isto é, uma tendência a examinar seu
próprio comportamento como causador de seu bem ou malestar. Um
segundo tipo tem o lugar de controle externo, isto é, explica e coloca
nas outras pessoas ou nas condições do ambiente as razões dos seus
problemas, fracassos e dissabores. De acordo com essas ideias, os
com lugar de controle interno são mais propensos a serem melhores
cônjuges do que os com lugar de controle externo. Você, caro leitor,
com essas ideias, examinará seu namorado e, se tiver um tempinho,
você mesmo, para decidir o que fazer, caso avalie o seu mundo atra-
vés do “controle interno”.

86
BRIGAS DE CASAIS:
AGRESSÃO OU EXCITAÇÃO SEXUAL?

Alguns casais usam com naturalidade as agressões físicas como


forma de resolverem brigas domésticas. Curiosamente, apesar da rai-
va de ambos durante as desavenças, automaticamente eles aplicam
certas regras para suavizar a agressão. Entre as “leis” do permitido e
do proibido durante as lutas, encontram-se: “é proibido atacar pelas
costas”, “o lugar de chutar deve ser olhado com atenção”, “deve-se ter
extremo cuidado para não lesar as partes “nobres” como os seios, tes-
tículos, pênis, olhos, estômago”, “os chutes ou coices são permitidos
em resposta a determinadas agressões verbais mais graves, mas não
às leves”: “não se pode usar objetos para agredir”, “deve-se evitar as
brigas diante dos filhos”, “se o companheiro estiver deprimido, gripa-
do e com diarreia, ele deve ser respeitado, não podendo ser agredido
nesse dia”.
Os homens envolvidos nesse tipo de briga agem com suas mu-
lheres durante estas lutas excitantes como se estivessem educando um
filho. Ora a seguram, impedindo-a de se movimentar, ora a seguram
para que essa não saia à rua, ou para impedi-la de lhe atirar um objeto.
Sua agressão é mais simbólica que real – muito diferente do agressor
típico - mais para mostrar à companheira seu maior poder físico que
para feri-la. Sendo assim, os maridos só batem nos lugares apropriados,
usando apenas um pouco da força, com a palma das mãos, visando
controlar a agressão passageira da companheira/adversária.

87
As mulheres que participam dessas brigas geralmente atiram ob-
jetos, quebram outros, rasgam as roupas do marido, xingam palavrões,
gritam para chamar a atenção ou para pedir socorro aos vizinhos. Esse
tipo de briga é frequentemente mostrado nas novelas da televisão.
Uma particularidade desses casais nos quais ambos são agresso-
res é que os dois são assertivos, isto é, nenhum tem medo do outro.
Esses agressores, marido e mulher, estão sempre prontos para res-
ponderem às provocações recebidas. É comum o uso do álcool por um,
ou por ambos os cônjuges, situando-se em torno de 50% dos casos. As
brigas se dão geralmente durante discussões acerca de questões sim-
ples. Essas vão aumentando de intensidade, pouco a pouco, passando
por períodos de uso de termos chulos até chegar às agressões físicas.
O interessante dessas brigas está no fato de que, muitas vezes,
elas fazem nascer um certo grau de excitação sexual, o que pode ser
uma razão automática ou involuntária de sua provocação. A excitação
sexual talvez seja despertada pela respiração ofegante de cada con-
tendor, pelo roçar dos corpos quentes e lubrificados pelo suor, pela
dança dos agressores exibindo movimentos rápidos e também lentos.
Toda a cena provoca a lembrança do ato sexual, realizado frequente-
mente no mesmo local onde, no momento, está ocorrendo a briga.
Estudiosos do assunto afirmam ser a agressão física um excitante para
o organismo para a realização de diversas ações, entre elas a sexual.
Por tudo isso, estas brigas terminam muitas vezes com os cônjuges
rolando agradavelmente na cama “entre tapas e beijos”, com o apare-
cimento do prazer, da liberação de endorfinas endógenas e de oxito-
cina, bem como o retorno à suave paz.
Estes comportamentos violentos continuam enquanto o casal
estiver morando junto, aumentando sua frequência nos períodos de
piora nas relações. Uma vez afastados um do outro por separações,
as agressões terminam. Mas quase sempre voltam com um novo ca-
samento, mostrando que esses cônjuges apresentam um padrão de
agressão física ao lidar com certos problemas existentes, o qual pode
ser interrompido temporariamente, quando não há um cônjuge apro-
priado, ou seja, pronto a aceitar o desafio e a entrar numa briga sim-
bólica de amigo-inimigo.

88
MARIDO VIOLENTO:
ESTE INCOMPREENDIDO

O homem que agride sua companheira tem sido interpretado


de diversos modos: cada interpretador usa um ou vários modelos ou
teorias explanatórias. Um e outro grupo defende apaixonadamente
seu ponto de vista acerca do homem violento, convencido de sua
veracidade. Entretanto, seus opositores também têm suas certezas.
Vejamos algumas interpretações deste ser ainda não compreendido.
1 - A antiga psicologia dinâmica freudiana, hoje moribunda e
em extinção, interpretava o agressor da esposa como sendo sádico.
O ato de bater, para esse modelo, daria um alívio e prazer ao agres-
sor. Já sua companheira, permitindo ser agredida, era classificada
como masoquista - a que gosta de apanhar.
2 - A Psicologia da Relação Objetal interpreta tanto o violen-
to como a vítima que aceita as agressões como possuidores de per-
sonalidades patológicas. Os dois grupos estariam catalogados como
Transtornos da Personalidade Antissocial, “Borderline” e Narcisista.
Além disso, para essa teoria, estes agressores foram abusados e es-
pancados na infância.
3 - A Psicologia Cognitiva Comportamental explica a agressão
desses homens como proveniente de distorções perceptuais e de sua
tendência a atribuir causalidades incorretas à conduta da esposa. A
raiva deriva da pessoa ter, desde cedo, seu “processador de infor-
mações” defeituoso. O seu possuidor seleciona e enfatiza apenas

89
os eventos provocadores de raiva, generalizando estes e, por outro
lado, negligenciando as informações não agressivas. O possuidor des-
se “defeito” interpretativo fica sensível somente às ações “negativas”
da companheira.
4 - A Biologia estuda as disfunções orgânicas do agressor pro-
venientes de distúrbios hormonais, lesões cerebrais, defeito nos neu-
rotransmissores, baixa de glicose, etc. Estas disfunções podem ser
exacerbadas pelas drogas ou álcool.
Entre os sinais genéticos, anatômicos e bioquímicos que têm
sido associados às agressões dos maridos estão o baixo teor de sero-
tonina, as infecções cerebrais, um sistema nervoso autônomo pouco
reativo, o sexo masculino, a juventude e a baixa inteligência.
5 - A Teoria dos Sistemas explica a agressão como decorrente de
interações disfuncionais entre os familiares do agressor. Esta agres-
são é cultivada pelo agressor e pela vítima. Uma briga pode ser uma
forma de preservar condutas que estão sendo úteis à manutenção do
grupo familiar, permitindo a cada um dos membros desempenhar
um papel aceito pelos demais familiares.
6 - O Modelo Ético-Religioso coloca o marido violento como
responsável por sua agressão. Possuindo o “livrearbítrio”, este tem
condições de distinguir o “certo” do “errado”. O agressor deve ser
punido por seus atos ao agir erradamente devido à sua “maldade”
interna. Através de punições, penitências e rezas, o agressor poderá
ser perdoado e se converter.
7 - O Modelo da Lei examina se o marido agressor infringiu, ou
não, o permitido pela lei. Desse modo, ele deve ser julgado de acor-
do com o que consta na legislação em vigor. Deverá ser absolvido
ou punido, dependendo do exame das provas arroladas tanto em sua
defesa, como na acusação. É a parte formal que interessa e não os
fatos em si.
8 - As feministas, por fim, veem o agressor como um produto
das instituições sociais que não criaram uma igualdade entre homens
e mulheres. Existe a agressão masculina devido a uma longa história
do domínio dos homens sobre as mulheres, muitas vezes constru-

90
ída ou apoiada pelas próprias mulheres. Criado com privilégios, o
homem acredita no seu direito de julgar e punir as mulheres que o
desafiam.
Diante de tantas explicações, pergunto-me, qual é a certa? Não
tenho resposta.

91
INCESTO EMOCIONAL

Algumas famílias escolhem – aleatoriamente - um filho, apenas


um, para ser o “tutor” da família. A partir desse recrutamento os esfor-
ços desse filho não mais serão dirigidos para suas necessidades de crian-
ça, mas sim para ações adultas destinadas a unir, proteger e estabilizar
a família desajustada. Os meninos educados desse modo receberam, de
alguns psicólogos, o nome “Personalidade Atlas” - deus grego condena-
do a suportar o céu nos ombros para impedi-lo de amassar a Terra.
Os estudos mostram que muitas dessas famílias são dominadas
por uma mãe poderosa, egocêntrica, emocionalmente instável e pron-
ta para xingar e explodir sob qualquer pretexto. Estas mães têm sido
diagnosticadas pelos psiquiatras como possuidoras de um transtorno
de personalidade ”limítrofe” (borderline), onde se inclui a irritação,
impulsividade, tentativas de suicídio, autolesão, sentimento crônico de
vazio, pavor de ser abandonada, além de terem um sentido da realidade
diferente do das outras pessoas. Essas mães esperam, e exigem, que o
resto da família aceite e apoie seu ponto de vista acerca de tudo o que
ocorre à sua volta. Só ela tem razão, os outros estão sempre errados.
Responde com explosões de ira às frustrações e decepções e, quase
sempre, acusa os familiares ou parentes de fazerem “pouco caso” dela.
É nesse ninho disfuncional que desenvolve o filho, ou filha, des-
tinado a suportar, apaziguar e resolver as misérias e “loucuras” ali
exibidas a todo momento. Sua resposta precisa ser rápida e capaz de
pôr fim às exigências extravagantes da mãe egocêntrica e possessa. A

93
culpa da vida desestruturada e sem objetivo dos pais é colocada no
infeliz e tolerante filho escolhido. Ele é forçado a participar e tomar
partido nas brigas tolas dos pais: em qual programa a TV deve estar
ligada, ou quanto tempo cada um deve ficar no banheiro.
O filho altruísta, nessas ocasiões, é acusado por ambos de es-
tar tomando o lado de um ou de outro deles. Este sofredor deverá
ouvir as histórias chatas dos pais, consolá-los com palavras vazias
e adocicadas, franzir a testa e mudar o tom de voz para demonstrar
preocupação com as queixas acerca da saúde, da estabilidade e da
sobrevivência deles. Como guardião da imagem da família falida, o
escolhido, ainda muito cedo, deve se engajar em atividades designa-
das para eliminar, camuflar ou, no mínimo, diminuir os danos exibi-
dos pela família. Muitos desses pais exigem sua ajuda em situações
delicadas como tomar a responsabilidade em falcatruas e obrigar um
dos irmãos a tomar decisões cruciais.
Geralmente a escolha é feita cedo. Pouco a pouco esse filho
passa a exercer o papel de “pai e mãe” da família, participando dos
diversos problemas que seriam próprios dos progenitores. Ele opina
acerca do que a mãe terá de fazer ao descobrir que o pai tem uma
amante, a cuidar do alcoolismo da mãe. Esse papel é exercido com
frequência pelas crianças cujas mães são alcoólatras. É esse filho que
vai buscar soluções para pagar as dívidas da família, opinar e decidir
se os pais devem ou não se separar, ou, ainda, se devem voltar a mo-
rar juntos. Alguns pais consultam o filho acerca de terem ou não mais
um filho, ou se seria melhor praticar um aborto. Também esse infeliz
poderá dizer ao pai, inventando uma mentira, que sua mãe foi fazer
compras, quando esta, de fato, estava com o namorado.
Muito cedo aprendem a cozinhar, limpar, comprar e cuidar dos
irmãos mais novos, inclusive impedindo-os de ver a mãe cambalear
ou desmaiar. Fazendo o papel de “mãe” da mãe, elas ajudam-na a
comer, fazer sua higiene ou a ir-se deitar. Com o tempo, essa tarefa
passa a ser realizada rotineiramente. Além de cuidar dos pais, essa
criança mantém em segredo as informações negativas da família.
Estas “escolhidas”, olhadas externamente, são elogiadas pelos pais,

94
parentes e amigos, percebidas como perfeitas, cooperativas e “devo-
tadas” aos pais. Isso as anima a continuar nesse caminho ingrato.
A criança escolhida para ser o “provedor”, pode exercer tam-
bém a função de “esposo substituto” para o cônjuge desesperançado,
solitário e infeliz. Caberá a ela fornecer ao cônjuge o apoio emocional
e companhia que deveria vir do outro esposo. Para alguns autores
essas crianças são vítimas de “incesto emocional”, uma forma séria de
abuso por ser a criança seduzida a fazer um papel familiar que não
compete a ela e nem é esperado culturalmente.
Altamente treinados para esse trabalho de ajuda, mais tarde es-
ses “pacientes” preocupados e sensíveis aos problemas dos outros,
não de si mesmo, provavelmente encontrarão outros exploradores
e, explorados por esses, irão ocupar posições de responsabilidade,
continuando a fazer o que aprenderam precocemente: ajudar as pes-
soas a qualquer preço. Casam-se, muitas vezes, com mulheres tendo o
mesmo perfil de sua mãe e cuidam delas para sempre. Estes santos ou
altruístas fanáticos, que viveram orientados pelos problemas alheios
e não pelos próprios, morrerão, possivelmente infelizes e arrependi-
dos, por não terem escolhido, há muito, um caminho diferente do
trilhado.

95
SOLITÁRIOS MAS NÃO ISOLADOS

A literatura popular tem defendido a ideia de que morar com


outras pessoas é benéfico para a saúde. Muitos psicólogos endossa-
ram essa afirmação, acrescentando que os indivíduos isolados teriam
mais transtornos da personalidade e, muitas vezes, precisariam de
tratamentos. É comum entre as pessoas interpretarem o isolamento
social, ou falta de ligações com outros, como sendo um “problema”,
ou mesmo loucura do indivíduo. Certas pesquisas têm afirmado que o
isolamento conduz à solidão, e que os isolados apresentam uma auto-
estima mais baixa, avaliam a vida negativamente, morrem mais cedo
de doenças como infarto, aterosclerose, etc. e também têm taxas mais
elevadas de alcoolismo e suicídios. Portanto, a crença existente e de-
fendida por muitos é que morar com alguém faz bem à saúde, servin-
do de profilático ou antídoto contra os sofrimentos.
Felizmente, para o bem de todos, sempre há os que pensam
diferente. Assim, outras pesquisas negam as crenças acima. Muitos
podem, intencionalmente, cultivar a privacidade, desejar ou abraçar
a liberdade que só o isolado pode ter. Essas pessoas podem estar sós,
mas não solitárias. O contrário pode acontecer, muitos casados estão
mais solitários do que muitos solteiros e separados. Os casamentos,
muitas vezes, dificultam as relações fora das familiares. Para esse mo-
delo, viver lado a lado com alguém não significa maior proteção à
saúde e o contato mais restrito com outros pode significar escolha,
não doença ou defeito da personalidade.

97
Todos nós, constantemente, efetuamos comparações entre o que
esperamos, ou desejamos, e o que está acontecendo de fato. Ao com-
pararmos, automática e inconscientemente, examinamos se o número
e a qualidade das relações que possuímos nos satisfazem ou não.
De outro modo, se elas estão ou não conforme nossos projetos,
se há acordo entre o desejado e o realizado, isto é, entre o plano e o
ocorrido, tornamo-nos tranquilos e satisfeitos, caso contrário há dese-
quilíbrio e insatisfação. Assim, a desarmonia surge quando os contatos
existentes ou são poucos ou exagerados, conforme o idealizado pelo
indivíduo, ou ainda, quando eles são de “má qualidade”. Havendo di-
vergência entre o esperado e o acontecido, manifesta-se o sofrimento,
o malestar emocional e intelectual. Uma vez alertados por essas bús-
solas internas, buscamos soluções para reverter a descompensação
existente e, caso tenhamos sucesso, voltamos ao ponto de equilíbrio
imaginado e experimentado pelo organismo como agradável.
Em resumo: podemos tomar medidas, tanto para aumentar,
como para diminuir nossos contatos e também para melhorar sua
qualidade. Na esfera biológica, um fenômeno chamado de homeosta-
se corporal, funcionando automaticamente, promove adaptações fre-
quentes dos desequilíbrios internos do organismo. Procuramos beber
água quando perdemos líquidos devido à transpiração excessiva ou
vômitos, por exemplo. Na área das relações humanas, os transtornos,
como são mais complexos que a sede, necessitam de estratégias mais
sofisticadas. Primeiro, precisamos focalizar com clareza nossos pro-
jetos. Isso é difícil e por vezes não somos capazes de precisá-los. Se-
gundo, avaliamos o meio ambiente para detectar nele a possibilidade,
ou não, de fornecer-nos o planejado, como, por exemplo, o desejo de
conviver com uma pessoa, mas esta pode nada querer conosco. Ter-
ceiro, orientados pelo projeto, selecionamos, dentre várias possibili-
dades e estratégias, uma capaz de levar-nos onde desejamos chegar.
Quarto, ao atuarmos no meio ambiente escolhido e ao examinarmos
com o nosso mapa avaliador interno, os resultados obtidos nos serão
revelados conforme a qualidade das emoções sentidas – agradáveis e
desagradáveis - e da adequação ao plano. Se tudo correr bem, a pessoa
mantém as relações como estão fluindo.

98
Portanto, o que determina o bem-estar e a satisfação da pessoa,
ou seu sofrimento e insatisfação, é o acordo ou o desacordo entre o
contato desejado e o existente. Concluindo: muitos se sentem isola-
dos, mesmo tendo muitas ligações.
Outros se julgam ligados, com poucos contatos. O critério é sub-
jetivo e não depende apenas do número real de ligações.
Alguns autores classificaram em quatro grupos as pessoas quan-
to à satisfação, ou não, com respeito aos contatos existentes:
1 - Ligado Satisfeito”; nesse caso o número de contatos é o de-
sejado;
2 - “Ligado Insatisfeito”, o número existente de contatos é obje-
tivamente alto, mas não corresponde ao padrão esperado e planejado
pelo indivíduo;
3 - “Solitário Satisfeito”, o número de contatos é reduzido ob-
jetivamente, mas corresponde aos ideais da pessoa, ou seja, está de
acordo com seu desejo;
4 - “Solitário Insatisfeito”, o número de contatos é pequeno e as
pessoas desejam mais.

99
O AMOR NAS CANÇÕES POPULARES

As letras das canções dos índios Sirono da Bolívia, um grupo nô-


made que vivia faminto, não descreviam o amor. Seus cantos, assen-
tados nos seus sonhos e pensamentos, representam principalmente
os alimentos. No Brasil, apesar da fome, as letras das canções popu-
lares ainda relatam, em sua maioria, as paixões, ou mais corretamen-
te, as dores da separação. O mundo do amor descrito pelos poetas,
não representa a relação amorosa concreta, dura e crua, vivida por
todos nós. Focaliza, preferencialmente, um amor idealizado, ou seja,
uma relação amorosa lírica e fantástica, algumas vezes, adocicada e
piegas.
Muitos ouvintes das canções populares não diferenciam a re-
presentação particular, criada pelo autor, da realidade do mundo frio
e indiferente em que vive. Do mesmo modo que certos telespecta-
dores às vezes agridem um ator, confundindo-o com o personagem
representado por ele transitoriamente, alguns ouvintes das canções
passam a se comportar conforme a descrição do letrista, misturando
o amor construído pelo poeta, com o amor real do dia-a-dia. Nesse
caso, os fãs dessas canções podem terminar seus dias “cantando suas
mágoas” e “carpindo suas dores sozinhos”.
O público, que desde criança ouviu e gostou de canções po-
pulares, pode automaticamente assimilar e agir conforme o modelo
lírico de amor descrito nas canções. Estes ouvintes, propensos a dei-
xar de lado o doloroso mundo real, facilmente passam a habitar, por

101
instantes ou por toda a vida, o paraíso perdido do devaneio, da nos-
talgia sonhadora preparado cuidadosamente segundo certos clichês
sentimentais fabricados com esmero.
Os símbolos poéticos encerrados nas letras tendem a produ-
zir emoções, ou já vividas, ou algumas nunca experimentadas. Nes-
se último caso as letras poderão servir de orientação para que seus
adeptos tornem-se mais bem - ou mal - preparados para enfrentar
situações futuras.
Por outro lado, os símbolos podem também reorganizar expe-
riências já vividas, tornando a pessoa mais consciente delas. Ora,
quando as representações simbólicas nos fornecem uma informação
errônea da vida, como é frequente nas canções de amor, o dominado
e empolgado por elas ficará mal preparado para enfrentar situações
semelhantes ao usar um modelo inadequado da realidade.
Sabemos que a maioria das frustrações – talvez todas - e dos
sofrimentos que enfrentamos, provêm do uso de falsas expectativas
assentadas em concepções irrealísticas. Isto não significa, é claro,
que as idealizações são nocivas por si mesmas. Elas constituem um
produto inevitável e necessário dos processos cognitivos e compor-
tamentais humanos de abstração e simbolização e sem estas seríamos
reduzidos a meros animais irracionais. Entretanto devemos notar que
existe uma diferença grande entre os efeitos possíveis do uso dos
símbolos ideais “possíveis” e dos “impossíveis”. Os ideais amorosos,
representados em muitas canções populares são, geralmente, aspira-
ções de relações “impossíveis”. Várias letras desenterram sonhos de
amores irreais, inculcados muito cedo através de histórias infantis
como a do príncipe que se apaixona e se casa com a moça pobre e
desleixada. Isto, como sabemos, parece só ocorrer na ficção. Além
disso, certos símbolos contidos nas letras podem introduzir, nos
mais distraídos, emoções desagradáveis e paralisantes, algumas tolas
e açucaradas demais.
As considerações acima discutidas surgiram através do exame
de diversas letras de canções populares brasileiras, contidas no livro
“Saudades Seresteiras”, catalogadas por Alexandre Júlio Coutinho

102
Pimenta. O livro contém aproximadamente 350 letras de músicas
populares típicas. Examinei, para exemplificar minha composição,
apenas músicas populares muito divulgadas e de grande aceitação
entre o público eclético.
Algumas canções populares sugerem a existência de pessoas
possuidoras de poderes extraordinários para o amante apaixonado:

“Você é isso/uma beleza imensa/Toda a recompensa/De um


amor sem fim...”
“Teu amor na treva é um astro, no silêncio, uma canção./É brisa
nas calmarias, é abrigo no tufão”.
“Alguém como tu/Assim como tu/Eu preciso encontrar./De
olhar como o teu/ que me faça sonhar”.
“Sonhei com esse alguém noites e noites sem cessar/ Encontrei
esse alguém como tanto eu queria”.
“Minha vida era um palco iluminado/Eu vivia vestido de doirado”.

No simbolismo das canções, o mundo mágico do amor é con-


quistado facilmente. Basta o enamorado exibir encantamento certo,
existente no seu desejo de dedicar sua vida – muitas vezes rotineira
e vazia - ao ser amado, para alcançar o relacionamento desejado, in-
dependente de outros importantes fatores. Assim, dentro do descri-
to, para ser amado não é preciso ter nada, nem nada oferecer, basta
“amar”, isto é, agir, a qualquer preço, acreditando no conceito mági-
co idealizado de que o “amor, como a fé, rompe todas as barreiras e
conquista tudo”.
Essa descrição singela do amor fácil não mostra que, uma vez en-
contrado o rapaz ou a moça idealizada, a pessoa está apenas iniciando
um caminho difícil e penoso, onde diversas adaptações e readapta-
ções serão necessárias para se ter um êxito próximo do esperado, nos
raros casos onde este ocorre. Afirma-se nas canções o contrário: esco-
lhido e encontrado o ideal, todos os problemas estarão resolvidos:
“No calor do teu carinho/Sou menino passarinho/Com vontade
de voar”.

103
Ah! se tu soubesses/Como eu sou tão carinhoso/E o muito e
muito/que te quero/...Vem sentir o calor/Dos lábios meus/À procura
dos teus/...E só assim, então/ Serei feliz, bem feliz”.
“Eu sei que vou-te amar/por toda a minha vida eu vou-te amar”.
“Moça, moça eu te prometo/Eu me viro do avesso, só pra te
agradar”.
“Ó linda imagem de mulher que me seduz/Ah! se eu pudesse tu
estarias num altar/És a rainha dos meus sonhos, és a luz/És malandri-
nha não precisas trabalhar”.
“Eu sem você/sou só desamor/Um barco sem mar/um campo
sem flor/...Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”.
Lamentavelmente, apesar do encantamento e do esforço de am-
bos para viverem no paraíso, nem tudo são flores: o amante confiou
demais na honradez e fidelidade da amada e, tristemente, descobre
que foi traído, dando origem ao desengano e ao protesto amargo:
“Mentira, foi tudo mentira/você não me amou”.
“Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de outro amor/
Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da
dor...”
“E em nome de Jesus/ Um grande amor você jurou/Jurou, mas
não cumpriu/Fingiu e me enganou”.
“Elvira, escuta os meus gemidos/que aos teus ouvidos irão che-
gar/não sejas traidora tem dó de mim”
“Você sabe o que é ter um amor,/Meu senhor?.../Ter loucura por
uma mulher/E depois encontrar esse amor/meu senhor?.../Ao lado de
um tipo qualquer”.

O apaixonado, através do amor patético, tentou, por todos os


meios, encobrir seus complicados problemas existenciais. Ocultando
as misérias de sua vida, ele sonhou ter alcançado o Éden, entretanto
foi cair no inferno. O mundo belo e feliz do amor apaixonado se des-
pedaçou sob o impacto de alguns fatos singelos, feios e normais da
vida. O sonhador apaixonado se desespera e percebe, “com o coração
amargurado”, que “o sonho se findou”:

104
“Tornei-me um ébrio, na bebida, busco esquecer/Aquela ingrata
que eu amava, e que me abandonou”.
“Não falem dessa mulher perto de mim/Não falem pra não lem-
brar minha dor”.
“Balada triste que me faz lembrar alguém/Alguém que existe
e que outrora foi meu bem... não há mais nada! foi um sonho que
findou”.
“Porém nesse abandono interminável/No espinho de tão negra
solidão”.
“No rancho fundo/Bem pra lá do fim do mundo/Nunca mais
houve alegria/Nem de noite nem de dia”.
“No alto do campanário uma cruz simboliza o passado/ De um
amor que já morreu, deixando um coração amargurado”.
“A saudade mata a gente, morena/A saudade é dor pungente
morena”.
Entretanto, apesar dos desenganos, o amante teimoso tenta des-
viver o passado e reacende sua esperança. Lamentando e chorando
seu destino ingrato, relembra a figura idolatrada do seu amor, espe-
rando seu retorno:
“Pise machucando com jeitinho/Este coração que ainda é seu”.
“Começaria tudo outra vez/Se preciso fosse, meu amor”.
“Que eu voltei pra me humilhar/Ai, mas não faz mal”.
“Hoje eu vivo tão sozinho, ao relento, sem carinho/Na esperan-
ça mais atroz,/De que cantando em noite linda/Esta ingrata, volte ain-
da, escutando a minha voz”.
“Boneca eu te quero, com todos os vícios/Com todo pecado,
com tudo afinal”.
“Eu sei que vou sofrer/A eterna desventura de viver/ À espera de
viver ao lado teu/Por toda a minha vida”.
“Volta! dá lenitivo à minha dor”.
“Aceito os teus erros, pecados e vícios/Porque na minha vida
meu vício é você”.
“Você bem que podia me aparecer /Nesses mesmos lugares/ Na
noite, nos bares/Onde anda você”.

105
“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda/Escravo eterno teu
farei o que quiseres”.
Mas seu esforço foi em vão, “tudo foi um sonho”, apenas um
desejo, a amada ficou mesmo nos braços do outro, que era um “tipo
qualquer”. A partir daí, condoído de si, o amante enterra-se na au-
topiedade, na autodepreciação e esforça-se para esquecer a amada
ingrata:
“Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”.
“Neste mundo eu choro a dor/Por uma paixão sem fim/...Esta
dor que me consome/Não posso viver/Quero morrer/Vou partir para
bem longe daqui/Já que a sorte não quis/ Me fazer feliz “.
“Esta saudade, este vazio/Esta vontade de chorar.../ Ai, se eu
pudesse esqueceria”.
O amante construiu uma ligação amorosa em termos idealís-
ticos, sem as barreiras impostas dolorosamente pela realidade dos
fatos. Apesar de sua crença forte, “o mundo caiu” e o sofrimento au-
mentou, dando origem à loucura. A amada que não lhe sai da mente,
não retorna, por mais que ele suplique ajoelhado não altar dos flage-
lados. O mundo real descortinado torna-se insuportável. Resta-lhe,
como salvação, o caminho da fantasia. O enamorado desesperado
embarca na nave suprassimbólica, realizando uma viagem ao mundo
da loucura. Lá visualiza fantasias substitutas ocupando o lugar das
inacessíveis. As suas alucinações e delírios florescem livremente, pois
inexistem obstáculos formados pela realidade indiferente e podero-
sa. Pouco a pouco, suas percepções misturam-se com as fantasias,
costuradas no tecido fino da teia fabricada por esperanças e sonhos.
Surge uma nova composição, nasce um novo ser, semelhante à ama-
da idealizada, mas dotado de poderes sobrenaturais:

“Cansado de tanto amar/Eu quis um dia criar/Na minha imagina-


ção/Uma mulher diferente”.
“Bom dia tristeza/Se chegue tristeza/Se sente comigo/Beba do
meu copo”.

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“Eu vi uma vitrine de cristal/Uma boneca encantadora/No bazar
das ilusões, no reino das fascinações/...../Como se fossem de verdade/
Mãos ideais os braços divinais/O corpo algo sem par/Uma perfeita
Vênus”.
“A vida para mim não vale nada/Desde o dia em que a malvada/O
coração me estraçalhou/Às vezes pela estrada enluarada/Julgo ouvir
uma toada/Que ela cantava para mim”.
“Eu amanheço pensando em ti/Eu anoiteço pensando em ti, nos
cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/
Em cada frase tu estás”.
Esta parece-me ser a representação a respeito da relação amo-
rosa transmitida por várias canções populares. Mas esse modelo não
foi o que encontrei nos meus encontros amorosos. Provavelmente,
porém, para serem aceitas e se tornarem populares não apenas no
nome, elas precisam ser irrealistas e devem trabalhar com o falso.
Os poetas, sabiamente, atentos à nossa miséria, percebendo nos-
sa sofrida convivência diária com a incômoda realidade privada dos
encantos do mundo imaginário, para nosso deleite, criaram esse “leni-
tivo para nossas dores”, pois, como sabemos, ninguém é de ferro...

107
DUAS MULHERES:
NUM DIA QUALQUER

— Maria, o gás acabou?


— Está no fim, D. Marta.
— Telefone para saber o preço do botijão.
— O grande custa R$ 147,00 e o pequeno R$ 35,00.
— O quê? Que absurdo, Maria! O grande tem um pouco mais de
três vezes o gás dos pequenos. Nesse caso, vale a pena comprar três
dos pequenos, fica mais barato.
— Mas, D. Marta, os pequenos acabam mais depressa. Um pe-
queno não dura nada!
— Ora, Maria, se reunirmos três dos pequenos, eles vão durar
mais ou menos o mesmo tempo de um grande.
— Não, D. Marta. O grande dura três meses aqui em casa, o pe-
queno não dura nem quinze dias.
— Não tem jeito, Maria. Se o grande é um pouco mais de três
vezes maior, ele deve durar o mesmo tanto de três e meio botijões
pequenos. É a lógica.
— Eu não entendo de lógica, não. Mas sei, pois sou a cozinheira,
que o botijão pequeno dura muito pouco. A senhora não se lembra
que, antes de colocarmos os grandes, tinha todo dia de trocar o bo-
tijão? A senhora é cabeleireira, sabe fazer penteados, mas não sabe
quanto tempo dura um botijão de gás. Todas as minhas colegas falam
a mesma coisa, nenhuma gosta de botijão pequeno. A gente começa
a cozinhar e o gás acaba.

109
— Maria, escute: um pacote de arroz de cinco quilos não dura a
mesma coisa que cinco pacotes de um quilo?
— Não sei, não! Gás é diferente, arroz não pega fogo, nem sobe
no ar, ele serve pra gente comer. Quem come gás ou planta gás? O
botijão de gás grande tem mais gás e é muito mais pesado. Um entre-
gador de gás carrega um pequeno com facilidade, mas o grande, nem
pensar, é carregado no carrinho.
Quando o homem veio colocar o botijão grande, ele estava tão
pesado que amassou o dedo dele, saiu muito sangue.
Ele ficou com ódio, o outro ainda riu dele. Se fosse um pequeno,
ele levantava com um dedo. Lá perto de casa tem um homem que
carrega o botijão de gás nos dentes, amarrado no arame.
— Está falando de outras coisas, raciocinando errado.
— A senhora não compreende, porque nunca mexeu na cozi-
nha. Se eu colocar na mesa um bolo grande, ele não vai durar mais do
que se colocar muitos pequenos?
— Depende de quantos pequenos. Se for um número de bolos
com o mesmo peso do bolo grande, os pequenos vão durar o mesmo
tempo que o bolo grande.
— Nunca! Quando faço um bolo pequeno, ele acaba logo. O
bolo grande fica vários dias sem acabar, mais do que o de vários boli-
nhos. Acaba sendo jogado fora, de tanto durar.
— É porque, ficando velho, as pessoas não o comem.
— Agora a senhora viu que eu tenho razão! O bolo dura mais
porque, quando é grande, dura mais, igual ao gás. Se a senhora cami-
nhar três léguas, o tempo gasto vai ser o mesmo do que a soma dos
tempos de caminhar uma légua três vezes. Uma légua lá na roça a gen-
te caminha em 1 hora, mas três léguas, nem Tonico, meu primo, que
caminha o dia inteiro atrás de vaca no pasto, não consegue caminhar
em três horas, ele vai gastar muito mais e lá todo mundo fala que não
tem ninguém que caminha mais depressa do que Tonico. A senhora,
se fosse caminhar três léguas, era capaz de demorar umas 6 horas, ou
nem conseguir chegar no final da caminhada. Se a senhora colocar
três lâmpadas de 50 watts, elas vão clarear a sala igual a uma de 150
watts? É uma graça. Por que a senhora colocou na sala uma lâmpada
forte, em vez de três pequenas?

110
— Mas, Maria, caminhar e luz são diferentes.
— Eu sei que é diferente, mas, ao mesmo tempo, é igual. No pri-
meiro caso é o gás, no outro, o bolo, no outro, ainda, a légua e a luz.
Pois bem, o gás a gente não vê, mas pega fogo e serve para cozinhar,
o bolo a gente faz usando o gás e come, e a légua a gente não vê tam-
bém, como o gás, mas passa por ela, a atravessa, sabe que ela existe
sem nunca tê-la visto, e a luz, bem, luz eu não sei o que é, mas se ela
não existisse a gente não ia enxergar nada. Mas todas essas coisas são
iguais também, pois para comer o bolo, para gastar o gás, para ir de
um lugar ao outro e para a luz clarear, principalmente a da lamparina
lá da roça - as da cidade são diferentes - gasta-se um certo tempo. Co-
meçamos num momento e terminamos num outro momento, diferen-
te do início. E aí é que está, a gente sempre gasta mais tempo com as
coisas maiores, mais compridas que as mais curtas.
— Isso eu sei, Maria, eu estou falando de proporções. Se uma
coisa é proporcional à outra, elas gastam o mesmo tempo.
— A senhora é mesmo cabeça dura. O caso do bolo, da caminha-
da, da luz não deu para perceber?
— Mas nesse caso entram outros fatores que modificam o tempo
final. Você está raciocinando errado, usando metáforas para concluir
e isso sempre é perigoso, falando de uma coisa e explicando essa com
os termos de uma outra. Para explicar um acontecimento, é necessá-
rio explicá-lo com palavras que têm seu significado apenas na situação
examinada. Assim, se você tentar explicar uma coisa através de uma
palavra retirada de uma outra explicação dá tudo errado e o resultado
é essa confusão que você está fazendo. Você não pode explicar o tem-
po de duração do gás através do tempo gasto na caminhada. Assim,
no caso da caminhada, entram outros fatores que modificam o tempo
final. É difícil para você entender.
— A senhora é muito engraçada. As patroas todas que conheci
são assim. Parecem-se com o pastor lá da igreja onde frequento. Quan-
do lhe perguntei por que eu não podia abraçar meu namorado antes
do casamento, e podia depois, ele começou a falar de valores, nor-
mas, pecado, uma porção de coisas, que não entendi nada. Acho que

111
ele também não entende o que explica. As patroas fazem o mesmo,
quando perdem uma discussão começam a falar palavras difíceis, pois
com elas escondem o que não sabem. Deixe pra lá. Compre o botijão
pequeno e depois a senhora vai falar: “Maria, você está gastando gás
demais!” Sempre é a gente que fica com a culpa, a corda arrebenta
para o lado mais fraco. Nunca muda!

112
BENDITAS SEJAM AS QUEIXAS

“Que calor terrível”, “Detesto esta cidade”, “Essa seleção é a


pior que já vi”. Frases como essas nós ouvimos a todos os momentos e
em todos os lugares. Entretanto, só raramente ouvimos o seu oposto,
como “Gosto desta cidade” ou o “Brasil vai bem”, e assim por diante.
Queixar-se é um dos grandes passatempos de nossa população.
É fácil, barato, familiar e acessível a qualquer um e, além disso, não
exige nenhuma responsabilidade. Ao queixarmo-nos, sentimos pie-
dade de nós mesmos e, quem sabe, talvez possamos ganhar, na outra
vida, um lugar no céu por termos cumprido tão bem essa penitência
na Terra.
A função principal da queixa parece ser apenas um hábito para
preencher o tempo, apesar de que, à primeira vista, é difícil aceitar
essa ideia. Vou tentar esclarecer: a todo momento encontramo-nos
uns com os outros e temos que falar alguma coisa. A conversa, para
não morrer, precisa ser continuamente inventada, pois não fica bem
ficarmos calados uns diante dos outros.
Esse papo é diferente do que temos quando vamos a um banco,
por exemplo, fazer um depósito ou retirar algum dinheiro. Nesse úl-
timo caso há um objetivo claro, a conversa gira em torno dele e, reti-
rado o dinheiro, encerra-se a comunicação. Uma parte de nossa con-
versação é formulada como no caso do banco, entretanto, mesmos
nessas conversas, diálogos paralelos são inventados para preencher e
sustentar o assunto principal.

113
Quando, por acaso, encontramos algum conhecido, não há nada
de objetivo e lógico para ser dito. O assunto fica por conta da criativi-
dade dos envolvidos. A conversa termina quando acaba a imaginação,
ou seja, quando nenhum dos dois descobre mais nada a ser falado.
É bastante comum, ao encontrarmos o antigo amigo, pergun-
tarmos: “Tudo bem?” e ele responde: “Tudo bem. E você, tudo bem?
Nova resposta: “Tudo bem.” Se continuar nesse papo furado, a con-
versa pode emperrar e o encontro ser rapidamente desfeito. Mas po-
deríamos prolongar a conversa, por exemplo: “Tudo bem nada. Hoje
cedo ao levantar-me, senti uma pontada no peito... E as queixas come-
çam, a conversa flui, rica em dados.
O nosso modo de expressar é muito rico em palavras e frases,
que apenas servem para preencher espaços vazios. Possivelmente a
maior parte de nossas conversas encaixam-se nesse tipo. Nessas, de
fato, nada estamos falando no sentido objetivo ou produtivo da lingua-
gem, apenas, prazerosamente, emitindo sons para nosso interlocutor,
que faz o mesmo, como os meninos que estão começando a falar: eles
ficam ouvindo os sons que eles próprios pronunciam. A sons emitidos
pelas crianças e o papo furado dos adultos podem durar horas, mais
ainda se estivermos num bar tomando uma cerveja.
Ora, nas conversas de todos os dias, cada indivíduo tem várias
palavras ou frases disponíveis, prontas para serem usadas, fáceis de sa-
írem. Quanto mais o indivíduo usa essas frases - ou apenas palavras - já
arrumadas, analisadas e sem risco de serem usadas, mais elas estarão
prontas para saírem para o ar, seja qual for a situação vivida. Temos
também o hábito de falarmos muito mais acerca de nossos “pontos de
vista” do que acerca de fatos objetivos. Em lugar de descrever alguns
lances do jogo assistido, o narrador fala:
- O jogo foi ótimo, mas, na verdade, na minha opinião acho que
Mariano devia ter entrado mais cedo. Esse técnico não presta. Enten-
deu? Se tivesse entrado...
Os termos, “ótimo” e “presta” são julgamentos que formam uma
opinião sobre o jogo ou a conduta de um bom técnico, não é uma des-
crição de eventos. Assim, quase sempre diante de qualquer aconteci-

114
mento, emitimos muito mais a nossa opinião – os achismos - acerca
dos fatos, ou nossa interpretação, e pouco ou nada da nossa percep-
ção dos mesmos e frequentemente a interpretação tem pouco a ver
com os fatos ocorridos.
Provavelmente, em um grau maior ou menor, todos nós agimos assim.
Desde cedo nossos educadores, de geração em geração, fizeram
queixas e mais queixas acerca de tudo e de todos, criticaram mais do
que elogiaram, assim é natural e esperado que os discípulos, apren-
dendo a lição, também passem a agir da mesma maneira automatica-
mente. Só muito raramente espera-se que um pai ou uma mãe fale
que a temperatura do seu filho está normal, ou também que ele está
disposto. Mas com certeza falará que o menino quebrou um copo,
que está com uma febre altíssima ou, ainda, que é um desastrado, pois
derramou água na mesa.
Assim, se nosso filho chora, nós o chamamos de “chorão”. Ao
classificá-lo de “chorão”, formamos uma ideia que pode ficar cristaliza-
da acerca dele e, possivelmente, estamos criando um “mito familiar”
e, como todo mito, esse irá dirigir nossos pensamentos e condutas
para o infeliz filho. A partir daí, ele poderá ser tratado como se fosse
sempre chorão e o imaginamos como agora chorando, mas que antes
não estava e, possivelmente, depois também não estará. Além disso,
preso ao “mito do chorão, não percebemos o choro como um fato
natural, decorrente de acontecimentos que o levaram ao choro.
O termo ou rótulo “chorão”, neste caso, é uma estimativa ética
e, portanto, o comportamento é visto como inaceitável. Do mesmo
modo os estigmas tais como “bobo”, “feio”, “gordo” e muitos outros,
quase sempre são usados como juízos de valor e não para descrever
fatos. Quando o modelo de pensamento, como nos exemplos, é a in-
terpretação da realidade sobre a forma de queixas, a visão do mundo
distorcida e preconceituosa poderá ser bemvinda pela facilidade de
ser expressa, sintonizada, captada e entendida pelo interlocutor, por
ser este um modo usual de conceber o mundo. Por tudo isso, viva essa
conversa, as queixas, pois são esses instrumentos que mais “ligam” as
pessoas umas às outras.

115
As situações positivas, por outro lado, para serem percebidas e
faladas, necessitam ser muito importantes, salientes ou acontecerem
numa frequência muito grande: passou no concurso onde tinha 1.000
candidatos por vaga, estuda todos os dias até tarde da noite. As frases
de elogios ou de percepção de fatos positivos, por serem escassamen-
te usadas, não ficam disponíveis em nossa memória, ao contrário das
negativas ou as queixas, que nos são mais familiares.
Os médicos sobrevivem em virtude das queixas dos pacientes.
Os advogados, juízes e promotores passam a vida ouvindo queixas de
um lado e outro. Políticos são eleitos prometendo resolver as queixas
dos eleitores e, por fim, nós nos ligamos à maioria das pessoas atra-
vés dos elos mágicos das queixas. São elas que nos unem. Podemos
concluir que uma conversa acerca de queixas fluirá com facilidade,
todos nós temos estoques disponíveis delas prontas para entrar em
ação. Por tudo isso, bendita seja a queixa, a principal razão da atual
estrutura social.

116
HOMEM X MULHER

Quando tinha meus sete anos de idade, lá pelos meus lados, um


parente, após anos de casamento, procurou o sogro para lhe fazer a
entrega da esposa e dos onze filhos. Alegou falta de recursos para cui-
dar da família. Sem rendas, não tinha como sustentá-los.
Relatos como esse eu assisti por diversas vezes, mais tarde,
quando adulto. Entretanto, jamais ouvi histórias como essa onde o
“entregado” ou “devolvido” fosse a esposa, ou seja, a mãe dos filhos.
Sabemos que algumas mulheres também agem como meu parente,
mas são poucas. É muito mais raro uma mulher abandonar os filhos,
como é difícil também qualquer fêmea de aves ou de mamíferos – ani-
mais mais desenvolvidos do ponto de vista evolucionário - largar suas
crias, devido a algum perigo ou estresse. O comum é a fêmea-mãe
lutar contra os predadores, usando de toda sua força e técnica possí-
vel. Os répteis, diferentemente, não cuidam das crias e caso possam
e tiverem fome, os comem. Fiz essa pequena introdução para entrar
mais a fundo nesse tema.
A ciência tem mostrado que as mulheres se ligam mais, são mais
afiliadas, formam mais grupos com seus companheiros, filhos, amigas,
do que o homem. Cada vez mais se descobrem as razões disso, suas
vantagens e desvantagens para as crias e para as mães, do ponto de
vista da evolução. Pesquisas recentes sugerem que as mulheres ligam-
se mais devido à produção de certas substâncias, entre estas a oxi-
tocina e determinados opióides endógenos – não fiquem assustados

117
com esses nomes, pois isso não tem importância para a compreensão
geral. Essas substâncias são liberadas pelo organismo feminino – de
fêmeas de muitas espécies - em quantidade muito maior do que a
do homem (machos em geral). Agora, o mais importante, uma vez
na circulação elas aliviam muitos efeitos maléficos dos estresses. Vou
explicar melhor: quando enfrentamos um problema, aparece o estres-
se, maior ou menor conforme o fato desencadeado e a pessoa que o
enfrenta. Ora os problemas ocorrem a todo momento, por exemplo,
uma chuva indesejável, a porta que não quer abrir, o computador
que emperra, a namorada que arruma outro, o dinheiro que faltou,
o ônibus que não veio a tempo, o trombadinha que enfiou sua mão
desconhecida muito próximo de minhas partes íntimas, um local que
alguns poucos, e bem escolhidos, têm acesso, etc. Portanto os estres-
ses – um evento indesejável ou trabalhoso e complexo – nos atinge a
todo instante, basta estar vivo.
Há uma teoria antiga – Cannon, 1932 – que tem sido seguida
sem críticas pela maioria dos pesquisadores. Ela afirma o seguinte:
diante do estresse, ou lutamos ou fugimos. O meu objetivo aqui é
mostrar que essa ideia não é totalmente correta. Esse padrão de con-
duta acontece mais com os homens, isto é, com os machos e muito
pouco com as mulheres. Em outra palavras, há outras estratégias para
enfrentarmos os estresses.
Uma vez atingido pelo estresse, o nosso organismo, bem como
o dos animais, produz diferentes quantidades e qualidades de subs-
tâncias químicas que têm por função adaptar o indivíduo ameaçado
ao perigo existente, por exemplo, um assalto. Esse automatismo do
organismo visa manter o equilíbrio do organismo atingido, preservar
sua estabilidade com tudo funcionando a contento, apesar do perigo,
do sofrimento ou do estresse.
Como disse Cannon, é comum agredirmos (lutar ou fugir) o
“provocador”, para destruir o causador ou aliviarmos nossa tensão.
Um estresse frequente são outros organismos vivos, no nosso caso,
outras pessoas. Assim, se percebo, ou imagino, que elas representam
um perigo para mim, procuro fugir delas ou atacá-las, para conduzir

118
meu organismo a um estado corporal agradável, de harmonia com o
ambiente interno e externo. Esse esforço implica secreção de subs-
tâncias para que o novo quadro (luta ou fuga) se instale, às vezes
repentinamente. Entretanto, a produção das substâncias químicas
que nos ajudam a enfrentar a situação desagradável, provocam, por
outro lado, outros danos ao organismo: aumento da glicose, da pres-
são arterial, dos batimentos cardíacos, tonteiras, contrações muscu-
lares, vômitos, náuseas, calafrios, desmaios, insônia, inapetência e
uma série de outros sintomas devido à produção de hormônio do
hipotálamo, que age sobre a hipófise. Esta, por sua vez, age sobre
a glândula suprarrenal e a medula suprarrenal, que produz a famosa
adrenalina e a menos famosa noradrenalina. Se o estresse continuar
por muito tempo, a memória piora, o organismo fica mais sujeito
a contrair infecções, pois os efeitos em cascata atingem também o
sistema imunitário e uma série de outros transtornos, entre eles a
depressão. Mas esse não é o tema principal do meu artigo. Quero
mostrar as diferenças entre mulheres e homens, entre os machos e
as fêmeas, diante do estresse.
A sobrevivência de um indivíduo, bem como da espécie, de-
penderá da resposta mais “sábia” do organismo biológico ou interno.
Deve ser lembrado que o organismo, de modo geral, reage sem pen-
sar, ele não tem “inteligência”, age automaticamente, visando esca-
par do que está atrapalhando sua paz, sua homeostase. Até mesmo
o alimento que ingerimos, por mais delicioso que seja, irá perturbar
a paz ou equilíbrio do organismo. Uma vez invadido pelo arroz com
feijão, o organismo terá que transformar o invasor e outros possíveis
corpos estranhos do alimento. Isso dá trabalho, movimenta uma série
de fatores complicadíssimos até que tudo retorne ao normal, à paz.
Pois bem, diante da ameaça – do estresse - o organismo tenta, como
pode, resolver o problema que surgiu e, como disse, não é só fugindo
ou matando.
Sabe-se hoje que a maioria das pesquisas realizadas para se chegar
a essa afirmação, foram feitas com animais machos ou com homens.
Estudos realizados com fêmeas em geral, e também com mulheres,

119
mostraram que o paradigma não se aplicava a elas, como sempre se
acreditou. A observação é simples. Diante dos filhotes ou filhos, fa-
mintos ou sem emprego, diante da ninhada de pintos ameaçada pelo
gavião de penacho, diante da serpente pronta para abocanhar os rati-
nhos no ninho, as mães, em lugar de fugirem, ajuntam-se aos filhotes,
pintos, ratos, crianças, etc. procurando, através dessa ligação, não só
salvá-los do perigo, mas também salvar-se, escapar do estresse, de um
modo diferente do que fugir ou atacar.
É sabido que os grupos tornam mais difíceis os ataques do pre-
dador. O grupo confunde, faz o animal perder o rumo por ter dificul-
dade de perseguir um determinado. Também o barulho de muitos
(choros, pios ou guinchos) perturba o atacante.
Um fato surpreendente encontrado nas pesquisas recentes foi o
de que a conduta das fêmeas, sua aproximação e ligação – estudada
há anos por John Bolbby e outros mais – levam o organismo a produ-
zir certas substâncias químicas, entre elas a oxitocina e os opióides
endógenos, que reduzem a potência fisiológica e comportamental do
estresse. Isso mesmo, a ação de não fugir, apenas defender-se, unindo-
se ao grupo, é um fator importantíssimo, pois ele não só protege a
prole, como aumenta a produção dessas substâncias químicas, dimi-
nuindo o sofrimento provocado pelo estresses. Um fato interessante
é que essas substâncias são ansiolíticos, isto é, tornam o organismo
mais calmo do que quando ele simplesmente foge ou briga, capacita-o
a pensar melhor, estudar outras estratégias possíveis, em lugar de agir
impulsivamente sem raciocinar.
Sabe-se que as mulheres vivem em torno de 7.5 anos mais que
os homens. Uma hipótese é a de que isso se deve a essa conduta das
mulheres que, menos tensas devido à produção dessas substâncias
químicas, sofrem menos os efeitos ou a potência dos estresses do dia-
a-dia que, por sua vez, diminuirão os efeitos, a curto e principalmente
a longo prazo.
Coitado dos homens, nosso organismo produz mais testostero-
na, o chamado de hormônio masculino, que tem, como uma de suas
ações, a de agredir. Observem os homens: são eles que diante de fa-

120
tos de pouca importância batem, matam, suicidam-se, bebem, usam
drogas, etc. Além disso, a conduta masculina diante dos estresses, ao
contrário do que ocorre com a maioria das mulheres, é o isolamento,
a fuga dos contatos. Os homens formam menos grupos de apoio, de
amizade duradoura. Poucos têm amigos íntimos, o que é quase a regra
entre as mulheres. As pesquisas mostram que esse envolvimento das
mulheres com outras, na maioria das vezes ocorre desde a infância,
continuando entre as adolescentes e adultas.
Nos grupos de meninos, as ligações são geralmente frágeis des-
de cedo.
As mulheres têm uma maior produção de oxitocina. Esta substân-
cia é produzida em maior quantidade pelos organismos femininos e é
ela que durante o parto faz aumentar as contrações uterinas. Também
durante o orgasmo há aumento da oxitoxina nos dois sexos. Esta subs-
tância aumenta também quando encontramos uma pessoa da qual gos-
tamos muito. Os opióides endógenos agem igualmente como calmantes
– semelhante à morfina – sendo produzidos durante exercícios físicos
e também, quando estamos diante de situações que muito nos agradam
uma pessoa que nos interessa, um bom livro, uma boa música, um lugar
que achamos bonito, uma oração para quem professa uma religião, etc.
Como vimos, as ações dessas duas substâncias são semelhantes.
Lamentavelmente não adianta aos homens copiarem a técnica
das mulheres, pois seu organismo não foi feito para isso. A oxitocina
e os opióides, durante os estresses, só têm um efeito duradouro nos
organismos das fêmeas. Isso se deve à produção nesses organismos de
grandes quantidades de estrógenos, ou seja, do hormônio chamado
feminino. A oxitocina e os opióides atuam através dos estrógenos.
De outro modo, no homem, com sua testosterona, o efeito não
aparece, pois as pesquisas mostram que esta impede no homem a soli-
dariedade natural das fêmeas. Uma das ações do hormônio masculino
é a agressão para a defesa do território, da fêmea, do alimento, etc.
Diversos estudos, que não citarei aqui, realizaram experiências
com fêmeas e machos, injetando-lhes uma ou outra substância, ou
também injetando inibidores dessas substâncias. Foram percebidas

121
mudanças nas condutas das fêmeas para manter-se, ou não, ao lado
os filhotes durante o estresse, quando as substâncias diminuíram ou
foram bloqueadas.
As mulheres, muito mais do que os homens, diante do sofrimen-
to formam grupos de apoio, de solidariedade, que, uma vez construí-
dos, as protegem do sofrimento que combatem.
Os toques, os abraços, o contato físico e espiritual, comuns du-
rante as grandes tragédias, aliviam os que assim agem, servindo como
poderosos e duradouros calmantes – do mesmo modo que ficamos
bem e calmos quando encontramos um grande amigo, reencontramos
uma pessoa muito querida.
As substâncias que são produzidas durante o estresse, ACTH,
hormônios da hipófise, da glândula adrenal etc., diminuem a pro-
dução delas quando há ligação da pessoa com outras sentidas como
companheiras, devido à produção de oxitocina e de opióides endóge-
nos. Com isso, há uma diminuição das ações colaterais indesejáveis.
Portanto, o contato físico, o encontro, a formação do grupo, o toque
sutil ou não, o cheiro, voz, beleza e simpatia, são poderosos remédios
contra o mal que enfrentamos constantemente. Infelizmente, porém,
o mesmo grupo que aquece e protege, o mesmo cônjuge que produz
oxitocina e opióides em nossos organismo pode, também, num outro
momento, ser o provocador de estresses terríveis.
As separações produzem o fim de determinados prazeres, do
mesmo modo as brigas e as mortes. Desencontros diários podem ser
difíceis ou impossíveis de serem transpostos. Portanto, cuidado, mu-
lheres! A fonte de prazer, a união que tanto bem nos faz e nos protege
até contra as doenças e morte, pode também nos levar ao sofrimento
ou à morte precoce. Cerca de 20% a 50% das mulheres são abusadas
em casa pelo companheiro que ela escolheu para abrandar seus sofri-
mentos. Não é fácil viver, de um e de outro modo, sempre surgirão
riscos e perigos sérios.
As mulheres, talvez felizardas, muito mais que os homens for-
mam durante suas vidas ligações íntimas que permanecem: mãe/filha,
irmãs/irmãs/amigas. Diante do sofrimento, não há a mesma tendência
dos homens, como existe nas mulheres em geral, de unir-se.

122
Os homens tendem a se isolar diante dos estresses. Deve ser
levado em conta que os fatores sociais e culturais têm uma enorme
importância também nesse comportamento, mas o papel dessas subs-
tâncias serve como intermediário nesse complexo comportamento
que diferencia as mulheres dos homens.
Em outras palavras, a Biologia não é um destino, mas uma ten-
dência central que influencia e interage com o social, cultural e os
fatores emocionais e cognitivos, resultando numa conduta substan-
cialmente flexível.
Diversos grupos de animais mais evoluídos agem também desse
modo. Assim, macacas de certas raças, controladas por um só macho
de maior status e força física, muitas vezes se unem contra o domínio
desse macho autoritário, obrigando-o a ceder diante de um abuso a
uma fêmea determinada.

123
AS MULHERES:
O SILÊNCIO DAS INOCENTES

2.2 Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor;


2.3 Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo
é a cabeça da igreja; (...)
2.4 De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim
também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.
São Paulo: Efésios, 5: 22 - 24

Infelizmente o apóstolo Paulo continua tendo muitos seguido-


res. Discursos como os de Paulo encontram-se disseminados nas famí-
lias, escolas, mídias, religiões, artes e leis. Por isso, aprende-se cedo
a discutível crença da inferioridade da mulher, uma afirmação sem
apoio empírico. Esse tipo de julgamento desvaloriza os papeis, as con-
dutas e o próprio gênero feminino e, uma vez ensinado e aprendido,
domina a mente de todos. A separação dos seres humanos em dois
grupos, masculino e feminino, por ser um fenômeno complexo, uma
vez utilizada, contagia inúmeros aspectos da vida diária. A história do
homem tem sido governada por falsas ideias. As ideologias transfor-
mam as pessoas em vítimas ou escravas das crenças difundidas.

O APRENDIZADO DA SUBMISSÃO

A criança, após o nascimento, é domesticada pelos sistemas de


crenças existentes na cultura onde vive. São os pais que, por sua vez,
aprenderam dos seus pais, os transmissores das ideias. Como deposi-

125
tários e difusores dos fundamentos do raciocínio, entre eles, os não-
igualitários acerca do sexo, os pais tendem a escolher para suas filhas
“meigas”, nomes suaves como Dulce, Cândida ou Felicidade. Para os
meninos “rudes”, nomes de sábios, atletas ou artistas: Homero, Romá-
rio ou Fernando.
Embora na fase pré-verbal a criança ainda não seja capaz de no-
mear o próprio sexo, bem como o dos outros, ela aprende a diferen-
ciá-lo, observando as reações e as comunicações afetivas expressadas
pelos pais, parentes e outros. Ora eles sorriem, ora fazem comentários
de aprovação quando os filhos entram em atividades julgadas adequa-
das. Ao contrário, exibem emoções indicativas de rejeição, quando
as atividades são julgadas impróprias. A atitude dos pais diante dos
filhos, sancionando ou reprovando uma ou outra conduta, indicam e
prescrevem as condutas desejadas e, junto com o comportamento, as
emoções a ele ligadas, agradáveis ou desagradáveis, conforme execu-
tam uma ou outra ação. Frases como: “Oh! Há um menino no quarto.”,
dita por um pai vendo a filha chutar bola, serve como uma crítica para
a menina, indicando-lhe não ser aquele um brinquedo adequado.
Outras atividades vão sendo executadas e testadas, gratificadas
ou punidas, conforme a categorização cultural e as emoções expres-
sas durante sua realização. Iluminados pelo mesmo simbolismo, os
quartos são decorados de forma diversa para um e outro sexo. O me-
nino usará calça azul e a menina vestido rosa. Os cabelos têm também
estilos e tamanhos capazes de distinguir um do outro. Aos poucos, o
estereótipo é materializado através de ações: brinquedos e materiais
educacionais diferenciados. Para os meninos, máquinas, veículos,
equipamentos de esporte e para as meninas, bonecas, mamadeiras,
itens domésticos e flores. Os presentes “masculinos” devem orientá-
los para futuras profissões, os “femininos” destinam-se ao aprendiza-
do de atividades domésticas. A agressão fica bem para meninos, não
para meninas e milhares de outras orientações.
Mas a construção da mulher não é tecida apenas por diferenças
inocentes. A rotulação usada para separar o masculino do feminino
carrega, disfarçadamente, significados mais profundos com respei-

126
to aos papeis, profissões e habilidades gerais. Cedo, a criança nota
que pertencer a um gênero criará grandes diferenças e, para piorar,
intimamente enraizado ao conceito do permitido e do proibido, a
cultura quase sempre enaltece as condutas masculinas e menospreza
as femininas.

A CONSTRUÇÃO DA SUBMISSÃO

De todos os lados, sem percebermos, somos bombardeados por


condutas-modelos - nítidas e frequentes demais - indicativas da ma-
neira “correta” de se comportar conforme nosso gênero. Esse apren-
dizado, assimilado sem digerir, ao modelar a personalidade infantil
carrega internamente inúmeros e imperceptíveis apelos à ordem mas-
culina/feminina: hipóteses, afirmações e modos de agir. Nas novelas
e nas propagandas de TV, os estereótipos existentes afloram a todo
momento, quase sempre engrandecendo, sem preocupação pedagó-
gica, os papeis e valores tradicionais existentes na cultura do dia-a-
dia. Os homens são mostrados como dirigentes sérios e importantes,
bem ajustados, enérgicos, habilidosos e ambiciosos. As mulheres são
“usadas”, muitas vezes, para embelezar o ambiente, ou como anfitriãs,
apresentadoras, animadoras, sedutoras e emotivas, sempre cuidando
de alguém, ocupando posições desvalorizadas socialmente, tais como
babás, donas de casa e outras.
Junto aos amigos, os estilos de conduta continuam sendo mo-
delados e confirmados. Cada companheiro elogia ou critica o outro
ao escolher a atividade apropriada ou inapropriada segundo o credo.
Deve ser lembrado que esse grupo não forma um conjunto isolado,
pois encontra-se preso aos pais, à Igreja, professores e, principalmen-
te, aos companheiros, isto é, ao grupo de referência.
As pregações da Igreja têm sido tradicionalmente marcadas por
afirmações indicando uma “enorme diferença entre homens e mulhe-
res”. Além da postura antifeminista explícita - condenação de mulhe-
res por falhas à decência, sobretudo em matéria de trajes - a Igreja
tem mantido e divulgado, do alto de sua sabedoria e poder, uma visão

127
negativa acerca das mulheres, da feminilidade e, através dos séculos,
tem inculcado, explicitamente uma moral dominada por valores pa-
triarcais.
Um último problema: se, por um lado, algumas ações desem-
penhadas pelas mulheres são aparentemente aplaudidas e elogiadas,
como o trabalho de cozinha, a costura, a limpeza, a maternidade, o
ensino ou o secretariado, por outro, mais implicitamente, as mesmas
atividades são depreciadas pela voz popular em geral. Nota-se que, nas
entrelinhas, aparece um sentimento velado, inconsciente, sugerindo
“a menor importância” dessas atividades que são “trabalhos simples”
e “pouco significativos.” Entretanto, boa parte das atividades “mas-
culinas” são explicitamente elogiadas, valorizadas e cobiçadas pelo
povo em geral: executivos, jogadores, pilotos, banqueiros, gerentes.

PROCESSADOR COGNITIVO E CATEGORIZAÇÃO

O processador cognitivo de informações da criança vai sendo


construído através do armazenamento de ideias e emoções ligadas aos
acontecimentos: não só as experiências diretas vividas, mas também
as sensações e observações sentidas acerca das condutas dos pais,
amigos, professores, artistas da TV etc. A criança vai aprendendo a ca-
tegorizar tanto a elas próprias, como também aos outros meninos ou
meninas, retendo informações substanciais acerca das peculiaridades
e papeis próprios de cada sexo. A partir dessas informações gerais,
básicas, ela extrai orientações concretas para sua própria conduta e
crítica dos outros.
Aos poucos, a criança torna-se apta para deduzir e sentir, atra-
vés de suas auto-observações e autocríticas, sentimentos de prazer e
orgulho, ou de sofrimento e humilhação, por possuir, ou não, esta
ou aquela característica. Inexoravelmente ela descobre que os papeis
importantes na sociedade estão reservados para os homens, pois é
fácil notar que eles são os principais dirigentes políticos, espirituais e
financeiros. Além disso, na sua própria casa, quem manda e quem de-
cide, além de ser mais respeitado, inclusive por sua mãe, é seu pai.

128
GRUPOS IDEOLÓGICOS

Os principais grupos ideológicos de nossa sociedade, começan-


do com os familiares, cooperam para o mesmo fim: a pregação, ex-
plícita e implícita, da inferioridade da mulher. Em todos os lugares,
diariamente, as crianças são educadas, treinadas e ajustadas para assi-
milarem essas crenças delirantes. Os grupos inoculadores de crenças,
unidos pelo discurso pró-masculino, fazem parte de uma forte e po-
derosa rede, avaliando e aprovando as regras da conduta. A obediên-
cia à palavra, através dos tempos, tem sido uma tendência natural do
homem, tomando o mapa pelo território, a palavra pela coisa, a ideia
pela realidade. As ideologias, além de doutrinárias, de explicarem
dogmaticamente tudo, também assimilam os fatos observados e mes-
mo experimentados, fazendo-os desaparecer quando eles poderiam
ser úteis para contestar e destruir a fala utilizada. De outro modo, as
ideologias, para sobreviverem, precisam rejeitar os fatos.
As falsas suposições, ao invadirem a mente humana, contami-
nam, como um vírus, todo o modo de pensar e de sentir. Do mesmo
modo que, para respirarmos, precisamos do oxigênio fornecido pelas
plantas, para compreender o ambiente externo e o nosso próprio eu,
bem como para prescrever ações e imaginar seus resultados, preci-
samos de símbolos, ideias e mitos, todos construídos pela cultura.
Essa sopa complexa de conceitos, tanto pode fornecer o oxigênio
para criarmos ideias adequadas, como também gases tóxicos, tornan-
do-nos incapazes de pensar adequadamente. Nosso espírito acha-se
mergulhado nesse caldo espesso. Selecionamos e extraímos dele os
significados para avaliar os “fatos do mundo” e, entre outros saberes,
as conjeturas do que é, e do que não é, correto e valorizado para as
mulheres e homens. Como consequência, nossas interpretações do
meio ambiente, nossas decisões do que fazer, querendo ou não, bem
ou mal, estão assentadas nas crenças semeadas, aprendidas e culti-
vadas, com muita fé, pela cultura onde vivemos. Como muito bem
alguém se expressou: “E impossível compreender algo que seja exte-
rior e contrário ao tecido da interpretação permitida.”

129
As noções transmitidas, ligadas aos fatos vivenciados, uma vez
impressas e estruturadas passam a controlar o modo de processar in-
formações focalizadas no momento por cada pessoa. É através dessas
hipóteses aprendidas, e não comprovadas, que a mente da mulher
julga a si própria, as outras mulheres, os homens e as relações entre
eles. Muitas vezes, privadas de outros “programas mentais” diferentes
do imprimido, para decifrar o observado, a mulher irá se avaliar - e
não poderia ser diferente - conforme regras rígidas e simples armaze-
nadas em sua memória, prontas para serem detonadas: isso é certo,
aquilo é errado.
A submissão da mulher torna-se, pela educação e condiciona-
mento continuado, não um ato de escolha consciente e livre, mas sim
uma obediência às pressões exercidas por forçar internas; um poder
inscrito duradouramente sob forma de esquemas de percepções, de
disposições, de como admirar, respeitar, amar etc. Em consequência,
automaticamente, a pessoa torna-se sensível e reativa, ou insensível e
não reativa, a certos eventos. Ela reage prontamente a um ou outro
estímulo e não reage a outros.
Em qualquer lugar, em qualquer tempo, a mulher – como tam-
bém o homem – pensa e age comandada pela sua memória autobiográ-
fica. Para alguns, sua consciência, nada mais é do que o aprendido, na
maioria das vezes sem o desejar, trilhões de experiências armazenadas
e disponíveis são usadas no momento da avaliação e da ação. É mais
fácil reagir ou escapar de uma ordem externa, do que libertar-se da “pri-
são perpétua”, de uma imposição que vem de dentro. Apesar de não
existirem escolhas livres, pois só podemos pensar com o que temos
internamente, muitos imaginam que agem de uma maneira ou de outra
devido à sua “liberdade” de escolha. Nada mais enganador, as bases
do raciocínio foram semeadas por mãos alheias apesar de serem per-
cebidas como pressões para agir de um determinado modo. Isso torna
extremamente difícil, ou impossível, lutar contra essas ideias espúrias
que, uma vez assimiladas e incorporadas em nossa mente, passam a fa-
zer parte da estrutura mental do infectado, levando seu portador a não
mais saber qual parte pertence ao vírus e qual pertence a ele próprio.

130
O indivíduo contaminado e dominado pelas ideias alheias, passa
a defendê-las, identificando-se com a crença do invasor, mesmo quan-
do os princípios assimilados atuam contra o desenvolvimento de suas
potencialidades. De um modo geral, acostumadas desce cedo a con-
viver com esse sistema assimilador defeituoso, elas tendem a rejeitar
possíveis contestações às crenças que habitam sua mente e que as
escravizam, bem como toda verificação empírico-lógica apresentada
externamente.
Entretanto, elas não são totalmente fechadas ao mundo exterior.
Têm necessidade de alimentar-se de verificações e confirmações das
crenças adquiridas, selecionando somente os elementos ou aconte-
cimentos que as confirmam. Para isso, os eventos são filtrados pelo
assimilador mental e cuidadosamente submetidos a uma peneirada,
retendo apenas os resíduos possíveis de serem assimilados pelo mapa
defeituoso, isto é, os fatos que confirmam a inferioridade.
Em consequência, o Eu da pessoa que executa as atividades per-
cebidas pelo sistema de pressupostos da cultura como “inferiores” –
funções pouco desejadas e de menor importância social - fatalmente
irá se classificar como membro do grupo dos menos capazes, dos
rejeitados e sem regalias. A maioria das mulheres, sem nem mesmo
atinar para esse aprisionamento claro e visível demais, vasto e dura-
douro demais, imaginam tudo naturalmente como fazendo parte do
gênero feminino biológico como a altura, o tamanho dos músculos,
a distribuição de pelos, o tipo de mamas, etc., características físicas
sem possibilidade de serem mudadas. Imersa nesse cipoal de concei-
tos restritivos, a mulher ficou impedida de tentar, ou mesmo imaginar,
investir em atividades consideradas apropriadas para os homens. Der-
rotadas e submissas, muitas vezes acreditando pouco na sua própria
capacidade, assim vive a maioria das mulheres desse planeta. Muitas,
apesar de degradadas pelas afirmações tendenciosas, continuam de-
fendendo e lutando, até à morte, pelas prerrogativas masculinas que
as dominam e as massacram.

131
A ILUSÃO DO PRIVILÉGIO MASCULINO

O privilégio masculino não deixa de ser, em parte, enganoso. Os


homens, como as mulheres, também estão dominados pelas crenças
culturais a respeito do próprio sexo e do das mulheres. As regras de
como se comportar pressiona o homem a confirmar, em toda e qual-
quer circunstância, as prescrições embutidas nas normas existentes
a respeito do seu gênero, isto é, de sua virilidade. O “homem verda-
deiro”, o macho, é aquele que comporta-se procurando, a todo custo,
honrar a masculinidade idealizada pelo grupo de referência pois, só
assim, ele alcançará a glória, a distinção entre seus pares e ouvirá o
elogio esperado com ansiedade: “este sim, é que é um homem.” A
maioria não se apercebe da representação dominante na qual está in-
serido: ser homem implica uma maneira de andar – como se isso fosse
natural – aprumar o corpo, erguer a cabeça, pisar duro, mostrar uma
atitude e uma maneira de pensar e agir, bem como possuir uma ética
e crença adequada ao seu sexo masculino.
A “estrutura masculina” assimilada funciona como uma pressão
que impele o homem viril para um destino que ele não escolheu.
Este impulso invisível e astuto, sentido como inevitável, obriga seu
possuidor a agir, sem raciocinar, conforme os cânones impostos e,
uma vez acomodada no ninho propício, transforma-se num ente su-
perior incorporado ao organismo. A ideia-mãe, dando crias, ou seja,
formando novas opiniões correlacionadas, funciona como um desti-
no, uma inclinação que deve ser cumprida a qualquer preço. A identi-
dade desejada, inscrita em sua alma, só será alcançada por aquele que
obedecer, cega e fielmente, a ordem superior. A submissão à doutrina
transforma-se no ideal supremo. O sistema de exigências, torna-se um
hábito, comandando a forma de viver da pessoa.
Para provar a “masculinidade”, exibir e exercitar o comando
interno da virilidade, inúmeros ritos foram instituídos pelo sistema
de crenças, convertendo-se em atos, criando corpo: calouradas bem
como outras festividades existentes entre escolares e militares. Estu-
pros coletivos - variante da visita em grupo às casas de prostituição,

132
comuns antigamente, brigas de torcidas, quebra-quebras, pichações
em lugares perigosos, esportes de alto risco, assassinatos em defesa
da honra, etc. A demonstração de “coragem”, sinalizadora da virilida-
de, é exigida em diversos grupos masculinos: policiais e forças arma-
das, principalmente as corporações de elite, bandos de delinquentes,
trabalhadores em diversos grupos, etc. Em todos eles, incentiva-se
o enfrentamento do perigo e critica-se o uso da prudência. Nesses
casos, a bravura e a nobreza somente são admiradas, caso a pessoa
enfrente a possibilidade de sofrer acidentes.
O que mais chama a atenção em todas essas condutas próprias
dos “machos”, é que elas apoiam-se, paradoxalmente, no medo de
perder a autoestima e a estima dos outros, caso não consiga, ou não
seja capaz, de se comportar conforme as normas impostas. O ato de
“coragem” manifesta-se, provocado pelo medo, de ser tachado de
covarde, mulherzinha, efeminado ou veado, gerando insegurança na
mente do acusado. Portanto, diversas condutas masculinas promovi-
das para demonstrar “coragem”, assentam-se no receio de ir contra a
opinião generalizada do grupo, em ter que agir da forma estabelecida
pelo domínio simbólico, pois só assim provará para os outros e será
proclamado viril. Agindo de forma diferente poderá ser excluído do
mundo dos homens fortes, sem fraquezas, dos chamados de “duros”,
como certos assassinos, torturadores, alguns patrões e professores.

ARDIL PARA ESTABILIZAR A SOCIEDADE: OS PAPÉIS

Para que haja harmonia social, é preciso nivelar, isto é, condu-


zir para um ponto comum a forma de pensar das pessoas. Para que
haja a reprodução da força de trabalho há necessidade, não apenas
da reprodução da qualificação profissional, mas também, e ao mesmo
tempo, que haja a reprodução da submissão às regras da ordem esta-
belecida. Não haveria ordem e harmonia nas ações caso não houves-
se um entendimento e acordo com respeito à ideologia dominante:
é preciso que todos compreendem e aceitem, com naturalidade, as
informações culturais simples, entre elas quem deve e pode mandar,
quem deve e precisa obedecer.

133
Da mesma forma, para que haja “harmonia social” entre os sexos
“superior” e o “inferior”, torna-se necessário que os símbolos usados
pelo “superior” - manipulador do domínio e da repressão (Estado,
Direito e Polícia) possam ser entendidos pelo “inferior” dominado -
povo em geral - se possível, com simplicidade e orgulho. É preciso
que o discurso não-igualitário, instituído de cima para baixo por um
grupo, seja assimilado e entendido pelo outro grupo sem restrições.
Somente se a maioria da população for contaminada pela ideo-
logia dominante, adotando-a como fazendo parte do seu ser, haverá
paz e só assim será possível a convivência pacífica entre os grupos de
cima e os de baixo e vice-versa, fazendo com que cada classe cumpra
as tarefas sociais a ela destinada, “livre e conscientemente”. De um
lado, o grupo dos dominados, de outro, o dos dominadores e auxilia-
res do domínio como os administradores, os sacerdotes da ideologia
dominante, os promulgadores como os funcionários encarregados da
propaganda, etc. Para existir a paz perfeita, todos devem usar, com
prazer e naturalidade, a mesma linguagem, concordar com os pontos
básicos, para “o bem das pessoa, família, povo, nação e tradição”.
Além disso, os pontos contraditórios ou injustos devem ser encober-
tos e idealizados como benéficos e justos, pois só assim o governo
alcançará sua principal meta: manter a ordem social.
A ordem social não poderia ser mantida apenas com a divisão
simples de um grupo superior e outro inferior. Haveria sublevação
da ordem pública, caso existisse apenas a afirmação da inferioridade
da mulher. Era preciso criar, além dessa “ordem”, um outro sistema
de crenças, circundando o primeiro, para que as mulheres e outros
estigmatizados, pudessem, não só aceitar pacificamente seu papel,
mas também, “valorizar” a inferioridade.
Com esmero e sabedoria, astutamente foram inventados siste-
mas de crenças de níveis logicamente mais elevados - que englobam
outros - estabelecendo a paz entre “superiores” e “inferiores”. Para
isso a sociedade dominante construiu a valorização espectral, fictí-
cia, de atributos e papéis dos dois sexos. Maquiavelicamente, para
que certas profissões ou ações pudessem ser seguidas sem revolta,

134
até mesmo com certo orgulho e prazer e, logicamente, não surgisse a
baderna, criou-se uma ideia-chave: um novo mito, um novo domínio
simbólico, ramo do sistema geral, enfatizando, com muita fé, a valori-
zação de todo e qualquer trabalho, seja lá qual for. Essa ideia, inicial-
mente absurda, foi sendo divulgada e defendida pelos dirigentes e
ouvidas com certa incredulidade por todos. Entretanto, aos poucos,
a mentira foi se transformando em “verdade” simbólica, evidente-
mente, não real.
Os órgãos superiores unidos, Estado, Igreja, Lei e Escola, de-
fenderam e exaltaram a “verdade” nascida da ficção: “todo trabalho
é nobre”. Aos poucos, o engodo foi crescendo, passando a ter vida
própria, dando troncos, ramos e folhas. Bem firme, a ficção foi se
tornando cada vez mais verdadeira. Todo trabalho passou a ser eleva-
do, glorificado, todos trabalhadores passaram a ser abençoados por
Deus e, como consequência, seu executor passou a sentir orgulho de
realizar, para o próprio bem, e principalmente dos Senhores, todo e
qualquer trabalho. Não faz muito tempo, o trabalho era visto como
penoso e até degradante, principalmente os chamados “trabalhos
braçais”.
Agora, os tempos mudaram, o trabalho submisso, as profissões
penosas e tidas com inferiores, as atividades cansativas e sujas foram
adquirindo status de majestosas, ilustres, quase divinas para as clas-
ses “humildes” e, desse modo, aceitas com grande orgulho por seus
executores. Para atiçar a mente do leitor, repito aqui frases frequen-
temente repetidas: “O trabalho enobrece o espírito”, “Todo trabalho
é nobre e digno”, “Não há diferença entre a atividade do lixeiro e do
senador” e diversos outros slogans do mesmo gênero que hipnotiza-
ram todos nós.
Uma vez inventado, imposto e aceito o novo valor supremo, foi
possível a criação de diversas outras afirmações derivadas da premis-
sa inicial, tais como: “ser um bom escravo é vantajoso”, “é glorioso
servir a um homem importante como o Dr. X”. Ficou fácil, para a
maioria das mulheres, ansiosamente buscar, com orgulho, ser uma
ótima funcionária de qualquer expoente, carregar às costas uma série

135
de atividades cansativas, trabalhar 30 horas por dia para o bem da
empresa, em atividades pouco ou nada valorizadas.
A mente do povo, uma vez invadida por esses conceitos, magica-
mente, por encanto, aquietou-se. A paz reinou nesse mundo de Deus,
onde cada um trabalha em louvor à ideia dominante, não em benefí-
cio de seu próprio e singular bem-estar. Dominados por essa auréola
ofuscante, incapazes de refutá-la, com orgulho repetimos: “Ela largou
os estudos e o emprego para poder amamentar o filho.”
Cada frase desse tipo não só tranquiliza o agente e executor,
como também lhe fornece, muita vezes, uma alegria e orgulho em
realizar tarefas quase penosas. Acalma o dominado, adoça a boca do
servidor servil.
Por outro lado, o dominador, como o pai agressivo, o mau pa-
trão, o professor intolerante, o governo injusto, o ditador assassino,
todos esses, em lugar de serem agredidos pelos subordinados, rece-
bem obediência, honrarias, medalhas e gratidão dos dedicados servos,
prontos para servir. Contaminado por essas ideias, começo a acreditar
que alguns nasceram para mandar e outros para obedecer. Será?

136
SEPARAÇÃO E PERÍCIA:
ADVERTÊNCIAS

Fim do casamento. O juiz normalmente determina que a guarda


dos filhos menores fique sob a responsabilidade da mãe destes. Este
modelo de custódia dos filhos tem sido aceito sem maiores discus-
sões, por quase todos os que se separam. Excepcionalmente, alguns
cônjuges investem contra essa regra. As alegações, para tentar impe-
dir que o cônjuge “inimigo” fique com a custódia dos filhos, ou até
mesmo faça visitas a eles, são as mais diversas. Há outras regras de
custódia do filho, entre elas a “custódia compartilhada” recentemente
divulgada pela mídia.
O advogado, ao ouvir as queixas apaixonadas e agressivas do
cliente, imagina ser o outro cônjuge um louco ou crápula. A descri-
ção, fruto de percepções distorcidas, mescladas a fortes emoções,
procura criar uma história plausível para impressionar o juiz, o advo-
gado e, por que não, a si mesmo. Espera-se, com a história fantástica,
justificar as ações ora adotadas, conquistar a simpatia dos amigos e,
se possível, receber uma sentença favorável do juiz. Tenta-se de tudo
para alcançar o pretendido, inclusive a destruição, parcial ou total, do
ex-amado, que, diga-se de passagem, nada mais é do que o pai ou mãe
dos filhos e que será, no futuro, um provável sócio e colaborador na
educação destes.
Não é raro ver o advogado ficar “decepcionado”, ao conversar
com o “monstro”. Por mais que investigue, não descobre o esquisito

137
parceiro descrito pela história contada pelo cliente enfurecido. O ad-
vogado, ao relatar a impressão favorável, muitas vezes é dispensado
pelo cliente, que imagina: “Foi comprado, ou talvez conquistado?”
Outras vezes, afirma: “É fingido, parece anjo, mas na verdade é um
demônio... você verá.”
O cônjuge, contaminado por emoções violentas e conflitantes,
mergulhado até a alma nessa briga composta de amor e ódio, tenta
destruir o “inimigo” de todas as formas possíveis, acusando-o de lou-
co, impotente ou homossexual.
Os insultos, visando a impedir que o acusado tenha direito à
guarda dos filhos ou de lhes fazer visitas a esses, não terminam aí.
O acusador enfurecido tem outros nomes para seu atual inimigo: al-
coólatra, drogado, paranóide, incestuoso, irresponsável, pródigo e
agressor físico. Já assisti a tudo, existem outras acusações mais sutis e
estranhas, mas as citadas são as mais divulgadas.
Os juízes, diante das acusações acima descritas, podem pedir
ajuda técnica aos psicólogos e psiquiatras para melhor fundamenta-
rem seus pareceres. Esses profissionais, chamados a opinarem como
peritos, são lançados na disputa, devendo julgar se o suposto “pa-
ciente” é, na realidade, o que a acusação afirma: um louco ou coisa
semelhante. Caso o “defeito” for constatado, o “réu” poderá ficar im-
pedido da guarda dos filhos, de visitá-lo e, até mesmo, de se separar.
Recebendo o diagnóstico psiquiátrico, o cônjuge, ao ser denominado
“louco” e, consequentemente, estigmatizado pela sociedade, sofrerá
as sanções da lei, inclusive, dependendo do rótulo recebido, tornar-se
”incapaz de gerir sua pessoa e seus bens”.
Em virtude das consequências sérias para a vida do “acusado”,
torna-se obrigatório que os psiquiatras e psicólogos esclareçam aos ma-
gistrados, advogados e à opinião pública em geral, sua ignorância e
incerteza acerca do comportamento humano e, como consequência,
de seus diagnósticos e pareceres feitos com muito amor e dedicação.
Só o charlatão, o inculto e o profissional desonesto afirmam ter certeza
acerca dos resultados de seus exames. O perito sério e competente não
pode simular uma falsa impressão de segurança nos seus achados, pois

138
esta certeza não existe em nenhuma ciência, nem nas chamadas “exa-
tas” – hoje não tão exatas assim - muito menos na área psicológica.
O perito chamado deve verificar, com extremo cuidado - para
não piorar o que já se encontra deteriorado - se o examinado tem ou
não capacidade para cuidar do filho ou de se separar.
Ele é chamado para opinar sobre isto. Sua missão fundamental
não é verificar se existe um transtorno e fornecer um rótulo psiquiá-
trico para o magistrado, mas se o problema - se existente - é crônico
ou intermitente, sutil ou óbvio, quais estresses existem e quais podem
estar favorecendo o aparecimento do quadro clínico atual, bem como
era a personalidade anterior do examinado. Precisa examinar a exis-
tência ou não de outros fatores tais como: se ele tem ou não a ajuda de
parentes ou amigos, se tem ou não consciência de seus problemas, se
ele está seguindo algum tratamento e qual o efeito que a doença tem
tido, ou poderá ter, sobre a criança em discussão, se é que possa ter
algum. O melhor guia para um comportamento futuro é o comporta-
mento passado do indiciado.
Ao verificar a existência de sintomas e sinais é necessário exami-
nar se estes são compreensíveis – adequados - ou não, para a situação
vivida. Assim, a Classificação Mundial de Doenças Mentais, o CID 10,
e a americana, DSM IV, trazem, como exemplos de grandes estresses,
entre outros, a separação conjugal, o afastamento dos filhos, as perdas
financeiras, os problemas com a justiça e a mudança de domicílio.
Como se vê, todos esses fatores ocorrem, em maior ou em menor
grau, durante as separações conjugais.
Portanto, qualquer exame psiquiátrico realizado durante essa
luta, fatalmente vai detectar sintomas e sinais psicológicos caracte-
rísticos de algumas doenças mentais, que não apareceriam, caso não
existissem os problemas que estão sendo vivenciados no momento
pelo indivíduo.

139
O Terapeuta amador

Todas as pessoas acreditam que é bom “ter um amigo em quem


se possa confiar”, para contar os problemas e ouvir algumas palavras
de ajuda e compreensão num momento de dificuldades. É realmente
muito bom quando o ouvinte se limita a ouvir e evita dar palpites,
pois conselhos ruins em momentos decisivos, podem destruir planos,
vidas e trazer sofrimento. É preciso ter algum cuidado com os tera-
peutas de botequim.
Assim como nem todas as terapias conduzem ao sucesso, mui-
tos conselhos são desastrosos, apesar de todas as boas intenções
contidas neles. Grande parte da conversa entre os amigos e respec-
tivos conselhos envolve situações de pouca importância. Quando a
indecisão se refere a uma ida ao cinema ou quanto a um restaurante,
qualquer que seja o resultado, praticamente não haverá mudança na
vida daquela pessoa.
Mas nem sempre é assim. Os conselhos são dados também para
situações de extrema importância para a vida de quem os recebe
e, dependendo dos interlocutores, é seguido e pode ser fatal. A se-
paração decidida com facilidade numa mesa de bar, sob o efeito
liberalizante do álcool, pode ser catastrófica para a vida de quem se
separou e sem nenhum prejuízo para o conselheiro. Às vezes, até
com algum lucro.
Um exemplo de conselho perigoso é o tipo “deixe-o sozinho,
quem fala em suicídio não se suicida”, que é dado com frequência.

141
Nesses casos o resultado pode ser a morte, já que essa crença popu-
lar não corresponde sempre à realidade. Inúmeros outros conselhos
semelhantes são dados sem avaliação dos resultados, Nesses casos, o
conselho dado de graça fica caro para a pessoa.
É fácil aconselhar alguém a largar o emprego ou o namorado.
Afinal, o outro sempre o fará porque quis e, portanto, sem nenhuma
responsabilidade para o conselheiro.
O difícil é conversar com a pessoa, indicando-lhe caminhos para
que possa se ajustar melhor no trabalho, ou encontrar um relaciona-
mento mais produtivo com seu namorado ou esposa. Uma conversa
com um amigo que está disposto a ouvir com simpatia e solidariedade
as queixas, tranquiliza o queixoso na maioria dos casos. O desabafo,
por si só, diante de pessoa compreensiva e de confiança, traz alívio
para quem fala. Por outro lado, emitir conselhos que vão mudar a
vida do amigo, sem ter informações completas acerca dos problemas
e recursos para resolvê-los, é uma atitude temerária.
É claro que quem reclama teve alguma participação no fato que
o leva a reclamar. Ninguém é somente vítima. Frequentemente, ao
procurar um conselho, quem reclama busca ouvir o que queria. Um
aspecto importante é o de que, quase sempre, o queixoso procura
vários conselheiros e adota, automaticamente, a orientação mais pa-
recida – ou igualzinha - à sua própria. Eles, nós todos, procuramos um
apoio às nossas ideias e crenças, desse modo, os conselheiros foram,
na verdade, selecionados entre os mais semelhantes ao cliente ama-
dor. Assim, o esposo ou a mocinha desencantada com o companheiro
tende a buscar a ajuda da mãe ou do melhor amigo, reclamando: “É
um absurdo o que ele me fez”, “Ela não podia ter me tratado daquela
maneira”, “Ele devia ter-me dito”. Os terapeutas, quase sem exceção,
irão escutar e comentar o ocorrido, defendendo o queixoso, dando-
lhe razão, tudo isso sem examinar o contexto e os antecedentes do
fato. O consulente sai da “consulta” confiante. As frases indicam uma
crença falsa acerca do poder de nossos desejos sobre a conduta das
pessoa. Isso não existe. A pessoa deseja que o outro aja de modo dife-
rente, mude, sem seus esforços.

142
Numa família ou numa repartição pública, alguma coisa nos gru-
pos envolvidos determina os que terão o papel de “queixadores” e os
de “terapeutas”. Esses indagam: “As minhas amigas me procuram para
queixarem-se”, “Gosto muito de Cláudia, ela me entende” ou “Marília
me procura só para lamentar-se”.
Por azar, nem sempre aquilo que deseja a pessoa que busca o
conselho, é o melhor para si.
Em briga de casal, o cônjuge procura a ajuda dos familiares e
amigos que percebem e integram o mesmo sistema de pensamento
dele. Geralmente, esses não o modificam, nem tentam melhorar seu
relacionamento conjugal. A queixa principal não é examinada em
seus diversos detalhes, o conselho é fornecido sem avaliar as conse-
quências, sem examinar o papel do queixoso no problema e sem o
preparar para adaptar-se ou resolver as situações problemáticas exis-
tentes. Desse modo, a falsa “ajuda” perpetua as desavenças.
Por último e isso pode ser grave: quem faz as confidências fica
comprometido com quem as ouve. Se o cônjuge pretende separar-se
da mulher e fala muito mal dela, fica difícil depois explicar ao conse-
lheiro a reconciliação ocorrida mais tarde, como também fazer um
comentário favorável à mulher, em presença de quem escutou os im-
propérios dirigidos a ela. Por tudo isso, cuidado com os terapeutas de
botequim, com os amadores.

143
O CHANTAGISTA EMOCIONAL

Todos nós já convivemos com pessoas que chegamos a amar e,


possivelmente, hoje odiamos. Relacionamo-nos com um tipo de indi-
víduo que num primeiro encontro mostrou-se agradável, simpático, e
deu-nos a impressão de estar interessado por nossos problemas e de
ser honesto. Com o passar do tempo, o percebemos como o oposto
do que sua “máscara de saúde” aparentava. Os psiquiatras classificam
esses indivíduos como possuidores de um “transtorno da personalida-
de antissocial”.
São figuras humanas interessantes, constituindo 70% dos habitan-
tes das penitenciárias, portanto, muitos deles estão soltos. É preciso
muito cuidado com eles, pois podem infernizar nossa vida. Aparecem
mais frequentemente entre os homens, embora muitas mulheres sejam
antissociais. Alguns autores afirmam que 4% da população apresenta
essa conduta, para outros, a proporção é maior. O direito denomina es-
sas pessoas de “criminosos”, “estelionatários” e outros termos. O povo
avalia negativamente esses indivíduos, chamando-os de “cara-de-pau”,
“marginais”, “sem-caráter”, “sem-vergonha”, “safados”, “desonestos”.
Falantes e animados, dão a impressão de pessoas felizes e bem-
ajustadas. São artistas, exibindo uma falsa autenticidade, segurança
e ótima saúde mental que, de fato, não possuem. Atenciosos e sem
inibições, cativam rapidamente a todos, principalmente às mulheres,
que se apaixonam com frequência por eles e muitas vezes passam a
dedicar-lhes suas vidas.

145
É atraído por ações perigosas e detesta ambientes tranquilos.
Ele agride as pessoas quando frustrado, age apressadamente diante
de situações problemáticas, pois não tolera refletir ou adiar ações. O
antissocial é indisciplinado e geralmente incapaz de seguir objetivos
a longo prazo, bons ou maus, isso não importa.
Nas suas conquistas, pode ocorrer que já num primeiro en-
contro o antissocial declare todo seu amor e paixão à ingênua mo-
cinha.
Propõe-lhe um casamento ou uma vida a dois maravilhosa, pois
está “caído” por ela. Em seguida, pede-lhe um empréstimo, pois terá
de viajar na manhã seguinte para realizar um grande negócio, mas,
como foi assaltado há poucos instantes, ficou sem dinheiro e tam-
bém sem seus preciosos talões de cheques.
Às vezes o “golpe” é mais lento. Há um início de namoro, com
grande intimidade com sua parceira e familiares dela. Fica amigo de
todos, conversa muito, conta casos interessantes e alegres, mostra-
se prestativo, frequenta a casa da namorada, passa a almoçar, jantar
e até dormir lá. Para justificar o seu modo de vida, histórias fantás-
ticas são relatadas à família. Essas, à medida que se descobre sua
falsidade, são trocadas por outras mais fantásticas ainda.
Ele não está trabalhando porque tirou férias de uma grande
empresa, onde é diretor-presidente. Terminadas as suas “férias”, ele
está planejando um vultoso negócio para a companhia e por isso foi
dispensado de ir trabalhar. Que pena! De repente, fizeram-lhe uma
injustiça: ele foi demitido. Mas não foi nada, pois ganhará uma gran-
de indenização e antes de largar o trabalho, já terá sido contratado
para novo emprego, por sinal muito melhor do que o anterior. Sem
endereço nem telefone, sua família é uma incógnita, até seu nome
costuma ser falso.
Enganando a namorada, ele pode chegar ao casamento. Após
este se consumar, surgem as brigas, as agressões físicas, as exigên-
cias de dinheiro e, com frequência, a infidelidade conjugal aberta:
leva mulheres para dentro de casa, “transa” com a vizinha, com a
cunhada ou com a melhor amiga do casal.

146
Não mostra nenhum senso de responsabilidade conjugal. O ca-
samento quase sempre dura pouco, acabando com o abandono da
mulher e dos filhos. Nosso “herói” desaparece, arruma uma nova par-
ceira para explorar. De quando em quando, retorna à antiga mulher,
fazendo proposta de reconciliação, num tom de voz aparentemente
emocionado, com olhos cheios de lágrimas. Nesses momentos, apa-
rentando sinceridade, jura seu amor e arrependimento por tê-la aban-
donado. Afirma que nunca mais vai ocorrer o que aconteceu.
Entretanto, as promessas duram pouco: só até à primeira frustra-
ção ou à primeira sedução fora de casa.
Em sua mente nunca há culpa, ele nunca aprende com seus com-
portamentos inapropriados, pois não sofre com isso. Não é leal a nin-
guém, nem com nenhum grupo ou ideias. Não consegue julgar adequa-
damente nenhum de seus atos, nem os dos outros, pois não é atingido
pelo sofrimento alheio. Explica, com sua lógica deturpada, toda e qual-
quer conduta sua, mesmo a mais imoral. Agressivo e impulsivo, não
tolera ser frustrado. É um indivíduo geralmente incapaz de seguir qual-
quer objetivo a longo prazo, bom ou mau, isso não importa.
Alguns estudiosos desses “doentes” afirmam que eles buscam,
durante suas vidas, um caminho capaz de transformá-las em fracasso.
Assim, se cometem uma falta ou um crime, arriscam-se, comentam,
enfim, fornecem pistas para serem descobertos. (evidentemente, eles
não são “bons” criminosos.)
Ele não é um “louco” no sentido literal da palavra, mas é capaz
de, após matar os pais para conseguir dinheiro para suas farras, pedir
ao júri clemência por ser órfão. Após conseguir donativos para um
asilo inexistente, afirmar que sua atitude ajudou àqueles que deram
esmolas, pois os doadores ficaram aliviados e felizes por estarem aju-
dando os velhinhos pobres.
À primeira vista eles parecem brilhantes, com inteligência su-
perior, seja no trabalho, seja no estudo ou nas relações sociais. Mas,
inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde fracassarão, serão demitidos
do emprego, afastados dos amigos e perderão tudo aquilo que, para
os “normais”, é caro.

147
Os antissociais estão em todas as partes: são encontrados nas
favelas, nos bairros pobres, nas cidades do interior, nas grandes ca-
pitais, nos palacetes e até nos palácios governamentais. Diga-se de
passagem, não são raros também entre os políticos. Alguns são presos
por dar cheques sem fundos, roubar, montar firmas ou clínicas fantas-
mas, ludibriar seus clientes e assim por diante. Outros aprendem - às
vezes bem - a utilizar-se de um vocabulário altamente sofisticado e
eloquente, para manipular os outros em seu benefício.
Utilizam também com esmero recursos histriônicos para co-
municar sentimentos falsos. Esses, os mais socializados, escapam do
cerco policial, chegando a ser vereadores, médicos, psicólogos, advo-
gados, deputados, pastores, padres ou até mesmo governadores e pre-
sidentes da república. Sua conversa fácil e sua crença em inverdades,
ditas com entusiasmo, seduzem o incauto que o procura ou o elege,
projetando nele o seu Deus.
Diante do leigo, ou mesmo do psiquiatra, ele parece normal.
Durante a entrevista, nada revela de loucura, incapacidade ou defici-
ência mental. É sua história de vida, examinada e contada pelos acom-
panhantes, que fornecerá as pistas para percebermos que estamos
diante de um indivíduo com perturbação da personalidade do tipo
antissocial: um “doente” na sociedade.
Entre as quadrilhas mais sofisticadas, as com um grau mínimo de
organização, os antissociais não são aceitos, pois lhes falta, não só a
disciplina, com também alguma ligação afetiva com o grupo de crime
necessária ao êxito do empreendimento. A maioria deles não comete
crimes suficientemente grandes para serem presos por longos perío-
dos. Portanto, até com respeito ao crime, eles não são sérios.
A carreira do antissocial geralmente começa cedo, ao roubar as
merendas dos colegas ou faltar às aulas, agredir companheiros ou pro-
fessores, ou ainda fugir de casa. Inicia relações sexuais precocemen-
te. Bebe, ainda na infância, com grande prazer. Não se liga a grupos
por muito tempo. Maltrata ou mata pequenos animais, agride sem
piedade ou motivo os companheiros mais fracos, explora-os como
pode. Mas sempre acha que tem razão.

148
Com o aumento de seu poder, ao crescer apodera-se do carro
do pai, estraga-o, faz farras e, quando recriminado, justifica-se, aparen-
tando total sinceridade. Representando arrependimento, jura que vai
mudar sua conduta, garante que aquilo nunca mais vai acontecer. Na
primeira oportunidade, porém, ele retorna ao mesmo comportamen-
to e novo juramento é feito, sempre do mesmo jeito, demonstrando
as mesmas emoções falsas de antes.
Mente a propósito de tudo, em qualquer lugar, com qualquer
pessoa, e muitas vezes sem nenhuma razão. Se apanhado na mentira
dará sua “palavra” de honra” de que não mais faltará com a verdade
e firmará, nesse sentido, um “pacto de cavalheiro”. Entretanto, para
nosso azar, os castigos, as críticas, as prisões e os internamentos geral-
mente não produzem efeito a longo prazo. Sua escalada continua: uso
de bebidas, drogas, acidentes graves, roubos, abandono de emprego,
brigas, cheques sem fundo, mentiras e mais mentiras.
Os pais, desesperados, tentam ajudá-lo, montando um comér-
cio, que é “depenado” em pouco tempo. Mandam-no para a fazenda
do tio e lá ele planta maconha. Internam-no na casa de saúde e ali ele
vende suas roupas, compra drogas, suborna o guarda e foge. Pedem a
sua prisão. Nesta, ele se mostra como um cordeiro, e ao ganhar con-
fiança, na primeira oportunidade burla a própria polícia. Nunca pensa
a longo prazo, sendo total seu imediatismo.
Não se pode contar com o antissocial, pois ele engana, rouba,
falsifica, adultera e mente. Cultiva um grande desprezo pelas normas
da sociedade, pelas dificuldades dos outros, sejam elas emocionais,
financeiras, físicas ou sociais. Não se envergonha do que fez ou faz.
Sua vida é cheia de proezas, que levariam a maioria dos homens à
depressão ou mesmo ao suicídio. Entretanto, no antissocial não se
exterioriza nenhum ato que possa indicar remorso ou humilhação.
Nele não foram introjetados os nossos valores, sejam morais, sejam
estéticos.
Os mais espertos aprendem o desejado pelas pessoas. Conse-
guem transmitir ao povo a sua máscara de saudável honestidade e
honradez através de um discurso contendo tudo aquilo que o povo

149
deseja ouvir e alcançar. Depois, sozinhos ou com seus companheiros
do mesmo caráter, tomando seu uísque escocês, riem e zombam da-
queles que, inocentemente, depositaram confiança neles. Cuidado!
Eles estão em toda parte!

150
PEDÓFILO: O Monstro de Duas Faces

A imprensa, equivocadamente, traçou o perfil dos pedófilos


através do modelo dos criminosos da Bélgica. Esses nada mais são
do que criminosos comuns que entraram nessa área, como poderiam
estar em qualquer outra, para explorar pessoas. As famílias que imagi-
nam os pedófilos, efebófilos e hebófilos (abusadores sexuais de crian-
ças, púberes e adolescentes), conforme as informações da imprensa,
fracassarão na proteção de seus filhos. Os pedófilos, bem como os
efebófilos e hebófilos examinados e descritos pelos psiquiatras, são
diferentes. Na maioria das vezes nem matam, nem ferem sua vítima,
como rotineiramente fazem os estupradores. São homens medrosos,
incapazes de raptar, estuprar ou usar força física. Sua técnica é outra:
exploram a impotência, a ingenuidade das crianças e dos pais, ou a
curiosidade dos adolescentes, prontos para buscarem ações de risco e
novidade. Sendo fraco e incapaz de construir ligações afetivas madu-
ras com adultos, aproveita-se dos inocentes. Muitos foram abusados
sexualmente quando crianças. A maioria não tem orgasmo quando
abraça e acaricia suas vítimas. Alguns masturbam-se após o contato
físico. O pedófilo age muitas vezes na residência da vítima, na frente
de todos que supõem tratar-se de carinhos ou brincadeiras. Muitos
desses “apreciadores e amantes das crianças” são tios, primos, cunha-
dos, vizinhos ou amigos da vítima ou dos seus familiares. Pode ser o
entusiasmado professor do colégio, o técnico de futebol, basquete
ou voleibol juvenil ou infantil, o pediatra ou dentista de crianças, o

151
pipoqueiro da esquina, ou ainda o padre ou o pastor do bairro. Não
se assustem, muitos são os próprios pais da vítima. O pedófilo aprecia
abraçar demorada e apertadamente o corpo da vítima, acariciar com
falsa ternura seu corpo, olhá-la com cupidez, conversar animadamen-
te sobre sexo, mostrar filmes pornôs, tomar banho junto e frequentar
praias de nudismo.
Durante minha prática psiquiátrica, examinei não mais do que
uma dezena deles. Esses foram à consulta, forçados pela lei ou por fa-
miliares, quando descobertos. Entre esses, um rapaz visitante frequen-
te nas portas dos colégios em busca de púberes masculinos. Para seu
azar, ele usou um radiotransmissor para conversar com suas presas,
sendo preso. Um comerciante pedófilo pedia às meninas que passa-
vam diante de sua loja, para apanhar um objeto colocado previamente
numa prateleira alta. Seu truque era segurar a criança por trás para
levantá-la e fazê-la roçar no seu corpo. No dia da consulta parou seu
carro numa rua e, olhando para uma criança que brincava no passeio,
masturbou-se. Um professor de educação física do interior, devido à
sua “honradez e dedicação”, era encarregado pelos pais de “proteger”
os filhos nas viagens a BH para consultas médicas ou passar férias. Um
executivo foi pego por sua segunda esposa, quando acariciava o frágil
corpo de sua enteada de cinco anos. Excitava-se, observando crianças
banharem-se nas piscinas, vendo revistas contendo modelos infantis,
assistindo programas para crianças na TV e filmes de Walt Disney. Um
dos seus prazeres preferidos era dar banho na filha de um ano. Possi-
velmente todos estes clientes, se ainda vivos, continuam praticando
essas ações, pois trata-se de um padrão de conduta difícil ou impossí-
vel de ser extinta.
Apenas os homens têm sido acusados de pedófilos, mas existem
mulheres pedófilas. A conduta de mães brincando com os filhos foi
observada por peritos. 10% das mães estimulavam de forma impró-
pria as crianças: agarramentos e esfregões nos órgãos genitais. Os pais
viam isso como demonstração de amor.

152
CONHEÇA O ESTUPRADOR

Os estudos acerca da personalidade do estuprador têm mostra-


do aspectos de interesse para o entendimento de sua conduta sob o
ângulo da psiquiatria. O estuprador geralmente é diagnosticado como
tendo um Transtorno da Personalidade Antissocial (irresponsabilida-
de social, busca de risco, explorador, propensão ao uso de álcool
e drogas, etc.). A sua bioquímica cerebral mostra, entre outros, um
déficit no neurotransmissor serotonina. Os estudos mostram que uma
diminuição dessa substância no cérebro tem sido associada com atos
impulsivos, impensados, agressivos, suicidas, etc. O cérebro do estu-
prador parece ser internamente pouco ativado, levando-o a procurar
mais estímulos externos para se sentir bem.
Os estupradores, em grande parte, mostram-se agitados, inquie-
tos e explosivos. Tem sido relatado que a inteligência do estuprador
é mais baixa que a média da população. Essa deficiência mental tem
sido atribuída a fatores genéticos ou a lesões cerebrais sofridas du-
rante a vida pré ou pós-natal. Eles têm, principalmente, menor com-
preensão verbal e social. Com frequência, fazem uso de álcool e de
drogas, agravando a sua já reduzida capacidade de lutar contra seus
impulsos.
Ainda cedo, os estupradores podem apresentar condutas desa-
daptadas como a crueldade com os animais, o uso de armas e má
adaptação escolar. Na história de vida deles é frequente a enurese
noturna (urinar na cama), incêndios e alcoolismo dos pais. Alguns es-

153
tupradores podem fazer 150 vítimas durante sua vida, caso não sejam
presos ou mortos. Cerca de 70% deles já praticaram outros crimes
como assaltos, roubos e homicídios. Diversos estudos mostram que o
padrão criminoso incorporado na infância desses indivíduos não será
extinto com punições carcerárias. Como se sabe, todo e qualquer cas-
tigo usado comumente não pune o padrão aprendido, pune somente
o indivíduo que praticou o crime.
O estuprador, muitas vezes, ataca sua vítima com armas. Pes-
quisas mostram que certas pessoas tornam-se mais agressivas ao lidar
ou mesmo visualizar armas. A maioria dos estupradores é formada de
jovens. Cerca de 61% deles têm menos de 21 anos. Sabe-se que os
jovens, principalmente do sexo masculino, praticam mais atos antis-
sociais. Um outro fator de importância é a maior taxa de testostero-
na nessa idade, e esta parece atuar diminuindo a taxa de serotonina
cerebral e, consequentemente, aumentando a impulsividade. Muitos
deles, durante o ato criminoso, têm, ao mesmo tempo, raiva e medo.
Daí sua conduta confusa, na qual se misturam agressões e investida
sexual. Durante o ataque, o estuprador normalmente ameaça a vida
ou a integridade da vítima ou dos familiares. Além disso, não é raro
ele ejacular, defecar ou urinar na face ou corpo da vítima. Às vezes,
introduz objetos no ânus ou na vagina desta.
As vítimas dos estupradores vão, segundo os dados, desde os 15
meses até os 82 anos, sendo que a maioria delas encontram-se entre
10 a 29 anos. A estatura da vítima é geralmente menor que a do estu-
prador. Apenas cerca de 4% das vítimas facilitaram o estupro, o que
é uma taxa baixa quando comparada com as pessoas assassinadas.
Nestas, a percentagem chega a 22%. Apenas uma em cada quatro ví-
timas dos estupradores dá queixa à polícia. Para outros autores, uma
em dez. Para terminar, a maior parte dos estupros ocorre dentro da
própria casa da vítima e cerca de 7% dos estupradores são parentes.

154
SUICÍDIO PELA PROVOCAÇÃO
DE SEU ASSASSINATO

Tenho lidado com um tipo de paciente muito especial e pouco


conhecido da literatura psiquiátrica: o que, desejando morrer, procurou
o suicídio, provocando seu próprio assassinato, ou seja, sem coragem
de usar uma arma contra si próprio, provocou outras pessoas para ser
agredido ou morto. Em 588 homicídios estudados por M.E. Wolfgang,
nos Estados Unidos, 26 por cento deles, ou seja, 150, foram de vítimas
que provocaram sua própria morte. Outras formas de agressões, pro-
vocadas por pessoas que procuram ser vítimas, são bastante comuns,
como facadas, porretadas, pedradas, estiletadas e brigas de trânsito.
Nos 150 casos de auto-homicídio estudados, todas as vítimas co-
meçaram a agressão, geralmente portando uma arma letal e assim,
teoricamente, deveriam correr menos risco de vida que o adversário,
mas foram mortas, o que era provavelmente o objetivo inicial delas.
Não pagar uma dívida, trair o cônjuge e deixar pistas evidentes, uti-
lizar palavrões em briga de trânsito e de bar, principalmente com
pessoas mais fortes ou ostensivamente agressivas ou armadas, são os
caminhos das pessoas que procuram o auto-homicídio.
As mulheres casadas que procuram o auto-homicídio, às vezes
o fazem através de traições sucessivas, deixando pistas cada vez mais
evidentes. N.F., de 40 anos, com curso superior, após vários encon-
tros com diferentes homens, sem nenhum cuidado para escondê-los,
acabou por contar tudo ao marido durante uma briga, quando agrediu-

155
o, afirmando: “Seu corno, você não me manda, eu saio com outros ho-
mens, nas suas barbas”. Neste momento ele sacou uma arma e atirou,
mas felizmente não a matou. Durante uma entrevista psiquiátrica foi
constatado que ela não tinha prazer sexual, a não ser com o marido.
Os maridos podem buscar o mesmo tipo de morte, agredindo
suas esposas, como o caso de homens que chegam em casa bêbados,
espancam as mulheres com muita violência, quebram os móveis e de-
pois vão tranquilamente dormir. Alguns conseguem realmente mor-
rer. Os alcoólatras formam um grupo de alto risco de suicídio, logo
atrás da depressão grave.
Parentes destes pacientes se sentem perplexos por não enten-
der por que o “Joãozinho gosta de uma briga”, ou o “Joaquim chega
quase todo dia todo machucado”. Geralmente este tipo de problema
não leva ninguém ao médico. T.J., carpinteiro de 29 anos, solteiro,
após receber alta de um hospital, onde quase morreu após tentativa
de suicídio, contou-me que no dia em que resolveu morrer procurou
em seu bairro, na periferia da cidade, uma pessoa reconhecidamente
agressiva, brigona e que usualmente andava armada. Fez tudo para
brigar com esse cavalheiro. “Como não consegui”, relatou ele, “fui
para casa e tomei uma mão cheia de comprimidos para morrer”.
A crônica policial está repleta de mortes sem justificativa apa-
rente. Os advogados lidam com esse problema até com certa dificul-
dade para explicar ao juiz os motivos de um assassinato com essas
características. Desconhecendo o passado dessas vítimas, eles têm de
criar defesas do tipo “legítima defesa da honra”, “matou por amor”,
“assassinato cometido sob grande e incontrolável tensão”. Talvez nem
mesmo as pessoas envolvidas possam compreender e explicar corre-
tamente o que aconteceu.
Há alguns anos atrás, elaborou-se uma taxonomia psicológica de
causas de óbito, ao criticar as quatro formas clássicas da morte, que
são o acidente, o suicídio, o homicídio e a morte natural. No primeiro
caso, acidente, uma pessoa pode morrer sem que exista nenhuma
ação consciente ou voluntária sua, como no assassinato e acidentes
ortodoxos, ou por uma doença onde o paciente em nada participou.

156
No segundo caso - suicídio - que nos interessa neste artigo, o in-
divíduo que morreu, colaborou para que sua morte ocorresse. Neste
grupo podem ser incluídos também as mortes em que o indivíduo não
toma os remédios indicados; continua fumando após o infarto; para
de comer até morrer, arrisca-se em demasia em qualquer atividade
perigosa, como dirigir em alta velocidade ou nadar em locais de alto
risco e desconhecidos.
Ora, se utilizarmos o mesmo modelo de raciocínio e em lugar
de pensarmos em causas de morte, pensarmos em causas de danos,
de lesões corporais, vários incidentes e acidentes incompreensíveis
passarão a ser melhor compreendidos por serem com frequência au-
toprovocados, mesmo que a agressão parta de outra pessoa. Assim
como existe o suicídio externamente, existe também o acidente, em
que a vítima provoca uma pessoa para agredi-la. Em outras palavras,
toda ação individual em um par ou conjunto de pessoas nunca é isola-
da, sendo dependente e dirigida ao outro, em resposta a um maior ou
menor estímulo de outra parte.
Se definirmos um problema como um tipo de comportamento
que é parte de uma sequência de atos entre duas ou várias pessoas,
percebemos que lesões corporais provocadas por surras ou outros
tipos de agressões, como facadas e tiros - assim como o “auto-homi-
cídio”, - são rótulos para uma sequência ou cristalização dessas numa
organização social.
Constitui um novo modo de pensar em direito imaginar que um
fato ou sistema pode ser um “contrato” – automático e inconsciente
- entre pessoas, consequentemente adaptativos para as suas relações
em um sistema disfuncional. Como por exemplo, um indivíduo que
provoca e responde ao outro, sua resposta pode ser uma provocação
e, em círculo, um iria provocando o outro até o infinito, caso não
ocorresse o crime.
É claro que, em muitos casos, a provocação está mais acentuada
em um dos membros, basta nos lembrarmos de qualquer briga no
trânsito, ou crimes comumente ocorridos em bares.

157
Se o crime - mesmo cometido de repente e no calor de uma bri-
ga - é o ponto culminante de séries de acontecimentos, para analisá-lo
é preciso conhecer os fatos que compõem a cadeia psicológica dos
eventos, que são muito diferentes do assassinato ou das lesões corpo-
rais ortodoxos. Mesmo que o réu e a vítima se tenham encontrado pela
primeira vez, é possível que ambos tenham um passado psicológico
semelhante. Segundo alguns teóricos, a vítima busca provocar muitas
pessoas, na caça ao seu algoz. Certo dia, ela o acha justamente naquele
que se encaixa no seu desejo, ou seja, o complementar, matando-o.
Para exemplificar, uma mulher fraca é surrada por seu marido
corpulento e agressivo. O que esta mulher andou fazendo para per-
mitir, precipitar ou desencadear a agressão deste brutamontes? Nada?
Pode ocorrer, mas é pouco provável. Esta mulher deve ter participado,
num grau maior ou menor, na agressividade sofrida. Não a defenda an-
tes de seguir o raciocínio abaixo. Em primeiro lugar ela geralmente é
também ativa, pois casou-se com ele – ou passou a namorá-lo – quan-
do esse, provavelmente, já demonstrara esta conduta em outras oca-
siões. Desde o início não se defendeu adequadamente de agressões
passadas e, provavelmente, se julga inferior ao homem por não ter
músculos fortes. Além disso, deve-o ter criticado por palavras e ges-
tos perigosos para aquele agressor em potencial. Necessita queixar-se
aos filhos ou aos amigos de “que é uma vítima”, ou de outro modo,
precisa sofrer, para acusar seu marido. Sua vida, naturalmente, está
ruim, sem motivações e prazeres, portanto, qualquer situação exci-
tante - apanhar – é menos ruim do que nada. Várias outras “razões”
poderiam ser pensadas para compreender as agressões àquela pessoa
em particular, não para justificá-las.
Se admitirmos que uma família é um sistema devemos aceitar
a premissa de que o comportamento se repetirá. Assim, sempre que
uma pessoa casada apresenta um sintoma grave - agressão - esse sinto-
ma tem uma função no casamento e se o sintoma desaparecer, ocor-
rerão consequências neste. De acordo com este modelo psicológi-
co – não jurídico - não existe réu e vítima. Ambos são vítimas, com
funções diferentes. Infelizmente se complementam de uma maneira
desastrada e com alto grau de sofrimento para ambos.

158
UMA ALEGORIA DO FÓRUM

Fui obrigado, pela lei, a ir ao Fórum. Havia muito tempo, graças


a Deus, que lá não pisava. Um amigo com disputas acerca da guarda
do filho implorou minha ajuda. Diante de sua súplica, semiforçado,
não consegui negar-lhe o pedido. Cheguei. Logo na entrada, na gran-
de escada que dá ao saguão, dei de cara com a Lei em sua plenitu-
de. Ali incorporei em meu espírito o ambiente sério, muito diferente
das bagunças dos hospitais onde trabalhei: Raul Soares e das Clínicas,
além do terrível e inesquecível Pronto-Socorro das correrias, gritos,
desespero, lamentos e morte rondando cada canto.
No Fórum tudo é diferente: ali respiramos a Lei, a ordem, a lim-
peza, o modo correto de agir, a norma, a voz baixa, a calma severa e
autoritária, o ordenado e sem escolha, o que tem de ser cumprido. Lá
exala e assimila-se a Lei, querendo, ou não. Entrar no fórum é entrar
na igreja, nos templos sagrados, de respeito e veneração. Logo na en-
trada nota-se a face grave do porteiro, dos réus, vítimas, testemunhas
e também a minha. Talvez, até dos juízes. Peço desculpas por minha
ousadia ou atrevimento: julgar os julgadores. Ali ninguém ri, não se
brinca no Fórum. As pessoas não falam, sussurram perto, coladas aos
ouvidos atentos e interessados do ouvinte, pois há sempre o temor de
que alguém ouça o que não pode ser escutado. Baila no ar o pavor de
ser percebido e punido como desrespeitador da Casa Sagrada, da Lei,
e sendo lei, não pode ser discutida, por ser, por definição, o vigente,
a regra, a norma, em resumo, o certo.

159
Suando, representando toda a humildade exigida naquele am-
biente severo, perguntei ao porteiro onde era a sala onde deveria de-
por. Para meu espanto, fui tratado com respeito, cordialidade e até
bondade ou piedade. Não sei. Imaginava o contrário, que o porteiro,
por razões que eu desconhecia, poderia me mandar prender, no míni-
mo me repreender por desacato. Talvez o porteiro, conhecedor dos
que ali vão, tenha decifrado meu embaraço, tivesse pena de mim.
Naquele dia estava de bom humor e decidiu ser caridoso para
o dócil, submisso e fraco indivíduo que era eu. Agradeci respeitosa-
mente sua gentileza e o mais rápido possível, para não incomodá-lo,
caminhei apressado em direção à sala do magistrado.
Eu estava atrasado dois minutos. Isso me incomodou absurda-
mente. Aproximei-me do lugar indicado. A porta da sala onde deve-
ria depor parecia estar aberta. Perguntei-me ansioso: ”Estariam me
esperando?” Seria ameaçado, talvez preso, pelo desembargador, juiz,
promotor, defensor público ou mesmo pelo oficial de justiça, por não
obedecer ao horário estipulado e, portanto, à Lei ? Esperando o pior –
sempre imagino a prisão que nunca chega – mas fingindo, só fingindo,
ser valente, apesar de um pouco abobado, comecei a fantasiar as des-
culpas que daria: o trânsito ruim, uma batida, uma doença na família.
Entretanto, meu cérebro criticou-me logo: “Você acha mesmo que irá
tapear um juiz com argumentos tão vulgares? Desculpas, diante deles,
só usando respostas de altíssimo nível e estas você não possui”.
Derrotado, pouco antes de entrar na arena, imaginando o pior,
caminhei de cabeça baixa em direção à Vara de Família. Disfarçada-
mente, para não chamar a atenção, olhava pelos cantos dos olhos
para um lado e outro, examinando a conduta de cada um, sem que
ninguém notasse meus cuidados. Tentava decifrar o que as pessoas
pensavam, suas intenções, principalmente, as relacionadas ao meu
atraso de dois minutos.
Afinal, cheguei onde queria. Lá dentro algumas pessoas conver-
savam despreocupadamente. Uma senhora olhou-me. Virei o pescoço
o mais possível para trás, como se estivesse procurando alguém. In-
felizmente, não havia ninguém às minhas costas. Examinou-me, jul-

160
gando-me com os olhos severos da justiça. Devia estar recriminando-
me por ter entrado sem ser permitido naquele lugar solene. Tremi!
Imaginei: “Agora serei punido”. Dava ou não dava mais alguns passos
em direção à mesa do juiz, ou voltava rápido para a saída? Imaginei
fingir ter entrado ali por engano, por estar procurando o banheiro. Ela
olhou-me fixamente, nada pronunciou: criticava-me.
Não precisava ser muito esperto para imaginar o que se pas-
sava em sua mente: “Como você, uma simples testemunha, chega
dois minutos atrasado, sem atestado médico na mão, sem muletas e
sem nenhum outro documento válido e sério para justificar sua ino-
bservância dos preceitos legais e regulamentares desse lugar sério?”
Fiquei paralisado! Imóvel como fazem os animais fracos diante dos
mais fortes. Era minha única saída, demonstrar, olhando para seus
pés, minha posição: a mais inferior possível, uma barata tonta que, se
ela quisesse, podia amassar num piscar de olhos.
Aprendi cedo a respirar profundamente diante do medo. Lem-
brando da receita antiga, comecei a respirar fundo. Nesse momento a
mulher, tirando seus olhos dos meus, focalizou um processo que havia
caído ao chão. Eu continuava gelado, paralisado, não conseguia sair do
lugar onde estava. Pensava em dar meia volta e fugir rápido daquele
lugar perigoso. Ainda sem me movimentar, talvez hipnotizado pelo am-
biente e, principalmente, pelos olhos inquiridores da mulher, como um
boi no matadouro, cambaleando, fui me aproximando dela. Tremia.
Ela notava, escancaradamente, meu medo. Sabia que todos ali
têm pavor. Segura de seus poderes levantou ao máximo seu tronco e
cabeça, procurando observar-me de cima para baixo. Mas não conse-
guiu. Eu continuava mais alto, por mais que ela espichasse o pescoço
e eu abaixasse meu tronco. Apesar dessa inferioridade sem impor-
tância para o lugar, desafiando-me, por sua vez caminhou em minha
direção. Assim aconteceu o encontro.
A princípio ela agiu, fingindo despreocupação. Virou a cabeça
para um lado, como se não tivesse me visto, entretanto, só quanto
chegou mais perto, ela levantou a cabeça e os ombros o mais que
pôde. Tentava mostrar sua força e poder, coisas que eu, naquele mo-

161
mento, não possuía. Mesmo ela sendo mais baixa do que eu, ao che-
gar mais perto deu-me a impressão de ser imensa, um gigante. Fixou
seus olhos nos meus, olhos de pedra fria e brilhante. De repente,
perguntou-me com a voz firme e áspera do Fórum:
— O que faz aqui?
Fiquei tonto. Sem sair do lugar, também não sabia o que dizer.
Tossi, engasgado. Meus olhos espantados quase saíram das órbitas.
Limpei o suor que escorria da testa, aumentando o meu tempo para
pensar o que ia responder ou fazer. Não sabia que decisão tomaria,
talvez correr, imaginei. Com sua face de estátua bem esculpida, ela
continuou olhando-me: repreendia-me com severidade pela falta co-
metida, exigindo de mim uma resposta rápida, uma falta que não sabia
qual era, apesar dos meus esforços para descobri-la.
Imaginava que no Fórum qualquer ação podia ser examinada
como ato ilegal - como ocorre frequentemente nos computadores -
ou seja, errado, por conseguinte sujeita a penalidade, entre estas, a
prisão. Com muito custo, consegui balbuciar meia dúzia de palavras
confusas. Tentava, sem sucesso, representar e imitar a fala que supu-
nha ser a usada no Fórum, a aceita por ela. Mas podia estar errado.
Saiu uma frase desprovida de conteúdo, como som de CD que co-
meça muito baixo, inaudível. Uma vez tendo abaixado a cabeça ao
máximo, usei, para mostrar que não a estava desafiando, um olhar,
tom de voz e postura típica dos subordinados derrotados, implorando
a clemência do rei. Se tivesse coragem, me deitaria no chão, dando as
costas para ela, com o bumbum virado para cima, para mostrar minha
impotência e derrota. Esperava uma frase simples e direta: “Quem é
você?”, ou ainda, “O que faz aqui?”
Mas nada disso aconteceu. Ela, séria e antipática, quase sem ges-
ticular, sem mudar a mímica e o tom de voz, resmungou duramente:
— Saia!
Sorri sem graça. Sair? Para onde? Perguntei-me. Será que ela per-
cebeu minha intenção escondida de lhe mentir, decifrou através de
minha postura, gestos, que eu ia dar uma desculpa mentirosa, dizen-
do, por exemplo, que entrara por estar procurando um banheiro?

162
Tudo parecia possível naquele momento. Ela devia ser treinada para
descobrir intenções escondidas dos réus, mesmo eu não sendo, na-
quele dia, um réu, mas poderia me tornar.
Dentro da Lei tudo é possível. Além do mais, como iria mentir,
que entrara ali imaginando ser o banheiro? Seria ridículo, pois lá no
Fórum tudo é amplo e limpo, até o banheiro expressa limpeza, or-
dem, decência e seriedade. Imagino que diante de minha submissão
total ao seu poder, a senhora de cara fechada decodificou minha fra-
queza, a ausência de perigo e, num lampejo de caridade, teve dó de
mim, como o porteiro. Segurando a respiração, abaixei mais ainda
minha cabeça que, naquele instante, tinha atingido o mais baixo grau
de curvatura possível. Nesse instante, ela perguntou-me, ao mesmo
tempo que exigia minha saída rápida da sala:
— O que deseja?
Só aí consegui fazer algumas perguntas esfarrapadas, quase in-
compreensíveis. Ela explicou-me que a audiência onde testemunharia
estava atrasada, iria demorar mais duas ou três horas. Respirei aliviado
e consegui levantar novamente a cabeça sem sentir-me culpado como
fizera antes. Mais calmo, ainda bem, percebi que escapara. Ainda não
seria dessa vez que seria preso por estar atrasado, por desacato à Or-
dem e à Lei pronunciada pelos magistrados. A Lei dura e severa não
seria aplicada em mim, pelo menos naquele instante.
Com tempo de sobra, assentei-me nos bancos colocados do lado
de fora do gabinete do magistrado, limpei o suor que escorria da face,
ainda contendo restos do pavor anterior. Assentado, ali fiquei matu-
tando, sem coisa melhor para imaginar ou fazer. Olhava e examinava
os participantes daquele teatro sério, causador de tantos horrores e
sofrimentos.
Ao meu lado, assentavam-se duas mulheres. Calmo, fui capaz
de prestar atenção ao ambiente e não aos meus delírios. Descobri,
pela conversa que rolava, que uma senhora esperava a audiência de
separação, a outra veio pedir aumento de pensão. Depois, chegou
um homem cabisbaixo, lutava para tentar ver o filho, não visitado
há um ano.

163
Não pude deixar de observar os jovens advogados. Todos eles
carregavam o celular, que tocava sempre nos lugares onde havia mais
pessoas reunidas.
Todos, empertigados dentro do terno novo, caminhavam duros,
não olhavam para ninguém durante a travessia dos longos corredores
escuros e tétricos do Fórum. Por outro lado, as advogadas ou estagiá-
rias, todas simpáticas, vestiam terninhos escuros, combinando com o
restante do fórum onde tudo é austero e cinza, sinalizando ausência
de brincadeira. Os advogados mais idosos, exibindo, sem escondê-
los, os abdomens proeminentes, cumprimentam os amigos, possivel-
mente também os inimigos, com largos sorrisos próprios dos homens
seguros de si.
Aprendi muitas lições naquela casa de sabedoria e respeito. Nas
duas horas e meia que ali fiquei, esperando meu momento de entrar
em cena, pude decifrar certos códigos escondidos. A maneira de ser
e de se comportar dessa elite diferia bastante dos que, como eu, ali
estavam forçados pelas circunstâncias.
Notei que os cumprimentos feitos aos “Homens do Direito”, ju-
ízes e advogados antigos e famosos, exigem do “cumprimentador”
uma maior reverência, isto é, os menos poderosos abaixam mais a
cabeça, conforme o prestígio e poder do colega. Distraído por mo-
mentos, deixei de lado a decodificação dos códigos de postura dos
participantes da Lei, ao ver passar pelo corredor uma mulher loura,
de cabelos curtos e superanelados. Ela usava calças escuras, justas,
tão apertadas que possibilitavam ao observador tenso e faminto, ima-
ginar, com nitidez, o conteúdo existente na cinquentona conservada.
Por fora, roupas de couro. Ou seriam de outro tecido? Internamente,
músculos, peles, etc. bem acondicionadas. Fiquei com inveja dela:
ousava desafiar, com seu corpo e roupa sexy, aquele ambiente severo.
Quem seria? Namorada de um magistrado? Rapidamente critiquei-me
por imaginar essa bobagem.
Como a loura exuberante, surgiu diante de mim uma menina
que aparentava ter três anos de idade. Ela brincava com o que en-
contrava, não percebia a austeridade do local ou o sofrimento de sua

164
mãe, que chorava enquanto esperava a audiência de conciliação. A
menina assustou-se com o caminhar desencontrado do passante, com
dificuldade para andar. Ficou parada por minutos, mas, em seguida,
reiniciou sua agitação.
Perto da menina assentou-se uma madame envelhecida, mos-
trando ainda restos de dignidade e cuidado, que lutavam para não
desaparecer. Ela demonstrava, com as empregadas suas testemunhas,
naquele instante, uma supergentileza forçada: todas elas estavam ali
para depor contra o ex-marido da patroa.
Observei uma adolescente que usava um calçado novo que a in-
comodava e que a obrigava a abrir as pernas para se equilibrar. Auto-
maticamente, não sei por que, ao mesmo tempo em que a observava,
lembrei-me, cheio de saudades nostálgicas, dos meus vinte anos. Ela
caminhava de um lado a outro, desajeitadamente, antes de ser inqui-
rida. Mais longe, testemunhas sonolentas bocejavam cansadas com o
calor e, aos poucos, iam inalando a fumaça dos passantes nervosos.
A minha hora não chegava. A loura alta e de belo corpo retornou
e caminhava séria sem olhar para ninguém. Ela sabia, sem virar o rosto
para as pessoas sentadas, que todos ali, principalmente os homens,
sem coisa melhor a fazer, olhavam quase só para seu corpo esbelto
e alto, não tanto para o rosto, que não era lá essas coisas. Esse era até
feio, o bonito era do umbigo para baixo.
Tudo ali me distraía e me devolvia um pouco da serenidade e
humanidade perdidas. Comecei a perceber que o Fórum não era tão
ruim como imaginara. Lembrei-me que, ao chegar em casa, comenta-
ria com minha cozinheira - que nos dias de folga visitava a Rodoviária
e o Parque Municipal – que o Fórum poderia ser, também, confor-
me a observação do frequentador, agradável, pois além de ter muita
gente, lá existiam lugares para sentar e nos distrair após os primeiros
momentos de pavor. Além disso, possuía bons banheiros, melhores
do que os da Rodoviária, e não era preciso pagar nada para usá-los.
Continuava a pensar e esperar o encontro não desejado.
Observei, andando preguiçosamente, pessoas humildes com
seus vestidos coloridos usados nos dias especiais como a ida à igre-

165
ja. Hoje saíram do guarda-roupa para visitarem um lugar diferente,
depois, em casa, bem escovados, eles seriam novamente guardados,
esperando um novo encontro. O grupo conversa, fala do futebol, da
vizinha que apanhou do marido, do aborto que a Matilde fez, do atro-
pelamento. Assim esquecem os sofrimentos que virão diante do ve-
redicto do juiz.
Trescala no ar uma vaga mistura de cheiro de fumaça e dos odo-
res provenientes do suor produzido pelas axilas tensas dos partici-
pantes. Diante do inesperado e inevitável, sem o que fazer, todos, ao
mesmo tempo, lançam mão da fé infinita em Deus, um pouco menos
na sabedoria e perícia dos advogados escolhidos. Esses, infelizmen-
te, nunca são tão bons como o antigo que morreu ou sumiu. Todos
sonham com a sentença milagrosa do magistrado, de ser o escolhido
e aceito pelo juiz, esperando dele a punição, a mais severa possível,
para o ex-cônjuge, para o inimigo que fora, anteriormente e na maior
parte das vezes, uma pessoas amada.
Advogadas cinquentonas desfilavam: usavam cabelos à “lá ex-
primeira dama do país”, curtos e lisos e um pequeno puxado quase
na testa. Elas discutiam entre si os processos complicados e originais.
A menina cantava as músicas dos Mamonas Assassinas sem saber o sig-
nificado da morte. Enquanto esperava, chupava balas e mais balas. A
loura desfilava mais uma vez para o prazer dos presentes. Será que ela
era paga pelo poder judiciário para tranquilizar os ansiosos clientes
que ali iam? Sem muita fé, imaginei essa hipótese.
Sem coisa melhor para fazer, sem ninguém para conversar ou
mesmo olhar, automaticamente pergunto-me: “Quem sabe a loura bo-
azuda possa estar interessada em mim?! A fantasia imaginada agrada-
me, assim, continuo pensando: “Será que ela me viu? Não sei. Não
posso encontrá-la agora, estou esperando a audiência. O que fazer?
Se a encontrar, terei más recordações e tédio. Ela me fará lembrar o
inferno! O melhor é tirá-la de minha cabeça de imediato”.
Dois policiais passam apressados. Observo-os. Arrancam, à for-
ça, a loura de meus pensamentos. Eles têm os olhos preocupados,
todos olham. Carrinhos de supermercado circulam cheios de proces-

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sos, carregam alegrias e tristezas. Minha memória tirana recupera lem-
branças desagradáveis:
“Há anos estive na Vara de Família, a mesma que irei hoje.
Naquele tempo longínquo eu era o réu. Depois de anos, ainda
não consegui entender por quê? Hoje, felizmente, estou fora do pro-
cesso, sou apenas - com muita honra - uma testemunha que vai dia-
logar, pelo telefone, com o Juiz de Dakota do Sul dos USA. A Justiça
americana quer saber se meu ex-cliente tem, ou não, capacidade para
cuidar do filho gerado com sua ex-esposa, uma americana”.
O vai-e-vem continua, todos apressados, menos eu e os com-
panheiros dos bancos. Há um entra-e-sai continuado nos banheiros.
“Por que essa procura?”, pergunto-me. “Para fazer xixi? Não, não era”.
Fui até lá para verificar o que as pessoas iam de fato fazer ali. Des-
cobri que a maioria vai ali, por instantes, para escapar do ambiente
estressante do corredor, ficar um ou dois minutos longe do tumulto,
lavar o rosto, molhar as mãos. Às vezes, só isso basta. Todos isolados,
ninguém olha para ninguém, é um território neutro, o oásis, onde é
possível, por instantes, fugir das salas e corredores impregnados, por
todos os lados, pela Lei.
O advogado do meu amigo, após duas horas de espera, desco-
briu-me. O encontro com Dakota do Sul aproxima-se.
— O senhor é o Dr. Galeno?
— Sim.
— Meu nome é Altamiro Dias, sou advogado do doutor André. O
senhor será chamado daqui a pouco. O Juiz está em audiência. A nos-
sa será a próxima. O senhor sabe o que vai falar? Alguma instrução?
— Não há necessidade. Represento bem o que penso. Não há
dúvida...
O advogado despediu-se com um sorriso, um sorriso de lagarto,
que não me permitiu interpretar qual era sua intenção. Estaria me cri-
ticando? Critico a mim mesmo: “Nada, sou desconfiado demais”.
Espero, enquanto passa a loura com seu perfume. O aroma pe-
netra nas minhas narinas, atinge minhas lembranças, recordações
agradáveis, calmas, contrastando com as percepções do Fórum.

167
Formo imagens diversas: louras e morenas, de corpos brancos e
negros, belos, cheirosos, movimentando-se e carregados de desejos.
A loura real vai aos poucos sumindo no corredor da direita, bela, im-
ponente e distante. Será que ela me notou? Não sei! Acho que não.
Também, para quê?
Retorno ao mundo real: a mulher envelhecida, triste, sozinha,
cercada pelas serviçais, discute a estratégia:
— Vocês devem dizer o que conversamos. Tomem cuidado! Não
digam nada a respeito das minhas saídas, dos meus xingamentos.
— Devo contar que certo dia sua raiva foi tanta, que a senhora
cortou o terno dele com a tesoura?
— Não! Que isso! De modo algum. Fale só que ele me deu um
tapa... um tapa na cara. À toa. Que já bateu até nas crianças.
— Mas os meninos gostam muito dele, D. Teresa.
— Gostam nada! Fingimento! Têm medo dele! Falem isso, ouviram?
A secretária do juiz descobre-me e chama-me apressada. Entro e
sou recebido pelo juiz da Vara de Família:
— É o Dr. Galeno? Sem esperar minha resposta, apressou-se: -
Sou o Juiz da Vara de Família, já sabe como será a audiência.
__ Sim, explicaram-me...
__ Ótimo, o Juiz dos Estados Unidos já está ao telefone para o in-
quirir. Pode começar a conversa... enquanto isso eu continuo aqui ao
lado, cuidando desse caso. Qualquer problema, entre e fale comigo.
— Certo. Obrigado.
— Alô!
— Hello, - desculpe-me, falou uma voz feminina, com um so-
taque bem brasileiro, que continuou: - Estou diante do Juiz Michael
Thompson, do Estado de Utah, ele fará as perguntas ao senhor através
de mim, sou tradutora juramentada. Certo?
— All right. Perdão, Ok, desculpe-me. Certo, pode perguntar.
— Seu nome completo, profissão, idade, local de nascimento,
estado civil, número de filhos, residência, telefone...
As perguntas foram se desenrolando. Eu, assustado, imaginei
que havia caído numa cilada: era o réu, e não sabia.

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— O senhor foi psiquiatra do Doutor André?
— Fui dele e da esposa... Tenho, ou melhor, trouxe comigo
algumas anotações...
— O senhor então confirma o laudo que tenho em mãos e,
segundo consta, foi assinado pelo senhor. Para certificar-se, irei lê-lo
na íntegra...
— Certo! Eu o redigi e assinei.
— Qual deles o senhor acha que tem mais qualificações para
ficar com a criança? Ele tem alguma doença mental que o impeça de
cuidar, ou mesmo visitar o filho?
— Não! Nem ele nem ela. Ambos têm condições de ficar com
o filho.
— Os dois?
— Sim. Os dois. O ideal seria os dois ajudarem na educação do
filho...
A conversa continuou por mais quarenta minutos dessa manei-
ra. Como o juiz americano devia estar falando muito perto do fone, eu
o ouvia antes da tradutora traduzir e me perguntar. Com frequência
conseguia ouvir e entender a pergunta antes de ouvir a tradução, isso
facilitava minhas respostas, pois tinha mais tempo para pensar.
Mas minha maldita cabeça, ao mesmo tempo, pensava no casa-
mento, nos juízes de família, nos advogados e no fórum. As perguntas e
as minhas respostas obrigavam-me a recordar e representar em minha
consciência lembranças retiradas dos meus arquivos particulares, da me-
mória autobiográfica cheias de recordações dolorosas: “o que leva uma
pessoa a querer ser advogado, e, muito mais, a ser juiz. Eles todos devem
ser loucos para poder tolerar, todo dia, toda a vida, brigas e mais brigas
de irados, embusteiros, vítimas ingênuas e impotentes. Um dia nesse
lugar foi insuportável. Pobre dos juízes, advogados e outros da mesma
família, que ali atuam o dia inteiro, anos após anos. Mas, e eu, que sou
psiquiatra? Somos todos loucos! Quem sabe, toda a humanidade?”
Tudo me entediava. Esgotava-me. Não podia ser agradável traba-
lhar naquele ambiente tenso, carregado e, mais ainda, ter que decidir
constantemente acerca dos outros, de vidas confusas.

169
Era preciso inventar uma nova forma de casamento.
A maioria das mulheres gosta de homens, como a maioria dos
homens gosta e vive à procura de mulheres. Entretanto, quase todos
os seres humanos não suportam viver juntos por muito tempo. Por
que será?
— Any more questions? - a tradutora perguntou ao juiz.
— No.
Ela despediu-se de mim, antes enviou-me os agradecimentos do
juiz americano e pediu-me que passasse, em seguida, o telefone para
o juiz de Belo Horizonte. Antes de terminar, despediu-se, dizendo:
— A Justiça Americana agradece sua colaboração.
Quase caí de costas. Fiquei confuso. Limpei a garganta apertada
ao ouvir a frase final, uma frase que não saía de minha cabeça: “Ajudei
a justiça, a Justiça Americana”. O tédio abandonou-me. Valeu a pena
ter ido ali! Quanta alegria! Esse final foi sensacional! Nunca na vida
supus ser capaz de ajudar o governo americano, ainda mais eu, que
jamais gostei muito dos governos daquelas bandas. Que importante
me tornei no final! Viva!”
Passei o fone para o Juiz e fui para casa saltitando, estava feliz
e sorrindo. A frase final da tradutora juramentada me fez esquecer e
enterrar para sempre a loura boazuda.

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POR UM NATAL DIFERENTE

O Natal está chegando. As vitrines estão mais coloridas, algumas


ruas mais claras. A TV mostra o mundo encantado de objetos outrora
não imaginados, hoje imprescindíveis. A algazarra e a abundância de
estímulos sedutores produz o “Espírito de Natal”. Imagens e símbolos,
caprichosamente inventados, estimulam a imaginação para sugerir fe-
licidade e fraternidade entre as pessoas. Mas, por trás dessas represen-
tações - não muito bem escondidas - há um incitamento para comprar
compulsiva e desnecessariamente.
Nas ruas molhadas e sujas rastejam seres cansados, comandados
por ordens invisíveis, debaixo de máscaras de robô e disfarçando as
faces amargas e derrotadas. Como um pelotão bem treinado e obe-
diente, homens conquistados carregam pacotes coloridos contendo
sofrimento, submissão e busca de significado para a vida.
Oro para que o Natal se torne diferente: menos compras, mais
reflexão. Também imagino mudá-lo para um outro dia: 14 de dezem-
bro ou 9 de novembro. Um dia comum, sem significado para maio-
ria das pessoas, sem recordações dolorosas, nem lembranças alegres,
que jamais se repetirão.
Preciso atravessar mais esse Natal. Não tenho saída.
Lá longe, muito longe, quando tudo em volta era majestoso para
meus olhos amedrontados, assimilei algumas ideias e valores. Ensinaram-
me a adotar os ensinamentos e a participar dos rituais religiosos que co-
memoram o nascimento de Cristo. O menino de Itabira acreditou, sono-

171
lento, no propagado: igualdade entre as pessoas, justiça social e liberdade
para escolher. A criança perdida continua acorrentada nesses ensinamen-
tos, talvez antiquados. Ele ainda acredita em tudo que Cristo pregou há
dois milênios. O menino não acordou, nem sei se um dia acordará.
A reunião familiar vai encenar a peça que vai ser representada.
As faces estampam preocupação com o bom desempenho. Cada
figurante, treinado com esmero, interpretará o papel a ele conferido
no velho “script”. Bem condicionados, um será o personagem prin-
cipal, o outro, ator coadjuvante. Papeis rígidos, impressos cedo, ga-
rantem a boa ordem e organização da família conforme os padrões
e os dogmas existentes. Encarcerados, ignorando a prisão, cada ator
lutará, com naturalidade e alegria, para não sair do determinado, nem
desapontar os assistentes vigilantes. Se ele se desvencilhar, por mo-
mentos, dos laços que o prendem, prontamente será forçado a reassu-
mir o papel a ele destinado.
A ceia, preparada e comentada dias antes, chega farta. Pratos va-
riados, vistosos, coloridos como os presentes: sedutores, na realidade
frios e desbotados. Sinto saudade da couve, do bife com batatas fritas,
do arroz fumegante e viçoso.
Observo a cena. Observo o observador que analisa. Critico, de-
sesperado, meus pensamentos doentios: preferir a comida simples à
sofisticada, gostar de uma terça-feira comum ou da conversa sosse-
gada. Por que não sou igual a todos? Como deve ser bom tolerar, ou
melhor, gostar, do Natal atual. Que desgraça carrego na alma!
“Senhor todo poderoso, Jesus, filho de Deus, nesse dia em que
comemoramos Seu nascimento, ajude-me. Permita-me pensar como
meus irmãos. Amarre-me para sempre junto ao rebanho ordeiro. Só
assim poderei viver em paz com todos. Liberte-me da loucura de cri-
ticar os sadios, os tranquilos e felizes. Almejo transformar-me numa
cópia, sem retoques, dos que me rodeiam. Senhor, auxilie-me. Sonho
em poder enxergar o céu azul e não cinzento, achar o Natal feliz e
não um dia de sofrimentos. Já procurei ajuda terrena: psiquiatra, pai
de santo, padre e pastor. Nenhum me compreendeu! Todos pensam
da mesma forma! O que me fez ficar assim?”

172
Imagino que outros, como eu, devam existir. Mas como e onde
encontrá-los? Por serem malucos, diferem também de mim. Os lou-
cos, ou os “anormais”, não formam um grupo coeso, são estranhos
uns com os outros, cada um com sua mania, uma colcha de retalhos
ou um bando de desagregados.
Finalizo o desabafo, sabendo que ele foi tecido num dia inade-
quado. Essa é a minha sina: expresso o que penso na hora errada, o
manifestado é impróprio para os ouvintes e para o tema. Peço descul-
pas por carregar esse vício maligno. Assim fui construído. Mas, para
escapar de ser internado num hospício, no alegre e festivo dia de Na-
tal, fazendo um esforço sobrenatural, desejo a vocês, leitores amigos,
bondosos e tolerantes: Feliz Natal e Próspero Ano Novo.

173
“GAYS”, LOUCOS, ATEUS E VELHOS

O leitor poderá pensar que não há relação entre os conceitos


acima citados. Há sim. Todos são pessoas estigmatizadas pela nossa
sociedade. Poderíamos acrescentar outros: os negros, altos, obesos,
paraplégicos, aidéticos, leprosos, carecas, baixinhos e muitos outros.
Os gregos criaram o termo “estigma” para se referirem a sinais
corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de ex-
traordinário ou de ruim nos seus possuidores. Os sinais mostravam
que o portador era um escravo, um criminoso ou um traidor. Uma vez
portador do sinal, esta pessoa deveria ser evitada, principalmente nos
locais públicos, pelos não-possuidores dos sinais. Hoje as “marcas”
dos estigmatizados têm outros simbolismos.
Os homens sempre classificaram os objetos, os animais ou eles
próprios. Ao categorizar, imaginamos estar reunindo indivíduos ou
coisas semelhantes e assim classificamos o cão, o homem, a pedra, a
pulga e o pássaro. Para reunirmos tudo num grupo, isolamos uma ou
mais características dos sujeitos observados - sem valorizar outros - e
acreditamos que as características enfatizadas indicam a semelhança.
Assim feito, damos certos nomes para os membros reunidos e passa-
mos a imaginá-los como semelhantes e os tratamos como tais.
Portanto, estigmatizar nada mais é do que classificar pessoas,
selecionar certas semelhanças entre elas. Entretanto, é diferente das
classificações neutras, ao imaginarmos que os indivíduos seleciona-
dos (obesos, carecas, idosos, negros, etc.) são piores do que os sele-

175
cionadores. É diferente das classificações científicas, pois aqui identi-
ficamos um atributo que é imaginado pelo rotulador como negativo.
Os cientistas não desvalorizam uma pedra por ter ou não certa
dureza, cor ou brilho. Entretanto, os preconceituosos ou estigmati-
zadores percebem a gordura em excesso, a cor da pele, a orientação
sexual, a idade ou crença religiosa como negativa, ruim, não-desejada
ou não-estimada. Uma vez inventado o perfil do estigmatizado, o rotu-
lador imagina ser ele, por não possuir o fator depreciado, melhor do
que a outra pessoa. Tudo muito simples.
Existem vários estigmas como os físicos (cegos, surdos, para-
plégicos, etc.), de comportamento (fraco, desonesto, louco, drogado,
desempregado, homossexual, político radical) e ainda de raça, nação
e religião. Os estigmatizados, conforme o dogma dos preconceituo-
sos, carregam traços negativos estimuladores de sua atenção. Uma
vez elaborada a classificação, o classificador não mais valoriza, ou não
percebe, os outros atributos da pessoa que iriam invalidar a classifi-
cação feita.
Para dar uma falsa credibilidade às ideias tendenciosas, os pre-
conceituosos, demagogicamente, constroem uma teoria ou ideologia
tentando dar suporte ou explicar a “inferioridade” do estigmatizado
e, além disso, alertar as pessoas contra o perigo do contato com estes:
“É um louco. E os loucos são perigosos, pois não sabem o que fazem.
Conheço um que matou seu pai”. “É um negro, eles são preguiçosos
por natureza”. “É ateu. Os que não acreditam em Deus, têm ideias
estranhas. Para eles tudo é normal, pois não temem nada”. Essas pseu-
doteorias, passadas de boca em boca, lamentavelmente são aceitas,
compartilhadas e tidas como verdadeiras por uma grande parte da
população.

176
A SENTENÇA FINAL

Arnaldo, depois de muito esperar, chega diante do urologista.


- O PSA deu alto dessa vez, afirmou Dr. Luciano, olhando fixa-
mente para o resultado de exame.
- É... o que fazer? - respondeu Arnaldo, olhando para o piso.
- É... o recurso é uma biópsia.
- Não tem nada pior. Já me submeti a uma. É péssimo.
- O exame agora é menos doloroso. Procure Dr. Carlos, é perto.
- Tudo bem. Depois entro em contato com você.
- Boa tarde.
- Até a próxima.

No Laboratório:
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Veio marcar um exame?
- Tenho um pedido para realizar um exame de biópsia de próstata.
- Deixe-me ver. Só tem para o dia 7 de maio.
- Não tem antes?
- Não! Tá tudo cheio.
- Precisa de uma autorização.
- Onde é?
- Aqui perto, basta seguir a avenida.
- Eu sei.

177
- Leve e leia essas instruções: “Um dia antes do exame tomar
um comprimido de lactopurga e o antibiótico duas vezes ao dia. No
dia continuar com o antibiótico e usar às 8:30 h esse produto aqui.
Chegar às 11:00h, o exame será feito às 11:30. Além disso deve vir
acompanhado.”
- Moro só. Sou solteiro. Não recebo ajuda de outros, - respondeu
Arnaldo, irado.
- Arrume um amigo.
- Não tenho amigos disponíveis para quarta-feira às 11 h.
- Hum...
- Até quarta-feira.

Na empresa de seguro de saúde:


- Onde pego uma autorização?
- Aqui está sua senha, número 476. Você será chamado pelo nú-
mero exibido na placa.
- Demora?
- Nada! No máximo uma hora.
- Número 476.
- Sou eu, Arnaldo.
- Entregue-me seu pedido, carteirinha e identidade. Será chama-
do novamente, não demora. Aqui mesmo, nesse lugar, chamarei pelo
nome.

Algum tempo depois:
- Foi autorizado um exame. O outro não faz parte de seu plano
de saúde, terá que pagar.
- Certo. Obrigado. Boa tarde.
- De nada. Boa tarde.

No local do exame: andar térreo.


- Pago aqui ou no sexto andar?
- No sexto andar

178
No sexto andar:
- O senhor já foi atendido?
- Não. Estou com esse exame marcado.
- Deixe-me ver. Tem a carteirinha e a identidade?
- Sim, estão aqui.
- Um deles está liberado, o outro o senhor terá que pagar. Onde
está seu acompanhante?
- Não tenho acompanhante. Moro só. Pago agora?
- Espere um pouco. Irei chamá-lo daqui a pouco.

Um pouco depois:
- Senhor Arnaldo. Por favor, chegue aqui. Vai pagar com cheque
ou dinheiro?
- Cheque. Quero um recibo.
- Aqui está. Pode sair, entrar no corredor à esquerda e esperar.
- É o que mais fiz.

Mais tarde:
- O cliente das 11:30 já chegou?
- Sou eu.
- Boa tarde, acompanhe-me até essa sala.
- Espere um pouco. Vou tirar sua pressão e lhe dar um medica-
mento para relaxar.
- Não quero muito remédio. Estou só! Portanto, não quero fazer
o exame dormindo, pois depois irei embora sozinho.
- Irei falar com o médico.
- Certo.

Um pouco depois:
- O doutor concordou. Tome a metade.
- Essa metade está grande. Quero a outra metade, ela é menor.
- Tudo bem. Vou examinar sua pressão.
- Deve estar alta. Você já fez um exame destes? Não é agradável.
- Hum... daqui a pouco virei chamá-lo. Caso deseje, pode dormir
um pouco aqui.
- Irei pensar enquanto espero.

179
Vinte minutos depois:
- Está bem? Precisa de ajuda?
- Não.
- Acompanhe-me até a sala do doutor.
- Certo.

Na sala do Dr. Carlos:


- Boa tarde.
- Boa tarde, Arnaldo. Está bem?
- Sim e não.
- Deite ali, disse indicando a maca.
- Pode tirar a camisa e pendure-a ali.
- Certo.
- Abaixe as calças.
- O exame deve durar meia hora. É um pouco desagradável, mas
será o menos doloroso possível.
- Hum-hum.
- Está doendo? Estou tirando 16 amostras de tecido. Não parece
existir nada grave. Uma possível hipertrofia prostática benigna. De
qualquer forma, será o exame dos tecidos que dirá a palavra final.
- É... não tem outro modo.
- Tudo pronto. Está bem? Consegue se levantar?
- Sim. Ligeiramente tonto, mas sou capaz de andar.
- Sente-se um pouco, enquanto termino a redação do resulta-
do do exame que realizei e lhe entrego o pedido da biópsia. Não
demoro.
- Certo.
- Aqui está, como lhe falei, parece não ser câncer. O laboratório
fica aqui perto. Está bem? Aqui estão os cortes colocados em oito
vidros.
- Entendi. Estou bem, já estive pior. Espero não cair pelas ruas.
Até logo.
- Até logo.

180
No laboratório:
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Estou com esse material aqui do Dr. Carlos.
- A carteira e a identidade, por favor.
- Aqui estão
- O exame ficará pronto dia 14, às 17 h.
- Certo. Obrigado.

Dia 14, às 17 horas:


- Vim pegar um resultado de exame.
- Qual o seu nome?
- Arnaldo Valente
- Está aqui.
- Obrigado.
- De nada. Boa tarde.

No consultório do urologista:
- Boa tarde
- Boa tarde. Tenho uma consulta para as 17:15 horas
- Seu nome?
- Arnaldo.
- Certo, está anotado aqui.
- Obrigado. Penso: “Abro, ou não, o resultado? Neste instante sai
um cliente e o médico dirige-se a mim.
- Pode entrar, Arnaldo.
- Trouxe o exame?
- Sim, ia abri-lo, mas não deu tempo. Você me chamou quando ia
abrir o envelope. Está aqui. A sentença final.
- Hum, hum... é interessante. Sua próstata está enorme.
- Já sabia, estranhamente ela não me atrapalha quase nada. E o
resultado?
Um pouco nervoso Arnaldo continuou:
- Tenho, ou não, câncer?

181
- Nada! Somente hipertrofia benigna, como eu suspeitava no
exame de toque.
- Bem que desconfiava. Era difícil pensar em estar doente. Há
muito não me sinto tão bem e produtivo. Seria bom ser canceroso
desse jeito. E agora?
- Volte daqui a um ano. Não há nada a fazer. Se precisar, volte
antes.
- Espero não precisar, Dr. Luciano. Até o dia 14 de maio do ao
que vem.. .
- Até lá, Arnaldo...

182
A Pintura dos Esquizofrênicos

O interesse médico pela produção artística dos doentes mentais,


principalmente dos esquizofrênicos, começou no século passado e
adquiriu maior interesse após o aparecimento da obra clássica do psi-
quiatra Prinzhorn. A partir daí, vários autores passaram a analisar e a
interpretar o conteúdo e a forma daquelas obras.
A maioria dos doentes mentais não possui aptidões para a pin-
tura ou qualquer outro tipo de arte, pois é sabido que a esquizofrenia
deteriora a capacidade do indivíduo. Raros esquizofrênicos desenha-
ram ou pintaram antes de adoecerem, embora, muitos deles, em suas
casas ou nos hospitais, passem uma boa parte do tempo desenhando
ou escrevendo. Entretanto, poucos desenvolvem algum trabalho dig-
no de receber o nome de artístico, pois suas “obras” não passam, na
maioria das vezes, de simples rabiscos ou desenhos esquemáticos sem
nenhum sentido estético.
Não se pode falar de arte psicopatológica propriamente dita,
quando um artista já consagrado adoece, sem, entretanto, alterar a
essência de sua produção. Por outro lado, quando um pintor se torna
esquizofrênico e os seus dons artísticos são afetados, ele pode conti-
nuar a produzir após a instalação da doença mas, nesse caso, suas pro-
duções empobrecem. O aparecimento de ideias delirantes e alucina-
ções, que caracterizam a esquizofrenia num determinado indivíduo,
nada tem a ver com o nascimento de um dom artístico. Nenhuma
doença mental produz uma capacidade criadora no homem, pois essa

183
depende do talento individual. Durante muito tempo falou-se acerca
da relação do gênio com a loucura. Não existe tal relação. Não se
constrói um gênio, enlouquecendo um homem normal, mas, sim, se
destrói um gênio, tornando-o louco. Apenas em raríssimos casos a
doença mental pode servir como fator desencadeante e desinibidor
para despertar uma aptidão até então adormecida.
No esquizofrênico encontram-se alterados, entre outros, os se-
guintes aspectos do indivíduo: o conteúdo e a forma do pensamento,
a percepção, daí o aparecimento de várias alucinações, a afetividade,
que se torna muitas vezes embotada, apagada ou inadequada, certa
dificuldade ou estranheza ao lidar com o próprio Eu, muita dificuldade
em tomar qualquer iniciativa, uma tendência para isolar-se do mundo
exterior e, por último, uma perturbação do comportamento psicomo-
tor, com a diminuição da reatividade ao meio ambiente e redução dos
movimentos espontâneos. Todo esse quadro conduz, inevitavelmente,
a uma diminuição da compreensão e da interpretação da realidade.
A pintura do esquizofrênico, tanto no que diz respeito ao seu
conteúdo, quanto à sua forma, não se acha ligada a normas ou regras
coletivas de nenhuma espécie. Como ele, normalmente, não se comu-
nica de maneira convencional, sua arte pode ser considerada, em um
grau elevado, um murmúrio consigo mesmo. Em alguns poucos casos,
suas mensagens comoventes são dirigidas aos mortos, a Deus, a Jesus
Cristo ou ao seu médico assistente. A sua produção artística misteriosa
pode chegar mesmo a uma total confusão, convertendo-se numa lin-
guagem indecifrável. Sua arte é, frequentemente, um grito dirigido a
ninguém, ou um monólogo estridente lançado num vazio trágico.
Os quadros desses pacientes mostram, ao lado de alucinações
pavorosas, motivos plácidos, inexpressivos ou até mesmo alegres.
Enquanto que a “pintura primitiva” e o desenho infantil constituem,
na maioria dos casos, um produto de elaboração do ambiente, a arte
dos esquizofrênicos reproduz, não uma natureza externa, mas apenas
percepções distorcidas de vivências sombrias e sofridas, que é o seu
mundo interno, onde se guardam diversas alucinações e delírios, que
pouco ou nada têm a ver com a realidade dos “normais”. Sua pintura

184
deforma e simplifica a anatomia. Os espaços vazios da tela são pre-
enchidos compulsivamente com pontos, roscas, figuras geométricas,
letras ou números.
A pintura dos esquizofrênicos, não tendo um público determina-
do, é dirigida a uma plateia imaginária, diferente, portanto, da pintura
do artista sadio, ou mesmo da arte dos chamados “povos primitivos”,
onde o destinatário é uma comunidade humana real. Os que passa-
ram a pintar após adoecerem são, no sentido exato da palavra, auto-
didatas. Por habitar um mundo estranho, impenetrável e particular,
bastante diferente do “geral”, os seus diversos símbolos permanecem
geralmente obscuros e incompreensíveis para todos nós.
Dentro do seu “autismo” expressam a sua arte, mediante o lápis
ou o pincel, de uma forma inteiramente espontânea e livre, sem pre-
conceitos e sem seguir regras acadêmicas de nenhuma espécie. Es-
sas pinturas possuem, exatamente pelo fato de estarem desligadas de
todo o modelo convencional e de todo o preconceito de estilo, uma
intensidade emocional diferente, pura, simples e bela, muitas vezes
com uma grandeza de forma que as eleva a um nível artístico superior.
O seu aspecto é recriado livremente e neste não existe perspectiva
linear. Para ele não há profundidade, os corpos não são desenhados
mostrando a ilusão do volume real. Eles, na sua pintura, não represen-
tam as sombras produzidas pelos corpos, ao contrário de uma repre-
sentação naturalística que não pode prescindir delas pois, sem estas,
os objetos parecem flutuar. Na verdade, nas nossas representações
interiores, ou seja, quando visualizamos uma paisagem, previamente
sabemos se o objeto está pousado na terra ou flutuando no espaço,
portanto, na nossa imaginação, não existem sombras determinadas
pela luz. O esquizofrênico não reproduz o que vê fora de si, mas, sim,
o que percebe dentro. Ele não se preocupa em criar a ilusão da maté-
ria e nem se preocupa com a precisão de detalhes.
As cores usadas não têm correspondência com as existentes na
realidade externa. Quando ele as usa, estas servem mais como um
meio de desenhar e não para retratar as cores naturais existentes no
“mundo real”, que não são respeitadas por ele. As cores, utilizadas

185
com ampla liberdade, são aplicadas geralmente de forma pura ou
pouco misturadas. Como sua produção é rápida, ela serve para dar
vazão às ideias que lhe ocorrem em abundância. O esquizofrênico
não dispõe de tempo para preparar as cores das aquarelas, do óleo ou
misturá-las.
A escolha destas, de preferência as fortes, é ditada principalmen-
te pelo seu valor afetivo, isto é, daquela que ele mais gosta no momen-
to da criação, e só em segundo lugar, pelo objeto a ser representado.
Os desenhos dos esquizofrênicos, simplificados, deformados e
repletos de formas repetidas, são estáticos e mesmo petrificados e
raramente mostram movimentos. Além disso, as diversas figuras estão
aglutinadas ou condensadas, contendo os vários elementos incoeren-
tes reunidos em uma só imagem. O contorno linear, muito ressaltado,
torna as superfícies bem delimitadas pelo traço, geralmente feito sem
retoques ou correções. O símbolo adquire, na pintura do esquizo-
frênico, o valor da coisa significada. Nota-se, portanto, que a pintura
do esquizofrênico se opõe às exigências do naturalismo, no que diz
respeito à ilusão do espaço, do volume e da matéria, assim quanto à
precisão do desenho, à exatidão da anatomia e à cor do objeto.
Apesar de ter perdido todo o caráter anatômico ou naturalista,
a forma criada pelo esquizofrênico expressa um conteúdo singular e
atraente e com frequência emociona os não doentes por sua beleza
diferente. A sua pintura permite, através de uma expressão artística
altamente espontânea, a exibição de valores eternos do homem. A
mensagem poética e mágica contida nas suas pinturas torna possível
o difícil e amargo encontro entre os “sãos” e os “doentes”. Provavel-
mente, as imagens que habitam o “porão” dos indivíduos sadios e dos
doentes mentais são as mesmas. Essa semelhança de símbolos, que
não aparece claramente quando olhamos através dos andares mais al-
tos, permite a comunicação dos doentes com os sadios. Desse modo,
a pintura dos esquizofrênicos consegue tocar e transmitir, a todos
que a contemplam sem preconceitos, as mais diversas e profundas
emoções que residem no âmago de nossas almas. Por tudo isso, elas
merecem ser vistas.

186
NO EMBALO DAS ÚLTIMAS FÉRIAS

Tempo de férias. Uma boa parte da população sai do seu canto


e se dirige para os mais diversos locais. A escolha dependerá de diver-
sos fatores: do tempo, do dinheiro disponível, do hábito e gosto de
cada um e até da moda atual. Assim, uns vão para a Europa ou Ásia, e
outros para Baldim ou Betim.
As praias são locais frequentemente procurados. Conforme a
época escolhe-se uma, em outro momento será outra, a anterior já
não mais agrada. Guarapari teve o seu período áureo e também Bú-
zios, Cabo Frio, Marataízes, Porto Seguro e outras tiveram boas co-
tações no mercado de consumo. Até Copacabana já foi considerada
a praia ideal para as férias. Alguns preferem acampar, outros visitar
cidades do interior ou estações de água, alguns viajar para o nordeste
ou para o sul do País.
De qualquer forma é preciso “tirar férias”. Essa é a regra e quase
todos aceitam essa prescrição. Não conheço leis, portanto não sei
quando e por que elas passaram a ser exigidas legalmente. Não sei
também a justificativa dessa exigência. À primeira vista, a resposta é
óbvia: “todos precisam descansar após um ano de trabalho.”
Deveria essa resposta ser aceita tranquilamente? Em tempos não
muitos remotos, as férias não eram respeitadas com tanta intransigên-
cia, a não ser nas escolas. Em minhas andanças pelo interior, tenho
verificado que muitos dos que ali vivem nunca tiraram férias e nem
pensam, ou sabem, que há necessidade delas.

187
Por outro lado, aqui na capital, o respeito às férias é sagrado. As
pessoas, na sua maioria, invariavelmente gozam suas férias no mínimo
uma vez por ano. No meu entender, salvo engano, esse período acaba
se tornando uma época de tensão e sofrimento, não de descanso e
paz como deveria ser. Numa linguagem mais atual, um estresse para
todos. Uma de minhas clientes, dona-de-casa, disse-me que suas férias
nada mais são do que “uma mudança de residência” e, conforme suas
palavras, “de uma casa confortável para uma sem conforto”.
Uma outra cliente contou-me que é um período difícil, já que
nas férias ela fica em contato permanente com o seu marido e como
os dois não têm muitos assuntos para manter “o bate-papo” o dia in-
teiro, terminam por se sentir tensos. Tal fato não ocorre nos períodos
de trabalho, pois neste os encontros entre os cônjuges são menos fre-
quentes e a conversa do dia-a-dia flui normalmente, como os relatos
acerca das notas dos filhos ou da nova empregada contratada. Alguns
casais já resolveram esse problema. O marido fica trabalhando e visita
a família em férias nos fins de semana. Assim, tudo corre bem...
Um amigo meu, Arnaldo, ganhando pouco, como a maioria da
população, sempre acreditou que ele e sua família precisam desse
merecido “descanso”, custe o que custar. Nesse fim de ano, contou-
me as suas últimas férias. Ele possui um fusca, uma mulher e três
“diabinhos”. Em novembro - as férias são tiradas em janeiro em Nova
Almeida - ele começou a se preparar e a falar acerca do grande acon-
tecimento com os amigos e os familiares, sobre o que faria na praia, o
que ia levar, o que iria comer e beber. Era seu único assunto.
Para começar, antes da viagem Arnaldo gastou o seu décimo ter-
ceiro salário com a revisão do fusca, embalagens térmicas, calções,
esteiras, maiôs, anzóis, óleos para bronzear, filtros para se proteger do
sol e o aluguel do apartamento. Tudo passou a ser feito com um enor-
me entusiasmo. Afinal, depois de longa espera, chegou o dia da saída.
Aperta dali, empurra daqui, troca-se de lugar, até empanturrar o
velho fusca, que parte buzinando rumo ao litoral. Na viagem, a patru-
lha o cerca e interrompe a viagem por “excesso de bagagem”. Após
muita conversa, com muito custo, após desembolsar uma propina

188
para o guarda, Arnaldo pôde continuar a viagem. Um pneu furou e
sua mulher e um dos filhos enjoaram e vomitaram para todos os lados.
Mas tudo isso foi suportado com alegria, pois Arnaldo e sua família
estavam de férias.
O apartamento, pouco maior do que o fusca, estava mal cheiro-
so, seus móveis quebrados e velhos. Ao chegar, ele teve de esperar
por algumas horas a saída do inquilino anterior, que ainda não havia
deixado o apartamento. Mas tudo bem, alegria geral, pois é tempo
de férias.
A família arrumou como pôde o apartamento para torná-lo ha-
bitável por quinze dias. A alimentação foi sacrificada pelo preço alto,
pois estava tudo caro e ninguém queria gastar tempo cozinhando.
Afinal de contas, era preciso aproveitar mais as férias, pois ninguém
é de ferro.
O sol quente cozinhou no primeiro dia a pele branca e gorduro-
sa do meu amigo, o que impossibilitou Arnaldo de tomar sol por três
dias e de dormir satisfatoriamente devido às dores do corpo. A mistura
do sol e a dieta de peixe - peixe na praia fica mais em conta - provocou
uma erupção alérgica na mulher de Arnaldo, aumentando seu nervo-
sismo constante e por isso atrapalhou o merecido descanso de todos.
Mas a gente acostuma-se com tudo e ele e sua família, não fugindo à
regra, pouco a pouco e com algumas dificuldades, adaptaram-se para
poder “curtir” as esperadas férias.
Mas quando isso ocorreu, já estava na hora de voltar. Nova via-
gem, com os mesmos problemas da ida. Afinal, felizmente, ele e sua
família respiram aliviados pois chegaram vivos a Belo Horizonte. Feliz-
mente, sim, pois na estrada tiveram que contornar três corpos presos
no meio das ferragens, barracas e panelas espalhadas e, como se sabe,
isso pode acontecer a qualquer um.
Mas Arnaldo continua otimista, está satisfeito e já fala, não tão
entusiasmado como em novembro, nas próximas férias que passará
em Nova Almeida. Para ele, o apogeu da satisfação ocorre quando, ao
voltar ao banco onde trabalha, encontra sua colega Lindalva, que lhe
pergunta com um sorriso de inveja:

189
- Arnaldo, que cor linda! Você está queimadinho, onde você
andou?
E ele, enchendo o peito, cheio de orgulho e felicidade, responde:
- Estava curtindo uma praia.
Retomo meu pensamento acerca das pessoas que não tiram fé-
rias, nem sentem necessidade de tirá-las. Perguntei a uma pessoa que
nunca tirou férias, o que ela pensava delas e há quanto tempo não as
tirava. A resposta foi rápida:
- Nunca! E não tenho vontade de ir nem ao Rio, nem a São Paulo
e nem mesmo aos Estados Unidos.
Assustei-me e tentei decifrar os motivos dessa grande diferença
de atitudes. De um lado, aqueles que, como Arnaldo, adoram e consi-
deram indispensáveis as férias, do outro, os que nunca pensam nelas,
ainda quando têm poder para tirá-las quando bem entenderem. Nossa
mente não suporta divergências, daí minha tentativa de procurar con-
ciliar essas duas opiniões contrárias.
Pensei, quem sabe, Zé Estácio, o morador do interior, tenha em
seu trabalho uma grande fonte de prazer, de criatividade e de reali-
zação, assim como um contato global e frequente com o universo
ao seu redor. Tudo isso lhe permite prescindir das férias, já que sua
atividade é agradável e revigorante. Por outro lado, a atividade de
Arnaldo é monótona - caixa de banco - estafante, exigindo-lhe uma
atenção constante. Além disso, os horários são rígidos e o contato
com o mundo ao seu redor é limitadíssimo, tornando seu trabalho
alienante e estático.
Parece-me que Arnaldo precisa sempre tirar férias, de qualquer
tipo, em qualquer lugar, talvez até num hospital psiquiátrico, o que
não é incomum entre os bancários devido ao estresse continuado.
Só através das férias ele conseguirá retornar e interagir com um uni-
verso mais natural. Zé Estácio, porém, vive no campo, em contato
constante com a natureza plena e real. Lá não há pressa, nem nossos
horários rígidos. Ele pode perceber e sentir os acontecimentos que o
rodeiam, desfrutar com calma cada cena do seu amplo mundo, indo
desde o nascer até o pôr do sol. Poderá assistir ao vivo - participando

190
dela - a uma tempestade brutal ou uma chuva mansa, um animal que
nasce e um passarinho iniciando o seu primeiro voo. Zé Estácio não
almeja férias, pois ele, talvez, já viva nelas permanentemente. Você,
leitor, crie outras hipóteses, pois a minha pode estar errada, mas é a
que tenho no momento.

191
A BOA TERAPIA DO CARNAVAL

O carnaval chegou mais uma vez. Parece-me estranho que al-


guém possa esperá-lo e desejá-lo com ansiedade. De qualquer modo o
carnaval ainda tem o seu público, cultores e admiradores.
Há diversos carnavais para os mais diferentes públicos, pois
existem até para aqueles que desejam ignorá-lo e para os que o de-
testam. Para este grupo, o carnaval será época de viajar para algum
lugar onde esse não exista, ou a oportunidade de colocar em dia o que
estava atrasado. Para outros, nesse período, nada se faz e, se sobrar
um tempinho, bebe-se.
Um dos grupos carnavalescos que tem crescido é dos “voyeurs”,
isto é, daqueles que se deliciam apenas com as imagens do carnaval,
ou melhor, dos carnavalescos, nas ruas ou nas televisões. Entre esses,
há os que assistem e gravam os desfiles das escolas de sambas, os que
veem, excitados, as imagens dos bailes de carnaval, apesar de que,
muitas vezes, criticam a pouca vergonha dos exibicionistas. Para o
grupo dos “voyeurs”, a dança propriamente dita tem pouca importân-
cia, assim como as fantasias, letras e músicas. Tudo isso constitui o
cenário onde a cena principal ocorrerá. As câmaras de TVs mostram
supostas cenas de sexo implícito ou, às vezes, explícito. Os protago-
nistas dessas pseudo-orgias quase sempre são mulheres, fazendo uso
de alguns ingredientes básicos e necessários: a maioria de meiaidade,
de pé num palanque, mesa ou cadeira, requebram, imitando certas
expressões faciais estudadas e típicas de cenas de sexo, tendo, fre-
quentemente, os seios à mostra.

193
Todas elas, com pouquíssimas exceções, fazem os mesmos ges-
tos, dão os mesmos sorrisos e “dançam” do mesmo modo e até as
“fantasias” são altamente semelhantes: coxas bronzeadas, revestidas
com meias rendadas que seguram as gorduras já em excesso, e não
mais firmes, minúsculas calcinhas coloridas, plumas e lantejoulas.
Começa então a farsa: o repórter, com a câmara de TV, aproxi-
ma-se da dançarina, que percebe sua presença.
A “atriz”, nesse instante, inicia ou exagera a representação, fin-
gindo não estar percebendo a filmagem. Do outro lado, em casa, o
atento e incauto telespectador assiste ao espetáculo, esperando ver e
deliciar-se com cenas eróticas que supostamente vão se desenvolver.
Entretanto, internamente, todos juntos, repórter, foliona e telespecta-
dor, sabem que nada vai, ou pode acontecer, ali do anunciado pelos
gestos ou insinuações. A dançarina, a figura central da cena, repete
com alguma arte a mesma dança, construída de gestos inúteis, re-
petitivos, mas necessários à representação do que se propõe: fingir
o sexo. O telespectador, cansado da realidade, não estando fazendo
sexo, talvez nem desejando fazê-lo, assiste, sonolento, às três horas da
manhã, na sua cadeira preferida, à simbologia sexual, isto é, ao sexo
falso. Toda a arrumação é construída para deixar claro que no salão
– também na avenida - o reproduzido será somente a fantasia e não a
realidade. O irreal ou a fantasia é mostrada como falsa, mas, para que
os telespectadores e o público da rua possam desfrutar do espetáculo,
é necessário que a cena pareça verdadeira.
Sabemos que as cenas “eróticas dos bailes” e os desfiles das es-
colas de samba necessitam dos “voyeurs” para aplaudir e vibrar com
o ilusionismo, seja do sexo nunca realizado, seja da “riqueza dos reis”,
dos “marajás” e dos “mestres-salas”, das escolas que, de fato, escon-
dem sua miséria social e econômica.
Eventualmente, alguma atriz menos profissionalizada e menos
treinada, esquece que está representando cenas de sexo e decide não
mais mitificá-lo, mas sim torná-lo real, isto é, reviver o significante em
seu sentido pleno ao abandonar a forma. Quando isso ocorre, a ingê-
nua dançarina é rapidamente impedida de realizar o seu objetivo: sair

194
do mito e entrar na realidade proibida. Esses casos são raros, pois qua-
se todos os participantes desse jogo mítico sabem como se comportar
dentro das regras estabelecidas e aceitas sem discussões.
As fantasias tradicionais do carnaval de rua (as do presidente ou
do prefeito, as gatinhas, os pierrots, homens vestidos de mulher), as
das escolas de samba (divindades, reis, baianas, índios, escravos, artis-
tas diversos), todas escondem uma história que se transforma em uma
outra, sempre presa à anterior.
De outra forma, a história mostrada elimina a lembrança pri-
mitiva da história, mas não uma existência, mantendo um sentido já
estabelecido. Por exemplo, a partir da vida de Lamartine Babo, já fa-
lecido, é criada uma outra história atual a seu respeito. Alguns fatos
são preservados mas, propositadamente, inventam-se outros, dando
nascimento então a um Lamartine mítico, não mais real e antigo. Um
novo Lamartine Babo, adaptado às exigências atuais do tempo, espa-
ço, outros mitos, etc.
Algumas vezes, o ídolo mitificado, ainda se encontra vivo du-
rante o desfile. É o caso de Sílvio Santos e outros, mas, mesmo nesses
casos, o que foi representado na narrativa do enredo foi um novo
personagem, um Sílvio Santos idealizado por certos autores, diferente
do real, mas construído a partir do real, ou seja, encaixado dentro do
contexto, das crenças e das ideologias da escola que o representa.
O público emociona-se principalmente com a história mitológi-
ca, recriada e apresentada a partir da original. A história real, geral-
mente já conhecida, sendo estática e comum, semelhante à história
de todos nós, é por isso mesmo sem graça, enfadonha. Por outro lado,
a nova história, a sobre-humana, é carregada de afetividade, cheia de
simbolismos verbais - samba-enredo, fantasias, alegorias - o que, no
seu conjunto, transmite uma inesperada totalidade razoavelmente in-
terpretada pelo telespectador, previamente treinado e acostumado a
assimilar informações semimíticas, isto é, não racionais.
A comunicação e a apreensão de seu significado são alcançadas
pelo público sem a presença do raciocínio, sem que a mensagem seja
decifrada. Mas ela é sentida e isso é que importa. Ele foi ali para isso.

195
A maior ou menor aproximação com a realidade descrita não tem
importância. O importante é o despertar de uma emoção positiva no
público. Não estou falando aqui acerca da comissão julgadora, que
atua, geralmente, usando critérios mais lógicos. A “galera” faz seu jul-
gamento intuitiva e imediatamente, apropriando-se apenas do concre-
to, daquilo que lhe entra pelos olhos e que, devido à sua passividade,
acaba invadindo parte de seu cérebro, não a cognição.
O carnaval é a hora de “brincar” e toda uma técnica é colocada à
disposição das pessoas, para que elas troquem a realidade natural por
uma “realidade” artificial, mais excitante e mais alegre que aquela que
nos é dada pela natureza. As escolas de samba fornecem um espetácu-
lo de beleza, poder e riqueza que, provavelmente por ser falso, é mais
atraente do que os acontecimentos possíveis de serem alcançados no
nosso dia-a-dia. Desse modo, as dançarinas quarentonas dos bailes de
carnaval nos dão a ilusão do sexo, que pode ser mais agradável e ex-
citante do que o próprio.
Exclamamos que buscamos a verdade. Não sei! Sei que no car-
naval cultivamos e realizamos a falsidade. A natureza humana real é
abandonada, deixamos de lado o modo real de se fazer sexo, deixa-
mos de produzir, para nos consumirmos, passivamente, numa ficção.
Os mitos e rituais do carnaval, como os ingredientes citados, são inu-
meráveis, oferecidos à nossa vontade e a granel, nas ruas e nos diver-
sos meios de divulgação: músicas barulhentas que nos impedem de
pensar, danças comunitárias estafantes, bebidas, lançaperfume, bailes
gay, onde alguns homens transformam-se, na superfície, em belas mu-
lheres, fantasias de todos os tipos. Todos e tudo têm a mesma função:
viver o falso, vestir a fantasia para encobrir a dura nudez real e, prin-
cipalmente, alimentar os consumistas necessitados.
É madrugada. Em casa ou na rua, o “voyeur”, inocentemente,
sem decifrar o simbolismo do rito mítico, consome o conjunto de
imagens artísticas dos símbolos apresentados, não percebendo a in-
tenção do rito. Muitas vezes espera horas e horas o fim do ritual para
retornar à cena erótica propriamente dita, que havia sido incorporada
e desaparecido na dança do carnaval. Mas esta não chega nunca...
Como é bom e terapêutico o carnaval.

196
A ÚLTIMA LEMBRANÇA

Eu era ainda criança, quando fui acordado, naquele início de


manhã do dia 18 de novembro, pelo ruído preguiçoso e monótono
das gotas de chuva que, insistentes, tentavam penetrar através dos
vidros da janela. Saí do meu torpor ao perceber que algo de anor-
mal acontecia fora do quarto. Sussurros incompreensíveis alcançaram
meus ouvidos. O que estaria acontecendo? Amedrontado e curioso
saí rápido do leito buscando uma resposta. Assustei-me! A casa estava
cheia de parentes e vizinhos, alguns chorando, abatidos, conversando
entre si.
Sem ainda decifrar o que se passava, conduziram-me rapidamen-
te ao quarto onde ele estava acamado há meses. Meu dever, naquele
momento, era dar-lhe o último adeus, o abraço de despedida. Os ou-
tros irmãos já tinham cumprido esse ritual. Confuso, aproximei-me
do seu leito e pude observar sua respiração ofegante através das con-
trações desordenadas e custosas dos músculos do tórax e do pescoço
que, teimosamente, tentavam levar ao seu debilitado organismo um
pouco de oxigênio. Percebi, com olhos de ternura e pavor, que meu
pai estava se acabando. Ele agonizava.
No quarto escuro, as janelas fechadas, invadido por pessoas
desesperançadas, pairava um terrível silêncio. Colocado diante dele,
abraçamo-nos sem nada pronunciarmos. Automaticamente, ele res-
pondeu à minha despedida já com grande dificuldade, colocando seus
magros e fracos braços em torno do meu ombro de menino assustado.
Sua respiração estava acabando.

197
Meu pai continuou lutando contra a morte até às 15 horas daque-
le dia. Lá fora, a chuvinha miúda e cansativa transformou-se, repenti-
namente, numa violenta tempestade. Ventos fortes e nuvens escuras
formaram-se. O silêncio existente no quarto foi quebrado quando ele
se despedia desse mundo. Nesse momento, relâmpagos e trovões ex-
plodiram no ar. Em seguida caiu uma pesada chuva, bonita e triste.
Emudecido no meu canto, abafado e sozinho no meio da multi-
dão, assistia, pela primeira vez, à morte de alguém. Imaginei que meu
pai estava viajando, feliz por ter a companhia da tempestade, que ele
tanto amava. A partir daquele momento, minha vida mudaria para
sempre sem a sua presença física.

198
MERGULHO NO PASSADO:
UMA HISTÓRIA VERDADEIRA

Advertência à Guisa de Introdução

Essa história me foi contada, portanto, tentarei descrevê-la da


maneira como a ouvi. Por isso, todos os relatos que serão descritos
abaixo são de exclusiva responsabilidade do jovem narrador.
Este cursou a Faculdade de Medicina há muitos anos, como inú-
meros outros médicos, se é que os colegas mais velhos ainda se lem-
bram. As cenas selecionadas e narradas por ele, as interpretações e
críticas feitas às pessoas e aos costumes da época, bem como seu pon-
to de vista, de que algumas vezes discordo, são percepções formadas
por sua mente carregada de energia, mas ingênua que, ao começar o
curso médico, ao chocar-se com o complicado mundo dos adultos,
aos poucos foi perdendo as belas ilusões adquiridas na infância. Ele,
como seus colegas, por acaso decidiu ser médico, por acaso nasceu e
passou no vestibular num certo ano. A fatalidade existente na vida de
cada um dos jovens levou-os a entrarem juntos na faculdade, permitiu
a formação de um grupo coeso, anteriormente desagregado.
Eu, como narrador do narrador, esforcei-me o quanto pude para
descrever fielmente o que me foi contado, quase que diariamente, ao
pé do ouvido, por esse jovem estudante. Preservei intactas também
suas explicações acerca dos fatos ocorridos durante seu curso médi-
co. Entretanto, observei, e vocês verão que tenho razão, que ele pró-

199
prio, algumas vezes, duvidou das interpretações simbólicas que deu
aos eventos. Acho natural essa sua dúvida. Nem sempre fomos amigos
e concordamos em tudo. Já brigamos muitas e muitas vezes, em certas
ocasiões mal nos cumprimentávamos.
Examinando sua mente inquieta dia após dia, pois sempre es-
tivemos ligados, pude notar que ele jamais ficou preso a uma ideia
por muito tempo, pois estava sempre saltando de um lado a outro, à
procura de um pouso acolhedor.
Chamava-me a atenção sua incerteza ao tomar partido a favor
ou contra um ou outro modo de pensar, pois, geralmente, ao comba-
ter ou defender uma ideia, ele próprio descobria prontamente razões
contrárias às defendidas ou atacadas. Isso, segundo percebi, custou-
lhe por vezes o isolamento social e, ao mesmo tempo, estranhamente,
uma fusão e entendimento com todos os que pensavam diferente dele.
Assim é que, por sorte ou azar, não sei bem, foi levado a não fazer par-
te de nenhuma agremiação política, científica, cultural ou religiosa e,
ao mesmo tempo, internamente, aceitava e pertencia a todos esses
grupos heterogêneos. Desejo ainda comunicar-lhes que seu modo de
selecionar os fatos do seu mundinho acadêmico foi fragmentário e
parcial - por isso peço-lhes desculpas em nome dele - como deve ter
acontecido com todos jovens, pois cada um selecionava aquilo que
supunha ser “interessante e inesquecível”.
Possuía muita coragem e fé em si mesmo e, ao mesmo tempo,
como é comum nos valentes, pouca capacidade e competência para
diferenciar o mutável do imutável. Por isso mesmo trombou decepcio-
nado em vários muros intransponíveis. Suas características de jovem
aventureiro e impetuoso, por sinal muito humanas, até me atraíam.
Confesso com certo orgulho que devo a ele grande parte do que sou.
Ele foi meu instrutor e crítico. Dele nasceram, bem ou mal erigidas,
todas as ideias básicas ou princípios em que construí e organizei meu
raciocínio atual. Vivo, até hoje, encarcerado intimamente ao núcleo
desse jovem inquieto, meu preceptor diário e carregarei até o túmu-
lo suas marcas e emoções impressas em minha mente. Entretanto, sei
que algumas dessas nódoas indeléveis são muito primitivas e conscien-

200
temente preferiria viver sem elas, mas elas não me abandonam. Não
podia ser de outro modo. Às vezes lamento, outras vezes louvo, sua
vida desassossegada, leve e curiosamente ligada a mundos tão variados.
Muitas vezes imagino que poderia ser tudo tão mais simples... Será?
Lastimo sua completa incapacidade para se conduzir através de
um caminho sempre na mesma direção. Isso ele nunca conseguiu e
talvez jamais o desejasse.
Ele dirigiu sua vida em ziguezagues, ora para um lado, ora para
outro. Rodopiou e capotou várias vezes, fez curvas e mais curvas,
algumas imensas, em certas ocasiões, andou em círculos, sempre obs-
tinadamente, em busca do sonhado caminho orientador. Apesar dessa
procura teimosa, ele jamais encontrou uma saída nobre para escapar
e descansar desse labirinto onde se aprisionou. Acredito que vocês,
os simpáticos e ligados a ele como eu, o compreenderão. Talvez seus
amigos e colegas tivessem lutas semelhantes e batessem nos mesmos
obstáculos intransponíveis. Os inimigos, nem tanto. É possível que
alguns felizardos – ou seriam azarados? - tenham encontrado pronta-
mente o caminho acolhedor e definitivo. Ele jamais desejou isso. Como
seu aluno e admirador, nesse instante seu portavoz, quero de público
agradecer a todos vocês, que conviveram e ajudaram a formar a men-
te do meu tutor, exatamente no período mais crítico de sua vida. Ele e
vocês, estudantes desse tempo longínquo, assistiram, participaram e
viveram cenas e problemas semelhantes, sofreram e entristeceram-se,
regozijaram-se e consolaram-se juntos. O jovem narrador estruturou-
se ou, quem sabe, desestruturou-se, a partir dessa união grupal singu-
lar, desse contato estreito, formado através da soma das esquisitices
existentes em cada um. Foi nessa boa, ainda que imatura mãe, que
ele e muitos de vocês, como crianças amedrontadas, se apoiaram e se
sentiram protegidos ao buscar o carinho e a compreensão. Este gru-
po confortou e aliviou as “dores do mundo” que pesavam sobre sua
cabeça frágil de iniciante a adulto. Este jovem ligado profundamente
a esse grupo foi, e sempre será, o produto de cada um de vocês. Seus
colegas amigos, cada um a seu modo, imprimiram uma marca indes-
trutível. Nenhum jamais escapará dessa cunhagem misteriosa.

201
Talvez vocês, como ele, segundo especulei, tenham sofrido os
mesmos azares do preço das transformações. Percebi que, à medida
que ele foi alcançando degraus e conhecimentos mais elevados, mais
amedrontado ficou. A ignorância inicial, bem como a não consciência
desta, lhe dava segurança, falsa, eu sei, mas confortável, muitas vezes
procurada.
Ele nunca me confessou abertamente seu desejo de parar de
crescer, parar com tudo, regressar de vez ao tempo da incompetência
quase total, apesar dele saber que o caminho escolhido não tinha re-
torno. Entretanto inferia, nos seus rodeios, que é sua marca, dúvidas e
mais dúvidas, algumas vezes um desejo velado de voltar ao tempo da
inocência e da irresponsabilidade.
Parece-me que para cada pulo dado para o crescimento, para
cada estágio alcançado, mais ele se sentia aprisionado. Passou a ser
controlado pelas normas da classe, pelos clientes, pela família, pelos
deveres e compromissos diversos e, terrivelmente, pior ainda, pela
sua consciência aumentada acerca de tudo isso. Pouco a pouco, ele
foi abandonando quase tudo que amava. Os antigos e inocentes hábi-
tos e prazeres, altamente atraentes numa época, foram trocados, com
pesar, por obrigações pesadas comandadas por pressões externas. Ele
passava a não mais mandar na sua vida. Confessou-me, abafado, que
muitas vezes sentiu saudades da vida anterior, passando a ter inveja,
nos dias de maior desespero, da vida do pássaro cantando na lavoura
ou da abelha pousando nas flores. “É terrível!”, confessou-me: “Gosta-
ria de poder, ainda que por instantes, responder diretamente ao meio,
sem ser incomodado pelos pensamentos”.
Todos vocês, como ele, entraram na faculdade em busca de uma
sabedoria que não possuíam. Cedo, ainda na escola, ele verificou que
lá não havia este conhecimento. Continuou sua procura em campo
aberto, junto ao cliente e à vida cá de fora. Mas, depois de muita luta,
chegou à conclusão que este ancoradouro tão esperado e sonhado
não existia, apesar dele ser procurado por todos. Ora, como seria
bom se existisse algo em que pudéssemos, continuamente, nos apoiar
e ter certeza! Decepcionado, percebeu que não havia nada que re-

202
sistisse à ação da história. As verdades encontradas serão, no futuro,
mentiras, cada uma desmentida pela outra que dura algum tempo.
Tudo que numa época foi imaginado ser um porto seguro, numa outra
ocasião poderá ser um abismo perigoso. O jovem narrador agarrou-se
a uma ideia, a outra, a várias delas, acreditando estar protegido, caso
se apoiasse em várias ao mesmo tempo.
Mas sempre, mais tarde, percebeu que se prendia a mitos, a ilu-
sões, a estacas podres e ocas e novamente se sentia desprotegido,
afundava-se. As verdades aprendidas na escola eram mentiras, menti-
ras que todos acreditavam numa época, todas anunciadas com muita
fé. Agora, esse inconformado, condicionado pelo treinamento, conti-
nua teimosamente sua caminhada, como um rato que vai ao mesmo
bebedouro diversas vezes à procura da água que lá não existe, atrás de
uma verdade que possa servir de apoio às outras. Para viver, ele finge
desconhecer essa “verdade” lógica.
Mas ele, como vocês, tem que prosseguir sua caminhada em
direção ao fim, e assim, penosamente, aprendeu que a verdade é vi-
vida, ela pertence a cada um, num certo momento. Jamais poderá ser
ensinada nas escolas ou nos templos.
Naquele tempo, na velha escola de paredes altas e brancas e de
porões escuros, os pequenos e inseguros alunos ouviam respeitosa-
mente seus deuses do momento, afirmando suas verdades durante as
aulas magistrais. Os professores eram vistos por cada um dos alunos
espantados, como super-homens inatingíveis e invejáveis, possuido-
res de conhecimentos eternos. Hoje, tristemente, ao nos lembrarmos
de suas aulas, temos pena deles, de suas prisões e de seus obstinados
esforços para defenderem as ideias médicas da época, agora em desu-
so, perdidas no tempo, ridículas. Temos que prosseguir vivendo nessa
incerteza. Reconheço que ele aprendeu, lá, hábitos e costumes que
não mais servem para hoje, mas não deixo, às vezes, de ter inveja da
vida que ele me contou, daquele mundo sedutor cada dia mais distan-
te, que guardava seus encantos, prazeres, belezas e aromas simples.
Aprisionado até à alma ao estudante daquela época, vivemos, eu e ele
ao mesmo tempo, dois estilos de vida, às vezes em conflito.

203
Toda e qualquer queixa contra suas ideias, bem como contra
o ponto de vista adotado, deve ser encaminhada a ele próprio. Farei
tudo para que receba as críticas que porventura vierem. O narrador
atual, naquela época ainda um embrião, será um mero instrumento de
suas recordações.
Como suas histórias sempre me fascinaram e por isso gravei cui-
dadosamente boa parte de seus relatos, não foi difícil para mim repro-
duzi-las. Devido ao pequeno espaço, fui obrigado, embora contraria-
do, a cortar boa parte do anotado, que guardo carinhosamente para
outras ocasiões. Selecionei somente uma pequena amostra. Peço-lhes
desculpas por isso.

O Relato

Manhã de novembro. Um táxi levou-me até à Estação Rodoviá-


ria, em Belo Horizonte. Assentei-me na poltrona, espichei meus ve-
lhos pés magros, ainda fortes, no suporte, deitei-me e fechei os olhos.
Dentro do ônibus frio instalou-se o silêncio próprio de um grupo
cansado pelo passar do tempo. A algazarra inicial durou pouco e se
transformou apenas no barulho monótono do motor. Preso ao som
acolhedor e tranquilizante, despertei com a melodia “Carinhoso” que
estava sendo tocada no altofalante. Fechei os olhos para o presente,
pouco a pouco fui hipnotizado pelo som e silêncio.
Estava entrando naquele mundo que começara há muitos anos.
Senti que era essa a razão da minha ida: um mergulho gostoso ao pas-
sado distante, ao curso médico feito. Sabia que, agora, isso me dava
segurança e pesar, que essa volta estava supervisionada pelas nossas
experimentadas mentes, pelos novos conhecimentos adquiridos. Já
não éramos mais os jovens inocentes que fizeram e passaram no vesti-
bular para Medicina. Aos poucos, entrei em transe e penetrei naquele
tempo.
Estávamos nas vésperas do vestibular, mais precisamente numa
noite escura, feia e fria de fevereiro. Eu acabara de completar 19 anos.
A chuva que caíra por todo o dia havia dado uma trégua para que

204
pudéssemos sair de casa. Nesta noite realizávamos um compromis-
so começado há anos. Ali estávamos, jovens ambiciosos, lutando por
uma vaga na Faculdade de Medicina. Tentávamos dar o passo mais
audacioso na nossa vida de estudante. Todos aqueles caminhantes
inquietos e tensos se punham em torno do portão principal, ainda
fechado, do prédio.
Dali a pouco as portas seriam abertas para a realização do vesti-
bular. Todos tinham um só objetivo: conseguir uma vaga na escola.
Nos meses que antecederam as provas, todos nós estudamos
compulsivamente, durante os dias úmidos, tristes e chatos daquele
ano. O céu, durante três meses, talvez temeroso e nervoso como nós
acerca do risco da empreitada, solidário derramou continuadamente
filetes de lágrimas frias e brilhantes nos telhados esverdeados e sujos
das casas. A chuva miúda provocara nos livros e cadernos um insu-
portável cheiro de mofo que impregnara tudo. Apenas foram preser-
vados nossos neurônios que precisavam, através de grande esforço,
ser mantidos limpos e secos para realizarem seu papel. Eram eles que
deviam armazenar ordenadamente milhares e milhares de fatos e te-
orias, a maioria delas inúteis e que, durante o vestibular, fariam sua
última viagem, pois logo depois seriam jogadas no lixo eliminadas
para sempre.
Havia medo estampado nos olhos dos postulantes a um lugar.
Predominavam as dúvidas. Junto ao temor imperava também uma
alegria ou alívio, pois, se tivéssemos sorte, poderíamos expulsar as
detestáveis matérias que invadiram e dominaram nossas mentes. Es-
távamos na reta final, não havia mais tempo para aprender nada. Dis-
farçadamente, olhava espantado e amedrontado para os meus rivais
do momento:
— Aquele ali tem uma grande cabeça, sinal de inteligência...
uma vaga será dele. E aquela mulher morena de cabelos pretos cache-
ados? Bonita. Estranho... desejando entrar na Faculdade de Medicina?
Será que passa?
Examinava um a um os “inimigos da noite” e construía julgamen-
tos acerca deles.

205
Alguns brincavam desajeitadamente para espantar o medo, ou-
tros fumavam, mas todos tentavam camuflar a apreensão. Eram pou-
cas as vagas para muitos candidatos. Diziam, sem muita certeza, que
certos lugares já estavam reservados para alguns poucos escolhidos e
apadrinhados de sempre.
Abriram-se as portas e, vagarosa e preguiçosamente, os candida-
tos foram procurando seus lugares nas salas.
Pareciam tentar, no seu passo lento, adiar o inicio da decisão.
Assentei-me no lugar indicado. Tirei a velha caneta Parker 51 do bol-
so do surrado e largo paletó cinza, que servia para disfarçar minha
magreza de 50 quilos, meus ossos fortes e estufados, cobertos por
uma pele sem rugas e sedosa de atleta amador desnutrido. Tremi ao
assinar a lista que passava de mão em mão. A sala era comandada por
um velho professor da Faculdade, fungando sem parar através de suas
largas e proeminentes narinas. Isso punha-me irritado.
— Quem seria ele? Na certa um professor famoso. Será que al-
gum dia eu, um “pé rapado” qualquer, desajeitado, poderia estar no
lugar por ele ocupado e dando provas para futuros alunos? Oh! que
bom seria!
Três dias de provas escritas: Biologia, Física e Química. No dia
da prova de Física, uma violenta tempestade caiu sobre a cidade. As
luzes se apagaram e ficamos às escuras por mais de uma hora, coman-
dados pelo velho, e agora, para minha decepção, fraco professor. Essa
era a prova que eu mais estava preparado. Entretanto, com as trevas,
a conversa e a cola foram gerais. Esperei que a prova fosse anulada.
Não foi. Começaram aí, ainda muito cedo, minhas transformações na
maneira de ver o mundo dos adultos da elite. O mundo construído e
sonhado anteriormente começava a quebrar-se, e continuaria, através
do confronto com a nova realidade, a despedaçar-se.
Depois, começaram as provas orais. Na de Botânica, fui exa-
minado por um velhinho simpático. Via todos os professores velhos
como sábios e obesos, ao contrário dos candidatos magros, jovens e
com cara de débeis mentais. Eu nada sabia acerca dessa prova, pois
não havia essa matéria no curso científico. Lembro-me bem de sua voz

206
cavernosa e fraca ao chamar-me. Tive pavor naquele momento. Olha-
va atraído para a porta de saída do grande anfiteatro onde se realizava
a prova, imaginando poder passar correndo por ela o mais depressa
possível. Entretanto, como um réu diante do juiz, automaticamente
caminhei em direção à grande mesa, cheia de plantas e folhas soltas,
atrás da qual parecia se esconder o professor, na certa esperando um
deslize meu, pronto para me condenar.
Olhou-me fixamente nos olhos, passou suas mãos manchadas de
pintas negras sobre o bigode e disse-me, num tom que jamais decifrei:
— O senhor tem um nome e sobrenome importantes...
Não descobria por que ele falara. Qual a importância? Por ter
coragem de tentar medicina? Por ser um nada? Mas não havia tempo
para pensar. O inquérito estava apenas começando. Ele devia estar
querendo distrair-me e pegar-me. Mais tarde, vim a saber que na facul-
dade havia professores, que nunca foram meus parentes, nem amigos,
que tinham sobrenomes iguais aos meus. De fato, eu era um “João
Ninguém”, fazia parte do grupo de pobres, dos filhos de viúvas, como
disse muito bem um da turma. Sem nome e sem poder para ajudar-
me, esperava a sorte e a simpatia do velho professor. Não tive outra
alternativa a não ser, engasgado e trêmulo, balbuciar:
— É... certo... espero honrar meu nome.
— Qual seria esse nome? - perguntei-me, confuso. Não sabia.
O professor, lentamente, separou uma planta que estava den-
tro de um pequeno vaso e perguntou-me, com um tom de voz até aí
amistoso:
— Classifique essa Salvina.
Acredito, até hoje, que o nome que ouvi foi esse mesmo. Nunca
quis saber ao certo nada acerca desse maldito vegetal, se é que ele
ainda existe. Tonto, assustado, olhei para a planta... percebia que ja-
mais encontraria uma saída. Olhei novamente para o vaso, fingia estar
pensando quando, na realidade, nada pensava. Sem saída, fixei meus
olhos no vaso uma vez mais e, sem outra coisa para fazer, respondi
com uma voz em falsete, lá do fundo, fazendo tudo para que ela não
fosse ouvida:

207
— É... é... é uma planta... aquática! - falei o final, fingindo firmeza.
— O quê? Sua expressão e voz agora já não eram as de antes.
Respondi rápido:
— Não! Foi brincadeira, o senhor a colocou dentro d’água. Eu...
A partir daí fui me arrastando no exame, já não era mais senhor
dos meus atos. Passei a fazer tudo automaticamente, entreguei meu
destino a qualquer Deus que porventura existisse, estivesse disponí-
vel e tivesse coragem para ajudar-me naquela hora maldita.
Como a Física era o meu forte, entrei resoluto e confiante para
a prova oral. Lá estava, como sempre, um velho careca, encurvado e
magro, cara fechada, que mais tarde fiquei sabendo que era professor,
não de física, mas de dermatologia. Coisas do passado. O exame, ou
melhor, o inquérito, começou. Não concordávamos. Ele não tinha es-
tudado nos livros de Física adotados no curso científico. Só mais tarde
descobri que seus conhecimentos de “física” foram obtidos através
da leitura do almanaque da Saúde da Mulher que, lamentavelmente,
naquele ano, por falta absoluta de tempo, não pude ler. Ele, emperti-
gado, com grande orgulho e sabedoria, me fez duas perguntas:
— Como você sabe que uma água está fervendo na panela? O
que é balança doida?
As respostas não eram as óbvias e descritas nos livros de Física,
eram da “física” existente na mente dele, as do almanaque. Eu devia,
como adivinho, descobrir o que ele desejava e, infelizmente, não adi-
vinhei. Dancei nesta.
Acordei ao ouvir a voz calma de uma colega, que se sentara ao
meu lado no ônibus. Ela, durante o vestibular, havia despertado a
atenção do meu tutor logo após o término das provas, quando ca-
minhava ao lado do Parque Municipal, esguia e vagarosamente, em
direção à sua casa. A colega do ônibus, ao contar-me um caso atual,
obrigou-me a retornar ao presente, à turma dos idosos, largando por
minutos a turma antiga, a dos jovens, muito mais atraente e animada.
Eu não imaginei que ela se tornaria minha colega, tinha cara de crian-
ça. Interessado em retornar ao ano do vestibular, ansioso pela volta,
procurei, após ouvi-la, cortar delicadamente o assunto. Eu desejava

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conversar com a colega antiga. Vim ao encontro para isso, para es-
conder a realidade atual e encontrar a daquele tempo, quando ainda
existiam vários caminhos a seguir.
Agora, os acontecimentos, uma vez cristalizados pelos anos, não
mais permitiam escolher novas opções, os espaços já tinham sido ocu-
pados. Percebia claramente que nos encontros procuramos esconder,
de todos os modos possíveis, a penosa realidade experimentada, os
planos e sonhos imaginados na juventude, que se transformaram em
decepções, em nada, vencidos que foram pelos fatos crus e dolorosos.
Inspirado pelo ônibus, precisava voltar, o mais rápido possível, às nar-
rações do jovem que vivera num tempo em que ele podia imaginar e
planejar o que desejasse. Hoje, ele se acha preso à história construída
por ele próprio, composta por fatos que preferiria não ter usado na
edificação. Mas sentia saudade daquela época em que tinha poucos
fatos para prendê-lo, hoje ele os tem de sobra. Antes, sua vida era um
confronto vazio com o mundo real, com poucas e ingênuas teorias
acerca dele. Hoje, aos poucos, querendo ou não, transformou-se numa
outra pessoa, através das lambadas recebidas na face, produzidas pelos
acontecimentos indesejáveis. Fingi dormir. A colega falava mais baixo
e bondosamente calou-se, sem entender minha sonolência fingida.
O vestibular terminou: agora, impacientes, esperávamos o resul-
tado. Nada mais havia para ser feito. Passei ou não? Essa era a pergunta
que ocupava as mentes ansiosas e sofridas. Foi um longo período de
expectativas, que me colocaram mais tenso ainda. Evitei as conversas
de sempre, pois não queria ouvir a boataria. Um dia a notícia temida e
esperada: saiu a lista dos aprovados! Vagarosamente, para adiar o im-
pacto, fui vê-la. Entrei timidamente no porão escuro e mal iluminado,
local onde, naquele tempo, funcionava a secretaria da Faculdade de
Medicina. Acima da entrada do porão, dos dois lados, saíam duas es-
cadas laterais, que conduziam ao saguão, entrada principal da acanha-
da escola. O pequeno cômodo estava repleto dos companheiros de
infortúnio que se aglomeravam em torno da única lista colocada. Uns
liam em voz alta, própria dos desinibidos, os nomes dos aprovados e,
por que não, com certo orgulho comentavam e conjeturavam acerca
dos que não haviam passado.

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Alguns saíam do tumultuado porão, pulando e urrando alegre-
mente, outros, ao contrário, cabisbaixos e com lágrimas nos olhos,
caminhavam lentamente para o espaço vazio e acolhedor do pequeno
jardim existente em frente da escola.
Chegou a minha vez. Sem o desejar, fui empurrado pelos de
trás, até ter a lista sob meus olhos amedrontados. Agora teria que
encarar e clarear, querendo ou não, minhas dúvidas. Passei ou não?
Ainda tentei evitar fixar meus olhos na lista ameaçadora e perigosa.
Não tinha mais jeito. Fui lendo com o coração oprimido, a respiração
ofegante, suando e quase desmaiando de terror. Passei por vários no-
mes, o meu nada. Continuava minha procura, não encontrava nada.
Minhas esperanças estavam desaparecendo... um nome, mais outro,
esse é conhecido, esse não, puxa, até fulano passou, só eu não? Ab-
surdo! Por fim, lá embaixo na lista, quase no fim, entre os últimos, o
visualizei. Eu! Passei! Urra! Segurei rápido e envergonhado minha ex-
pressão emocional repentina, que aliviava minha angústia mas, como
bom itabirano e mineiro, saí do porão orgulhoso e de cabeça baixa,
andando lenta e pausadamente, disfarçando meu encantamento com
a mudança de status. Estava sem ar, mas aliviado. Não precisava ter
vergonha de encarar a família, que me esperava em casa, e acreditou e
investiu nesse jovem atirado e confuso. Mas havia ainda um pesadelo.
“E agora José? A festa acabou...”, onde conseguir o dinheiro para o
curso e os caros livros?
Tonto como se tivesse levado uma violenta e pesada paulada na
cabeça, - como levei durante um tumultuado jogo de futebol, - cami-
nhei sem rumo e sem saber o que fazer, triste e alegre ao mesmo tem-
po. Também, com umas notas daquelas! Que vergonha! Andei cam-
baleando, bêbado, lembrei-me do dia que bebi mais do que devia, ao
ser campeão de futebol juvenil no meu bairro. Peguei uma condução,
qualquer uma servia, pois não sabia onde queria ir. Fui parar na Ave-
nida Getúlio Vargas. Desci, caminhei mais e, automaticamente, voltei
à Faculdade de Medicina. Vi-me, desolado, passando novamente por
baixo das velhas escadas. Entrei outra vez no porão. Queria confirmar
minha colocação.

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Olhei, agora mais calmo, para o quadro com a lista. Havia pou-
cos candidatos à volta. Estava confirmado, de fato havia passado. Era
verdade, mas não como esperava. Saí do porão decidido e, de repen-
te, retornei ao que sempre havia sido, animado e corajoso. Já não
era o medroso estudante do científico. Agora sabia claramente onde
queria chegar. Subi rápido e confiante as escadas, pois sendo agora
um primeiranista de Medicina, e não mais um candidato a este curso,
tinha outros direitos: reclamar minhas notas. Liberto, convencido e
encorajado por essas ideias com o novo posto alcançado, fui até o
diretor da Faculdade de Medicina, tentando uma audiência com ele.
O velho e cansado diretor recebeu-me pronta e gentilmente. Fui di-
reto ao assunto:
— Examinei a lista dos aprovados. Imagino que há um erro nas
notas. Merecia uma outra, coisa melhor.
Ele olhou-me com ternura, passou suas suaves mãos sobre meus
ombros, e imediatamente deu ordens à secretária para subir minhas
notas para examiná-las. De posse delas, olhou-as uma vez, mais outra
vez, fixou seus olhos complacentes nos meus e disse-me espantado:
­­— Mas você foi aprovado! Não está feliz?
— Eu sei, mas vim aqui para reclamar das notas, fiz provas boas...
— Ora meu filho, vá para casa, comemore com seus amigos e
família seu sucesso...
Envergonhado com o fracasso da missão, ainda irritado com as
notas, saí apressado da sala e voltei a caminhar pelas ruas. Só cheguei
a casa à noite. Dei a notícia à família. Penso que tinha a fisionomia
tão sem graça, desapontada e sem alegria que não produzi - ou não
percebi - entusiasmo nos familiares. Talvez eles, confiando em mim
mais do que eu próprio, não esperassem outro resultado a não ser
aquele. Este foi mais um das dezenas de outros aborrecimentos que
enfrentaria na minha vida de estudante do curso de Medicina, que
ora estava iniciando. Entretanto, como todo início, também este teve
seus encantos e, ao mesmo tempo, seus desencantos.
Vejo-me andando pelas ruas de Belo Horizonte durante o tro-
te, com toda minha energia, rodeado de colegas fortes e jovens, de
peles lisas e corpos magros e esbeltos. Devido à minha magreza, fui

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transformado, após uma boa dose de cachaça, em “Miss Sífilis”. Meu
corpo foi enrolado em gazes, esparadrapos e tintas diversas. Outros,
mais esbeltos, viraram lindas mulheres. Um colega esnobe fantasiou-
se de palhaço, o que lhe assentou muito bem, um outro vestiu-se
de baiana desengonçada, outro de pirata, etc. Desfilamos orgulhosa-
mente pela Avenida Afonso Pena: foi nosso dia de glória e esperança
em conseguir namoradas melhores que as antigas. À noite, no DCE
instalado na velha sede da Av. Afonso Pena, o Magnífico Reitor falou
para o seleto grupo de garotos entusiasmados e ingênuos acerca do
que é uma Universidade. Ainda embriagado pela cachaça e pelas fes-
tas, nada assimilei do que foi dito. Percebi, pela sua empolgação, que
ele deve ter falado bonito. Estava, sem querer, forçado a virar adulto.
Como é difícil!
Ainda ouvia o tom de voz exaltado e belo das frases do Reitor,
quando fui despertado pela estridente e nada melodiosa voz de um co-
lega, avisando-nos de nossa chegada à cidade onde iríamos almoçar.
Chegamos. A fome incomodava nossos organismos, mas nestes
não mais habitavam os jovens famintos de antigamente. Não mais con-
seguimos sentir o prazer do sabor das laranjas do simpático e gago
Tião Laranjeiro. Naquela época, qualquer “feijão com arroz” era in-
gerido com prazer e voracidade. Hoje temos diante de nós alimentos
sofisticados, entretanto, procuramos em vão os jovens esfomeados de
antes para saboreá-los, e não os encontramos.
Na minha mente ainda morava o terrível, mas talvez bondoso
para muitos, professor de anatomia, fumando, dando sua primeira
aula para o curso médico, na sala comprida, escura e estreita. Subi
à procura de um lugar, não havia cadeiras, e sim degraus, onde me
sentei, espantado e curioso, com o “encanto do início”.
O carrancudo professor ia dar a primeira aula. Havia uma expec-
tativa geral, todos estavam atentos. Diante do professor, estendido na
maca suja e enferrujada, descansava um cadáver frio, triste e magro,
cheirando a formol. Ele fora levado até ali por um servil bedel que,
segundo fiquei sabendo posteriormente, cantava os alunos mais bo-
nitos, ajudando-os a escolher as melhores “peças” para estudar. Não

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fiz parte dos escolhidos. Sem decodificar acuradamente o que via,
confundi o cadáver com um boneco de cera e, desse modo, almocei
tranquilo naquela tarde. Só depois fiquei sabendo que o “boneco” era
um ex-homem, que teve antes uma vida, um nome, uma mãe, talvez
pai, alegrias e tristezas, como eu...
O barulho próprio do início das refeições atraentes despertou-
me do sonho. Fui chamado pelos colegas, que já começavam a comer
o tiragosto e a tomar vinho. Entretanto, mesmo diante do grupo, após
o efeito do primeiro gole, continuei a enxergar as aulas soníferas do
professor de Histologia e Embriologia, gordo, pequeno, pegajoso e
monótono. Durante essas aulas, dormíamos, principalmente quando
as cortinas eram fechadas para mostrar as lâminas. Um a um cada
professor foi aparecendo na minha mente.
O almoço estava sendo servido. Fui obrigado a abandonar o
passado para retornar ao presente, pois precisava comer alguma
coisa. Na sala barulhenta, com as mesas abarrotadas de iguarias, os
antigos colegas comiam, contavam piadas e casos médicos. O gru-
po alegremente transformava o presente no passado, na juventude
perdida no tempo, voltava aos sonhos que não mais podemos ter.
Partimos no ônibus em direção ao nosso destino. Recostado, ajudado
pela leve embriaguez ocasionada pelo vinho, avidamente regressei à
faculdade...
Lá estava o cadáver estendido sobre a mesa fria, tendo na sua
orelha o número 33. Ele não tinha mais nome nem identidade, só um
número. Agora sua residência era a sala de anatomia.
Seus olhos negros embaçados, distantes, sem expressão, in-
crustados no seu rosto esquelético, olhavam-me com ternura e com-
preensão. Vendo-o todas as manhãs, recebendo ensinamentos dele,
ficamos amigos, ligados intimamente. Sentíamos sua falta nos fins de
semana. Sabíamos que ele estava sendo explorado, e que em troca
pouco lhe era dado, talvez respeito e agradecimento internos. Iden-
tificados com ele, resolvemos batizá-lo carinhosamente com o nome
de Gaspar. Assim começávamos a descobrir, com mais clareza, os
desníveis sociais, o sofrimento de uns em benefício de outros, a gran-

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de ajuda do indigente para nossa aprendizagem. No salão grande,
cheio de janelas altas e antigas, estavam as outras mesas. Lá descansa-
vam corpos desconhecidos de ex-homens.
Aos poucos, estava envelhecendo, vinte anos, vinte e um... Sa-
bia que o tempo das brincadeiras, da irresponsabilidade estava aca-
bando, faltava pouco para isso. A tristeza começava a dominar e inun-
dar nosso corpo. No olhar de todos via-se o fantasma da formatura,
como agora vemos, receosos, o da velhice. Havia pressa, e ao mesmo
tempo medo, de terminar o curso. A maioria arrumou uma namorada
firme no quarto ou no quinto ano, ficava noivo no sexto e casava no
primeiro ano da profissão. Foi a essas mulheres jovens, animadas,
corajosas, belas e atraentes que a maioria dos colegas se agarrou,
como crianças apavoradas e desamparadas. Uma vez protegidos, eles
tiveram forças para enfrentar o ainda desconhecido e perigoso mun-
do médico. Estes felizardos seguiram em frente com menos temor.
Os isolados, sem ninguém para os amparar, tiveram que se apoiar nas
próprias e trêmulas pernas.
Com a proximidade da formatura, cada um procurava ganhar
conhecimentos também fora da escola: o Hospital São Vicente de
Paula, velho, com seu teto alto, frio e de grandes enfermarias, a antiga
Santa Casa, com suas paredes descascadas e comidas pelas mulheres
grávidas, anêmicas e desnutridas que lá eram internadas, o Instituto
Raul Soares, com seu laboratório de vanguarda, alguns loucos inter-
nados e a maioria fora dele, o Hospital Militar e finalmente as diversas
cadeiras da escola que abrigavam alguns com mais sorte.
Eram poucas as opções. Cada um fazia o que podia para aprender.
A formatura aconteceu no dia 8 de dezembro na Secretaria de
Saúde. A tarde estava fria e chuvosa, relembrando o vestibular já quase
esquecido. A emoção, que era enorme, talvez maior do que a do ves-
tibular, impediu-me de memorizar o que foi discursado. Lá estavam os
ex-estudantes assentados nas desconfortáveis cadeiras colocadas no
palco, agora representando, para a plateia de amigos e familiares, o
drama dos médicos recém-formados. Tremi ao ouvir meu nome e re-
ceber os abraços dos homenageados. Cada um no seu canto, cada um

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na sua dor e solidão. Terminávamos uma jornada, o que passou, pas-
sou. Agora caminharíamos à procura de um sonho. Até onde iríamos?
Ninguém podia saber. Quais fracassariam? Ninguém sabia, ninguém
falava: todos tinham medo. Mas, como sempre, “todo início tem seu
encanto”. Agora a vida nos pertencia, faríamos dela o que quisésse-
mos, não mais seríamos julgados pelos professores. Estava novamente
enganado. Agora enfrentaríamos examinadores mais severos: o clien-
te e a nossa terrível consciência. Agora nosso erro poderia ser fatal,
sem retorno, não mais teríamos a salvadora segunda época.

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