Você está na página 1de 53

1

2
ÍNDICE

A menina do quarto ................................................................ 05


Hora errada, lugar errado ...................................................... 15
O Segredo ................................................................................. 27
Guerra ao Inferno ................................................................... 44
Refexo no Espelho .................................................................. 50

3
Apresentação

Olá, me chamo Orly Júnior, mas por costume atendo pelo meu
nome artístico Junior Vondrake.

Sou escritor. Escrevo desde pequeno, histórias produzidas por


minha imaginação (ah... como é bom imaginar) ou então
baseadas em coisas me aconteceram ou aos outros.

Embora eu não seja um escritor que tenha livros distribuídos


por editoras, não evito dizer que sou escritor. Não tento me
iludir, muito pelo contrário, mas sei perfeitamente que a arte da
escrita é um dom e eu nasci com este dom. Eu apenas não fecho
contrato com editoras para que comercializem meus escritos.

Quer saber se algum dia eu desejo ter algum livro distribuído


por alguma editora? Sim. E posso dizer que não é lá tão difícil.
Mas antes disso (na verdade, sempre, paralelamente à isso),
desejo desfrutar do meu pouquíssimo tempo livre para escrever
e do meu direito de contar histórias. Assim não precisarei me
prender a prazos ou a gêneros que só têm intuito de vender e
sim ao gosto pela literatura, e o amor pela escrita e assim por
“no papel” histórias com o compromisso de entreter ou até
educar de alguma forma, mas no geral, histórias com o intuito
de serem ótimas por que o escritor aqui ama o que faz.

Bem, é isso. Espero que você se divirta e tenha uma ótima


leitura.

Júnior Vondrake

4
1 - A MENINA DO QUARTO

Há dois dias eu tinha combinado com minha irmã


Marlene de dormirmos na casa de seu namorado, Elias.
Tínhamos comprado ingressos para um show de rock
perto da casa. No outro dia eu ia dar aula à tarde. Logo
ficaria melhor eu dormir lá com eles para não ter que
voltar para casa, no bairro onde eu morava, que era um
pouco longe, e depois voltar para o bairro onde ele
morava para dar aula. Sem contar que eu estaria
completamente quebrada.
Era uma noite chuvosa, de nuvens pesadas e enegrecidas.
A chuva estava forte e ventava muito. Eu particularmente
tinha ficado muito triste por que sabia que se não estiasse
no outro dia, não teria show algum e eu era fã da banda,
há mais de dois meses contava com aquele show, não
suportava a idéia de perder a oportunidade de ver meus
ídolos de perto por causa de uma chuva idiota.
Minha irmã também ia comigo. Elias só ia nos levar e nos
trazer para o show, caso houvesse. Então, sai do colégio
onde lecionava, e fiquei esperando por eles no
estacionamento, já praguejando a tempestade que insistia
em estragar meus planos.
- Oi sua vaca? – me cumprimentou minha irmã assim que
chegou.
- Vaca é você que trouxe essa chuva idiota para não me
deixar ir ao show de amanhã – respondi dando um abraço
nela. Não nos víamos fazia duas semanas e por sermos
5
muito ligadas uma à outra dava a impressão de que
tínhamos nos separado há anos.
- Calma Elisa, fica fria. Essa chuva é temporária. Pode ter
certeza que amanhã vocês duas estarão no meio de um
bando de idiotas vestidos de preto pulando feito... idiotas
– falou Elias, caçoando de mim e de Marlene.
Conversamos o trajeto inteiro até seu apartamento.
Obviamente falávamos besteiras, nos insultávamos
carinhosamente e eu cada vez mais me preocupava com a
chuva e com o show.

Assim que chegamos levei um susto. O prédio onde Elias


morava parecia ter envelhecido uns trinta anos desde a
última vez em que eu estive lá. Estava caindo aos pedaços.
Muitas janelas com os vidros quebrados, lixo espalhado ao
redor com cães sarnentos rasgando as sacolas em busca de
alguma coisa para comer. Um verdadeiro cenário de filme
de terror.
- Nossa Elias! Que é isso? Seus vizinhos não estão
remunerando o síndico, não é? – perguntei de forma
irônica.
- Bem, sim e não. Mas não se engane! O prédio parece
velho, mas ainda está em perfeitas condições.
- É, tô vendo.
Saímos do carro, estacionado na frente do prédio, e
rapidamente subimos. Ele tinha razão. Na frente estava
uma verdadeira desgraça, mas internamente parecia
ótimo. As paredes e o chão limpos, boa iluminação,
6
escadas em perfeitas condições, um luxo, muito diferente
da fachada que mais parecia a de uma pocilga.
- Você fica ou na sala ou no outro quarto no fim do
corredor – falou ele, batendo no bumbum da minha irmã,
como um convite para irem transar feito loucos, alias eu
sabia que era isso que eles fariam a noite toda.
- Vê se não geme muito alto irmãzinha, não quero acordar
muito tarde – falei sorrindo para ela.
Fui para o quarto. Atravessei um pequeno corredor que
continha entradas para a cozinha, banheiro e o quarto
onde eu fiquei. O quarto era pequeno. Só tinha uma cama,
um pequeno armário e um tapete avermelhado que cobria
parte do chão. Além da janela que dava para a rua ao lado
da entrada principal do prédio.
Joguei minha mochila com minhas roupas sobre a cama e
me dirigi ao banheiro para tomar uma ducha antes de me
deitar. Mal tinha chegado perto da porta do banheiro e já
podia ouvir os gemidos devassos de minha irmã trepando
feito uma vagabunda com o namorado.

Arranquei a roupa do corpo de me meti debaixo do


chuveiro. A água caiu sobre mim como um homem,
daqueles que uma mulher sonha quando quer se entregar
ao amor e ao prazer.
Estava deliciosa e eu, então, aproveitei para curtir o banho
passando as minhas mãos pelo meu corpo. Me permiti
sentir a água escorrendo por ele, cada centímetro
enquanto acariciava meus seios com uma mão e bolinava
7
minha vagina com a outra. No fundo queria estar no lugar
de minha irmã, não com seu namorado é claro, mas em
seu lugar sendo penetrada, beijada e lambida por um
homem bem gostoso. Eu estava muito precisando disso, já
há algum tempo me dedicava demais ao meu trabalho e
tinha me esquecido de me dedicar um pouco ao meu bem
estar emocional.
Peguei o sabonete e passei a esfregar meu corpo bem
vagarosamente, com vontade de senti-lo, de ter prazer.
Esfreguei minha vagina valorizando as passadas de meus
dedos, cada vez com mais freqüência com vontade de
gozar e tinha realmente me perdido numa sucessão de
pensamentos e imagens eróticas e pornográficas quando
de repente escutei algo. Abri os olhos e tive a nítida
impressão de ter ouvido alguém sair do banheiro
sorrindo.
- Mas que merda Marlene, vai foder com Elias e me deixa
tocando minha siririca em paz, porra! – falei irritada e um
pouco envergonhada.
Como o clima tinha sido quebrado, adiantei meu banho e
rapidamente me envolvi na toalha e voltei para o quarto,
praguejando. Estava com uma vontade imensa de ir ao
quarto deles e bater na porta com alguma desculpa
esfarrapada e atrapalhar o que estavam fazendo, mas
preferi deixar para outro dia.
Me enfiei dentro de minha camisola e cai na cama. Estava
cansada por causa do dia de trabalho e não demorou

8
muito para que meus olhos se fechassem e eu caísse no
sono.
No meio da madrugada, acordei.
Estava com muita sede e então decidi ir até a cozinha
beber um pouco de água. Sentei-me na cama, antes de me
levantar e levei um susto: Tinha uma menina dormindo
no chão, toda encolhida.

Esfreguei os olhos para ver se não estava vendo coisas,


mas não estava. Ela estava lá, deitada, encolhidinha,
dormindo, tentando se proteger do frio.
Era mulata. Tinha os cabelos encaracolados ou crespos,
não dava para ver direito e vestia um vestido cinza, meio
esfarrapado e estava descalça. Estava virada numa direção
contrária.
Fique me perguntando quem era ela. Porque nem Marlene
e nem Alias tinham me falado dela e porque não tiveram a
coragem de colocá-la na cama, deixando a pobre coitada
dormir no chão?
Então, me levantei e fui até ela. Não queria acordá-la e a
primeira coisa que fiz foi pegá-la no colo e pô-la na cama,
depois a tampei. Ela era tão leve, tinha apele macia e
exalava um perfume delicioso, meio adocicado. Ela nem
chegou a acordar.
Fui até a cozinha, cheia de perguntas sobre quem seria
aquela menina, bebi minha água e então me dirigi à sala
para dormir no sofá.

9
- Ué, veio dormir no sofá pra que? Não vai me dizer que
queria ouvir nossos gemidos de prazer? – disse Elias,
dando uns tapinhas na minha bunda para me acordar.
- Por que vocês não me falaram que tinham uma menina
aqui? Coitada, ela estava dormindo no chão. Coloquei a
pobre coitada na cama e vim para o sofá. É filha da
emprega?- questionei, mal conseguindo abrir os olhos.
Elias e Marlene se entreolharam confusos.
- Menina? Que menina? Tem menina nenhuma aqui não.
Ta doida? – respondeu Elias.
- Que menina Elisa? - me perguntou Marlene.
- Ah, ta bom. Vão me dizer agora que não tem menina
nenhuma aqui e que eu vi um fantasma?
Me levantei do sofá, toda confiante de que acabaria com
aquela farsa rapidamente, e os conduzi até o quarto e me
surpreendi mais uma vez.
Não tinha menina nenhuma sobre a cama.
- Que menina, Elisa? – perguntou Elias, ironicamente.
Eu me virei para eles com cara de poucos amigos e disse:

- Olha se for algum tipo de brincadeira é bom parar.


Trabalhei a semana toda, to cansada, quero aproveitar o
show de hoje, e espero que não chova como ontem, e não
to com saco para brincadeira de mal gosto não.
Eles se entreolharam mais uma vez.
- Elisa, é sério, não tem menina nenhuma aqui. Você deve
ter sonhado. Isso acontece. Ta trabalhando muito e é
normal ver coisas – me disse Marlene.
10
Aquilo veio à minha mente feito uma marretada. Insisti
mais um pouco, mas depois vi que falavam a verdade.
Não tinha menina nenhuma morando com Elias. Eu tinha
dado as descrições dela, falei até de seu perfume e tudo o
que ouvi foi:
- Você ta é doida, isso sim!
Tive que agüentar chacota de Elias e Marlene o dia inteiro
até a hora do show sobre aquela menina. Ficava me
perguntando se eu não tinha visto coisas, se não tinha
sonhado ou se realmente tinha visto o fantasma de
alguém. É claro que preferi acreditar na hipótese mais
plausível: Tinha sonhado com ela.
Logo mais à noite fomos para o tão esperado show e tinha
sido ótimo. Pulamos muito, brincamos muito, gritamos
muito e namoramos muito. Minha irmã tinha ficado com
um carinha que pagou de tudo pra gente, na esperança de
levá-la para a cama, coitado, mas não saiu do status de
“provedor”.
Voltamos para casa e o assunto menina fantasmagórica
tinha sido esquecido.
Era madrugada, altas horas, e eu queria logo me banhar
para cair na cama e dormir para no outro dia poder dar
aula. Quando entrei debaixo do chuveiro, me lembrei na
menina. Para falar a verdade eu tinha me lembrado da
impressão de ter visto alguém sair do banheiro rindo. Não
podia ter sido arte de Marlene. Se ela estivesse acordada

11
estava “trabalhando” com o namorado e com certeza não
deixaria o bem bom para me espionar no banho.
Não vou mentir que me deixei tomar pelo medo. Sei que
era besteira da minha parte, não são tão supersticiosa
assim, mas... existem coisas que acontecem mesmo
quando agente tenta acreditar do contrário.

Fiquei no banho enrolando até tomar coragem de voltar


para o quarto. Queria mesmo era dormir na sala e rezava
para que aquilo não passasse de trote dos dois.
- Elisa, com é? Morreu ai dentro? - me apressou Marlene.
Assim que acabei tive coragem de falar para minha irmã
que estava com medo. Ela riu de mim, mas entendeu e
inventou uma desculpa qualquer para dormir comigo no
quarto.
- Não acredito que você esteja com medo de fantasmas,
Elisa. Uma vaca véia dessas – falou Marlene rindo,
enquanto arrumava a cama para dormirmos juntas.
Não demorou muito e nos deitamos. Demorei a cair no
sono, mas além de não ter escolha, estava muito cansada e
minhas pálpebras pesadas. Então mergulhei no sono.
Só vim acordar um tempo depois com um gemido de
minha irmã de:
- Ai meu Deus!
Ela estava sentada ao meu lado, de olhos arregalados.
Olhando para o chão. Quando vi o que ela via também
arregalei os olhos e meu coração disparou de uma forma
que cheguei a ficar sem ar.
12
Lá estava ela. A menina. Em pé bem na nossa frente e
olhando para nós. Ao contrário do que se imagina, ela não
tinha nenhuma cara fantasmagórica ou olhar demoníaco
ou sei lá que mais o quê que se vê em filmes de terror. Era
linda. Tinha o rosto oval, cabelos negros encaracolados,
bochechas carnudas e olhos redondos, além de lábios
carnudos. Uma verdadeira bonequinha. Mas o fato dela
estar ali nos assustava e muito.
Marlene não sabia o que fazer e muito menos eu. A
menina sorriu, aproximou-se de nós duas, nos fazendo
grudar uma na outra, e então se agachou indo para
debaixo da cama.
Aquilo foi o fim de mundo para nós duas. Queríamos
gritar bem alto por socorro, chamar Elias, mas o medo nos
impediu.
Então, rapidamente, a menina saiu debaixo da cama.
Tinha um par de sandálias nas mãos. As calçou, depois
acenou para nós duas, com um sorriso angelical, e então
saiu do quarto, passando pela porta. Minha espinha gelou
e Marlene parecia morta de tão gelada de medo que
estava.

Demoramos alguns segundos morrendo de medo ate que


pulamos da cama e corremos em direção ao quarto de
Elias.
Contamos tudo a ele. Ele riu muito de nós no início, mas
depois levou mais à sério quando viu que não estávamos
13
brincando e nos falou que antes de morar ali, vivia uma
família que, segundo o que lhe contaram, perderam a filha
caçula num acidente, que ele não soube dizer bem qual
foi.
Eu e Marlene ouvimos a história petrificadas de medo e
passamos a madrugada em claro. E tinha ficado com tanto
medo, que nem senti sono ao ir dar minha aula.
Até hoje penso no que me aconteceu, e fico em
perguntando sobre vida após a morte, se aquela aparição
tinha algum significado para mim ou se eu tive, talvez a
infeliz coincidência de estar no local errado na hora
errada.
Ainda não obtive mina resposta, mas lá no fundo temo em
querer algum dia obter.

FIM

14
2 - HORA ERRADA, LUGAR ERRADO

- Não grite, se não quiser ter a garganta cortada agora


mesmo! Entendeu, Porra!?
Ela não pode fazer nada. Estava completamente
imobilizada, sentindo a lâmina fria da faca em seu
pescoço.
O ladrão apertou a faca mais um pouco. Ela sentiu o tom
de ameaça. Ele estava falando sério.
Ela só tinha parado no supermercado para fazer umas
compras. Comprar tempero para um belo jantar que
desejava fazer assim que chegasse em casa. Estava tão feliz
naquela noite. Não podia imaginar que isso estaria
acontecendo a ela.
- Olha! Po-por favor! Leve o que você quiser. Eu não tô
com muito dinheiro aqui, mas posso conseguir mais.. só...
só não me machuque, por favor! - suplicou ela.
- Cale a boca, desgraça! Se der mais um pio corto a tua
garganta, sua puta do caralho! - ameaçou ele, apertando a
lâmina ainda mais contra seu pescoço e arrastando-a para
a porta do carro.
"Ai meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!", pensava ela
freneticamente, desejando do fundo de seu coração não
estar ali naquele momento e sim em casa jantando.
O homem aos sussurros ameaçadores fez com que ela
abrisse a porta do carro rapidamente. Então a empurrou
para dentro, para o lado do carona. A pobre mulher não
sabia o que fazer. Estava apavorada e seu estado de
15
nervosismo a fazia se concentrar numa coisa: no olhar de
nervosismo e maldade do homem. Aquilo não era um
bom sinal.
- Passa a chave, caralho! Tá esperando o que? - gritou o
homem ameaçando enfiar a faca no pescoço dela.
Ela sacou a chave do bolso. Estava tão nervosa que a
deixou cair. Irritado o homem desferiu um murro em seu
rosto, gritando para que ela pegasse logo a chave e que se
fizesse mais alguma besteira cortaria sua garganta. Aos
prantos, e muito assustada, ela pegou a chave e lhe
entregou e como agradecimento, ele a agarrou pelos
cabelos e disse:

- Agora escute aqui sua puta! Agente vai até um caixa


eletrônico longe daqui, e você vai sacar uma boa quantia
em dinheiro pra mim. Se fizer qualquer coisa que chame a
atenção da polícia, se der um sinalzinho se quer para
alguém se sonhar em gritar... te dou uma faca certeira na
jugular que te mando pra casa do caralho e você nem vai
ter tempo para entrar em desespero... sacou sua puta?
Ela acenou positivamente. Ele a olhava nos olhos e isso era
o suficiente para que ela visse sua determinação. Ele não
estava brincando e pelo jeito devia estar drogado, logo, ao
menor sinal de nervosismo ou desespero... "bye-bye".
- Qual o seu nome, desgraça? - perguntou ele dando a
partida no carro.
- Re - Rena- Renata!
- Se ligue Renatinha, o lance é esse: você vai fazer uma
16
doação pra mim, sacou? Depois eu vou te deixar num
local beeeem distante e daí caio fora. Pode deixar que se
você for boazinha e não fizer besteira alguma eu te libero
numa boa num local onde você possa ir pra casa com certa
facilidade.
Ele deu uma boa olhada nela e continuou:
- Até que você é gostosinha. Sua sorte que tô com pressa e
não vai dar pra gente namorar um pouco. Sua sorte não...
azar seu.
Por um momento Renata sentiu sua espinha gelando. E se
ele mudar de idéia quanto ao "namoro"?

A ida ao caixa eletrônico por incrível que pudesse parecer


não tinha sido tão traumática. Ela entrou, ele ficou
esperando do lado de fora e Renata sacou uma quantia
máxima permitida. Apenas ficou com medo por que só
estava com um cartão.
- Puta que pariu, Rê! Como você vai às compras com um
cartão só? Por um acaso você é de Marte? Nunca vi uma
mulher que só tora um cartão do marido. Assim até eu
vou querer me casar com você.
- E-eu não sou casada. Moro só.
O ladrão franziu o cenho e disse:

- Comé que é? Uma coisinha gostosa que nem você não


tem marido pra comer essa bocetinha todo dia? Ah, minha
filha, com certeza tem alguma coisa errada com você. Mas
vamos deixar de papo furado. Já que você mora só.... acho

17
que vou dar uma passadinha na tua casa.
Renata arregalou os olhos, se amaldiçoando "por falar
demais" e respondeu:
-Na-não por... por favor. Me deixe ir embora. Juro por
Deus que não conto a ninguém sobre você! Por favor, eu
imploro. E-eu moro só numa casa enorme e se você quiser
me fazer algum mal ninguém vai ficar sabendo. Então...
por favor... me deixe ir embora...
O ladrão olhou para ela por alguns segundos e com um
"sorriso escroto" estampado na cara, disse:
- Você é um doce mesmo, né amor? Deve ser granfininha.
Tá até me passando as dicas certas. Você não acha que vou
deixar essa oportunidade passar né? Mas fique fria que se
você for boazinha, só irei fazer um "fisco" pequeno e
depois caio fora. Agora cala a porra da boca e vamos logo,
esse seu chororô já tá me deixando irritado.
E mais uma vez ele arrastou Renata para o carro.
- É bom você me dar as coordenadas direitinho da sua
casa piranha, se não te meto a desgraça aqui mesmo, hein!
Como uma cachorrinha obediente, Renata fez o que ele
mandou e não demorou muito para chegar em sua casa.
O local não era tão enorme quanto ela tinha dito, mas era
grande o suficiente para que ele, caso quisesse, fazer algo
e ninguém ficar sabendo. A casa, por dentro, era grande,
bem arrumada e tinha um ar de privacidade.

- Tô gostando de vê. Você mora aqui sozinha?

18
Renata com lágrimas nos olhos acenou positivamente.

- O esquema é o seguinte. Eu irei te amarrar e vou fazer


uma limpa considerável aqui. É claro que você vai me
dizer onde ficam as jóias, grana e etc. Se tiver cofre é bom
dizer. Depois caio fora, a única coisa que irei fazer é dar
uma chupada nessa bocetinha. Você é muito gostosa e
como sei que você tá se cagando de medo deu te comer a
força... só para não deixar uma coisinha gostosa dessas
"escapar"... irei tirar a sua calça e dar um linguadinha
nessa xoxotinha gostosa que você com certeza tem. Aí me
saio.
Renata não respondeu nada. Apenas olhou para ele com
cara de pobre coitada. Ela não tinha muito que fazer
mesmo.
- Agora é o seguinte. Vamos ao seu quarto e eu te amarro.
Tem corda ai?
- Na-não.
- Serve lençol mesmo.
O ladrão arrastou a pobre vítima para o quarto, a jogou na
cama.
"Ai, meu Deus, é agora!", pensou ela, achando que seria o
momento de "tirar as calças".
Mas não era. Ele girou nos calcanhares e muito confiante
começou a vasculhar o quarto.
Renata não fez nada. Ela sabia que seria inútil. Ela não
estava num filme americano onde do nada apareceria
algum porrete e numa porrada ele desmaiaria e daria
19
tempo para ela chamar a polícia. Vida real não é assim.
Um erro, a morte sorriria para ela.
- Hummm. comportadinha né? Assim que é bom - falou
ele com uma caixinha que tinha tirado do armário.
Renata apenas o acompanhou com os olhos. Nada podia
fazer mesmo.
- Jóias! Massa! Tá vendo gatinha, como foi bom eu ter
vindo na sua casinha? Sim, com certeza deve ter mais?
Tem cofre ou alguma coisa do gênero?
- Não. Essas jóias são de família. Eu não sou milionária
para guardar dinheiro em cofre, nem cofre eu tenho. A
única coisa que posso dar para você são cartões de crédito
e uns cinqüenta reais da minha carteira.

- Já é um bom começo.
Ele se aproximou dela.
- É... acho que você tem razão. Agora... a chupadinha.
Renata, sem fazer cerimônia, tirou as calças e abriu as
pernas. O ladrão não hesitou e meteu a cara entre as
pernas dela e, para sua surpresa, ela gostou. Ele tinha uma
língua "gostosa".
Ela pensava em como aquilo podia estar acontecendo com
ela e que com certeza ele não ia ficar só naquilo. Agora
apenas lhe restava aceitar a situação e rezar para que ele
não a machucasse.
- Hummmm... que bocetinha doce você tem. Deve ser
gostoso dar uma metidinha.
Ela não respondeu.
20
- Mas fique fria. Irei deixar isso para outro dia. Tá vendo
como honro com minha palavra? E você tá sem homem
mesmo, né sua vagabundinha?
Renata não respondeu.
- Agora veste a calcinha, pelo menos. Não sou de ferro. O
lance é esse: Eu vou te levar até um lugar deserto e te
deixar lá. Só para não ter o risco de você bater o fio para a
polícia assim que eu sair daqui.
Rapidamente ela vestiu a calça. Estava mais aliviada.
- Onde estão os cartões?
- Na outra carteira, na penteadeira - disse ela apontando
para a penteadeira no canto esquerdo do quarto.
Ele foi até a penteadeira e abriu a primeira gaveta, achou a
carteira a pegou.
- Agora, vamos dar um passeio gatinha - disse ele com
olhar de quem adoraria jogá-la na cama e terminar o que
começou.
Os dois foram até o carro, estacionado na frente da casa.
Antes de dar a partida ele disse:
- Quer saber, você vai no porta malas. Só pra não saber
onde eu te deixei. Nada pessoal. Passa a bolsa, celular ou
qualquer coisa que possa te dar vantagem.
Ela fez o que ele mandou.
- Fique aqui, só vou abrir o porta malas para você entrar.
Não quero que algum vizinho xereta me veja te colocando

21
dentro do porta malas. Se fizer alguma coisa, te mato.
Ele saiu do carro e abriu o porta malas.

- Que porra é essa?


Para seu espanto tinha um enorme embrulho lá dentro. O
ladrão achou estranho. Então afastou uma parte do
enorme embrulho de plástico pra ver o que tinha dentro...
sua espinha gelou... debaixo do embrulho, pode ver o
rosto de uma mulher com os olhos revirados e com uma
marca de pancada na fronte. O rosto estava um pouco
ensangüentado.
- Que porra é esse, cara? O que essa vagabunda andou
fazendo?
Ele fechou o porta-malas e rapidamente sacou a faca.
- Escuta aqui sua puta, que porra é aquela ....
Renata tinha uma arma apontada para ele. Seu olhar não
era mais de menina assustada.
Estava acinzentado, sem brilho e muito fixo.
- Que porra é essa, cara?
- Entre no carro e o leve até a garagem. "Se fizer alguma
coisa que não deva, te meto a desgraça aqui mesmo"- disse
ela, com um sorriso maligno nos lábios.
Ele não teve alternativa. Rapidamente entrou, jogou a faca
no banco de trás como ela mandou e manobrou até a
entrada da garagem.
- Aperte aquele botão no painel para abrir porta da
garagem.
Ele atendeu e dentro de segundos estavam lá dentro.
22
- Saia do carro e vá até aquela porta, ali.
Ele atendeu, sem acreditar no que estava lhe acontecendo.
Renata abriu a porta que dava entrada para a copa.
- Entre!
Os dois foram até a cozinha ela apontou para uma cadeira
e ordenou que ele se sentasse.
- Eu menti para você sobre uma coisa: tenho corda sim e
irei te amarrar.
- Pera aí moça. Que é que você tá fazendo? Vai chamar a
polícia? Como vai explicar aquele corpo para eles? Se fizer
isso vai presa também.
Renata riu.
- E quem te disse que eu irei chamar a polícia? Você por
um acaso me conhece? Sabe quem sou e conhece minhas
reações? Em momento algum pensei em chamar polícia.
Irei te explicar, com maior prazer, a situação aqui.
Ela se afastou e deu dois tiros, um em cada joelho. O
ladrão caiu agonizando no chão.
- Aaaaaiiiiiiiiiiiii....! Meeeeeeu Deus do céeeeu!

- Eu tinha ido ao supermercado fazer umas compras. Sabe


o que fui comprar? Tempero. Sabe pra que?
Foi aí que o ladrão percebeu que os joelhos estourados
eram o menor de seus problemas. Foi aí que ele percebeu
que estava em maus lençóis. Foi aí que ele percebeu que
tinha que ter matado aquela maluca e nunca ter vindo em
sua casa. Percebeu que ela tinha atraído ele para uma
armadilha.
23
- Mas antes, saí para ver qual prato do dia ia capturar e só
tinha conseguido aquela mulher. Quando meu bondoso
Deus me mandou você. Tão ingênuo. Que tipo de ladrão
não olha no porta-luvas para se certificar de que não tem
armas lá dentro? E que tipo de ladrão vem à casa de sua
vítima assim que ela fala que mora sozinha? Vi que você
tinha vindo pra mim, era um presente para mim. A
sobremesa que eu queria.
- Não... por favor... eu ia te deixar ir, sua desgraça! Não faz
isso comigo não...
Renata não lhe deu ouvidos. Se retirou por alguns
segundos com uma corda, um frasco com algo e um pano.
Ela deixou a corda sobre a mesa, abriu o frasco e untou o
pano. Aproximou-se dele e mesmo com o ladrão tentando
se desvencilhar, ela o agarrou e o fez cheirar a substância
do pano o que o deixou inconsciente na hora.
Uma forte dor martelava em sua cabeça como se alguém
desse murros nela com uma luva metálica. Ao abrir os
olhos ele teve a visão do inferno: em sua frente se
encontrava a mulher que estava no porta-malas, deitada
de bruços numa mesa e com uma das nádegas cortada.
Renata estava ao lado do corpo, ao som de batidas de
cutelo. De tempos em tempos ela voltava a cortar parte
das nádegas da mulher, com muita presteza. Quando,
então, ela virou o corpo e começou a cortar os seios.
Aquilo horrorizou o ladrão que pedia por alguma ajuda
divina para tirá-lo do poder daquela psicopata. Ele sabia

24
que ela não estava fazendo aquilo para assustá-lo. Sabia
que seria o próximo.

- Sabe... você deve estar me achando uma louca. Até


entendo. Não é todo dia que uma pessoa se depara com
uma canibal. Mas se te servir de consolo, a carne humana
é macia, saborosa e suculenta. Antes deu pensar em
saborear carne de pessoas, eu tinha lido numa revista que
cientistas tinham constatado que o sabor parecia com
carne de porco. Mas eu discordo. Depende muito de como
você prepara.
Ela continuou cortando a mulher, em postas. Abriu sua
barriga e retirou as tripas: intestino, estomago, fígado,
coração.
- As tripas são ótimas para você fazer mingau. É mesmo!
Falo sério. Hummm.... eu adoro coração e fígado, são
realmente saborosos. Antes de saborear você, irei te
permitir saborear também. Juro que assim que você sentir
a delícia que é a carne humana irá me dar razão.
Ele estava horrorizado. Ao vê-la retirar as tripas da
mulher vomitou até onde não pôde mais.
- Hei! Vê se não suja tudo, porra! - disse ela, se
aproximando dele e desferindo-lhe uma tapa.
- Eu imploro, moça! Faz isso comigo não! Por favor, eu
não te machuquei, não fiz nada de ruim com você. Faz isso
comigo não, por favor - implorou ele.
O olhar do ladrão era de súplica, suas lágrimas pareciam
queimar sua face e seu coração estava tão acelerado que
25
Renata podia ouvi-lo nitidamente.
- Ôooo, meu lindo. Fica assim não! Eu juro que se você for
bonzinho, eu só dou uma chupadinha e aí você cai fora.
Ele a olhou com um olhar esperançoso.
-É... é mesmo?
- Claro, irei chupar seus ossos como nunca fiz antes.
O ladrão então entrou em desespero e deu um grito
agonizante que chegou a espantá-la.
- Eu imploro, juro por Deus que não digo a ninguém sobre
você. Não me mata,não! Por favoooooooooooor!
Renata riu e disse:
- Seus gritos de dor me fortalecem, sabia? Seu desespero
alimentam minha alma. Tenho certeza que você será a
melhor refeição que já tive em muito tempo.

E virou-se para preparar as partes da mulher para mais


tarde.
O jovem rapaz continuou gritando desesperado. Ele sabia
que ninguém podia ouvi-lo, mas queria manter a
esperança de que algo aconteceria e o tiraria daquela
situação. Mas nada aconteceu!
Nada!
Ele sabia que seu destino era ser comido por ela... mas não
da forma que ele tinha imaginado... com os dois na cama,
fornicando para seu prazer....
Logo, logo ele estaria em seu prato, sendo fatiado pedaço
por pedaço até não restar mais nada.
Era o fim...
26
3 - O SEGREDO

Dizia minha mãe que meu pai tinha morrido quando eu


era um bebê. Mas aos dez anos de idade descobri que ele
era um mero ladrão de galinhas que tinha conhecido
minha velha num bordel lá pelas bandas de Natal.
Aos quatorze anos de idade sai de casa em busca de uma
vida melhor. Tinha começado a vida vendendo latas
amassadas que catava na rua em épocas festivas e usei o
dinheiro depois de muitas latas amassadas, para comprar
uma passagem que era só de ida e peguei um ônibus para
outra cidade, bem longe da minha.
Me lembro como se fosse hoje. Tive que dormir na rua,
debaixo de um banco de um parque abandonado que
ficava perto da rodoviária. E para piorar minha situação
começara a chover naquela noite.
A situação era insustentável. A chuva piorava cada vez
mais e eu me sentia uma cadela de rua sarnenta, afastada
de casa - que por pior que fosse apresentava o mínimo de
conforto - com fome e sem a certeza de que fosse
sobreviver. Sentia raiva do mundo, sentia raiva de meu
pai por ter sido um merda na vida, sentia raiva de minha
mãe por ter se dado o luxo de ser uma puta que só servia
para dar prazer a vagabundo e bêbado, sentia raiva de
mim por ser filha deles, sentia raiva de Deus por ter me
colocado nessa situação e de ter permitido que eu
nascesse.
Lembro que num dado momento, quando a chuva me
27
incomodava tanto a ponto de dar a impressão que feria
minha pele, sai debaixo do banco e me aproximei da parte
arborizada do parque. Era um pequeno bosque, com
árvores pequenas de troncos grossos e copas tão largas
que se encostavam umas nas outras, fazendo uma espécie
de proteção conta a chuva. O parque já não era tão
iluminado. Com certeza servia de ponto de encontro para
prostitutas, ladrões e drogados. Ao adentrar no bosque, a
iluminação cada vez mais se enfraquecia, dando um
aspecto sombrio e eu via que não tinha muita escolha. Ou
enfrentava meu medo de fantasmas ou voltava para
debaixo do banco com lama em baixo e água da chuva
vinda de cima.

Cada vez mais que eu adentrava, as folhas das copas


impedia a passagem da água da chuva. Pingava, mas nada
que viesse a me incomodar e por incrível que pudesse
parecer, o ar não estava úmido e não fazia frio. Era
aconchegante.
O chão era de terra batida. Não dava para ver ao certo se
estava sujo, com lixo ou restos de comida ou pior: cocô. Eu
não tinha muita escolha mesmo. Então achei uma moita
quentinha e gostosa e como um cão de rua, me ajeitei para
dormir um pouco para ir à luta no outro dia.
Mesmo morrendo de medo que algum vagabundo me
abordasse enquanto eu estivesse dormindo, e mesmo
incomodada pelos roncos de meu estômago de tanta fome
que eu sentia, meus olhos pareciam ter pesos nas
28
pálpebras. Meu cansaço era indescritível. Não demorei a
cair no sono.
Não sei ao certo há quanto tempo dormia, mas tive a
sensação de não estar sozinha. Talvez fosse medo. Abri os
olhos e pude ver que ainda era noite. O local estava escuro
e me confortei pelo fato de estar escondida na moita. Seria
muito azar algum mendigo ir mijar logo ali e me achar.
Mas a sensação não desaparecia. Eu sentia que tinha
alguém ali. Com medo ou não, a certeza de que não estava
sozinha era tão viva quando a certeza de que eu estava
morrendo de fome.
De repente ouvi passos. Eram passos cautelosos e viam
em minha direção.
Nossa, o medo se tornou uma corrente elétrica que correu
minha espinha e levantou cada cabelo em meu corpo.
Como diz a expressão popular: Eu estava “com o cú não
mão”. O medo era tanto que eu podia ouvir meus
batimentos cardíacos e tive mais medo ainda de que a
pessoa à minha espreita os ouvisse também.
Fechei os olhos, então, e comecei a rezar. Pedi perdão para
a Deus por tê-lo xingado só por que eu era uma miserável,
e pedi proteção a ele. Disse que se ele me ajudasse eu faria
de tudo para ter uma vida melhor e ainda conseguiria
sucesso ponto de voltar para casa um dia e ajudar minha
mãe e meus irmãos, caso estivessem lá, ou ainda vivos.

Apesar de minhas preces, a pessoa não recuou. Veio até os


arbustos onde eu me escondia e estava encolhida feito
29
minhoca acuada e afastou as folhas, me descobrindo por
final.
Eu arregalei os olhos de um jeito que eles faltaram me
escapar da face. Meu coração se acelerou mais e eu pensei
que fosse ter uma parada cardíaca, que na época nem
sabia direito o que era isso, mas o medo me ensinou
superficialmente do que se tratava.
A primeira coisa que vi foram cabelos brilhosos, loiros e
um par de olhos verdes. Depois pude perceber um sorriso
amigável e o rosto de uma moça muito bonita que parecia
não querer me machucar.
- Tenha calma, sei que está assustada. Mas não irei te fazer
mal – disse ela, assim que me viu.
Eu não sabia o que fazer. Se saia correndo ou se
desmaiava, ou se avançava para cima dela para mordê-la
com toda força para depois sair correndo. Fiquei
catatônica. Olhando bem em seus olhos. Fico imaginando
o que ela deve ter pensado ao me ver. O quanto meus
olhos estavam arregalados e a cara que eu devo ter feito
na hora. Deve ter sido hilária.
Ela, calmamente, estendeu sua mão para mim. Vi que sua
intenção não era me machucar. Mas fiquei parada feito
pedra. Assustada mesmo assim. E não parava de olhar
para ela. A moça sorriu para mim e disse:
- Sei que está com fome. E vi você vindo pra cá. Estava na
rodoviária quando você chegou. Vi que você não tinha
para onde ir e ainda por cima veio tentar dormir num

30
lugar tão perigoso quanto este. Está se arriscando. Aqui
não é um lugar para uma mocinha como você. Nem é um
lugar pra mim.
Eu nada respondi.
- Sei que está com medo também. Mas eu não podia me
conformar em te deixar aqui ao invés de tentar te ajudar,
te alimentar um pouco e te deixar dormir num lugar mais
aconchegante do que aqui nesse bosque escuro.

Eu não falei nada. Apenas me levantei. A chuva tinha


estiado um pouco e a moça estava ali, parada, me olhando
e sorrindo, tentado ser amigável na esperança de que eu
não sentisse tanto medo dela.
Ela era realmente linda. Não era alta nem baixa. Tinha
longos cabelos loiros encaracolados, como os de anjos que
vemos em gravuras, os olhos verdes e oblíquos, rosto
afilado, lábios finos, e uma expressão de paz e calma.
Vestia uma blusa de cor salmão e uma saia azulada, com
estampa de flores, que cobria seus pés.
- Me chamo Clarisse. E você?
Eu sai de dentro da moita, olhei para um lado e para o
outro e me aproximei dela, também com cautela.
- Você me seguiu da rodoviára ate aqui, foi? – disse eu,
ainda com sotaque de menina de rua, e muito
desconfiada.
- Bem, de certa forma sim. E estava na rodoviária com
meu cunhado. Aí vi você. Enquanto estava no carro, vi
que você estava dormindo debaixo do banco da praça e
31
não parei de pensar em você. Uma menina que veio de
outra cidade, sem malas, sem ninguém, e que se arrisca
dormir debaixo de um banco de uma praça abandonada,
com certeza é alguém que deixou tudo para trás para
tentar a sorte. Você me lembra meu pai. Ele tinha saído de
casa ainda menino, para tentar a sorte na cidade grande e
passou por maus bocados na vida. Aí pensei em vir aqui,
sei lá, tentar te ajudar.
- Você é crente? – perguntei rispidamente.
Ela me olhou um tanto confusa e respondeu, com um
sorriso:
- Como assim? Não. Não sou religiosa se e isso que deseja
saber.
- É doida, então? – retruquei, mais rispidamente ainda. No
fundo queria ver o que ela queria comigo. Aquele papo de
se lembrar do pai não tinha me convencido.
Ela sorriu.
- Não. Bem, acho que não. Apenas queria te dar uma
mãozinha. Entendo que esteja com receio e não queira.
Você não me conhece mesmo. Bem, me desculpe. Irei
embora. Se estiver aqui pela manhã te trarei algo para
comer.
Então, ela girou nos calcanhares e começou a se afastar.
- Gildete – eu disse.
Ela parou, virou-se bruscamente.
- Como?

32
- Meu nome é Gildete.
Ela permaneceu parada por um tempo, me olhando.
Depois sorriu e me olhou como se estivesse me
convidando para sua casa. Então virou-se e continuou
andando. Eu a segui como um cachorrinho com fome
suplicando por algum resto de comida. Ela percebeu que
eu a acompanhava e diminuiu os passos. Me olhou de
cima a baixo rapidamente e continuou em frente.
- Você tem muita coragem de vir aqui sozinha, seja lá de
onde você tenha vindo – comentou, ela.
- E você, que veio aqui ver uma menina que nem conhece
– retruquei.
- É verdade. Somos duas corajosas – ela falou, sorrindo.
Não andamos muito. Saímos do parque, passamos pela
rodoviária e nos aproximamos do bairro onde ela morava.
Passamos por uns três quarteirões até chegarmos
finalmente em sua casa.
O bairro era simples. A rua não era muito bem asfaltada.
As casas eram simples, não eram grandes e eram
separadas umas das outras, ao contrário de bairros onde
as casas são coladas umas nas outras.
Sua casa fugia um pouco do esquema das demais. Era de
dois andares, bem conservada, e possuía grades enormes
com pontas afiadas em suas extremidades. Pareciam um
pouco enferrujadas em algumas partes, mas no geral era
tudo muito bem conservado.
Ela parou frente ao portão por alguns segundos e então o

33
abriu.
Eu... hesitei.
- O que foi? Não tenha medo – ela tentou em confortar.
- Mas... O pessoal da sua família não vai reclamar, não?
Você nem em conhece – insisti, mostrando receio.

- Não, pode ficar tranqüila. E já falei com eles. Meus pais,


sim, são religiosos e não irão se incomodar com você aqui.
E minha irmã irá adorar te conhecer. Não agora é claro,
está dormindo. Mas amanha com certeza irei te apresentar
a ela. Pode ficar tranqüila, sua boba.

Eu hesitei mais um pouco. Não tinha medo dela. Ela me


parecia sincera. E estava sendo sincera. Mesmo assim, eu
não queria problemas. Demorei muito para juntar
dinheiro e ir para aquela cidade atrás de algum trabalho
para ser enxotada como um cão sarnento ou pior, presa
por causa do sentimento de bondade de uma menina
mimada.
Mas vi que, por outro lado, não tinha escolha. Estava
faminta e com frio. Pensei rapidamente que, mesmo que
me enxotassem da lá já teria comido e bebido bem, além
de ter descansado um pouco. Valia a pena arriscar. Então,
entrei.
Passamos por um jardim, florido e cheiroso. A casa era
mais bonita de perto. Com portas e janelas muito bem
trabalhadas e na varanda da casa tinha um tapete que
dizia “bem vindos”.

34
As luzes da casa estavam apagadas. Clarisse abriu a porta
cautelosamente, acendeu a luz da sala e me convidou para
entrar. Pensei na quão doida ela tinha sido para levar uma
completa estranha para sua casa. Mesmo que “tocada”
pela minha situação, será que não tinha passado pela sua
cabeça de que eu poderia ser uma pessoa de índole ruim?
Mas também agradeci a Deus, de todo meu coração, por
tê-la colocado em meu caminho, mesmo que por aquela
noite e por um prato de comida.

A sala parecia enorme. Na época para mim, era enorme.


Eu morava num barraco onde cabiam oito pessoas, com
certeza só a sala de sua casa para mim era um palacete.
Móveis bem dispostos, lustres iluminavam o recinto e
quadros da família embelezaram o local.

Ela me conduziu ao extremo oposto da sala em direção a


um pequeno corredor que dava para uma copa que então
dava para outras dependências da casa. Tudo
perfeitamente lindo. Paredes lisas em tons claros. O chão
brilhava de tão bem encerado que estava.
Ela me conduziu à cozinha.
- Sente-se – disse, apontando para uma pequena mesa que
ficava bem ao centro.
Fiz o que ela me pediu, timidamente.
- Você é bem maluca mesmo – disse eu, sorrindo pela
primeira vez em muito tempo.
- Por quê? Por ter te trazido para minha casa para te

35
alimentar um pouco?
Eu não respondi nada. Ela me olhou novamente com seu
olhar amigável. Parecia muito feliz pelo fato deu estar ali.
Sorriu, então, aproximou-se da geladeira e pegou uma
tigela com bolo de chocolate e colocou em cima da mesa.
Eu arregalei os olhos e meu estomago soltou um estrondo
tão forte que eu fiquei com medo de acordar os outros da
casa.
Ela sorriu, como sempre sorria.
- Pode comer. Sério! Não tenha medo. Eu não te traria
aqui, se não soubesse o que estou fazendo.
- Alegria de pobre acaba cedo moça. Ta bom demais pra
ser verdade – disse eu enfiando na boca uma pedaço
enorme do bolo e já me preparando para o segundo.
- É... você tem razão. Dura pouco mesmo. Eu costumo
fazer experiências macabras com meninas de rua e esse
bolo está envenenado.

Nossa, eu arregalei os olhos e quase me engasguei.


Lagrimas saíram de meus olhos e um desespero cresceu
em meu peito que quase o arrebentou. Ela deu uma
gargalhada e disse:
- Calma sua boba. Estou brincando. Calma! Não queria te
assustar. Você está com tanto medo de mim assim?
Suas palavras me aliviaram bastante. Fiquei com uma
vontade de avançar nela e dar-lhe umas boas bifas pela
cara, mas depois me acalmei e sorri com ela.
Comi e bebi a vontade. Então ouvi alguém se
36
aproximando da cozinha. Eram passos leves e logo se
mostraram de uma menina de uns seis anos na época.
- Clarisseeeee – gritou a menina, vindo abraçar a irmã,
alegremente.
- Oh, meu doce. O que está fazendo fora da cama a uma
hora dessas? – perguntou Clarisse retribuindo o abraço.
- Vim beber um pouco de água. Tô com sede.
E menina era linda. Vestia um pijaminha rosado. Era loira
como Clarisse, só que de cabelos lisos escorridos e tinha
uma franjinha que lhe dava charme. Seus olhos eram azul
celeste e suas bochechas rosadas. Um amor de menina.
- Quem é ela? – perguntou a menina ao me ver.
- A menina que falei para você e Amanda. Ela vai ficar
com agente um pouco. Não é Gildete? – respondeu
Clarisse.
- Olá. Eu sou Mônica – Veio me cumprimentar a menina,
que me olhou como se já me conhecesse.
- Olá – devolvi, tentando ser mais educada que podia.
- Beba sua água e volte pra cama. Está bem? Irei arrumar
um quarto para ela dormir, depois de tomar banho, é
claro.
Clarisse então conduziu Mônica ao seu quarto e depois
retornou.
- Vamos. Irei te levar ao quarto de hóspedes. Você toma
um banho antes, depois descansa que amanhã minha irmã
mais velha irá falar com você.
Ela me conduziu ao quarto de hospedes. Era um quarto

37
amplo, com uma cama arrumada, armário, penteadeira e
tinha até banheiro.
Nossa! Era um sonho que eu não queria que terminasse.
Tinha tanto medo de alguém aparecer e me por dali pra
fora, ou então acordar no parque com chuva na cara e ver
que tudo aquilo não passava de alucinação.

Mas não, era real. Aquela menina era um anjo que tinha
vindo até mim, mesmo que fosse só por aquela noite.
Me banhei. Ela me deu roupas para me vestir. E como
estava cansada fui me deitar. Clarisse ficou comigo mais
um pouco, ao meu lado, sentada na cama.
- Sei que você deve estar achando estranho uma completa
desconhecida te pegar na rua e te trazer para dentro de
casa. Mas eu não podia deixar que você ficasse na rua
podendo te ajudar.
- Você traz qualquer um que pode ajudar para dentro de
sua casa? –perguntei, pouco antes de cair no sono.
- Não. Você é especial.
Então cai no sono. O melhor que tive desde que sai de
minha casa.
No outro dia, acordei assustada. Tinha dormido feito uma
pedra e já estava crente que tudo aquilo não passava de
um sonho e que voltaria a realidade. Mas não. Estava
enganada. Eu tinha acordado no mesmo quarto
aconchegante da noite anterior e a menina, Mônica estava
sentada na beira da cama sorrindo pra mim e para uma
outra moça que estava sentada ao meu lado num banco ou
38
cadeira.
- Essa é a Gildete Amanda. Clarisse trouxe ela pra cá
ontem. Oi Gildete – me cumprimentou, alegre como
sempre, a menina.
- Oi... – respondi vermelha de vergonha.
Amanda se parecia um pouco com Clarisse. Só que tinha
os cabelos castanhos escuros e os olhos verdes escuros.
Tinhas traços afilados como os da irmã, mas os lábios
eram carnudos e o olhar penetrante, além de mais velha.
Ela me olhava com espanto e admiração. Eu devolvi o
olhar, olhando em seus olhos da mesma forma que olhei
para sua irmã quando me achou no parque.
Ela me fitou por longos segundos, antes de falar:
- Minha irmã disse que você ficaria aqui conosco. Que
tinha vindo de longe para tentar trabalho. Bem, estamos
precisando de uma empregada domestica e babá. Ela falou
para insistir para que você aceite. Pagarei bem. Você
cuidará de minha filha pequena e de Mônica e dos
afazeres da casa que não são grande coisa.Você vai
aceitar... não vai?

Percebi em sua voz que ela estava quase suplicando para


que eu aceitasse. Eu realmente não sabia o que fazer.
Aquela situação era tão... surreal. Um dia eu estava na rua
e no outro numa casa com conforto e com proposta de
trabalho. Muito louco.
Aceitei por fim. Não tinha nada a perder mesmo.
Trabalhei na casa cuidando da filhinha de Amanda,
39
Janete, e de Mônica que é um amor. Durante uma semana
me empenhei ao máximo para merecer a confiança dela.
Não podia vacilar, era uma chance de ouro.
- Senhora Amanda. Eu não perguntei, mas... desde a
primeira vez que eu comecei a trabalhar aqui... não vi
Clarisse. Onde ela está? – perguntei uma vez quando
arrumava a sala.
Amanda, que arrumava Mônica para a escola, respondeu.
- Ela está em seu quarto agora. Se quiser ir falar com ela.
Te levo lá.
- Sim quero. Nem pude agradecer. Nossa, ela foi um anjo
em minha vida. Não entendi por que ela não veio falar
comigo depois.
- Ela não pode. Mas irei te levar lá para vê-la e conversar
com ela um pouco ela vai gostar.
Amanda deixou Mônica na sala e me conduziu ao quarto
de Clarisse. A parta estava fechada, e ao abri-la vi Clarisse
em cima da cama, deitada e com fios ligados e ela, vindo
de um aparelho ao lado de sua cama. Ela respirava com
ajuda de aparelhos. Tomei um susto.
- O... o que aconteceu com ela? O que é isso, meu Deus?!
- Ela, foi encontrada no parque perto da rodoviária, caída
e toda ensangüentada. Tinha sido violentada e
esfaqueada, por sorte não morreu – respondeu Amanda
com lágrimas em seus olhos.
- Mas... mas quando foi isso? Por que ela voltou lá? Digo...
ela foi lá por mina causa, mas voltou pra que? Quem fez

40
isso? Que dia da semana foi? Por que a senhora não me
falou nada?
- Isso aconteceu há mais de cinco meses, Gildete. Não foi
agora.
- O.. o que? Como assim? Ela... ela foi lá no início da
semana... me achou e me trouxe pra cá. O que a senhora ta
me dizendo? Que brincadeira é essa?

Amanda aproximou-se de mim, acariciou meu rosto


carinhosamente e respondeu:
- Ela me visitou numa noite e disse que iria encontrar
alguém especial no parque. Alguém que a ajudaria ter paz
de espírito. Que poderia algum dia descansar em paz.
Então ela me visitou em meu quarto, em meus sonhos e
me disse que te traria pra cá. Que com o tempo tudo se
esclareceria. Eu pensei estar louca, mas quando te vi aqui
e Mônica dizendo que Clarisse tinha te trazido pra cá...
não soube o que fazer a não ser te aceitar aqui conosco.
Tudo o que peço é sua compreensão. Sei que pode ficar
com medo, querer ir embora, mas suplico que atenda o
ultimo pedido de minha irmã de ficar conosco. Aqui você
poderá estudar, trabalhar, crescer na vida. Por favor, não
vá embora.
Ela tinha razão. Tudo o que eu queria era cair fora dali.
Fiquei com um medo horrendo, mas quando vi suas
lágrimas, seu olhar me suplicando para ficar e que de
alguma forma Deus tinha ouvido minhas preces quando
ainda estava debaixo do banco, decidi não deixá-las.
41
Clarisse veio a falecer uma semana depois. Me empenhei
no trabalho da casa, no cuidado com as meninas e até com
Amanda que tinha perdido o marido para outra mulher
algum tempo antes e estava mito fragilizada com tudo
aquilo. Precisava de uma amiga e eu fui essa amiga para
ela o máximo que pude.
Pude me desenvolver, estudar, crescer e com o tempo
visitei minha família. Minha mãe tinha falecido algumas
semanas depois que eu me fui, meu irmão mais velho
preso por furto e os outros tiveram que se virar como
puderam para sobreviver. Me senti culpada, mas aliava
em poder ajudá-los ate hoje, em não ter desperdiçado
aquela chance por mais estranha que ela tenha vindo ate
mim.
Cursei faculdade de direito, me tornei investigadora de
polícia. E então, depois de muitos anos entendi o que
Clarisse realmente queria comigo.

Desde quando pude me desenvolver e me inserir na


justiça me empenhei em investigar seu caso. Demorei
cerca de um ano, com muito empenho, para descobrir que
ela tinha sido vítima de uma pessoa que eu jamais
imaginaria. Que ela tinha sido vítima de sua própria irmã
que descobrira um caso entre Clarisse e seu marido.
Ele ia deixá-la para ficar com Clarisse, mas na noite em
que ela fora a Rodoviária comprar passagens para ir
embora com ele, tinha sido atacada por Amanda que a
42
atraíra ao parque e na raiva matou a irmã. Com medo que
descobrissem sobre ela, Amanda pagou um mendigo para
que tivesse relações sexuais com Clarisse para simular um
estupro e depois a esfaqueou largando-a lá para que fosse
descoberta pela polícia.
Sei que isso pareceu cruel, mas cada um sabe onde o
próprio calo dói. E Amanda sentiu-se amargamente traída,
até por que tinha sido ela quem aceitara trazer a irmã para
morar em sua casa sem imaginar o que viria a acontecer.
Uma tragédia. Clarisse, de alguma forma tinha
adivinhado que eu me empenharia algum dia em
descobrir tudo e que, se sentindo acuada, Amanda me
contaria os detalhes.
Amanda quis saber de mim se eu a entregaria. Eu disse
que não. Mônica e Janete não mereciam ter uma imagem
daquela da mãe de que tanto amavam.
Se Clarisse quisesse, teria contado a elas, mas não o fez.
Descobri que Clarisse na verdade queria paz de espírito
para Amanda que se martirizava e se amaldiçoava por ter
cometido tamanho pecado conta a irmã.
Mesmo assim, o que Clarisse mais prezou foi o bem estar
da irmã e me ajudando quando me achou no parque sabia
que eu retribuiria a ajuda de alguma forma.

FIM

43
5 – GUERRA AO INFERNO

Ele estava certo, claro.

Sua mente não estava em perfeitas condições, mas ele


tinha certeza de que estava certo.

Louco. Mas certo.

Ele vinha investigando há muito tempo.

Quanto tempo? 15 anos? Talvez mais.

Bem, não importa. Suas investigações levaram a um


desfecho conclusivo: Eles estavam escondidos entre nós.

Sim.

Demônios.

Demônios nefastos escondidos entre nós.

Por fora tinham a aparência de qualquer pessoa.

Podiam ser uma criança indefesa, talvez uma bela mulher,


ou então uma inocente senhora que sai todos os dias para
tomar chá com as amigas.

Mas por dentro, eram criaturas pustulentas, fétidas e


gosmentas.

44
Tinham olhos de fogo incandescente, enormes
mandíbulas, e garras capazes de rasgar a pele humana
como uma faca é capaz de cortar uma maçã.

São criaturas ardilosas e é exatamente por isso ele é


cauteloso.

No início não foi assim.

Ele tentou alertar as pessoas ao seu redor.

Teve pesadelos.

Quase perdeu a esposa, e os dois filhos, e tão logo teve


que repousar numa casa de recuperação para doentes
mentais.

Mas agora tudo seria diferente.

Ele ficou esperto, mais esperto que essas criaturas. Ele


percebeu que não podia contar com ninguém.

As pessoas não acreditam em você até que estejam sendo


devoradas por tais demônios.

Então ele prefere caçá-los.

Começa estudando-os, depois vigiando-os, dia após dia,


até que prepara uma emboscada, os captura e os manda
de volta para o inferno de onde não deveriam ter saído.

45
A pobre garota olhou para ele assustada. Seu rosto estava
inundado em lágrimas e ela tremia tanto que parecia ter
uma daquelas disfunções neurais onde um enfermo não
consegue parar de tremer.

O homem à sua frente, não era alto e nem forte. Era


franzino, mas seu olhar fixo e seu aspecto nodoso a
assustava de tal forma, que sua imaginação não parava de
trabalhar a imagem de um homem alto e perigoso.

Ele então virou-se para ela, bruscamente. Tinha em mãos


um cutelo.

- Não se preocupe, querida. Não tenho nada contra você.


Em verdade te digo que não pretendo te fazer mal. Se
tudo proceder corretamente, tão logo você estará livre
dessa situação incômoda.

Ele caminhou cautelosamente em direção a ela.

A garota, claro, encolheu-se o máximo que pode com


medo de que ela lhe enfiasse aquele cutelo e a resumisse
em inúmeros pedaços.

- Não tenha medo – disse ele, esticando sua mão, até o


ventre da garota.

Ele sorriu para ela. Sua boca esboçou um sorriso retorcido,


mas seu olhar indicava que ele realmente não queria fazer

46
mal a ela. Até parecia que gostava da moça e isso a
assustava cada vez mais.

Ele fechou os olhos e acariciou o ventre da moça indefesa.


Queria sentir sua barriga. Queria se conectar à vida que ali
germinava.

- Vo-você va-vai me ma-matar? – quis saber a moça, aos


soluços.

- Não. Irei livrá-la do hibrido que você carrega na barriga.


Do ser demoníaco que tornará este mundo um inferno,
seu lar, caso eu não o impeça.

Ele levantou-se, então, e dirigiu-se a mesa de centro, no


cômodo. Colocou o cutelo sobre ela e pegou uma enorme
faca pontiaguda e depois aproximou-se da mesa,
balançando a faca, como se quisesse intimidá-la.

- Como disse, nada tenho contra você. Mas o bebê que


você carrega no ventre, na verdade é um demônio e não
posso permitir que ele venha a este mundo. Caso
contrário, será o fim.

- Não... não! Eu... imploro! Eu imploro! Por favor.

Os prantos da mulher mexeram com os sentimentos dele.

O choro de uma mãe em desespero o colocou em dúvida


sobre sua missão.

47
Por um momento ele vacilou, enquanto ela chorava e
esperneava.

Ela, então, parou de chorar. Talvez por saber que o fim


tinha chegado e de nada adiantaria suas lágrimas ou
talvez por outro motivo, ninguém jamais saberá.

Ela olhou fixamente no fundo dos olhos do homem com a


faca. Ela ainda estava fragilizada, mas havia um quê de
coragem em seu olhar.

- Eu sabia que mais cedo ou mais tarde você também


dominaria sua progenitora, criatura nefasta.

E então o homem aproximou-se da mulher com a faca.

Demorou mais de uma semana para que a professora do


primário, de vinte e três anos, casada há pouco mais de
um ano, grávida de seis meses, fosse encontrada pela
polícia, pendurada de cabeça para baixa, pelas pernas,
feita um porco ao ser sangrado, e com o ventre aberto.

Logo abaixo jazia seu bebe, ainda ligado a ela pelo cordão
umbilical, com a cabeça esmagada a golpes de marreta e a
garganta cortada e os olhos perfurados, disposto no centro
de um enorme desenho de um pentagrama, com velas
espalhadas ao seu redor.

48
Ele, o assassino, voltou para casa, para sua família,
satisfeito por ter livrado o mundo de mais um demônio
disfarçado.

Ao sentar-se à mesa com sua esposa e dois filhos, a


namorada de seu filho mais velho tinha sido convidada
para conhecê-lo e a sua esposa.

Satisfeito por mais um dia de vida, rezou a Deus


agradecendo pela comida, na hora do almoço.

Até que abriu os olhos e a surpresa acertou-lhe em cheio


como uma marretada: a namorada de seu filho era um
deles. Era uma criatura das trevas, disfarçada.

Mas isso era assunto para depois do almoço, para uma


outra ocasião, claro.

FIM

49
REFLEXO NO ESPELHO

Sim. Eu fui possuída. Completamente possuída. Só pode


ser. Não tem outra explicação.
Eu costumava amar meus filhos, tratá-los com carinho
quando pequenos, mas de alguma forma eu esqueci algo
no passado.
Aos poucos a idéia de ter tido filhos era ruim. Aos poucos
suas presenças me irritavam de alguma forma. Nem sei
explicar direito tal sentimento de repugnância.
Eu enxergava meu filho como um vagabundozinho
qualquer sem futuro, que ficava sempre dentro de seu
quarto bagunçado tocando violão quando não saia com os
amigos e horas depois voltava cheirando a maconha.
Minha filha pra mim era uma medíocre, destinada a ser
mãe solteira ou uma vagabunda qualquer que vive em
função de homens.
Eu já os detestava e com o tempo passei a odiá-los. Todos
os dias era forçada a ver suas caras nojentas, ouvir suas
vozes irritantes, compartilhar minha comida com esses
porcos e até o ar que respiro.
Mas uma noite, ao me recolher em meu quarto, triste por
viver em uma casa com duas desgraças, peguei meu
álbum de fotografia. Queria relembrar os belos momentos
ao lado de meu falecido esposo quando os vi em muitas
das fotos.
Inicialmente meu sentimento de repugnância me atacou,
mas depois foi se abrandando. Muitas das fotos traziam à
50
minha memória os momentos em que passamos juntos. Os
sorrisos e olhares felizes deles quando criança e o amor
que eu me dedicava a dá-los e receber deles.
Mesmo depois da morte de meu marido eles estiveram lá
comigo, juntos, só nos três compartilhando sentimentos
que ninguém mais poderia entender.
Eles sempre me amaram. Sempre.
Então... porque eu passei a odiá-los.
Foi aí que desconfiei... dela.

Peguei outro álbum de fotografias. Um álbum que


iluminou minha mente em busca de respostas. O álbum de
minha falecida mãe.
Me lembro de minha mãe, de mim e de meus irmãos. De
quando éramos criança e da forma de como ela nos
tratava. Era muito amor, carinho compreensão, mas è
medida que íamos crescendo seu tratamento ia mudando.
Olhar de desdém, palavras ferinas. Ela nos praguejava e
amaldiçoava e eu não entendia o por que. Não entendia...
até hoje.
Me lembro de minha mãe falando sobre minha avó. A
mesma coisa, a mesma história que aconteceu com ela e
comigo.
Por isso desconfiei de ser obra de algum espírito maligno.
Do demônio talvez.
Por isso abracei minha filha bem forte e pedi perdão, no
enterro de meu filho. O mesmo que eu matei ao empurrar
das escadas com força e ira suficientes para tirar-lhe a
51
vida. Pedi perdão por tê-los tratado mal, por ter se
esquecido do quanto eu os amava e internamente por ser
amaldiçoada e ter matado meu menino só para me livrar
dele e alimentar esse sentimento doentio dentro de mim.
Agora, olhando o álbum de fotos de minha mãe mais uma
vez, eu percebo seu olhar maligno direcionado a mim. Ou
olhar de aviso: “Você será assim também... e seus
descendentes”.
Minha filha se casou com um ótimo marido. Engravidou.
Temi que ela se tornasse igual a mim. Igual a minha mãe,
igual a minha avó e perpetuasse essa maldição.
Isso. Maldição!
E agora que estou lúcida a ponto de ver o quanto a amo e
ao meu neto percebo que devo dar fim a isso de uma vez
por todas.
É por isso que estou agora em sua casa. Vim visitá-la...
envenenei sua comida.
Agora ela, seu marido e meu netinho dentro de sua
barriga, dormem em paz.
Enquanto unto a casa com gasolina.
Ficarei aqui com eles, irei findar esse reflexo maldito que
povoou minha família por gerações.
Irei finalmente quebrar esse espelho maldito e alcançar a
paz que tanto sonhei para mim e minha família.

FIM

52
Agradecimentos.

Espero que tenha gostado. Dentro em breve lançarei


o segundo volume de Além do Véu.

Se quiser pode me adicionar no Orkut:


http://www.orkut.com.br/Main#Profile?rl=ls&uid=1
2182699398793470972

53

Você também pode gostar